segunda-feira, 29 de setembro de 2014

São Jerônimo, Bispo e Doutor da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Bento XVI, Papa Emérito


1. Vida

Detemos hoje a nossa atenção sobre São Jerónimo, um Padre da Igreja que colocou no centro da sua vida a Bíblia : traduziu-a em língua latina, comentou-a nas suas obras, e sobretudo empenhou-se em vivê-la concretamente na sua longa existência terrena, não obstante o conhecido carácter difícil e impetuoso que recebeu da natureza.

Jerónimo nasceu em Strídon por volta de 347 de uma família cristã, que lhe garantiu uma cuidadosa formação, enviando-o também a Roma para aperfeiçoar os seus estudos. Desde jovem sentiu atracção pela vida mundana (cf. Ep. 22, 7), mas prevaleceram nele o desejo e a intercessão pela religião cristã. Tendo recebido o baptismo por volta de 336, orientou-se para a vida ascética e, tendo ido a Aquileia, inseriu-se num grupo de cristãos fervorosos por ele definido quase ‘um coro de beatos’ (Chron. ad ann. 374) reunido em volta do Bispo Valeriano. Partiu depois para o Oriente e viveu como eremita no deserto de Calcide, a sul de Alepo (cf. Ep. 14, 10), dedicando-se seriamente aos estudos. Aperfeiçoou o seu conhecimento do grego, iniciou o estudo do hebraico (cf. Ap. 125, 12), transcreveu códices e obras patrísticas (cf. Ep. 5, 2). A meditação, a solidão, o contacto com a Palavra de Deus fizeram amadurecer a sua sensibilidade cristã. Sentiu mais incómodo o peso dos anos juvenis (cf. Ep. 22, 7), e advertiu vivamente o contraste entre mentalidade pagã e vida cristã : um contraste que se tornou célebre pela ‘visão’ dramática e vivaz, da qual nos deixou uma narração. Nela pareceu-lhe ser flagelado diante de Deus, porque ‘ciceroniano e não-cristão’ (cf. Ep 22, 30).

Em 382 transferiu-se para Roma : aqui o Papa Dâmaso, conhecendo a sua fama de asceta e a sua competência de estudioso, assumiu-o como secretário e conselheiro; encorajou-o a empreender uma nova tradução latina dos textos bíblicos por motivos pastorais e culturais. Algumas pessoas da aristocracia romana, sobretudo fidalgas como Paula, Marcela, Asella, Lea e outras, desejosas de se empenharem no caminho da perfeição cristã e de aprofundarem o seu conhecimento da Palavra de Deus, escolheram-no como sua guia espiritual e mestre na abordagem metódica aos textos sagrados. Estas fidalgas aprenderam também grego e hebraico.

Depois da morte do Papa Dâmaso, Jerónimo deixou Roma em 385, e empreendeu uma peregrinação, primeiro à Terra Santa, testemunha silenciosa da vida terrena de Cristo, depois ao Egipto, terra de eleição de muitos monges (cf. Contra Rufinum 3, 22; Ep. 108, 6-14). Em 386 permaneceu em Belém onde, por generosidade da fidalga Paula, foram construídos um mosteiro masculino, um feminino e uma estalagem para os peregrinos que iam à Terra Santa, ‘pensando que Maria e José não tinham encontrado onde repousar’ (Ep. 108, 14). Permaneceu em Belém até à morte, continuando a desempenhar uma intensa actividade : comentou a Palavra de Deus; defendeu a fé, opondo-se vigorosamente a várias heresias; exortou os monges à perfeição; ensinou a cultura clássica e cristã a jovens alunos; acolheu com alma pastoral os peregrinos que visitavam a Terra Santa. Faleceu na sua cela, perto da gruta da Natividade, a 30 de Setembro de 419/420.

A preparação literária e a ampla erudição permitiram que Jerónimo fizesse a revisão e a tradução de muitos textos bíblicos : um precioso trabalho para a Igreja latina e para a cultura ocidental. Com base nos textos originais em grego e em hebraico e graças ao confronto com versões anteriores, ele realizou a revisão dos quatro Evangelhos em língua latina, depois o Saltério e grande parte do Antigo Testamento. Tendo em conta o original hebraico e grego, dos Setenta, a versão grega clássica do Antigo Testamento que remontava ao tempo pré-cristão, e as precedentes versões latinas, Jerónimo, com a ajuda de outros colaboradores, pôde oferecer uma tradução melhor : ela constitui a chamada ‘Vulgata’, o texto ‘oficial’ da Igreja latina, que foi reconhecido como tal pelo Concílio de Trento e que, depois da recente revisão, permanece o texto ‘oficial’ da Igreja de língua latina. É interessante ressaltar os critérios aos quais o grande biblista se ateve na sua obra de tradutor. Revela-o ele mesmo quando afirma respeitar até a ordem das palavras das Sagradas Escrituras, porque nelas, diz, ‘até a ordem das palavras é um mistério’ (Ep. 57, 5), isto é, uma revelação. Reafirma ainda a necessidade de recorrer aos textos originários : ‘Quando surge um debate entre os Latinos sobre o Novo Testamento, para as relações discordantes dos manuscritos, recorremos ao original, isto é, ao texto grego, no qual foi escrito o Novo Pacto. Do mesmo modo para o Antigo Testamento, se existem divergências entre os textos gregos e latinos, apelamos ao texto original, o hebraico; assim tudo o que brota da nascente, podemo-lo encontrar nos ribeiros’ (Ep. 106, 2). Além disso, Jerónimo comentou também muitos textos bíblicos. Para ele os comentários devem oferecer numerosas opiniões, ‘de modo que o leitor cauteloso, depois de ter lido as diversas explicações e conhecido numerosas opiniões para aceitar ou rejeitar julgue qual seja a mais fidedigna e, como um perito de câmbios, rejeite a moeda falsa’ (Contra Rufinum 1, 16).

Contestou enérgica e vivazmente os hereges que recusavam a tradição e a fé da Igreja. Demonstrou também a importância e a validade da literatura cristã, que se tornou uma verdadeira cultura já digna de ser posta em confronto com a clássica : fê-lo compondo o De viris illustribus, uma obra na qual Jerónimo apresenta as biografias de mais de uma centena de autores cristãos. Escreveu também biografias de monges, ilustrando ao lado de outros percursos espirituais também o ideal monástico; traduziu também várias obras de autores gregos. Por fim, no importante Epistolário, uma obra-prima da literatura latina, Jerónimo sobressai com as suas características de homem culto, de asceta e de guia das almas.

