quinta-feira, 30 de março de 2017

Distrações

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Dom Leven Harton, OSB,
Vice-Prior de St. Benedict´s Abbey, Atchison, Kansas, EUA


Ninguém presuma relatar a outrem qualquer das coisas que tiver visto ou ouvido fora do mosteiro, pois é grande a destruição.’ RB 67,5. ‘Raramente seja concedida aos discípulos perfeitos licença de falar por causa da gravidade do silêncio...’ RB 6,3.


‘Fora do contexto do carisma monástico, algumas frases da Regra de São Bento podem aparecer severas e isoladas. Qual seria o mal que poderia causar o monge, escutando notícias de fora do mosteiro? E por que a conversa entre os irmãos deve ser regulada? Monges não são adultos com capacidade de filtrar o que ouvem e beneficiar-se da interação com as realidades externas? O que pode ser o valor positivo que São Bento imagina quando coloca estas e outras restrições nas comunicações do mosteiro?

Admitimos que nossa cultura seja bem carregada – cheia de comunicação e informação. Vivemos na era de ‘informação’, um momento da história em que desfrutamos de acesso sem precedente a conteúdo de toda variedade. E enquanto recebemos grandes benefícios com informação rapidamente disponível, há uma grande cilada que ameaça profundamente a dignidade humana : a distração.

Por ‘distração’ não me refiro ao inseto perturbante que faz zum-zum na consciência de vez em quanto, causando irritação temporária pela atenção dividida. Eu quero dizer uma vida de distração, vida cheia de distração, vida focalizada na distração. A era em que tentamos viver ‘cristianidade’ é uma era que nos oferece um verdadeiro ‘carisma’ de secularidade neste tipo de vida – uma vida de distrações.

Viver distraído é estar habitualmente desconectado da realidade que se encontra à nossa frente. Para o cristão, distração é um perigo grave. Desvinculado da realidade, está separado de Deus. Distração cria obstáculo na avenida pela qual Cristo vem até nós. Assim, a vida de distração pode ser uma forma de revolta, rejeição da própria vida; e esforços de providência divina são insuficientes, faltosos, sem eficácia. Um ‘não’ a Deus desta maneira fica tácito, basicamente não reconhecido. Em vez de viver a vida sem filtro, cara a cara, vem a intervenção de uma postura confortável de entretenimento. E iludimos a responsabilidade consciente da nossa vida, escondendo-nos atrás de centenas de pequenas escolhas para manter distração. O compromisso assumido, único à ação humana, é descartado neste caso, e nos entregamos por um nada. A vida distraída, ainda mais, é alienação, não só de Deus, mas da dignidade de poder fazer verdadeiras escolhas humanas.

Minha oportunidade para distração veio de uma conversa provocante sobre o time de beisebol de Kansas City no ano passado, quando se dizia que este time tão calcado estava para jogar no campeonato nacional. Escutar um jogo na rádio é bom para relaxar e um entretenimento moralmente neutro. Todavia, houve o risco de tal modo distraído de vida tornar-se real para mim. Viajando recentemente para uma reunião de suma importância, aproximando-se do meu destino, estava precisando rezar e refletir bastante em preparação para esta reunião. Surgiu, então, a tentação de escutar na rádio este jogo importante do meu time preferido. Pensando, não poder ser tentação, pois eu gosto de seguir este time. Não é tentação porque seguir o time não é ‘prazer do mundo’. A tentação para mim era o desvio de atenção da situação levando-me a não assumir o que eu deveria. Era tentado a dividir minha pessoa entre o jogo e a reunião que precisava da minha atenção. Parece brincadeira. Mas participar do jogo neste momento me tiraria de uma preparação adequada para uma reunião importante. Será que posso sacrificar algo que gosto muito, um jogo do meu time preferido em ascensão? Felizmente resisti à tentação e a reunião saiu ótima.

São Bento reconheceu tal tentação para humanidade, a vontade de descuidar de nossa interioridade e viver distraídos. Mesmo sem a tecnologia de comunicação do século 21, ou jogos de esporte!

São Bento se preocupava que os monges mantivessem o estado de recolhimento e exortava a comunidade a guardar silêncio. As primeiras palavras da Regra são emblemáticas da espiritualidade beneditina : obsculta, ‘escuta’. Não há escuta, percepção com os olhos da fé, ou atenção com o coração se a pessoa estiver distraída, perdida nas imaginações, ansiedades ou jogos esportivos. A tarefa de permanecer-se ligado e colocar-se a si mesmo frente à realidade é aplicar-se a escutar e prestar atenção. Cremos que a realidade é portadora da presença de Deus em nossa vida. Tal experiência é impossível ao coração distraído.

Monges no século 21, em geral, têm mais acesso ao mundo do que São Bento podia imaginar. Hoje, há mais comunicação interna na maioria dos mosteiros do que no mosteiro onde ele morava – Monte Cassino. O valor de ficar recolhido, face à realidade, porém, é ainda bom para o monge hoje. É um testemunho ao mundo contemporâneo que cegamente incentiva relações superficiais. Mas o coração humano, que precisa da realidade e é feito para comprometer-se com ela, não é enganado pela distração.

