domingo, 30 de novembro de 2014

A Igreja em estado de Advento

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará


‘A Igreja realiza sua missão evangelizadora no tempo e no espaço que a Providência de Deus lhe concede. Compete a ela a busca contínua da fidelidade ao seu Senhor, pois a visibilidade dos sinais da graça de Deus lhe foi entregue, enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo. Seu Mistério Pascal de Morte e Ressurreição e o final dos tempos, quando virá para julgar os vivos e os mortos, são dois polos de tensão, com os quais buscamos a fidelidade ao Evangelho, praticando o amor a Deus e ao próximo, somos fermento de vida e esperança para o mundo e continuamos a anunciar o nome de Jesus Cristo, único e suficiente Salvador de todos os homens e mulheres que vierem a esta terra.

A sabedoria de Deus concedida à sua Igreja suscitou um caminho formativo amadurecido no correr dos séculos, o Ano Litúrgico, para manter viva esta tensão positiva, que gera testemunho de vida cristã e realização profunda para as pessoas. Tudo começou com o dia da Ressurreição, o Domingo, Páscoa semanal. A cada semana, tornar presente a Morte e a Ressurreição de Cristo, quando a Comunidade Cristã, reunida em torno da Palavra de Deus e da Mesa Eucarística, se edifica como Corpo de Cristo. À Eucaristia de Domingo os cristãos levam suas lutas e seus trabalhos, louvam ao Senhor e encontram o sustento para a fé, na vida quotidiana. As gerações que se sucederam começaram a celebrar anualmente a Páscoa do Senhor, hoje realizada de modo solene no que chamamos Tríduo Pascal, de quinta-feira santa ao cair da tarde até o Domingo de Páscoa, com seu ponto mais alto na grande Vigília Pascal. É Páscoa anual! Quando celebramos a Missa em qualquer tempo do ano, acontece a Páscoa diária. É o mesmo e único mistério de Cristo. Não fazemos teatro, mas realizamos a presença do Senhor, que entregou à Igreja a grande tarefa : ‘Fazei isto em memória de mim’ (1 Cor 11, 24-25).

Como é grande o Mistério, o Ano Litúrgico veio a se compor pouco a pouco, contemplando anualmente todos os grandes eventos de nossa Salvação, enriquecendo com abundância de textos bíblicos as grandes celebrações, valorizando as orações que foram compostas e expressam a vivência da fé, recolhendo nos diversos ritos a grandeza da vida que o Senhor oferece. O Ano da Igreja, que começa no Primeiro domingo do Advento, em 2014 celebrado no dia 30 de novembro, tem dois grandes ciclos, o do Natal e o da Páscoa, com os quais somos pedagogicamente conduzidos a aperfeiçoar a vida cristã, de forma que o Senhor nos encontre, a cada ano, não girando em torno de um mesmo eixo, mas crescidos, como uma espiral que aponta para a eternidade, enquanto clamamos ‘Vem, Senhor Jesus’!

E o Tempo do Advento, que agora iniciamos, é justamente marcado pela virtude da esperança, que somos chamados a testemunhar e oferecer ao nosso mundo cansado, pois só em Jesus Cristo, única esperança, encontrará seu sentido e realização a vida humana. A Igreja nos propõe quatro semanas de intensa vida de oração e de exercício das virtudes. O primeiro olhar é para a vinda definitiva do Senhor, que um dia virá ao nosso encontro, cercado de glória e esplendor. É hora de refletir sobre a relatividade das coisas e preparar-nos para o encontro pessoal com o Senhor, quando nos chamar à sua presença. Em seguida, durante duas semanas a Igreja nos faz olhar para o tempo presente de nossa fé. Ouvimos o convite à conversão, somos levados a arrumar a casa de nossa vida para a grande presença do Senhor. Aquele que um dia virá, vem a nós nos dias de hoje. Para ajudar-nos, a Igreja apresenta duas figuras, que podem ser chamadas de ‘padrinhos’ de Advento, o Profeta Isaías e São João Batista. Na última semana antes do Natal, aí, sim, nosso olhar se volta para Belém de Judá, Presépio, Pastores, Reis Magos. É a oportunidade para preparar a celebração do Natal. Quem nos toma pela mão na etapa final do Advento, para acompanhar os acontecimentos vividos em primeira pessoa, é a Virgem Santa Maria, Mãe de Deus e nossa. Daí a necessidade de corrigir com delicadeza nosso modo de viver este período. Maior do que o dia de Festa no Natal é a realidade do Senhor Jesus que virá, vem a nós e um dia veio! Torna-se vazia uma festa sem a presença daquele que é o coração da história humana, nosso Senhor Jesus Cristo.

Uma Igreja em estado de Advento é o que queremos oferecer-nos mutuamente e dar de presente ao nosso mundo. Estimulemos uns aos outros na vivência da esperança, certos da necessidade da redenção de Cristo, que nos diz ‘sem mim, nada podeis fazer’ (Jo 15, 5). Cresça nossa abertura, cheia de esperança, a Cristo e à sua Palavra Salvadora. Caiam todos os obstáculos e defesas, venha a graça da fidelidade ao Senhor. E a vida cristã não tenha receio de olhar para a eternidade, onde Cristo está sentado, à direita do Pai (Cf. Ef 1, 20-23). Temos uma eternidade inteira para viver na Comunhão com a Santíssima Trindade, os Anjos e os Santos. É nossa vocação e nosso ponto de chegada. Com esta luz, os cristãos são chamados a serem homens e mulheres capazes de iluminar com a esperança todos os recantos da humanidade. A graça da vocação cristã nos faça responsáveis pelo anúncio do Evangelho e pela salvação dos outros (Cf. Rm 8, 29). Ninguém fique desanimado, desde que encontre um cristão autêntico, mesmo que este saiba ser limitado, tantas vezes frágil e marcado pelo pecado, mas nunca derrotado.