Que podemos nós aprender de São Jerónimo? Sobretudo, penso, o seguinte : amar a Palavra de Deus na Sagrada Escritura. Diz São Jerónimo : ‘Ignorar as Escrituras é ignorar Cristo’. Por isso é importante que cada cristão viva em contacto e em diálogo pessoal com a palavra de Deus, que nos é dada na Sagrada Escritura. Este nosso diálogo com ela deve ter sempre duas dimensões : por um lado, deve ser um diálogo realmente pessoal, porque Deus fala com cada um de nós através da Sagrada Escritura e cada um tem uma mensagem. Devemos ler a Sagrada Escritura não como palavra do passado, mas como Palavra de Deus que se dirige também a nós e procurar compreender o que o Senhor nos quer dizer. Mas para não cair no individualismo devemos ter presente que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para construir comunhão, para nos unir na verdade no nosso caminho para Deus. Portanto, ela, mesmo sendo sempre uma palavra pessoal, é também uma Palavra que constrói comunidade, que constrói a Igreja. Por isso, devemos lê-la em comunhão com a Igreja viva. O lugar privilegiado da leitura e da escuta da Palavra de Deus é a liturgia, na qual, celebrando a Palavra e tornando presente no Sacramento o Corpo de Cristo, actualizamos a Palavra na nossa vida e tornámo-la presente entre nós. Nunca devemos esquecer que a Palavra de Deus transcende os tempos. As opiniões humanas vão e voltam. O que hoje é muito moderno, amanhã será velho. A Palavra de Deus, ao contrário, é Palavra de vida eterna, tem em si a eternidade, ou seja, é válida para sempre. Trazendo em nós a Palavra de Deus, trazemos também em nós o eterno, a vida eterna.

E concluo com uma palavra de São Jerónimo a São Paulino de Nola. Nela o grande exegeta expressa precisamente esta realidade, isto é, que na Palavra de Deus recebemos a eternidade, a vida eterna. Diz São Jerónimo : ‘Procuremos aprender na terra aquelas verdades cuja consistência persistirá também no céu’ (Ep. 53, 10).


2. Pensamento

Jerónimo ressaltava a alegria e a importância de se familiarizar com os textos bíblicos : ‘Não te parece habitar já aqui na terra no reino dos céus, quando se vive entre estes textos, quando os meditamos, quando não se conhece e não se procura nada mais?’ (Ep. 53, 10). Na realidade, dialogar com Deus, com a sua Palavra, é num certo sentido presença do Céu, isto é, presença de Deus. Aproximar-se dos textos bíblicos, sobretudo do Novo Testamento, é essencial para o crente, porque ‘ignorar a Escritura é ignorar Cristo’. É sua esta célebre frase, citada também pelo Concílio Vaticano II na Constituição Dei Verbum (n. 25).

Verdadeiramente ‘apaixonado’ pela Palavra de Deus, ele perguntava : ‘Como se poderia viver sem a ciência das Escrituras, através das quais se aprende a conhecer o próprio Cristo, que é a vida dos crentes?’ (Ep. 30, 7). A Bíblia, instrumento ‘com o qual todos os dias Deus fala aos fiéis’ (Ep. 133, 13), torna-se assim estímulo e fonte da vida cristã para todas as situações e para cada pessoa. Ler a Escritura é conversar com Deus : ‘Se rezas escreve ele a uma jovem nobre de Roma falas com o Esposo; se lês, é Ele quem te fala’ (Ep. 22, 25). O estudo e a meditação da Escritura tornam o homem sábio e sereno (cf. In Eph., prol.). Sem dúvida, para compreender cada vez mais profundamente a palavra de Deus é necessária uma dedicação constante e progressiva. Assim Jerónimo recomendava ao sacerdote Nepociano : ‘Lê com muita frequência as divinas Escrituras; aliás, que o Livro sagrado nunca seja deposto das tuas mãos. Aprende aqui o que tu deves ensinar’ (Ep. 52, 7). Dava estes conselhos à matrona romana Leta para a educação cristã da filha : ‘Certifica-te que ela estude todos os dias alguns trechos da Escritura... Que depois da oração se dedique à leitura, e depois da leitura à oração... Que em vez das jóias e dos vestidos de seda, ela aprecie os Livros divinos’ (Ep. 107, 9.12). Com a meditação e a ciência das Escrituras ‘mantém-se o equilíbrio da alma’ (Ad Eph., prol.). Só um profundo espírito de oração e a ajuda do Espírito Santo nos podem introduzir na compreensão da Bíblia : ‘Na interpretação da Sagrada Escritura nós temos sempre necessidade do socorro do Espírito Santo’ (In Mich., 1, 1, 10, 15).

Toda a vida de Jerónimo se distingue por um amor apaixonado pelas Escrituras, um amor que ele sempre procurou despertar nos fiéis : ‘Ama a Sagrada Escritura e a sabedoria amar-te-á; ama-a ternamente e ela guardar-te-á; honra-a e receberás as suas carícias. Que ela seja para ti como os teus colares e brincos’ (Ep. 130, 20). E ainda : ‘Ama a ciência da Escritura, e não amarás os vícios da carne’ (Ep. 125, 11).

Para Jerónimo um critério fundamental de método na interpretação das Escrituras era a sintonia com o magistério da Igreja. Nunca podemos sozinhos ler a Escritura. Encontramos demasiadas portas fechadas e facilmente caímos no erro. A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Só nesta comunhão com o Povo de Deus podemos realmente entrar com o ‘nós’ no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer dizer. Para ele uma interpretação autêntica da Bíblia devia estar sempre em concordância harmoniosa com a fé da Igreja católica. Não se trata de uma exigência imposta a este Livro a partir de fora; o Livro é precisamente a voz do Povo de Deus peregrino e só na fé deste Povo temos, por assim dizer, a tonalidade justa para compreender a Sagrada Escritura. Por isso Jerónimo admoestava : ‘Permanece firmemente apegado à doutrina tradicional que te foi ensinada, para que tu possas exortar segundo a tua sã doutrina e contrastar quantos a contradizem’ (Ep. 52, 7). Em particular, dado que Jesus Cristo fundou a sua Igreja sobre Pedro, cada cristão concluía ele deve estar em comunhão ‘com a Cátedra de São Pedro. Eu sei que sobre esta pedra está edificada a Igreja’ (Ep. 15, 2). Consequentemente, sem meios-termos, declarava : ‘Eu estou com todo aquele que estiver na Cátedra de São Pedro’ (Ep. 16).