Um exemplo de um ‘santo’ pela fidelidade à realidade vem de uma forma improvável de um falecido magnata da moda. O ex-editor da revista Elle, Jean-Dominique Bauby, foi submetido a uma mudança de sorte quando sofreu Síndrome do Encarceramento (Locked-in Syndrome), que paralisou seu corpo inteiro, exceto o olho esquerdo que ainda podia piscar. Neste estado de paralisia, após um ritmo de vida agitado e glamoroso, ele piscou, letra por letra, a um fonoaudiólogo, sua autobiografia, o livro com o título Le Scaphandre et le Papillon. (1)

Pelas cortinas desfiadas da minha janela uma luminosidade pálida anunciou o dia. Meu calcanhar dói, minha cabeça pesa uma tonelada, e algo como um enorme escafandro invisível mantém meu corpo prisioneiro. Meu quarto aos poucos clareou : fotos dos queridos, desenhos dos filhos, o suporte do soro suspenso sobre minha cama onde fiquei confinado estes últimos seis meses, como um caranguejo eremita cravado ao seu rochedo. Até agora nunca ouvi falar do tronco cerebral. Aprendi que é o componente essencial em nosso computador interno, o elo inseparável entre o cérebro e cordão espinhal. Fui brutalmente introduzido a este vital pedaço de anatomia quando o AVC atrapalhou meu tronco cerebral.

Aos poucos, tornando aclimatada a sua situação, Bauby começa a descobrir esperança. Ele descreve seu lugar favorito no Hospital Naval de Berck, no terraço, a um protetor ao qual ressegura : ‘Saindo do elevador no andar errado, eu o vi : alto, robusto e tranquilizador, com listras vermelhas e brancas que me fez lembrar a camisa de rúgbi. Coloquei-me de novo sob a proteção deste símbolo tão fraterno, guardião não só de marinheiros, mas dos doentes – aqueles jogados nas praias da solidão. O farol e eu permanecemos em contato constante, e frequentemente o visitei, pedindo alguém a me levar ao terraço na cadeira de rodas.’

Paralisado, este homem se encontra na posição de enxergar a realidade de uma maneira nova. A sua vida de distração lhe foi retirada, e ele se viu forçado a olhar e escutar de forma diferente. Ele reconheceu no farol a presença de um benigno e poderoso guardião, ao qual eu chamo Deus. Esta nova posição, nova capacidade de perceber a realidade e o que a realidade contém, é o que São Bento estava pensando quando colocou limites na comunicação e interação entre os membros da comunidade. Claro, ele não quer e não espera que seus monges sejam impedidos de conseguir isso. Não precisamos nos separar uns dos outros para experimentar a diferença em sermos livres de distrações. Para todos nós, em qualquer estado de vida em que o Senhor tem nos colocado, podemos ter a certeza de que Ele quer nos encontrar em nossa própria realidade. Se conseguirmos cultivar aquele silêncio e aquela paz que nos são dados, O encontraremos em nossas circunstâncias. E encontrando-O, Ele nos traz aquela paz que o mundo não nos pode dar.’


Fonte :

(1) O Escafandro e a borboleta. França, Éditions Robert Laffont, 1997

Tradução : Duane G. Roy, OSB

Revisão : Josias Dias da Costa, OSB

Priorado São José, Mineiros-GO


terça-feira, 28 de março de 2017

Nos tempos do fio de barba

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O 'fio-de-barba' já não existe como garantia de negócio seguro.
*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Quando era criança, escutava meu pai, vez ou outra, comentando sobre a garantia representada por um fio de barba. Confesso que não entendia aquilo muito bem. Contudo, o passar dos anos foram mostrando-me, de forma bastante prática e por vezes contristante, o significado e a importância do ‘fio de barba’. Fio este que vim a descobrir não ser exatamente da barba, mas quase sempre do bigode. Falemos um pouco de sua origem, para depois comentarmos sua importância, especialmente nos dias atuais.

A palavra ‘bigode’ teria surgido em torno do ano 1498, partindo de uma expressão germânica usada em juramentos : ‘bi Gott’, ou seja : ‘por Deus’. Com ela sedimentava-se um compromisso de forma inviolável.

Retrocedendo o relógio da história, voltamos aos tempos bíblicos, onde a barba era extremamente valorizada pelos judeus, tendo significado religioso profundo. Talvez aí tenha nascido a expressão ‘pelas barbas do profeta’, que possuía sentido de verdade indiscutível, ou compromisso irrevogável. Chegamos à Idade Média, período que abrange os séculos V ao XV, tempo dos cavaleiros andantes, símbolo (ainda que por vezes questionável) de honradez e seriedade. E usualmente, entre eles, entregava-se um fio de barba ao interlocutor, quando um compromisso era assumido. No Brasil do século XIX, selava-se um negócio com um fio de barba, mais especificamente do bigode – que quase todos homens sérios possuíam – colocado dentro de um envelope juntamente com o texto dos compromissos assumidos. Era um ritual ‘bi Gott’, onde Deus servia como testemunha.

Chegamos ao século XXI, onde a longa barba e o bigode deixaram de ser usuais, apesar de que, vivendo numa sociedade líquida, esses adereços faciais estão retornando, geralmente em personagens públicas como jogadores de futebol, cantores, artistas de televisão ou pessoas com aguda necessidade de se mostrar e ser notado. Vez ou outra, encontramos esse ornamento cápilo-facial, em pessoas comuns, não tão exóticas ou notórias. De qualquer forma, não mais como símbolo de austeridade, mas como componente de uma arquitetura capilar chamativa e, por vezes, até mesmo de formidável mau gosto.