As pessoas que tiverem contato com os cristãos neste período, descubram-nos rezando mais e rezando melhor. As Novenas de Natal, celebradas em grupos de famílias, são um excelente testemunho de vida de oração. Seja uma oração cheia de humildade, sinceridade, abertura maior para Deus e obediência às suas promessas.

E como falamos de esperança, temos o direito e o dever de sonhar com um mundo mais justo e fraterno. Queremos antecipá-lo, em estado de Advento, na experiência da caridade e da partilha dos bens. Em nossa Arquidiocese de Belém, realizamos durante o Advento o projeto ‘Belém, Casa do Pão’. Cresce a cada ano, ao lado do compromisso de nossas Paróquias, a adesão da sociedade ao nosso modo de comprometer as pessoas com a partilha dos bens, realizando a vocação que se encontra em nosso nome, Belém!


Fontes :
* Artigo na íntegra de http://www.basilicadenazare.com.br/noticias/view/1588/a_igreja_em_estado_de_advento_por_dom_alberto_taveira_correa
  

Santo André, Apóstolo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  
Primeiro a ser chamado, primeiro a testemunhar

‘André foi o primeiro a ser chamado, portanto, o Protóclito (protos = primeiro + klitos = chamar). Recordemos como se deu este chamado : estava ele e seu irmão Cefas pela segunda vez na região do Jordão onde João Batista batizava, este exclamou : ‘Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo’ (Jo 1,29). Eis aquele que liberta da morte; eis aquele que destrói o pecado. Eu sou enviado, não como o esposo, mas como quem O acompanha (Jo 3,29). Vim como servo e não como mestre.

Ouvindo estas palavras deixaram de seguir João Batista para acompanhar o próprio Cristo.

Jesus, voltando-se para trás e vendo que o seguiam, disse-lhes : ‘Que buscais?’ Eles disseram : ‘Rabi (que quer dizer Mestre), onde moras?’ Disse-lhes Jesus : ‘vinde e vede’. Foram, pois, e viram onde habitava e permaneceram lá aquele dia. Era quase a hora décima.

Ora, André tinha um irmão chamado Simão e disse-lhe : ‘Nós encontramos o Messias, que é o Cristo’. E levou-o a Jesus, que olhando-o disse : ‘Tu és Simão, filho de Jonas, doravante chamar-te-ás Pedro’.

Este é, segundo a narrativa de São João, o primeiro encontro de André com Jesus.

André e Pedro, contudo, não ficaram definitivamente com o Divino Mestre, mas voltaram às suas ocupações de pescadores. Dias depois, Jesus, passando pela praia do Lago de Tiberíades, pelas bandas de Cafarnaum, tendo-os encontrado quando lavavam as redes, disse-lhes : ‘Segui-me, e eu vos farei pescadores de homens’. Eles, deixando imediatamente as redes, O seguiram (Mt 4,18). Com estas palavras, deu-se o chamamento oficial de André como apóstolo junto com seu irmão Pedro.

Nos catálogos oficiais que os evangelistas dão dos doze apóstolos, André ocupa sempre o segundo lugar, depois do irmão Pedro. Poucas menções expressas nos deixaram o Evangelho deste apóstolo durante os três anos do seguimento a Cristo. A primeira deu-se por ocasião da multiplicação dos pães e peixes.

Quando Jesus interpelou Filipe sobre a possibilidade de dar de comer a toda aquela multidão, André interveio, dizendo : ‘Está aqui um menino que tem cinco pães e dois peixes; mas que é isto para tanta gente?’ Jo 6, 9).

Uma segunda intervenção de André deu-se nos últimos dias da vida do Mestre. Havia alguns gentios que desejavam ver Jesus de perto e se aproximaram de Filipe, dizendo : ‘Senhor, desejamos ver Jesus’. Filipe foi dizer a André : e ambos disseram-no a Jesus.

Diz a Tradição que, por ocasião da partida dos apóstolos para levar o Evangelho pelo mundo, André viajou para a região dos mares Cáspio e Negro. Por último, fundou a igreja em Patras, na Acaia, que foi uma das mais florescentes dos tempos apostólicos. Esta mesma fonte afirma ter Santo André morrido crucificado em Patras, na Acaia, no dia trinta de novembro. A ele está relacionada a Cruz de Santo André em forma de X. Ao vê-la, antes do suplício, teria dito o apóstolo :

Salve Santa Cruz, tão desejada, tira-me do meio dos homens e entrega-me ao meu Mestre; de ti receba O que por ti me salvou!

Todos se admiravam da coragem e da alegria que se estampava no rosto do apóstolo mártir, quando se entregou aos algozes fixado à cruz, permanecendo dois dias nesta posição, orando, aconselhando e orientando aos seus. Uma piedosa mulher de nome Maximila retirou da cruz o corpo do apóstolo sepultando-o com muita honra.

Depois das perseguições romanas, as relíquias do Santo foram transportadas para Constantinopla e, pelo ano 1460, transferidas para Amalfi e Roma. Mais recentemente, o Papa Paulo VI, desejando simbolizar a união de fraternidade com a Igreja Ortodoxa, devolveu as relíquias de Santo André à Igreja de Constantinopla.