Obviamente Jerónimo não descuida o aspecto ético. Com frequência ele recorda o dever de conciliar a vida com a Palavra divina e só vivendo-a encontramos também a capacidade de a compreender. Esta coerência é indispensável para cada cristão, e particularmente para o pregador, para que as suas acções, se forem discordantes em relação aos discursos, não o ponham em dificuldade. Assim exorta o sacerdote Nepociano : ‘Que as tuas acções não desmintam as tuas palavras, para que não aconteça que, quando pregas na igreja, haja quem no seu íntimo comente : ‘Por que precisamente tu não te comportas assim?’. Verdadeiramente simpático aquele mestre que, de barriga cheia, disserta sobre o jejum; também um ladrão pode censurar a avareza; mas no sacerdote de Cristo a mente e a palavra devem estar em sintonia’ (Ep. 52, 7). Noutra carta Jerónimo recorda : ‘Também se possui uma doutrina maravilhosa, não tem vergonha a pessoa que se sente condenar pela própria consciência’ (Ep. 127, 4). Sempre em tema de coerência, ele observa : o Evangelho deve traduzir-se em atitudes de caridade verdadeira, porque em cada ser humano está presente a própria Pessoa de Cristo. Dirigindo-se, por exemplo, ao presbítero Paulino (que depois foi Bispo de Nola e Santo), Jerónimo assim o aconselha : ‘O verdadeiro templo de Cristo é a alma do fiel : ornamenta este santuário, embeleza-o, coloca nele as tuas ofertas e recebe Cristo. Para que revestir as paredes de pedras preciosas, se Cristo morre de fome na pessoa de um pobre?’ (Ep. 58, 7). Jerónimo concretiza : é preciso ‘vestir Cristo nos pobres, visitá-lo em quem sofre, alimentá-lo nos famintos, dar-lhe abrigo nos desalojados’ (Ep. 130, 14). O amor a Cristo, alimentado com o estudo e a meditação, faz-nos superar qualquer dificuldade : ‘Amemos também nós Jesus Cristo, procuremos sempre a união com ele : então parecer-nos-á fácil também o que é difícil’ (Ep.22, 40).

Jerónimo, definido por Próspero de Aquitânia ‘modelo de comportamento e mestre do género humano’ (Carmen de ingratis, 57), deixou-nos também um ensinamento rico e variado sobre o ascetismo cristão. Ele recorda que um compromisso corajoso em relação à perfeição exige uma vigilância constante, mortificações frequentes, mesmo se com moderação e prudência, um trabalho intelectual ou manual assíduo para evitar o ócio (cf. Epp. 125, 11 e 130, 15), e sobretudo a obediência a Deus : ‘Nada... apraz tanto a Deus como a obediência... que é a virtude mais excelsa e única’ (Hom. de Oboedientia : CCL 78, 552). No caminho ascético pode estar incluída também a prática das peregrinações. Em particular, Jerónimo estimulou as peregrinações à Terra Santa, onde os peregrinos eram acolhidos e hospedados nos edifícios ao lado do mosteiro de Belém, graças à generosidade da fidalga Paula, filha espiritual de Jerónimo (cf. Ep. 108,14).

Por fim, não podemos deixar de mencionar o contributo dado por Jerónimo em matéria de pedagogia cristã (cf. Epp. 107 e 128). Ele propõe-se formar ‘uma alma que deve tornar-se o templo do Senhor’ (Ep. 107, 4), uma ‘gema preciosíssima’ aos olhos de Deus (Ep. 107, 13). Com profunda intuição ele aconselha a sua preservação do mal e das ocasiões pecaminosas, a exclusão de amizades equívocas ou dissipantes (cf. Ep. 107, 4 e 8-9; cf. também Ep. 128, 3-4). Sobretudo exorta os pais para que criem um ambiente de tranquilidade e de alegria em volta dos filhos, os estimulem ao estudo e ao trabalho, também com o louvor e a emulação (cf. Epp. 107, 4 e 128, 1), os encoragem a superar as dificuldades, favoreçam neles os bons hábitos e os preservem dos maus costumes porque e cita uma frase de Públio Sírio que ouviu na escola ‘dificilmente conseguirás corrigir-te daquelas coisas às quais te vais tranquilamente habituando’ (Ep. 107, 8). Os pais são os principais educadores dos filhos, os primeiros mestres de vida. Com muita clareza Jerónimo, dirigindo-se à mãe de uma jovem e mencionando depois o pai, admoesta, quase expressando uma exigência fundamental de cada criatura humana que empreende a existência : ‘Que ela encontre em ti a sua mestra, e olhe para ti com admiração na sua inexperiente juventude. Que nunca veja em ti nem em seu pai atitudes que a levem a pecar, se forem imitadas. Recordai-vos de que... a podeis educar mais com o exemplo do que com a palavra’ (Ep. 107, 9). Entre as principais intuições de Jerónimo como pedagogo devem ser ressaltadas a importância atribuída a uma educação sadia e completa desde a infância, a responsabilidade peculiar reconhecida aos pais, a urgência de uma séria formação moral e religiosa, a exigência do estudo para uma formação humana mais completa.

Além disso, um aspecto bastante esquecido nos tempos antigos, mas considerado vital pelo nosso autor, é a promoção da mulher, à qual reconhece o direito a uma formação completa : humana, escolar, religiosa, profissional. E vemos precisamente hoje como a educação da personalidade na sua totalidade, a educação para a responsabilidade diante de Deus e do homem, seja a verdadeira condição para qualquer progresso, paz, reconciliação e exclusão da violência. Educação diante de Deus e do homem : é a Sagrada Escritura que nos oferece a guia para a educação e assim para o verdadeiro humanismo.

Não podemos concluir estas rápidas anotações sobre o grande Padre da Igreja sem mencionar a contribuição eficaz por ela dada à salvaguarda dos elementos positivos e válidos das antigas culturas judaica, grega e romana na nascente civilização cristã. Jerónimo reconheceu e assimilou os valores artísticos, a riqueza dos sentimentos e a harmonia das imagens presentes nos clássicos, que educam o coração e a fantasia para sentimentos nobres. Sobretudo, ele pôs no centro da sua vida e da sua actividade a Palavra de Deus, que indica ao homem os caminhos da vida, e revela-lhe os segredos da santidade. Por tudo isto devemos estar-lhe profundamente gratos, precisamente na nossa atualidade.’

 (7 de novembro de 2007) 
(14 de novembro de 2007)

Fonte :
Bento XVISantos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.  


domingo, 28 de setembro de 2014

São Miguel, São Gabriel e São Rafael, Arcanjos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘A Igreja Católica, guiada pelo Espírito Santo, herdou do Antigo Testamento a devoção a estes amigos, protetores e intercessores que do Céu vêm em nosso socorro pois, como São Paulo, vivemos num constante bom combate. A palavra ‘Arcanjo’ significa ‘Anjo principal’. E a palavra ‘Anjo’, por sua vez, significa ‘mensageiro’.