Exatamente por isso o ‘fio-de-barba’ já não existe como garantia de negócio seguro, da mesma forma como o seu conjunto já não configura, com robustez, um homem probo.

Adentrando mais profundamente no quesito honestidade, percebemos hoje a inutilidade daquele elemento natural, tanto quanto dos muitos, e cada vez mais sofisticados, documentos utilizados nas mais diferentes transações. Partindo de um simples compromisso de prestação de serviço estabelecido entre cliente e profissional, passando pelo pressuposto dever de cumprimento da palavra empenhada, tanto numa relação interpessoal como na assunção de um cargo público – por nomeação ou por sufrágio – a palavra empenhada vale muito pouco ou quase nada, até quando entes superiores são tomados como testemunha : ‘bi Gott’!

Quantas pessoas amargam a espera, por dias seguidos, de um bombeiro compromissado para corrigir um vazamento em sua residência, mas que nunca aparece; de um pedreiro, um eletricista, um técnico de TV e tantos outros que não se importam em deixar o cliente a ver navios, sem qualquer explicação. Quantas pessoas agendam consulta com um médico – até por questões vitais – e são frustrados por atrasos ou até ausências (obviamente algumas inteiramente justificadas pela natureza do seu serviço, mas outras, por razões bastante prosaicas...). Quantas outras entregam para um advogado uma ação da qual dependem para sua própria sobrevivência, e o causídico que os atendeu tão prontamente na contratação dos seus serviços, tornam-se inalcançáveis, não dão qualquer retorno, frustram totalmente aquele que nele confiou. Li certa vez que cerca de 70% das queixas na OAB, contra advogados, são relacionadas à total falta de atenção desses profissionais.

Mutatis mutandis, o mesmo ocorre em praticamente todas as atividades liberais, assim como no comércio, na indústria, etc. e de modo ainda mais absurdo, nos serviços públicos.

Entrando na área política, o espaço desse artigo se torna absolutamente insuficiente para as necessárias citações. Recorro então ao noticiário dos jornais, rádios e TVs para um mamútico exemplo da total inutilidade do fio-de-barba nesse mundo promíscuo de empresários e políticos. Nele, nem um bigode do tamanho das madeixas de Rapunzel, conseguiria superar a hipocrisia e as mentiras dos milionários e bilionários que hoje, por graça especial de Moros, Janots, Federais e outros poucos mosqueteiros, disfrutam do ‘conforto’ das celas a que condenaram, com seus conchavos e falsetas, à fome, à miséria, às drogas e ao crime, tantos cidadãos brasileiros, muitos, quem sabe, até mesmo seus eleitores...’


Fonte :


sábado, 25 de março de 2017

A Oração da Quaresma de Santo Efrén, o Sírio

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Alexander Schmemann,
teólogo e sacerdote cristão ortodoxo
(13.09.1921 – 13.12.1983)


‘De todos os hinos e orações da quaresma, uma pequena oração pode ser qualificada como A Oração da Quaresma. A Tradição atribui sua autoria a um dos maiores mestres da vida espiritual, Santo Efrén o Sírio.


‘Senhor e Mestre de minha vida,
afasta de mim o espírito de preguiça,
de abatimento, de domínio, de loquacidade,
e concede a mim, teu servo, um espírito de integridade,
de humildade, de paciência e de amor.

Sim, Senhor e Rei,
concede ver meus pecados e não julgar meus irmãos’
porque és bendito pelos séculos dos séculos. Amém.


Esta oração é recitada duas vezes ao final de cada Ofício de Quaresma, de segunda a sexta-feira.

Por que esta pequena e simples oração ocupa um lugar tão importante em toda a vida litúrgica da Quaresma? Porque enumera, de um modo singular, todos os elementos positivos e negativos do arrependimento e constitui, de algum modo, uma espécie ‘checking list’ de nosso esforço individual de Quaresma. Este esforço aponta primeiro a nossa libertação de algumas enfermidades espirituais fundamentais que dão forma à nossa vida e que tornam virtualmente impossível para nós, inclusive, iniciar o nosso retorno para Deus.

Então, negativos :

. Indolência
. Desalento
. Vanglória
. Loquacidade (palavras vãs, inúteis)


Indolência

A enfermidade básica é a indolência. É esta estranha preguiça e passividade de nosso ser que sempre nos empurra para ‘baixo’, em vez de nos elevar para o ‘alto’ – que constantemente nos convence que nenhuma mudança é possível e, portanto, desejável.

É de fato um cinismo profundamente enraizado que reage a cada ato espiritual : ‘para que?’ e faz de nossa vida um enorme desperdício espiritual. É a raiz de todo pecado porque envenena a sua energia espiritual em sua própria fonte.


Desalento

E o resultado da indolência é a pusilanimidade, o estado de desalento considerado por todos os Santos Padres como o maior perigo para a alma. O desalento é a impossibilidade do homem ver qualquer coisa como boa ou positiva; é a redução de tudo ao negativismo e pessimismo. É, verdadeiramente, um poder demoníaco em nós, porque o diabo é fundamentalmente um mentiroso. Ele mente ao homem sobre Deus e sobre o mundo; ele enche a vida com obscuridade e negação. O desalento é o suicídio da alma porque, quando o homem é possuído por ele fica absolutamente incapaz de ver a luz e desejá-la.


Vanglória

Por estranho que possa parecer, é precisamente a indolência e o desalento que enchem nossa vida de vanglória. Ao contaminar toda a atitude para a vida e fazê-la sem sentido e vazia, forçam-nos a buscar compensação numa atitude radicalmente equivocada para com as outras pessoas.