Fontes :
* Artigo na íntegra de http://www.diocesesantoandre.org.br/newsite/?page_id=6588

Konings, J – ‘Espírito e Mensagem da Liturgia Dominical’ – Ed. Vozes, 1986.
Carvajal, Francisco F, ‘Falar com Deus’ – Ed. Quadrante, 1993. 
Donadeo, Madre Maria, ‘O Ano Litúrgico Bizantino’ – Ed. Ave Maria.


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O santo que não tinha tempo para morrer

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
*Artigo de A. Torres Neiva

Era um monge e todos diziam que era um santo. Sempre bem humorado e sempre ocupado, todos invejavam a vida longa e feliz que sempre tivera. Um belo dia, veio visitá-lo um anjo do Senhor e encontrou-o na cozinha a lavar as panelas.  

- ‘Deus enviou-me, disse o anjo, para te levar para a vida eterna; chegou a tua hora’.

O nosso santo perdeu o seu  bom humor e logo viu que aquele não era o melhor momento para abandonar o seu trabalho e respondeu com toda a franqueza :

- ‘Agradeço ao Todo-poderoso a sua bondade por me ter convidado tão cedo para a sua glória, mas não posso deixar as panelas por esfregar. Todos diriam que morri só para não esfregar as panelas. Não podíeis transferir a minha viagem para mais tarde?'

O anjo olhou para aquele monte de panelas que esperavam ainda o esfregão do nosso santo e condescendeu :

- ‘Vamos ver o que se pode arranjar’. E voltou para a glória sem levar o nosso homem.

E o santo pode continuar em paz a sua tarefa para a qual não existiam muitos voluntários em todos os conventos da Ordem.

Um dia em que ele andava a revolver as couves no quintal, pois aqueles pedregulhos do quintal ainda eram mais difíceis de esfregar que as panelas da cozinha, o mensageiro de Deus voltou a aparecer-lhe. Não era de propósito mas o anjo de Deus aparecia sempre na pior altura.

O nosso homem apontou, de enxada em riste, toda aquela porção de terra que esperava a caridade de sua enxada e o anjo que decidisse.

E o anjo sorridente, decidiu mais uma vez transferir a chamada, pelo menos enquanto houvesse horta para cavar.

Os dias foram passando e o que fazer não faltava ao nosso santo. Era costume seu, nos intervalos em que não havia panelas para esfregar e o trigo crescia no campo, fazer uma visitinha aos doentes do hospital. Vinha ele com um copo na mão para leva-lo a um doente com muita febre, quando viu novamente o anjo do Senhor.

Desta vez o santo nem esteve com explicações. O anjo que desse uma vista de olhos pela enfermaria e logo veria que aquele momento não era o melhor para abandonar toda aquela gente.

E sem dizer palavra, o anjo do Senhor desapareceu.

Mas naquela noite, ao voltar para o mosteiro, o nosso homem sentiu-se velho e cansado e sem vontade para limpar as panelas, nem para cavar a horta nem para visitar os doentes. Entrou na capela e rezou :

- ‘Senhor, se quiseres mandar-me agora o teu mensageiro, estou disposto a recebe-lo. Já não sirvo para nada’.

E foi então que o próprio Senhor lhe falou :

- ‘Faz-me um pouquinho de companhia. Há tanto tempo espero que tenhas um momento livre para estares comigo’.


Fonte : 
* Artigo adaptado de Vida Consagrada, 214 – Junho 1999, do Padre Adélio Torres Neiva, C. S. Sp. (missionário espiritano (+2010)).

Revista Beneditina nrº 4, Maio/Junho de 2004, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Izzeldin Abuelaish : O médico de Gaza


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

   *Artigo de Margarida Santos Lopes, Jornalista

‘Foi no campo de Jabalyia, na Faixa de Gaza, num quarto sem luz e água potável onde uma dezena de pessoas dormia no mesmo colchão e comia do mesmo prato as rações alimentares distribuídas pela ONU, que nasceu, a 3 de Fevereiro de 1955, Izzeldin Abuelaish. E foi em Jabaliya que, em 2009, duas bombas israelitas mataram três filhas e uma sobrinha do homem agora conhecido como o ‘médico de Gaza’.

Depois de uma Nakba (Catástrofe) e um Naksah (Revés) – como as guerras de 1948 e 1967 são conhecidas em árabe –, seria de esperar que Izzeldin Abuelaish quisesse vingar-se dos seus inimigos. Mas nem agora, depois do que classifica como ‘a mais cruel agressão militar’ na Faixa de Gaza, o autor de Não Odiarei (Ed. Planeta) cede à retórica anti-semita que tem acompanhado as notícias e imagens da Operação Escudo Protector, lançada a 8 de Julho.

Segundo o Gabinete para a Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA) foram mortos ‘2104 palestinos, dos quais 495 são crianças’. O número de desalojados internos ‘ultrapassará os 200 mil, incluindo 46000 mulheres grávidas’. O Hospital de Shifa, que não escapou aos ataques, terá registado ‘um aumento de 15 a 20 % de nascimentos prematuros’. Entre os israelitas contaram-se 69 mortos, quatro deles civis.


Direito à liberdade

O que vejo ofende-me e deixa-me zangado’, disse à Além-Mar, numa entrevista por Skype, o obstetra e especialista em fertilidade que ajudou muitos casais israelitas e palestinos a terem filhos, e que depois da sua tragédia familiar vive no Canadá, onde continua a exercer medicina e é professor de Saúde Global na Universidade de Toronto. ‘Fui testemunha de todas as ofensivas em Gaza, mas esta é pior do que a de 2009. É impossível pôr fim a este conflito se não for reconhecido aos palestinos o direito de serem livres. O povo palestino é a única nação que não é livre. Se os palestinos forem livres, os israelitas serão livres e sentir-se-ão seguros.’