São Miguel

O nome do Arcanjo Miguel possui um revelador significado em hebraico : ‘Quem como Deus’. Segundo a Bíblia, ele é um dos sete espíritos assistentes ao Trono do Altíssimo, portanto, um dos grandes príncipes do Céu e ministro de Deus. No Antigo Testamento o profeta Daniel chama São Miguel de príncipe protetor dos judeus, enquanto que, no Novo Testamento ele é o protetor dos filhos de Deus e de sua Igreja, já que até a segunda vinda do Senhor estaremos em luta espiritual contra os vencidos, que querem nos fazer perdedores também. ‘Houve então um combate no Céu : Miguel e seus anjos combateram contra o dragão. Também o dragão combateu, junto com seus anjos, mas não conseguiu vencer e não se encontrou mais lugar para eles no Céu’. (Apocalipse 12,7-8)


São Gabriel

O nome deste Arcanjo, citado duas vezes nas profecias de Daniel, significa ‘Força de Deus’ ou ‘Deus é a minha proteção’. É muito conhecido devido a sua singular missão de mensageiro, uma vez que foi ele quem anunciou o nascimento de João Batista e, principalmente, anunciou o maior fato histórico : ‘No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré… O anjo veio à presença de Maria e disse-lhe : ‘Alegra-te, ó tu que tens o favor de Deus’…’ a partir daí, São Lucas narra no primeiro capítulo do seu Evangelho como se deu a Encarnação.


São Rafael

Um dos sete espíritos que assistem ao Trono de Deus. Rafael aparece no Antigo Testamento no livro de Tobit. Este arcanjo de nome ‘Deus curou’ ou ‘Medicina de Deus’, restituiu à vista do piedoso Tobit e nos demonstra que a sua presença, bem como a de Miguel e Gabriel, é discreta, porém, amiga e importante. ‘Tobias foi à procura de alguém que o pudesse acompanhar e conhecesse bem o caminho. Ao sair, encontrou o anjo Rafael, em pé diante dele, mas não suspeitou que fosse um anjo de Deus’ (Tob 5, 4).

São Miguel, São Gabriel e São Rafael, rogai por nós!’


Fonte  :

sábado, 27 de setembro de 2014

Deus não impõe, mas convoca e convida

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  *Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará

  
‘Em todas as celebrações eucarísticas ouvimos a proclamação da Igreja, que ressoa a Escritura : ‘Felizes os convidados para a Ceia do Senhor’ (Cf. Ap19, 9). E é grande a alegria por saber que o chamado de Deus quer incluir a todos. Na oração do Rosário, o terceiro mistério luminoso nos faz contemplar justamente o chamado à conversão, que ocorre com o anúncio do Reino de Deus. É que da parte do Senhor existe a clara vontade de salvar a todos, envolvendo as diversas gerações e situações humanas. Ao se tratar de uma grande consolação, resulta igualmente provocante a responsabilidade entregue à liberdade humana, pois Deus não impõe, mas convoca e convida. Conversando com um jovem em recuperação na ‘Fazenda da Esperança’, Comunidade Terapêutica presente em tantas partes de nosso país e do mundo, ouvi uma afirmação surpreendente. Dizia ele que seu drama maior era uma porteira aberta, por saber que, se quisesse, poderia ir embora. Sabia que o maior presente dado por Deus era entrar pelos umbrais da liberdade que o conduziam, pela estrada do Evangelho, a uma vida nova!

Jesus estabeleceu contato com todas as classes de pessoas, pelo que escandalizava a muitos. Era uma multidão de estropiados, rejeitados da sociedade, doentes de toda ordem, gente solitária, publicanos, pecadores de qualquer classificação. O Evangelho apenas permite entrever os dramas humanos que se apresentavam ao Senhor. Não muito diferente das imagens oferecidas ao vivo e a cores em nossos dias, com pessoas sofrendo toda espécie de miséria. As guerras localizadas ou espalhadas por nossas cidades pela violência e a miséria mostram um mundo machucado e desorientado, carente de encontrar aberta a porta do Reino de Deus! Que seja uma imensa procissão em busca de Deus! Que a meta seja o regaço misericordioso daquele que veio para os pecadores!

Também nossa história pessoal é repleta de idas e vindas, marcadas pelo mistério do pecado, malgrado o desejo de acertar esteja presente, pela própria vontade de Deus que nos criou. Muitas vezes damos nossa resposta positiva aos apelos de Deus e depois seguimos por outra estrada, cedendo ao egoísmo, turrões, cabeças duras que pretendem ser donas da verdade. Podemos ser também como o filho pirracento do primeiro momento que depois se converte e obedece ao Pai. ‘Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse : ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha!’ O filho respondeu : ‘Não quero’. Mas depois mudou de atitude e foi. O pai dirigiu-se ao outro filho e disse a mesma coisa. Este respondeu :‘ Sim, senhor, eu vou’. Mas não foi’ (Mt 21, 28-30). Cada pessoa sabe de sua aventura humana de liberdade, quedas, arrependimento, coragem para recomeçar, pedidos de perdão aos milhares, encontros com a misericórdia de Deus. Escute a palavra de Deus : ‘Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e faz o que é direito e justo, conservará a própria vida. Arrependendo-se de todos os crimes que cometeu, ele certamente viverá, não morrerá’ (Ez 18, 27-28)

O contato de Jesus com as pessoas é marcado pelo chamado constante à conversão. O início de sua pregação resume a proposta que faz à humanidade : ‘Depois que João foi preso, Jesus veio para a Galiléia, proclamando a Boa Nova de Deus : Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa-Nova’ (Mc 1, 14-15). Os cobradores de impostos convertidos e as prostitutas que acreditaram em Jesus, mudando radicalmente sua vida, são referências da possibilidade de transformação inscrita por Deus no coração humano (Cf. Mt 21, 28-32).

Os publicanos, cobradores de impostos, traidores do povo por trabalharem para os romanos, manipulavam a fonte permanente de tentação para o ser humano, o dinheiro! A malversação das verbas públicas e as torneiras abertas, pelas quais passam milhões e bilhões, ainda estão expostas diante de nossos olhos, nos dias que vivemos. Multiplicam-se os escândalos, revelam-se operações fraudulentas, mas o ‘deus dinheiro’ continua atraindo as pessoas, traindo-as mesmo quando, confrontadas com acusações e provas dizem não saber de nada. A conversão passa pelo bolso, pois exige um uso dos bens segundo o plano de Deus, fundamentado na partilha e na comunhão. Chamem-se Mateus ou Zaqueu, ou quem sabe estejam no templo orando ao lado de um fariseu, é possível e desejável que os homens e mulheres, todos nós, mudemos o modo de usar os bens da terra!