Se minha vida não estiver orientada para Deus, não apontará para valores eternos e, inevitavelmente, se tornará egoísta e egocêntrica, e isto significa que todos os outros seres se tornarão meios de minha autodestruição.

Se Deus não é o Senhor e Mestre de minha vida, então eu me torno senhor de mim mesmo, mestre e centro absoluto de meu mundo, e começo a avaliar tudo em termos de minhas necessidades,meus desejos e meus juízos.

A vanglória é então uma depravação fundamental em minha relação com outros seres, uma busca de sua subordinação a mim. Não é necessariamente expressada num verdadeiro impulso de dominar e mandar aos ‘outros’. Pode também se manifestar em indiferença, desprezo, falta de interesse, consideração e respeito.

Quando a indolência e o desalento se dirigem aos outros, aí então está verdadeiramente a vanglória; assim completamos o suicídio e a morte espiritual.


Loquacidade (Palavra Inútil)

Finalmente, a loquacidade. De todos os seres criados, somente o homem foi dotado com o dom da palavra. Todos os Santos Padres vêem na vã palavra o verdadeiro ‘selo’ da Imagem Divina no homem, porque Deus mesmo se revelou como verbo (Jo 1,1). Porém, na medida em que é dom supremo, é igualmente prova de supremo perigo. Sendo a mesma expressão do homem, o meio de sua auto-realização, é por esta mesma razão o meio de sua queda e auto-destruição, de traição e de pecado. A palavra salva e a palavra mata; a palavra inspira e a palavra envenena. A palavra é o meio da verdade e a palavra é um meio da mentira demoníaca. Verdadeiramente, cria, positiva e negativamente.

Quando é desviada de seu propósito e origem divina, a palavra se torna inútil e reforça : a indolência; o desalento; a vanglória.

E transforma a vida em um inferno, se torna mesmo poder do pecado.

Estes são então, os quatro ‘objetos’ negativos do arrependimento. São os obstáculos a serem removidos. Porém, somente Deus pode removê-los. Portanto, é a primeira parte da Oração de Quaresma – este grito do fundo do desamparo humano. Logo, a oração se move às atitudes do arrependimento que também são quatro.


Positivos :

. Castidade
. Humildade
. Paciência
. Amor


Castidade

Se se reduz este termo (e, freqüentemente é entendido de forma errônea) só às suas conotações sexuais, é entendido como a contraparte positiva da indolência. A indolência é, antes de tudo, dissipação, ruptura de nossa visão e energia, a incapacidade de ver o todo. Seu oposto é precisamente plenitude.

Se, usualmente nos referimos a castidade como a virtude oposta à depravação sexual, é porque o caráter destruído de nossa existência é aqui melhor manifestado que na luxúria sexual. Cristo restaura a plenitude em nós e Ele faz isto ao restaurar em nós a verdadeira escala de valores ao levar-nos de volta a Deus.


Humildade

O primeiro e maravilhoso fruto desta plenitude ou castidade é a humildade. Está sobre tudo mais a vitória da verdade em nós, a eliminação de todas as mentiras nas que usualmente vivemos. A humildade é em si mesma a verdade, e pode ver e aceitar as coisas como são e, portanto, de ver a majestade e bondade de Deus em tudo. É por isso que se nos diz que Deus dá graça ao humilde e se opõe ao orgulhoso.


Paciência

A castidade e a humildade são naturalmente seguidas pela paciência.

O homem ‘natural’, ou ‘caído’ é impaciente porque, sendo cego para si mesmo é rápido para julgar e para condenar aos outros. Tendo um conhecimento fragmentado e distorcido do todo, ele mede todas as coisas por seus próprios gostos e idéias. Sendo indiferente a todos, exceto a si mesmo, ele quer que a vida seja exitosa aqui mesmo e agora. A paciência, não obstante, é realmente uma virtude divina. Deus é paciente não porque Ele é ‘indulgente’, mas porque Ele vê a profundidade de tudo o que existe, a realidade interior das coisas que, em nossa cegueira, não conseguimos ver.

E, quanto mais nos aproximamos de Deus, mais pacientes nos tornamos e mais refletimos este infinito respeito por todos os seres, que é a qualidade própria de Deus.


Amor

Finalmente, a coroa e fruto de todas as virtudes, de todo o crescimento e esforço é o amor – o amor que, como temos dito, só pode ser dado por Deus – este dom que é a meta de toda a preparação e prática espiritual.

Todo isto é resumido e reunido na súplica (petição) de conclusão da Oração da Quaresma na qual pedimos ‘...conhecer minhas faltas e não julgar a meus irmãos’. Porque, em último caso, só há um perigo : o orgulho. O orgulho é a fonte do mal, e todo mal é orgulho.

Os escritos espirituais estão cheios de advertências contra as sutis formas de pseudo-piedade, as quais, na realidade, sob a aparência de humildade e auto-acusação, podem levar a um orgulho verdadeiramente demoníaco. Porém, quando nós ‘conhecemos nossos próprios erros’ e ‘não julgamos os nossos irmãos’, quando, noutros termos, a castidade, a humildade, a paciência e o amor são um só em nós, então, e só então, o último inimigo - o orgulho – terá sido vencido.

Logo após cada petição da oração realizamos uma prostração.