Israel foi dando várias justificações para o início da operação que, no seu campo, causou mais de 70 mortos : primeiro, o rapto e homicídio de três jovens israelitas, atribuído ao Hamas, que governa Gaza (posteriormente, o crime foi atribuído a um bando fora do controlo do movimento islâmico); depois, o lançamento de rockets contra localidades no Sul que vitimaram três civis (embora o lançamento destes projécteis tenha recomeçado só depois de Israel ter assassinado operacionais do Hamas, violando a trégua em vigor desde 2006; e, finalmente, a descoberta de ‘dezenas de túneis’ que permitiriam à guerrilha infiltrar-se em Israel).

Embora tenha concorrido, como independente, contra o Hamas, nas eleições de 2006, e reafirme que condena ‘qualquer tipo de violência’, Abuelaish desmente que o movimento vencedor absoluto das legislativas ‘use civis como escudos humanos’, segundo alega Israel. ‘Antes de mais, é preciso entender o que é a Faixa de Gaza : um território muito, muito pequeno. Um total de 360 quilómetros quadrados para 1,8 milhões de habitantes. É a área mais densamente povoada do mundo, onde 50 % são crianças e 20 % são mulheres. Não há espaço livre para ninguém. As pessoas nem conseguem mexer-se. Israel continua a culpar-nos por lutarmos, mas nós lutamos porque não aceitamos a ocupação.

Sobre os túneis, Abuelaish explica : ‘Foram criados depois do castigo colectivo imposto em 2006 [quando o Hamas ganhou as legislativas]. As fronteiras foram fechadas e a necessidade é mãe da criatividade. Os túneis foram escavados para sobrevivência. Os túneis são sintomas de uma doença, que é a ocupação. Depois dos Acordos de Oslo [de 1993], previa-se um Estado palestino nas fronteiras de 1967, com Jerusalém Leste como capital. Isto deveria acontecer em 1999. Estamos em 2014 e, a cada dia que passa, mais e mais terras são confiscadas para expandir colonatos na Cisjordânia. Gaza tornou-se a maior prisão do mundo, mas nada nos pode afastar dos nossos irmãos na Cisjordânia – somos um só povo.

Em 2006, a Autoridade Palestina opunha-se à realização de eleições e os Estados Unidos impuseram-nas’, recordou Abuelaish. As eleições foram consideradas livres – observadores europeus comprovaram. Os palestinos elegeram os seus representantes, o Hamas, mas a comunidade internacional rejeitou-os. No entanto, alguém rejeitou o Governo israelita que é composto por dois partidos de extrema-direita, a Casa Judaica, de Naftali Bennett e Ayelet Shaked, e o Yisrael Beitenu, de Avigdor Lieberman, que advogam a limpeza étnica dos palestinos? Porque é que esta liberdade é concedida a Israel e não aos palestinos? Logo após a vitória do Hamas foram impostas sanções aos palestinos. Isto é inaceitável. Como disse Martin Luther King, ‘tudo o que é necessário para que o mal triunfe é que os homens nada façam’.


Amigos israelitas

Abuelaish tem muitos amigos israelitas. Foram eles que lhe deram o primeiro emprego fora de Gaza, aos 15 anos, na Moshav (cooperativa) Hodaia. Durante 40 dias, trabalhou das seis da manhã às 20h00, durante o Verão. A família Madmoony, de origem sefardita, tratava-o ‘com carinho’. Mais tarde, foi operário da construção civil, na cidade de Ashqelon, mas nunca deixou de estudar. Em 1975, concluído o liceu, seguiu para a Universidade do Cairo, graças a uma bolsa. Nessa altura era livre o movimento de pessoas e bens entre Gaza e o Egipto. Em 1983, finalizou o mestrado em Medicina e retornou a Gaza para exercer a profissão em hospitais locais.

Em 1987, tendo juntado dinheiro em Jidá, na Arábia Saudita, onde trabalhou numa maternidade, Abuelaish casou-se com Nadia – no campo de Jabalyia. A primeira filha, Bessan, nasceu em 1988, no mesmo ano em que ele ingressou no Instituto de Obstetrícia da Universidade de Londres, para outro mestrado, com bolsa, sobre as causas da infertilidade.

Posteriormente, na sua clínica privada em Gaza, reparou que os principais livros sobre a sua área eram de professores israelitas da Universidade de Ben-Gurion, em Beersheba : Bruno Lunenfeld e Vaclav Insler. Telefonou-lhes e levou até eles pacientes palestinos. Eles apresentaram-no a Marek Glezerman, na altura presidente do Departamento de Ginecologia do Hospital de Soroka. A partir daqui, desenvolveu-se a amizade entre ambos e Abuelaish tornou-se o primeiro médico palestino aceite como quadro de um grande hospital israelita (de 1997 a 2002). A especialidade foi sendo aperfeiçoada noutros países, como a Itália e a Bélgica. Completou ainda um mestrado em Gestão de Saúde na Universidade de Harvard (EUA).


Mataram as filhas

Em 2009, quando a Faixa de Gaza foi encerrada para mais uma operação militar instigada pelos rockets do Hamas, Abuelaish serviu de ‘fonte’ para muitos jornalistas. Tornou-se amigo de Shlomo Eldar, repórter do Canal 10 da TV israelita. Foi a ele que telefonou quando duas bombas caíram sobre a sua residência, onde viviam 22 pessoas, e mataram as suas três filhas, Bessan, Mayar e Aya, e a sobrinha Ghaida. Uma quarta filha, Shatha, perdeu um olho e ficou parcialmente cega. Nesse dia 16 de Janeiro, quando o viu a chorar, o filho mais novo deu-lhe coragem para se dedicar aos sobreviventes : ‘Não deves estar triste, pai; elas vão para junto da mãe.’ Nadia tinha morrido meses antes de leucemia. Abuelaish ficou com cinco filhos para criar (duas raparigas e três rapazes).