Outro campo delicado é o da afetividade e da sexualidade e a degradação do uso de tais realidades, sob o título de prostituição. O corpo continua a ser vendido, não só nas zonas de prostituição de nossas cidades. Há outras formas de negociá-lo! Até se enfeita mais este comércio, justificando-o com a falsa liberdade de expor a intimidade das pessoas. Entretanto, o Evangelho de todos os tempos dará nome de Mulher adúltera, ou Samaritana, Prostituta ou outros qualificativos e profissões, a muitas pessoas que creem em Jesus Salvador e a Ele se convertem, mesmo depois de uma vida de miséria e sofrimento.

Com os publicanos e as prostitutas, amplie-se o horizonte para se sentirem envolvidos no chamado à conversão todos os homens e mulheres de nosso tempo, cada um de nós em primeiro lugar, seja qual for o nosso currículo! Encontram-se abertas as portas e as inscrições! Para entrar no Reino de Deus, as condições são o reconhecimento sincero da condição de pecadores, a coragem do arrependimento, a força para recomeçar quantas vezes for necessário, a sinceridade do olhar que se encontra com a misericórdia de Deus. Vale ainda olhar ao nosso redor e fazer festa com aqueles muitos que, também pecadores, são nossos companheiros, irmãos e irmãs que peregrinam na estrada da conversão, sem julgá-los ou pretender excluí-los.

É tempo de pedir com sinceridade : ‘Ó Deus, que mostrais vosso poder, sobretudo no perdão e na misericórdia, derramai sempre em nós a vossa graça, para que, caminhando ao encontro das vossas promessas, alcancemos os bens que nos reservais’’.


Fonte :

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

São Vicente de Paulo, Presbítero

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Nasceu na Aquitânia em 1581. Completados os estudos e ordenado sacerdote, exerceu o ministério paroquial em Paris. Fundou a Congregação da Missão (Lazaristas), destinada à formação do clero e ao serviço dos pobres. Com a ajuda de Santa Luísa de Marilac instituiu também a Congregação das Filhas da Caridade. Morreu em Paris no ano 1660.


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de São Vicente de Paulo, 
presbítero :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Dos Escritos de São Vicente de Paulo, presbítero
(Cf. Correspondance, Entretiens, Documents, ed. P. Coste,
Paris 1920-1925, passim)       (Séc.XVII)

Deve-se preferir o serviço dos pobres acima de tudo
Não temos de avaliar os pobres por suas roupas e aspecto, nem pelos dotes de espírito que pareçam ter. Com frequência são ignorantes e curtos de inteligência. Mas muito pelo contrário, se considerardes os pobres à luz da fé, então percebereis que estão no lugar do Filho de Deus que escolheu ser pobre. De fato, em seu sofrimento, embora quase perdesse a aparência humana – loucura para os gentios, escândalo para os judeus – apresentou-se, no entanto, como o evangelizador dos pobres : Enviou-me para evangelizar os pobres (Lc 4,18). Devemos ter os mesmos sentimentos de Cristo e imitar aquilo que ele fez: ter cuidado pelos indigentes, consolá-los, auxiliá-los, dar-lhes valor.

Com efeito, Cristo quis nascer pobre, escolheu pobres para seus discípulos, fez-se servo dos pobres e de tal forma quis participar da condição deles, que declarou ser feito ou dito a ele mesmo tudo quanto de bom ou de mau se fizesse ou dissesse aos pobres. Deus ama os pobres, também ama aqueles que os amam. Quando alguém tem um amigo, inclui na mesma estima aqueles que demonstram amizade ou prestam obséquio ao amigo. Por isto esperamos que, graças aos pobres, sejamos amados por Deus. Visitando-os, pois, esforcemo-nos por entender os pobres e os indigentes e, compadecendo-nos deles, cheguemos ao ponto de poder dizer com o Apóstolo : Fiz-me tudo para todos (1Cor 9,22). Por este motivo, se é nossa intenção termos o coração sensível às necessidades e misérias do próximo, supliquemos a Deus que derrame em nós o sentimento de misericórdia e de compaixão, cumulando com ele nossos corações e guardando-os repletos.

Deve-se preferir o serviço dos pobres a tudo o mais e prestá-lo sem demora. Se na hora da oração for necessário dar remédios ou auxílio a algum pobre, ide tranquilos, oferecendo a Deus esta ação como se estivésseis em oração. Não vos perturbeis com angústia ou medo de estar pecando por causa de abandono da oração em favor do serviço dos pobres. Deus não é desprezado, se por causa de Deus dele nos afastarmos, quer dizer, interrompermos a obra de Deus, para realizá-la de outro modo.

Portanto, ao abandonardes a oração, a fim de socorrer a algum pobre, isto mesmo vos lembrará que o serviço é prestado a Deus. Pois a caridade é maior do que quaisquer regras, que, além do mais, devem todas tender a ela. E como a caridade é uma grande dama, faz-se necessário cumprir o que ordena. Por conseguinte, prestemos com renovado ardor nosso serviço aos pobres; de modo particular aos abandonados, indo mesmo à sua procura, pois nos foram dados como senhores e protetores.


Fonte :
‘In Liturgia das Horas IV’, 1305, 1307


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A santa discrição na direção espiritual

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Santa Edith Stein 

A Santa Regra de São Bento é frequentemente denominada como ‘discretione perspicua’, quer dizer, ‘que se distingue pela discrição’. A discrição é considerada como uma marca característica da santidade beneditina.

De certo modo, sem ela não existe santidade e, quando compreendida em sua amplitude, se confunde com a própria santidade. Quando se confia algo a alguém, de humilde discrição, espera-se que ele guardará silêncio, porém, é muito mais do que simples sigilo. O discreto sabe, mesmo quando não lhe é recomendado, aquilo que não deve falar. Possui o dom de discernir entre o que deve falar e o que deve manter em silêncio, a quem se pode confiar algo e a quem não o pode. Isto serve tanto para assuntos pessoais quanto para os outros.

Consideramos como indiscrição se alguém fala de seus assuntos pessoais quando não convém, ou quando sua omissão é ofensiva.