A prostração não se restringe à Oração de Santo Efrén, mas é apenas uma das características distintivas da vida litúrgica da Quaresma. Aqui, no entanto, seu significado é dado a conhecer melhor.

No longo e difícil esforço da recuperação espiritual, a Igreja não separa a alma do corpo. O homem completo caiu e se afastou de Deus; o homem completo foi restaurado, ele, o homem inteiro é que deve regressar a Deus. A catástrofe do pecado acha-se precisamente na vitória da carne – o animal, o irracional, a luxúria em nós – sobre o espiritual e o divino. Porém, o corpo é glorioso, o corpo é sagrado, tão sagrado que Deus mesmo ‘fez-se carne’ Jo 1,1.

A salvação e o arrependimento não são desprezo do corpo ou sua negação, mas a restauração da sua verdadeira função como a expressão e a vida do espírito, como o templo da alma humana que não tem preço.

O ascetismo cristão é uma luta, não contra, mas em favor do corpo. Por esta razão, o homem completo - alma e corpo – se arrependem. O corpo participa na oração da alma assim como a alma ora através e no interior do corpo.

A prostrações : signo ‘psicossomático’ do arrependimento e da humildade, da adoração e da obediência são, desta forma, o rito de Quaresma por excelência.

Deus nos permita viver esta Quaresma de modo adequado. Que Ele nos fortaleça para que cheguemos a ter em nós a humildade, a castidade, a paciência e o amor.

Este é o convite! Em ti está a decisão de segui-lo!’



Fr. Alexander falando

Fonte :

Tradução : monges da Comunidade Monástica São João, o Teólogo

quinta-feira, 23 de março de 2017

A falta que faz o conversar

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor

‘Costumo ressaltar a diferença enorme que existe entre o ouvir – usar o aparelho anatômico da audição – e o escutar. Este, a capacidade de assimilarmos o que foi ouvido, metabolizando-o à luz dos nossos conhecimentos e valores morais, refletindo e tirando conclusões sem açodamento ou preconceitos. Como se vê, uma arte dificílima. Também ressalto a diferença substanciosa que existe entre o olhar e o enxergar. O primeiro, representando a simples utilização da estrutura ocular, comum a quase todas as espécies animais. De certa forma, corresponde ao ouvir. Todavia, ao humano realmente evoluído, o olhar é apenas o ato inicial do enxergar, que é a compreensão exata – ou a mais próxima disso – daquilo ou daquele que se coloca diante dos nossos olhos. Enxergar corresponde, de certa forma, ao escutar, pois vai muito além do órgão anatômico do sentido, para o penetrar, profundamente, no que olhamos.

E o falar, tem também suas duas dimensões, sendo ele a mera articulação racional – ou não – das palavras que conhecemos, e às vezes até mesmo daquelas que mal sabemos pronunciar, inclusive ignorando o seu significado. Percebemos isso escutando certas pessoas pernósticas, ou alguns oradores de ocasião, ávidos de exibir erudição e buscando seus sonhados minutos de glória, mas carecendo dos mais comezinhos princípios da retórica, e – que tragédia! – do idioma em que pretende colocar suas ideias (se é que as têm...). Resumindo, qualquer pessoa é capaz de falar, entretanto são poucas as que conseguem conversar. Pois no universo da comunicação ele é, de certa forma, o correspondente ao enxergar e ao escutar, sendo porém uma arte bem mais nobre, mais complexa e mais gratificante para os que interagem. Quem bem conversa, bem enxerga, melhor escuta. E somente quem vai além de todas as limitações dos órgãos anatômicos : olhos, ouvidos e boca, é que logram escutar, enxergar e conversar, fazendo-o com absoluta autenticidade, humildade e generosidade, jamais por encenações que logo são desmascaradas. E os que o fazem genuinamente, são aquelas pessoas com quem nos deleitamos disfrutar de sua companhia. São aquelas de quem nos recordamos, sempre que temos necessidade de compartilhar tristezas ou alegrias, derrotas ou vitórias. Na área profissional, são os médicos, psicólogos, advogados, sacerdotes e pastores, mestres, jornalistas entrevistadores, etc. mais requisitados – mesmo (e especialmente) não sendo figurões, pois esses geralmente são frutos artificiais do marketing, hoje bastante agressivo em quase todas as atividades. Na vida familiar, onde não há espaço para o marketing, o diferencial é a disposição interior e pessoal de cada um, para acolher os que o procuram. Nos círculos de amizade, conhecemos bem aqueles que se aprazem em escutar, que não se impacientam com a fala do outro, que têm real interesse em conhecer o que o interlocutor está compartilhando com ele. Por outro lado, são notórios e cada vez em maior número, aqueles que estão sempre ávidos a encontrar um espaço para interromper quem fala, e logo despejar falação sobre si mesmos, sobre seus feitos, sobre suas maravilhas, sobre seu modo de pensar, sobre suas predileções – e muitas vezes também de seus familiares – sem terem escutado uma só palavra do que o outro disse. Na realidade, somente ouviam em prontidão para perceber um almejado ponto final, ou pelo menos uma vírgula, na fala do outro, permitindo-lhes tomar imediatamente a palavra. As vezes o grau de ansiedade é tanto, que nem a pontuação aguardam. Simplesmente ignoram a fala do outro e iniciam a sua verborragia individualista. São os comumente denominados ‘desmancha-bolinhos’.