Eldar estava em estúdio a entrevistar Tzipi Livni, actual ministra da Justiça, quando notou que Abuelaish estava a ligar. Não atendeu. No intervalo da emissão, o telemóvel voltou a tocar e decidiu ouvir, como se pressentisse algo de errado. Abuelaish gritava : ‘O que é que vocês fizeram às minhas filhas?’ O jornalista colocou-o em alta voz, virou o telefone para a câmara e respondeu : ‘Diz-me onde elas estão que envio uma ambulância à tua casa.’ Do outro lado da linha, o ‘médico de Gaza’ não continha as lágrimas : ‘Elas foram mortas, Shlomi’.

Abuelaish, um muçulmano devoto, recebeu incontáveis mensagens de apoio de muitos judeus israelitas. Foram os seus amigos que o fizeram sair de Gaza e o convenceram a mudar-se para o Canadá. Aqui criou a Fundação Daughters for Life, em homenagem às suas filhas. É uma instituição que concede bolsas de estudo a jovens do Médio Oriente – incluindo israelitas –, porque ‘a educação das mulheres garante o futuro da Humanidade’, como salientou nesta entrevista.

O apoio que recebeu de anónimos cidadãos israelitas também o faz acreditar ainda em dois Estados, o de Israel e o da Palestina. ‘Se o Governo de Benjamin Netanyahu quer esta solução, tem de acabar com a expansão dos colonatos, que são ilegais e serão sempre ilegais’, declarou.

Infelizmente para Abuelaish, o Governo federal em Otava, dirigido pelo conservador Stephen Harper, é um aliado incondicional de Netanyahu e está a inviabilizar uma iniciativa que conta com o apoio das autoridades provinciais de Ontário, para que 100 crianças palestinas gravemente feridas sejam tratadas no Canadá.


O ódio é uma doença

Apesar dos obstáculos, Abuelaish imagina israelitas e palestinos juntos a pressionarem uma mudança de líderes : ‘Acho isso possível, porque não acredito em impossibilidades. É possível vivermos juntos, com respeito e compreensão mútuos – e em igualdade. Não há outra via. Israelitas e palestinos são como gémeos siameses. Não se pode separá-los.

Nunca deixarei que o veneno do ódio me invada ou se aproxime de mim. Se eu quiser viver bem, tenho de estar saudável, física e mentalmente. O ódio é uma doença a que eu resisto’, concluiu. ‘Acredito no que faço, porque a medicina tem um rosto humano. Não há diferenças entre israelitas e palestinos quando estão num hospital. Todos são iguais. Sempre trabalhei no interesse dos meus pacientes. Quando ajudo um casal israelita ou um casal palestino a terem filhos, fico feliz, porque quando os seus bebés choram ao nascer não há diferenças entre eles’.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuEkkyEAVVoTMyDNiE


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Nossa Senhora das Graças

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
  

‘A Igreja sempre venerou Maria como sua mãe. Mesmo porque há uma razão lógica : ela é a Mãe de Jesus, cabeça da Igreja e a Igreja é o corpo místico de Cristo, princípio e primogênito de todas as criaturas celestes e terrestres (Ef 1,18). E isso foi declarado por Jesus no alto da Cruz ao nos entregar por meio de João, sua mãe como nossa mãe. Por isso mesmo, Maria é a mãe de todos os que nasceram pelo Cristo, tornaram-se irmão de Cristo e em Cristo, e são herdeiros de sua graça, sua vida e sua glória.

Para todos nós, ela é modelo de fé e de oração, de contemplação do mistério divino. É a mulher obediente à Palavra de Deus, de quem Isabel testemunhou : ‘Bem-aventurada a que acreditou, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas’. (Lc 1, 45) É modelo de amor e doação, que se põe a caminho para servir a prima Isabel, que está a serviço e preocupada com os noivos nas Bodas de Caná. É a mãe terna que ampara e protege seus filhos e sempre nos aconselha para que sejamos fiéis a Jesus : ‘Fazei tudo o que Ele vos disser’. (Jo 2, 5).

O carinho do povo por Maria faz com que ela seja louvada de diferentes maneiras, com diversos títulos. É o cumprimento da profecia que fez em seu cântico do Magnificat : ‘Todas as gerações me chamarão bem-aventurada’ (Lc 1, 48). A verdadeira devoção a Maria se manifesta na imitação de suas virtudes, praticando os ensinamentos de Jesus; a verdadeira devoção, reconhece que Maria é importante porque nos apresenta a Jesus, a quem pertence o primeiro lugar. O importante é que esse amor se concretize na vivência do evangelho de seu Filho Divino.

Ressalte-se, também, que Maria é uma mulher simples, humilde, vivendo o dia a dia de sua pequena vila. Mulher pobre que viveu a migração e a exclusão. Mãe zelosa, que cuidou de Jesus com afeto e dedicação, ajudando-o a dar os primeiros passos, cuidando de sua roupa e alimentação, ensinando as lições da vida, enfim, fazendo o mesmo que nossas mães fazem por seus filhos. Mulher forte aos pés da cruz e ao receber em seus braços o corpo exangue de seu Filho querido.