Deste dom necessitam especialmente os que têm de dirigir almas. São Bento o menciona no contexto do capítulo 64 que caracteriza o Abade. Nas decisões que toma tem de ser ‘prudente e refletido’ e seja um trabalho humano ou divino que ele ordena, tem de saber discernir e ponderar, tendo presente o discernimento de Jacó quando diz : ‘Se fizer meus rebanhos trabalhar, andando demais, morrerão todos num só dia’. Este e outros testemunhos sobre a discrição, a mãe de todas as virtudes, tem de brotar do seu coração de tal modo que saiba ver o que os fortes desejam e o que afugenta os fracos. Poderíamos definir aqui a discrição como sábia moderação. Mas a fonte de tal moderação é o dom do discernimento, isto é, saber o que é mais adequado para cada um.

De onde nos vem este dom? Em nossa natureza há algo que nos capacita a um certo grau de discernimento. Nós o designamos como tato ou sensibilidade, fruto da cultura espiritual e sabedoria herdadas ou adquiridas, por meio de uma complexa atividade educativa e através de experiências de vida. O Cardeal Newman afirma que o autêntico cavalheiro, cortês e atencioso, quase se confunde com o santo. Certamente isto só é válido enquanto não se cumpre um certo limite. A partir deste limite, porém, o equilíbrio ‘natural’ se faz em pedaços. Por ouro lado, essa discrição natural, não penetra no profundo. Sabe muito bem ‘como tratar os homens’ e chega a prevenir-se dos obstáculos da vida social, lubrificando oportunamente as engrenagens do sistema. Mas, os pensamentos do coração, no mais íntimo da alma, permanecem escondidos. Aí, só penetra o Espírito que tudo perscruta inclusive a profundez da divindade. A autêntica discrição é, portanto, sobrenatural. Encontra-se somente onde reina o Espírito Santo, onde uma alma totalmente entregue e livre para mover-se, está atenta à suave voz do encantador hóspede e espera o seu sopro divino. (...)

A santa discrição é radicalmente diversa da discrição humana. Ela não discerne em base a um pensamento progressivo, como pode ser o espírito investigador humano, tampouco na base de compêndios ou de comparações e agrupamentos, ou conclusões e demonstrações. Ela discerne como o olho em plena luz do dia o contorno que as coisas têm ao seu redor. Perceber os mínimos detalhes não impede que se perca a visão do todo. Quanto mais acima o peregrino está, mais amplo é o panorama à sua frente, visto que do cume de onde contempla, alcança todos os arredores. O olho do espírito, iluminado pela luz celeste, alcança as distâncias mais remotas e nada se lhe apresenta indistinto ou indistinguível. Com a união cresce a plenitude até que o simples raio da luz divina se faça visível, no mundo inteiro, como aconteceu a São Bento na magna visão.


Fonte : 
* Santa Edith Stein (Teresa Benedita da Cruz, OCD, 1891-1942). Obras Selectas – Editorial Monte Carmelo – Burgos, 1998, p. 261-264.

Revista Beneditina nrº 11, Julho/Agosto de 2005, traduzido e editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Missionários na China : Como pedras escondidas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

   *Artigo de Padre José Rebelo,
Missionário Comboniano


O que torna difícil a missão na China?

Bem, há muitas missões na China. Foi particularmente difícil nos primeiros anos por causa do problema da língua. Além disso, as energias investidas no nosso trabalho pastoral não foram proporcionais aos resultados que estávamos a obter. Por outro lado, estávamos num contexto onde havia um certo número de católicos e liberdade política e religiosa [em Taiwan, nota do editor]. Estávamos numa comunidade e numa paróquia, de alguma forma, protegidos e ocupados a fazer coisas, mesmo que os resultados fossem muito poucos. Trabalhávamos da maneira tradicional missionária – no contexto de uma paróquia em que fomos inseridos. Olhando para trás para essa experiência, reconheço que foi um desafio, mas menor do que o que enfrentamos agora [na China continental, nota do editor].

A maneira como estamos a fazer a missão agora na China é diferente, por várias razões. Vivemos num lugar e trabalhamos noutro, faltando um sentimento de pertença. Como estamos a trabalhar na formação, precisamos de muito tempo para preparar os materiais. O tempo nunca é suficiente. Então, vamos a um lugar no continente e ficamos lá por curtos períodos de tempo, dois ou três dias, uma semana, para um retiro anual ou até duas semanas para um curso bíblico. Tentamos integrar-nos com as pessoas, mas passado esse tempo com eles, podemos não voltar a vê-las. Temos essa sensação de ser pedras escondidas. Nós não somos protagonistas! O que me deu um sentido de humildade e de rendição à vontade de Deus. No fim, a única coisa que nos mantém nesse tipo de trabalho é a confiança que temos em Deus. Nós fazemos este trabalho especial por causa de Deus ou para Deus.


É uma obra de fé!

Assim é. Os resultados são escassos. Por exemplo, agora estou prestes a ir para o continente e a ter pelo menos cinco diferentes actividades de formação : orientar dois retiros de três dias e realizar encontros de formação com os seminaristas e as crianças. Acabados os cursos, vamo-nos embora e ficamos sem saber o impacto que houve. Quando semeamos, também gostamos de colher. Não o podemos fazer, é difícil fazê-lo. É por isso que este trabalho requer uma espiritualidade forte, uma força interior que permita que se continue com serenidade, convencido de que esta é a obra de Deus. Confiamos em Deus e vamos em frente, mesmo que mal possamos ver os resultados. Estamos numa situação muito especial : estamos a servir a Igreja na China. Este é o tipo de trabalho missionário que fazemos. É emocionante e desafiador. Posso dizer que, até agora, estou muito feliz.


As pessoas dão valor ao trabalho que faz?

A Igreja na China está a enfrentar a cruz. O missionário que quer ir para a China tem de viver e experimentar as mesmas condições que as pessoas. Ele não domina o que está a acontecer. Primeiro, ele pode planear apenas para os meses imediatos. Então, mesmo que planeie as suas actividades, não sabe o que vai acontecer. A polícia pode detê-los a qualquer momento. Este trabalho é clandestino tanto para a Igreja legal como para a comunidade subterrânea. Não é permitido, é ilegal. Então, isso põe-nos numa situação de tensão que não é fácil de suportar.


A língua e a cultura são obstáculos para o seu trabalho no sentido de impedi-lo de partilhar os conteúdos e as experiências que desejou?