Outra situação onde a arte de conversar assume enorme importância, são os momentos de discussão, onde diferentes pontos de vista se chocam. Isso ocorre especialmente no âmbito familiar. Nesse momento revelam-se os bons e os maus conversadores. Os bons escutam, procurando entender o que o outro realmente quer expressar. Também enxergam cuidadosamente para ver, além das aparências, o que o corpo daquela pessoa está dizendo além das palavras. Assim superam preconceitos, prejulgamentos e agressividades. São compassivos e conseguem amenizar e até apaziguar as mais complexas situações. Já os maus conversadores, não se interessam pelos sentimentos, nem pela opinião alheia. Julgam-se os donos da verdade, só eles estão certos, ouvem ofegantes e por isso quase nada escutam, estando sempre na defensiva e enchendo os pulmões de ar para, na primeira oportunidade, contestar com todas as forças o que os outros possam ter dito. Mesmo sem ter assimilado o que disseram. Para eles, o importante é ganhar a discussão e não necessariamente chegar a um consenso que atenda a todos. E muito menos admitir que sua posição nem sempre é a melhor, nem mesmo a mais certa.

Por isso a humanidade anda tão agressiva, e as pessoas tão recolhidas à sua conversa solitária nas máquinas eletrônicas, onde falam o que querem, não precisam escutar nem cuidar da forma ou do estilo, muito menos de uma fala escorreita. Sabem que não serão interrompidas e, a qualquer desconforto, é só dar um clique e ... que pena! O sistema caiu!’


Fonte :

terça-feira, 21 de março de 2017

O Monaquismo Brasileiro no século XXI

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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 *Artigo de Dom Matias Fonseca de Medeiros, OSB,
monge do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro
e editor responsável do Boletim da AIM em língua portuguesa


a. Um pouco da história

No contexto da vida monástica na América Latina, o Brasil conta atualmente com um número considerável de comunidades de tradição beneditina. Ao inverso dos demais países latino-americanos de colonização espanhola,[1] cujas fundações monásticas começaram a se estabelecer em fins do século XIX, os beneditinos portugueses fundaram um primeiro mosteiro em Salvador da Bahia, em 1582.[2] Nos anos seguintes, foram feitas novas fundações até atingirem o número de onze mosteiros no alvorecer século XVII. Por decisão do Definitório [3] da Congregação Beneditina de Portugal, reunido no Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, em 22 de agosto de 1596, esses mosteiros passaram a constituir a «Província Brasileira» da referida Congregação, sediada no Mosteiro de Salvador da Bahia, cujo Abade era, ao mesmo tempo, Provincial e Visitador da novel Província.

Após a Independência do Brasil, o Papa Leão XII, pela Bula «Inter Gravissimas Curas», de 1º de julho de 1827, erigiu os mosteiros da Província brasileira em Congregação própria e pediu aos monges, na mencionada Bula, que se ocupassem da educação da juventude. Entretanto, as leis anti-clericais do governo imperial, cujo propósito era a extinção das Ordens religiosas no país, proibiu a admissão de noviços. Em 1889, com a queda da monarquia e a proclamação da República, foi possível às Ordens religiosas – praticamente moribundas – reabrirem seus noviciados fechados há quarenta anos. Atendendo aos apelos do último Abade Geral da antiga Congregação Brasileira, Frei Domingos da Transfiguração Machado, o Papa Leão XIII pediu à florescente Congregação de Beuron que viesse em auxílio de sua co-irmã brasileira e a restaurasse. A 17 de agosto de 1895, sob a direção de Dom Gerardo van Caloen, monge da Abadia de Maredsous (Bélgica), um grupo de 16 religiosos, entre monges sacerdotes, irmãos conversos e postulantes, chegava ao Mosteiro de Olinda para dar início à obra de restauração da vida monástica no Brasil, oficialmente concluída em 1910 com a promulgação das novas Constituições.


b. Chegada de outras famílias monásticas

Várias Congregações monásticas vieram se estabelecer no Brasil nos inícios do século XX. Em primeiro lugar, deve-se mencionar a presença das Irmãs Beneditinas Missionárias de Tutzing, chegadas a Olinda em 1903. Convidadas por Dom Gerardo van Caloen, cuja visão de um monaquismo missionário foi para ele fonte de sérias indisposições com seus superiores da Congregação de Beuron, de orientação contemplativa, as Irmãs abriram escolas, fundaram hospitais, dispensários para os pobres, centros sociais, partindo um pouco mais tarde para a Missão do Rio Branco (hoje Roraima) com os monges missionários. Nesse meio-tempo, Dom Gerardo foi nomeado Bispo titular de Foceia e Prelado do Rio Branco (1905) e Arquiabade da Congregação (1908). Muito bem enraizadas no Brasil, as Beneditinas Missionárias de Tutzing estão presentes em dois Priorados (Olinda e Sorocaba) e têm numerosas vocações.

Em 1904/1905 foi a vez dos cistercienses da Estrita Observância (OCSO) ou trapistas franceses, enviados pelo célebre Abade de Sept-Fons, Dom Jean-Baptiste Chautard, em busca de um local de refúgio para seus monges, ameaçados de expulsão pelo governo de seu país. Estabelecidos nas proximidades de Tremembé, SP, fundaram a Trapa de Maristela, onde desenvolveram intensa atividade agrícola que muito marcou o desenvolvimento econômico da região. Foram seguidos pelas monjas trapistinas, provenientes da Abadia de Saint-Clément, de Mâcon (França). Depois de uma breve estadia em Tremembé, fixaram-se elas em Nova Friburgo, RJ. Ambas as fundações foram fechadas nos anos 30. Os trapistas só retornariam ao Brasil, em 1997, procedentes da Abadia de «Our Lady of Genesse», nos Estados Unidos, quando fundaram a florescente Abadia de Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente, PR. Em 2010, as trapistinas do Mosteiro de Quilvo, Chile, fundaram o Mosteiro de Nossa Senhora da Boa Vista, em Rio Negrinho, SC, em promissora fase de implantação. 