Um belo caminho nos foi dado no dia 27 de novembro de 1830, pela inspiração recebida por Santa Catarina Labouré, humilde freira da Congregação das Filhas da Caridade. Isto foi na Rua De Lubac, no centro de Paris, na atual Capela da Medalha Milagrosa. Nesse dia, segundo relata a Santa, ela viu Maria mostrando nos dedos anéis incrustados de belíssimas pedras preciosas, ‘lançando raios para todos os lados, cada qual mais belo que o outro’. Em seguida, formou-se em torno da Virgem uma moldura ovalada, no alto da qual estavam escritas em letras de ouro as seguintes palavras, a bela jaculatória : ‘Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós’. Esse foi um sinal do anúncio de que Nossa Senhora é Imaculada, concebida sem pecado original.

Vinte e quatro anos depois, o Papa Pio IX proclamava solenemente o dogma da Imaculada Conceição de Maria no dia 8 de dezembro de 1854. Quatro anos após, em Lourdes, Santa Bernadete é inspirada por Maria e escuta a afirmação : ‘Eu Sou a Imaculada Conceição’. Quantas provas de sua Imaculada Conceição!

Santa Catarina Labouré descreve a Virgem sobre um Globo, a Terra, pisando a cabeça da Serpente e segurando nas mãos um globo menor, oferecendo-o a Deus, num gesto de súplica. E diz a Santa Catarina : ‘Este globo representa o mundo inteiro e cada pessoa em particular’. De repente, o globo desapareceu e suas mãos se estenderam suavemente, derramando sobre o globo brilhantes raios de luz. E Santa Catarina ouviu uma voz que lhe dizia : ‘Fazei cunhar uma medalha conforme este modelo. Todos os que a usarem, trazendo-a ao pescoço, receberão grandes graças. Estas serão abundantes para aqueles que a usarem com confiança’. Em 1832, uma violenta epidemia de cólera assolou a cidade de Paris. Foram, então, cunhados os primeiros exemplares da medalha, logo distribuídos aos doentes. À vista das graças extraordinárias e numerosas obtidas de Deus por meio dessa medalha, o povo passou a chamá-la de Medalha Milagrosa. Em pouco tempo, essa devoção difundiu-se pelo mundo inteiro, e foi enriquecida com a composição de uma Novena.

Nossa Senhora foi chamada pelo Anjo de ‘cheia de Graça’; assim, ela intercede por nós junto a Deus e Este lhe atende as súplicas, como nos mostra nas Bodas de Caná da Galiléia. Se os nossos pecados dificultam a nossa comunhão com Deus e nos impedem de obter Suas graças, isto não ocorre com Nossa Senhora, pois, como boa Mãe, ela se põe como nossa magnífica intercessora.

Nossa Senhora das Graças, rogai por nós que recorremos a vós!


Fontes :
* Artigo na íntegra de http://www.news.va/pt/news/nossa-senhora-das-gracas

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Numa trincheira do Sudão

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
 
 *Artigo de Tom Catena,
Médico nos Montes Nuba, Sudão (África)

Extractos do diário de um médico voluntário no único hospital em toda a região dos montes Nuba, no Sudão. Aqui, as populações são diariamente bombardeadas pela aviação. O testemunho impressionante do dia em que o hospital foi atacado e todo o caos e pânico que gerou.

‘Como se tornará claro se continuar a ler, sou médico, não escritor. Exerço medicina familiar nos EUA. Mas a situação que testemunhei, como médico voluntário há mais de seis anos, nos montes Nuba, no Sudão, obriga-me a escrever e a contar a história do que está a acontecer lá. Desde Maio de 2011, os Nubas estão presos no horror de uma guerra civil entre o Governo do Sudão e o Movimento de Libertação Popular do Sudão-Norte (SPLM-N na sigla em inglês). Os civis são submetidos a bombardeamentos aéreos diários e tem-lhes sido negado o acesso à ajuda humanitária. Incapazes de cultivar a terra por causa dos bombardeamentos, as pessoas estão a morrer de fome, sobrevivendo com insectos e erva, e com risco de morte se se aventuram para fora das suas cavernas em busca de comida e água. Desde 2011, o único hospital em toda a região dos montes Nuba, o Hospital Mother of Mercy, em Guidel, com uma pequena equipa dedicada de profissionais de saúde e educadores, tinha sido poupado aos bombardeamentos – até Julho passado. O que se segue é tirado directamente do meu diário, escrito quando os acontecimentos ainda eram recentes.


2 de Maio de 2014

Ontem de manhã, tinha acabado de dizer ‘o Land Cruiser precisa de ser outra vez arranjado. Hoje não há viagens para a clínica’... Estava a caminhar para o ambulatório para ajudar, quando ouvi um jacto. Não tive medo e olhei, curioso sobre quão perto estaria. Em poucos segundos, estava em cima de nós, as pessoas gritavam, corriam, bradavam instruções : ‘Não corram! Deitem-se no chão!