Pode impedir-nos de expressar completamente as experiências religiosas que queremos transmitir. No entanto, a língua não pode ser vista como um obstáculo para a missão. O que passamos no início, ao aprendermos a língua pacientemente, é apenas uma amostra do que vai acontecer depois. É um tipo de treino. O estudo da língua não é uma preparação para a evangelização, é o momento mais genuíno para o missionário expressar o amor às pessoas que ele estará a servir mesmo que ainda desconhecidas para ele. Ele investe todas as suas energias e capacidades num povo que não conhece ainda. Portanto, considero a língua não como um obstáculo mas como um verdadeiro compromisso missionário : ela põe-nos no ambiente certo para as coisas que estão para vir.


O que o faz sentir-se humilde!?

O modelo é a humildade de Jesus, como aparece na carta aos Filipenses (2, 5-11). O hino proclama que Jesus, apesar de ser Deus, ‘esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo, e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz’. A humildade de pôr-se ao serviço das pessoas, confiando em Deus, é muito necessária. Na África, onde trabalhei alguns anos, eu era o protagonista. Na Ásia, isso não acontece muito. As pessoas podem gostar de nós e apreciar o que dizemos e fazemos, mas, depois de alguns dias, temos de começar de novo, mais tarde, noutro lugar. Devemos ter a atitude de João Baptista – que Ele cresça e nós possamos diminuir. Não nos devemos tornar um obstáculo para que as pessoas venham a Cristo, que por vezes pode acontecer. Este é o trabalho de um missionário.


Esse trabalho na China pode ser feito por qualquer pessoa?

Provavelmente não. Nem toda a gente gosta deste tipo de missão – entrar e sair e gastar muito tempo a preparar-se para os cursos. Há pessoas que gostam de uma vida mais estável, por exemplo, num ambiente paroquial. O tipo de trabalho que estamos a fazer na China continental põe-nos numa situação muito, muito irregular. Certamente, sem uma vida de oração é difícil aceitar as cruzes que vêm por aí e fazem parte do todo que é este tipo de vida missionária. A China tem uma Igreja local pobre. Colaborar com ela, dando alguma da formação de que ela mais precisa, é um privilégio.


Podemos dizer que este é um trabalho provisório?

O trabalho provisório é uma das características do trabalho missionário desde o início do Cristianismo. São Paulo é um bom exemplo : viajava e estabelecia as primeiras comunidades sem estar por muito tempo num só lugar. O papel dos missionários é ajudar no nascimento da Igreja, confiá-la à população local e seguir em frente. Quando os missionários comemoram o 75.º ou o 100.º aniversário de uma comunidade na África ou na América Latina, sinto-me envergonhado! Parece que estão a comemorar o seu próprio fracasso em estabelecer a Igreja local e transmiti-la às pessoas.


Está aqui há muitos anos. Quando veio pela primeira vez, não estava a pensar que a China ia abrir-se mais rapidamente do que está a acontecer?

Com certeza! Às vezes, vem-me à mente : o que seria a situação na China se houvesse liberdade de religião? Mas sou realista e nunca trabalho segundo a abordagem do ‘se’. Atenho-me muito à realidade. Temos também de admitir que houve melhorias nos últimos vinte anos. Isso significa que a Igreja está a crescer com altos e baixos por causa das circunstâncias. Há sinais positivos, por exemplo, no campo da formação. Vinte anos atrás, eu estava a chegar à China e as regras e abordagens do Concílio Vaticano II estavam a começar a ser postas em prática. Hoje em dia, há boas comunidades cristãs na China. Há bons grupos missionários e alguns leigos que vão para outros lugares partilhar o seu zelo missionário. Há um grande grupo de irmãs que foram estudar no estrangeiro e vão voltar para as suas congregações e dioceses e elas estão a ir bem. Há muitos padres que foram para o estrangeiro para estudar e voltaram, e são boas pessoas de recurso. Como as vocações diminuem, os leigos estão a crescer em espírito missionário.



Os problemas não o preocupam mais do que deviam?

Os problemas sempre existiram e digo sempre o seguinte : se a Igreja na China, durante a Revolução Cultural, foi capaz de encontrar o seu caminho, sobreviver e sair com muito entusiasmo, a situação por que estamos a passar não tem nada que se compare com esse momento. A Igreja na China está acostumada a carregar a cruz e, por isso, é justo que também os missionários se envolvam e assumam os desafios da Igreja. Nós também devemos levar a cruz com esperança.


Os cristãos na China estão esperançados no futuro?

A China é grande e as coisas mudam de um lugar para outro. Após sessenta anos, os cristãos de ambas as comunidades (clandestina e pública) sabem como sobreviver no quadro político – como puxar o fio o suficiente, mas sem o partir. Há experiências muito interessantes de paróquias renovadas. Uma preocupação é o êxodo rural para as áreas urbanas. Essa é uma das coisas que a Igreja ainda não tratou. Os jovens estão a deixar as áreas rurais e a irem para as principais cidades para estudar. Nas áreas rurais, a Igreja é activa, hoje em dia, podem até mesmo tocar os sinos. Então, toda a gente sabe quando tem de ir à missa ou à oração. Na cidade, a situação é muito diferente e, lentamente, esta geração mais jovem, se não é bem-vinda aos lugares onde está ou se as paróquias urbanas não encontram o caminho para entrar em contacto com ela, podemos estar à beira de perder toda uma geração. Para mim, esta é uma das principais preocupações para a Igreja na China. Tenho assistido a muitos simpósios, mas não ouvi falar de uma tentativa de resolver este problema.


Há experiências missionárias?

No outro dia, entrei em contacto com um grupo missionário em Hebei animado por um padre que é uma pessoa muito zelosa e entusiasmada, com uma mente missionária. Foram-se deslocando constantemente, indo para as cidades e áreas rurais. Disseram-me : ‘Nós somos a Dagong de Deus.’ (Dagong são os migrantes que vão para outros lugares à procura de emprego e de dinheiro.) ‘Fazemos este tipo de migração para Deus, para partilhar a Palavra de Deus!’ Isso é algo que vai mudar a situação do Cristianismo na China, porque, tradicionalmente, o Cristianismo foi estabelecido em áreas rurais, mas agora está a mudar destas para as áreas urbanas. Quem cuida dessa massa toda de pessoas que fluem de um lugar para outro? Esta é uma das principais preocupações! Na verdade, algumas das actividades que organizamos ocorrem quando esses migrantes estão em casa, que é no Verão ou durante o Ano Novo chinês. Estas são as épocas em que os alunos recebem outros jovens e pessoas que estão a trabalhar noutras províncias.


Foi o fundador de Fenxiang. Como aconteceu isso?