Os camaldulenses italianos também estabeleceram um mosteiro de sua Congregação no Rio Grande do Sul, em 1899. Contudo, tiveram que fecha-lo por imposição da Santa Sé, em 1926. Em 1985, voltaram ao Brasil, fundando uma nova casa, o Mosteiro da Transfiguração, em Mogi das Cruzes, SP. Em 1993, foram seguidos pelas monjas camaldulenses, também em Mogi das Cruzes, com a fundação do Mosteiro da Encarnação.

Em 1911, um grupo de jovens brasileiras, formadas na Abadia Nossa Senhora da Consolação, de Stanbrook (Inglaterra), fundou em São Paulo, SP, o primeiro mosteiro de monjas beneditinas de toda a América, a Abadia de Santa Maria, de onde se originou a quase totalidade dos mosteiros beneditinos femininos do Brasil, Argentina e Uruguai.

Nos anos 30-40, os cistercienses da Comum Observância (OCist), vindos da Alemanha, Áustria e Itália, fundaram cinco mosteiros com um estilo de vida mais orientado para as atividades pastorais. As monjas da mesma Ordem fundaram três Abadias.

Nos anos seguintes, surgiram novas comunidades monásticas pertencentes a diversas Congregações beneditinas : húngara, valumbrosana, olivetana, americano-cassinense, subiacense; monjas da Congregação da «Rainha dos Apóstolos»; monjas olivetanas da Congregação «Vita et Pax»; Irmãs americanas da «Federação de Santa Escolástica»; Irmãs Beneditinas austríacas do «Imaculado Coração de Maria»; Irmãs Beneditinas Missionárias, da Polônia; sem contar algumas comunidades diocesanas de aspecto beneditino e cisterciense.

Não devemos esquecer a Cartuxa de Nossa Senhora Medianeira, fundada em 1984, no município de Ivorá, RS.


c. No momento atual

Todo esse universo monástico, implantado no Brasil há mais de quatrocentos anos e nele chegado pelas mais variadas razões, vive nos espaços que lhes são próprios. A fundação da CIMBRA (Conferência de Intercâmbio Monástico do Brasil), em 1967, na movência dos anos pós-conciliares, permitiu que as diferentes comunidades se conhecessem melhor e passassem a colaborar mutuamente. O fruto desse conhecimento recíproco é a dinâmica de comunhão que estimula as comunidades de monges, monjas e irmãs a buscar e encontrar vias comuns de colaboração e ajuda fraterna em diversos níveis, sobretudo na formação de seus membros mais jovens. Os encontros periódicos de superiores e superioras proporcionam ocasiões para um intercâmbio de opiniões, aberto e franco, a respeito das preocupações que, no momento atual, interpelam a vida concreta dos mosteiros, sua missão, sua presença na sociedade contemporânea, no mundo do trabalho e da cultura, entre outras.

Para o monaquismo brasileiro de tradição beneditina, a Regra de São Bento continua sendo a fonte de unidade num pluralismo de expressões que enriquece e faz crescer cada uma de suas comunidades.’


Fonte :


[1] A coroa espanhola proibia categoricamente a implantação de Ordens monásticas masculinas em suas colônias americanas.

[2] Na verdade, o primeiro empreendimento monástico no Brasil, foi de cistercienses franceses, em terras do atual município de Nova Iguaçú (Rio de Janeiro), durante a tentativa de colonização francesa no século XVI. São José de Anchieta, em uma de suas cartas, se refere à existência de «frades bernardos» (nome dado antigamente aos cistercienses em Portugal) naquela região, onde se ocupavam da educação de crianças indígenas.


[3] Conselho do Abade Geral da Congregação.

domingo, 19 de março de 2017

As interpelações quaresmais e a experiência da vida nova

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Lorena Alves Silveira,
graduanda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia


‘Dizer sobre o cansaço e o stress da sociedade em que estamos inseridos já é um clichê. Continuamente somos bombardeados por uma série de informações de todos os tipos possíveis. Ao mesmo tempo, recebemos, através das redes sociais, inúmeras mensagens nos alertando sobre a importância de parar um pouco, refletir sobre a vida, reorganizar as prioridades, redescobrir e se importar com o que realmente é essencial.

Interromper o ritmo cotidiano para retirar-se da agitação desenfreada que nos envolve e transborda em nós, nunca foi tão necessário. Essa é a proposta quaresmal : um grande retiro! Retiro que não está atrelado ao espaço físico, ao silêncio meramente exterior, ao estar só. O desafio é justamente este : retirar-se estando em meio à efervescência urbana, cercado por pessoas, bombardeado por sons e imagens, permeado por conflitos internos, caos social, econômico e cultural.