Lancei-me para o chão e cobri a cabeça quando uma forte explosão veio do lado sul, a área de tuberculose/leprosaria. Vento, areia, poeira. Olhei para cima. Havia pessoas a correr em todas as direcções, já ninguém gritava – ou eu simplesmente já não conseguia ouvir. Vi a farmacêutica correr com determinação, de maneira que comecei a caminhar na sua direcção. Ela tropeçou numa cerca de arame que não vira e caiu numa trincheira muito cheia de gente. Virei-me e vi outro membro da equipa também a correr. Corri atrás dela umas centenas de metros até ao portão da residência do médico e para uma trincheira vazia com cerca de 11 metros de comprimento e quase um metro de profundidade. Esperámos... não muito e de novo um jacto ruidoso, rápido, perto, a voar baixo, cobrimos a cabeça. Segundos, momentos depois, uma explosão ainda mais alta, muito perto, logo atrás das instalações. Esperei, esperei, esperei – cerca de 10 minutos. Ida e volta. É isso. O jacto partiu. Hora de ir para o hospital ajudar as vítimas. Pude ver o médico entrar na ala infantil do lado norte... Não acabou! Num instante, o jacto por cima de nós, espalmado na trincheira mais próxima corpo contra corpo numa fila, mulheres e crianças, uma massa de humanidade trémula. Momentos depois, outra explosão, mais uma vez suficientemente perto para fazer tremer o chão, mas não acertou no hospital. Ninguém se mexeu, as crianças estão serenas, os nossos corações batem em uníssono, tenho a cabeça no lenço da mulher atrás de mim, o cotovelo esquerdo tenho-o debaixo da cabeça da mulher à minha frente, um quebra-cabeças engendrado pela necessidade. Sabíamos que o jacto estaria a dar a volta para regressar. Algumas respirações rápidas e uma eternidade depois, lá vem ele, muito perto, mais perto e mais alto do que antes. Eu morreria num instante, se dermos nas vistas... ou sobrevivo. Não havia nada mais a fazer. Aceitei a realidade e senti uma grande calma. O barulho era ensurdecedor... então, desapareceu rapidamente. Tínhamos sobrevivido.


Refúgio nas rochas e cavernas

O resto do dia de ontem foi gasto a inspeccionar os danos e a limpar. O segundo míssil rebentou 30 metros atrás do pequeno bloco de cimento da residência do médico. O chão era um espesso tapete de folhas arrancadas dos ramos agora nus das árvores mais próximas, a cerca das traseiras está destruída, a dois metros de distância uma profunda cratera de meio metro, estilhaços de metal dos mísseis tiveram força para se cravarem 20 centímetros nas pernadas das árvores. Por incrível que pareça, a única perda de vida foi um bode quando o mesmo jacto atacou a aldeia mais próxima. Nem um único ferimento físico significativo. Psicologicamente, porém, todos, de uma maneira ou de outra, estamos abalados. O resto do dia foi tranquilo. A maioria dos pacientes deixou o hospital. A não ser os paralisados ou em tracção, foram para as rochas e cavernas. O telhado da minha casa ficou danificado. A porta traseira foi arrancada das dobradiças e o interior parecia, bem, ‘como se uma bomba tivesse explodido’.


Apenas uma vítima

À frente de uma cerveja russa morna, durante o jantar, indo e vindo do hospital, todos contavam e recontavam a sua própria experiência, aplaudindo, encorajando-se uns aos outros de que não voltaria a acontecer... Até hoje, 10h00, durante as rondas na ala masculina, ouvimos o ruído baixo e distante de um bombardeiro Antonov a grande altitude. O meu colega disse : ‘Demasiado longe para me preocupar agora.’ Então, rapidamente, quando pudemos perceber e compreender, não, de facto está cada vez mais perto. ‘Leve toda a gente lá para fora!’, depois, ‘Não há tempo! Deitem-se no chão!!!’ De barriga para baixo, olhos fechados, mãos cruzadas atrás da cabeça, as orelhas cobertas pela parte superior do braço – BUM, BUM! O chão tremeu, a poeira voou, muito alto. Meio minuto depois, levantei-me e corri para fora, com detritos ainda a caírem do outro lado do leito seco de um rio a um quilómetro de distância. Reuni a maioria dos homens de idade e uma enfermeira, Anna, que estava a chorar e queria ir para casa com o seu bebé – levámo-la para uma trincheira porque sabíamos que o avião iria fazer um círculo e voltar antes que ela pudesse ir para casa. Ajudei a descer um paciente para a trincheira, paciente que estava de muletas por já ter perdido uma perna quando um Antonov bombardeou a sua aldeia. Mantivemos a cabeça no chão. BUM, BUM! O novo regresso falhou por 500 metros. Esperámos – deu a volta de regresso mais duas vezes – mais quatro bombas – oito no total. Apenas uma vítima. Um homem que procurou abrigo dentro do tronco oco de um embondeiro foi atingido no pé por estilhaços que penetraram 15 centímetros no tronco da árvore.

O segundo dia, uma e outra vez, deixou vítimas psicológicas. ‘Isto é um padrão?’ ‘Será que vão voltar todas as manhãs?’ ‘Será que vêm à noite?’ Não há esforço suficiente para evitar ter estes pensamentos, mas eles voltam. Estou surpreendentemente calmo. Não tenho orgulho nem vergonha, porque não fiz nada para estar calmo. Só o estou agora. Agora, na verdade, tenho apenas muito sono – mesmo se tudo é sorte. Vou desfrutar de uma boa noite de sono e ver o que o dia de amanhã traz.


Passem a mensagem

Não penso em mim como um homem corajoso. Sinto-me ousado ao escrever esta história e espero que aqueles que a lêem tenham a coragem de dizer aos outros, contactem com os representantes do governo, assinem uma petição ou, pelo menos, falem com um amigo no café sobre o que está a acontecer no Sudão. Perspectivando esta situação de forma positiva, a humanidade tem uma oportunidade incrível neste pequeno lugar para aprender como acabar com a guerra. Os montes Nuba são aproximadamente metade de Portugal. Nós, os seis mil milhões de pessoas na Terra que vivemos com mais de um dólar por dia, podemos fazer isso! Temos de descobrir uma maneira de proteger as pessoas inocentes que só querem as mesmas coisas que todos nós queremos : liberdade para procurar a felicidade. Os Nubas são, por natureza, um povo alegre. Tive a sorte de observar a sua rica cultura : cantam e dançam em cada ocasião. Também testemunhei o heróico estoicismo dos pacientes sorrindo nas camas dos hospitais, apesar de terem perdido membros, permanecendo durante semanas em tracção, com membros da família perdidos e tudo o que tinham. O seu espírito é forte e acabará por superar o sofrimento que lhes está a ser trazido pela guerra.