Foi em 1998. Percebi que tinha de ter algo do tipo, porque pertencia a uma congregação missionária que trabalha na Ásia, o continente mais populoso, onde poucos são cristãos, e por causa da situação particular da China, cuja Igreja foi passando o mistério pascal, a paixão, morte e ressurreição de Cristo. Começámos a pensar no assunto e, desde o início, vi que a formação era a questão crucial. Em seguida, houve a necessidade de promoção humana. Outra questão que considerei muito importante foi a forma de partilhar o nosso espírito missionário com a Igreja local. Estes foram os três pilares que inspiraram a nossa presença na China.

Durante os últimos anos, estes têm vindo a desenvolver-se. Vendo os desafios e as circunstâncias, algumas mudanças foram feitas na modalidade e na forma como fazemos as coisas, mas ainda mantemos esses três princípios : formação, promoção humana e visão missionária. No início, estávamos mais preocupados com a promoção humana e patrocinávamos muitos projectos de desenvolvimento. Ainda estamos envolvidos com a promoção humana, a lidar com os mais marginalizados : ajudamos os órfãos e damos bolsas de estudo a crianças muito pobres, apoiamos as famílias afectadas pela sida e pagamos os cursos de formação das pessoas que cuidam delas. Mas agora estamos a concentrar-nos cada vez mais na formação e na animação missionária. Se há algo sensível na China, é essa dimensão missionária. É o oposto do que o Governo da China gostaria de ouvir. Uma vez que nos sentimos agora mais à vontade ​​com a língua e conhecemos as pessoas, ministramos cursos. Muitas paróquias e muitas dioceses pedem-nos essa ajuda. Como fazer o trabalho missionário num país com 1 bilhão e 300 milhões de pessoas e uma minoria de cristãos? Como abordar os não cristãos? E darmos-lhes algumas ferramentas para os ajudar a viver como cristãos (espiritualidade missionária, estudo da Bíblia e assim por diante).


Já alguma vez se envolveu com os leprosos?

Sim! Trabalhei de perto com eles há alguns anos. Nessa altura, patrocinámos bolsas de estudo para crianças cujos pais viviam em aldeias de leprosos.


A lepra ainda é um grande estigma social?

Durante os últimos anos, não tive muito contacto com eles. No entanto, permanece como uma espécie de tabu na China e noutros lugares. As pessoas receiam-na como se fosse uma doença contagiosa. O Governo nega que haja lepra e considera que é uma doença de pele. A Igreja está muito envolvida com eles, especialmente as Irmãs, que estão a fazer algo que o Governo é incapaz de fazer. Uma das razões para a Igreja emergir na sociedade é justamente por isso : apoia aqueles que são ‘ninguém’ : leprosos, órfãos, deficientes, doentes de sida. Muitas estruturas diocesanas, sobretudo através das Irmãs, lidam com essas situações. As pessoas vêm para conhecer a Igreja, através dessas iniciativas. É uma ‘Igreja samaritana’. A Igreja fez a opção pelos marginalizados, mostrando-o de muitas maneiras diferentes. Isso é algo que temos de aplaudir. Nós apoiamos estas iniciativas a favor das pessoas excluídas.


Será que uma congregação missionária tem alguma coisa a ganhar com este tipo de serviço?

Eu acho que uma congregação missionária não pode deixar de estar presente na China. É uma das fronteiras da missão na qual não somos protagonistas, não podemos controlar as coisas de qualquer maneira possível, onde temos muito poucas satisfações e experimentamos a cruz. Estes são os traços genuínos para nos ajudarem a viver profundamente a nossa espiritualidade missionária. Aqui estamos humilhados, e acho que isso é único e tem de ser trazido para toda a congregação. Talvez esta missão não seja para todos, mas dá-nos a perspectiva correcta para fazer missão, e o missionário, do ponto de vista espiritual, encaixa-se perfeitamente no contexto chinês. Mas deve haver um maior investimento das congregações, especialmente em pessoal.’


Fonte   :
* Artigo na íntegra de http ://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFZklyFkVpOmoieemW


São Pio de Pietrelcina, Presbítero

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de São Pio de Pietrelcina, presbítero :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Do Decreto Presbyterorum ordinis sobre o ministério e a vida dos presbíteros, do Concílio Vaticano II
(N.12)      (Séc.XX)

A vocação dos presbíteros à perfeição
Pelo sacramento da Ordem, os presbíteros são configurados com Cristo sacerdote, na qualidade de ministros da Cabeça, para construir e edificar todo o seu corpo que é a Igreja, como cooperadores da ordem episcopal. De fato, já pela consagração do batismo receberam, como todos os cristãos, o sinal e o dom de tão grande vocação e graça para que, apesar da fraqueza humana, possam e devam procurar a perfeição, segundo a palavra do Senhor : Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5,48).

Os sacerdotes, porém, estão obrigados por especial motivo a atingir tal perfeição, uma vez que, consagrados a Deus de modo novo pela recepção do sacramento da Ordem, se transformaram em instrumentos vivos de Cristo, eterno Sacerdote, a fim de poderem continuar através dos tempos sua obra admirável que reuniu com suma eficiência toda a família humana.

Como, pois, cada sacerdote, a seu modo, faz as vezes da própria pessoa de Cristo, é também enriquecido por uma graça especial, para que, no serviço dos homens a ele confiados e de todo o povo de Deus, possa alcançar melhor a perfeição daquele a quem representa, e para que veja a fraqueza do homem carnal curada pela santidade daquele que por nós se fez Pontífice santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores (Hb 7,26).

Cristo, a quem o Pai santificou, ou melhor, consagrou e enviou ao mundo, se entregou por nós, para nos resgatar de toda a maldade e purificar para si um povo que lhe pertença e que se dedique a praticar o bem (Tt 2,1), e assim, pela Paixão, entrou na sua glória. De modo semelhante, os presbíteros, consagrados pela unção do Espírito Santo e enviados por Cristo, mortificam em si mesmos as obras da carne e dedicam-se totalmente ao serviço dos homens, e assim podem progredir na santidade pela qual foram enriquecidos em Cristo, até atingirem a estatura do homem perfeito.

Deste modo, exercendo o ministério do Espírito e da justiça, se forem dóceis ao Espírito de Cristo que os vivifica e dirige, firmam-se na vida espiritual. Pelas próprias ações sagradas de cada dia, como também por todo o seu ministério, exercido em comunhão com o bispo e com os outros presbíteros, eles mesmos se orientam para a perfeição da vida.

A santidade dos presbíteros, por sua vez, contribui muitíssimo para o desempenho frutuoso do próprio ministério; pois, embora a graça divina possa realizar a obra da salvação também por meio de ministros indignos, contudo Deus prefere, segundo a lei ordinária, manifestar as suas maravilhas através daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo : Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim (Gl 2,20).


Fonte :