Lançado o desafio, eis pergunta fundamental : retirar-se para quê? E é aí que costumamos nos perder... Se perguntarmos à muitas pessoas de nosso convívio o que as vêm em mente quando se diz ‘quaresma’, muitas irão nos responder ‘sacrifício’, ‘penitência’, ‘sofrimento’. A quaresma, não raramente, nos coloca em contato com pessoas que, nesse período, se dispõem à algum tipo de ‘sacrifício’, se abstendo de carnes, guloseimas, bebidas alcóolicas. Muitas vezes, atos vazios de sentido e perdidos neles mesmos.

Se retomarmos às fontes desse tempo litúrgico, veremos que a quaresma surge como oportunidade para os catecúmenos se prepararem mais intensamente para receber o batismo na celebração anual da Páscoa do Senhor, a Vigília Pascal. Essa experiência catecumenal é estendida a todos os já batizados, que na Noite Santa do Senhor irão renovar suas promessas batismais.

Voltemos para a pergunta fundamental : retirar-se para quê? Para revermos nossa vida a partir da experiência com o Ressuscitado e, alimentados por ela, renovarmos os compromissos assumidos em nosso batismo.

Todo acordo, contrato, combinação, carece de ser revisitado, para que nos recordemos de nossas motivações e tenhamos a possibilidade de avaliar a coerência de nosso caminhar. Assim, o período quaresmal deve ser um movimento de retirar-se da superfície de nós mesmos e irmos a fundo.

As perguntas a serem respondidas por todos os batizados durante a Vigília Pascal são um bom fio condutor para nossa reflexão nesses 40 dias. Para vivermos na liberdade dos filhos e filhas de Deus, para vivermos como irmãos e irmãs, renunciamos a todo o pecado, a tudo o que pode nos desunir? Cremos no Pai, Filho, e Espírito, que são amor, relação, fonte de vida?

Perguntas genéricas que encontram inúmeras possibilidades no particular de nosso viver. Pessoalmente e em comunidade, podemos nos colocar ao encontro dessas respostas. Afinal, em que Deus a nossa fé está fundamentada? Cremos na misericórdia, no amor, nas relações? Quais são meus valores fundamentais a partir de minha crença? Sou capaz de renunciar a tudo o que é contrário ao Reino?

Conduzidos por estes questionamentos, somos convidados aos três pilares desse tempo litúrgico, recebidos da fé judaica : a oração, o jejum, e a esmola. Essas práticas certamente nos auxiliam na busca pela coerência em nossos compromissos batismais, tão exigentes e fundamentais para o cristão.

Se colocar na dinâmica de diálogo com o Senhor, ouvir o que Ele nos ensina a partir do seu Evangelho, percebê-lo no grito ou silêncio do pobre, daqueles que estão às margens. É na oração que conhecemos a Deus, mas na oração verdadeira, sensível ao Senhor que se comunica através da vida. Conhecendo-o e atraídos pelo seu amor, somos capazes de entregá-lo nossas misérias mais profundas, nossas reais necessidades, nosso canto de louvor e gratidão.

A partir desse encontro amoroso, que é a oração, estamos aptos para reconhecer o outro em suas carências e alimentá-lo a partir de nossas renúncias, como irmãos e irmãs que somos. A esmola nada mais é do que o fruto do nosso jejum, que vai em socorro à necessidade do outro. Assim, o pão que não esteve em minha mesa voluntariamente, deve estar na mesa daqueles que não o tem todos os dias, para que a súplica ‘o pão nosso de cada dia nos dai hoje’ se concretize e o Reino aconteça.

Como o jejum dos alimentos encontra seu sentido alimentando o outro, toda renúncia encontra sua significação na cura das relações. Jejuar da malícia, da maldade, do egoísmo, da ambição... isso cura a todos nós, nos reconfigura como filhos do mesmo Pai amoroso, nos restabelece irmãos e irmãs.

Ser batizado é fazer experiência da morte para, com Cristo, encontrar a vida, vida nova, vida nele. Essa experiência é profunda, transformadora, comprometedora. Dessa forma, identificar a quaresma como sofrimento em si mesmo, é rejeitar a vida que o Ressuscitado nos oferece.

Pensemos em nosso batismo, na coerência de nossa vida batismal. Sejamos pessoas, comunidades, uma sociedade ressuscitada, o que só é possível a partir da nossa decisão pelo amor, pela verdade, pelas relações cheias de saúde. Relação com Deus, conosco mesmos, com nossos irmãos e irmãs, com nossa casa comum.

Como carecemos de saúde, de salvação! Cercados por crises, por mentiras, corrupção, por escândalos e mais escândalos nacionais, mundiais, não sejamos, nós, cristãos, também motivo de escândalo.

Mas o que é o escândalo? O escândalo é dizer uma coisa e fazer outra; é ter vida dupla. Vida dupla em tudo : sou muito católico, vou sempre à missa, pertenço a esta e aquela associação; mas a minha vida não é cristã. Não pago o que é justo aos meus funcionários, exploro as pessoas, faço jogo sujo nos negócios, reciclo dinheiro, vida dupla. Muitos católicos são assim. Eles escandalizam. Quantas vezes ouvimos dizer, nos bairros e outras partes : ‘Ser católico como aquele, melhor ser ateu’. O escândalo é isso. Destrói. Joga você no chão. Isso acontece todos os dias, basta ver os telejornais e ler os jornais. Os jornais noticiam vários escândalos e fazem publicidade de escândalos. Com os escândalos se destrói.’ Papa Francisco (Homilia da missa matutina celebrada, no dia 23/02/2017, na Casa Santa Marta).

Sejamos coerentes, sejamos fiéis, sejamos amor!’


Fonte :