Participar na mudança

Restaurar a paz nesta área não vai ser fácil. Os montes Nuba estão mesmo a norte da nova fronteira entre o Sudão do Sul e o Sudão, onde o petróleo alimenta ambas as economias. Situa-se entre o maior deserto do mundo e o maior pântano do mundo, onde afloramentos de rocha e solo arável pouco fundo permitem que uma escassa população subsista com cabras e sorgo. A maioria da população vive em cabanas de pedras e canas. Mesmo antes do conflito actual, a taxa de mortalidade das mulheres durante o parto e as taxas de mortalidade infantil estavam entre as mais altas do mundo. Malária, hanseníase e doenças exóticas que os países desenvolvidos erradicaram décadas atrás são tão comuns como a constipação comum. Há ainda algumas pequenas partes do mundo que precisam de grandes mudanças. É tão gratificante participar nessa mudança. Essa alegria é o que me vai levar de volta para os montes Nuba. Sou médico, não líder mundial. Poucos de nós são líderes comunitários, activistas políticos ou podem considerar-se com o poder de mudar o resultado de situações tão complexas e geralmente terríveis como a dos montes Nuba. Se não fizermos nada, podemos ter a certeza de que não estaremos a ajudar. Na verdade, estaremos a ferir com a nossa complacência. Se pelo menos tentarmos, então há uma oportunidade de que a boa vontade cresça.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuEVpklpyyPclgInua

  

domingo, 23 de novembro de 2014

Santo André Dung-Lac, Presbítero e seus companheiros mártires

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
‘O cristianismo chegou ao Vietnam no final do século XVI, mas, foi continuamente contestado por governantes locais que, entre os séculos XVII e XIX, publicaram mais de 50 editais contra os cristãos, o que causou a morte de cerca de 130 mil fiéis. 

Em qualquer caso, os núcleos familiares cristãos foram desmembrados e dispersados, famílias e parentes separados e deportados para regiões diferentes; os bens e propriedades eram confiscados. Os cristãos foram privados de qualquer vínculo religioso (não tinham mais igrejas, paróquias, escolas cristãs, etc...).

Em 1988, vários grupos de mártires vietnamitas que foram beatificados por papas anteriores, foram unificados em um único grupo e canonizados pelo beato Papa João Paulo II que também os declarou ‘Patronos do Vietnã’...

Para representá-los, o Missal Romano nomeia Santo André Dung-Lac, primeiro, catequista e, depois, padre, que recebe uma devoção especial pelos católicos do Vietnã. De outro mártir, São Paulo Le-Bao-Tinh, o Missal informa hoje um pedaço de carta onde se lê : ‘No meio desses tormentos, que costumam aterrorizar os outros, pela graça de Deus, estou cheio de alegria, porque eu não estou sozinho, Cristo está comigo’.

A história do catolicismo no Vietnã começou no século XVI, com o padre Alexandre de Rhodes, um missionário francês, considerado o primeiro apóstolo desta jovem Igreja asiática, então dividida em três regiões distintas : Tonkin, Annam e Cochinchina.

Mas, a partir de 1645, quando o padre Rhodes foi expulso, houve a ocorrência das perseguições, alternando com períodos de paz, em que os missionários de várias congregações foram enviados às regiões do Vietnam, animando os fiéis e, especialmente, trabalhando para a formação do clero e de catequistas locais.

De 1645 a 1886, foram expedidos 53 editais contra os cristãos, resultando na morte de 113 mil fiéis. Durante o reinado de Minh-Manh (1821), a perseguição tornou-se implacável, condenando à morte aqueles que ousaram até mesmo esconder os cristãos. Outro rei (já citado acima) foi particularmente opositor do cristianismo : Tuc-Duc, que reinou entre 1847-1883. Profundamente avesso à política colonial francesa, odiava tudo que era europeu ou que provinha da Europa, não distinguindo política de religião. Estipulou que aqueles que colaborassem na captura de um missionário católico ganhariam 300 onças (8,5 quilos) de prata e que, ao ser capturado, depois de ser decapitado, deveria ter o corpo jogado no rio.

Os sacerdotes locais (vietnamitas) e os catequistas estrangeiros foram abatidos, enquanto os catequistas locais tinham impressos em seus rostos ‘à fogo’ (marcados a ferro em brasa) a palavra ‘Ta Dao’, que significa, ‘falsa religião’, sendo expostos ao desprezo público. Os simples fiéis cristãos poderiam salvar as suas vidas espezinhando uma cruz na frente do juiz.

Além disso, frente à firme fé dos cristãos, foi ordenado que os cristãos fossem dispersos, separando maridos de esposas e filhos de seus pais, exilando-os em regiões distantes e diferentes, entre os pagãos, confiscando todos os seus bens.

Através desta miríade de mártires, heróis da fé, a Igreja beatificou a alguns ao longo dos anos : 1900, pelo Papa Leão XIII, em 1906 e 1909, por São Pio X e 1951 pelo Papa Pio XII. Finalmente, em 19 de junho de 1988, o beato João Paulo II os proclamou santos. Foram 117 santos ao todo : 08 bispos, 50 sacerdotes e 59 leigos. Destes, 96 são vietnamitas, 11 espanhóis e 10 franceses. Entre os leigos há 16 catequistas, uma mãe, quatro médicos, seis soldados e muitos pais de família.

O ‘líder’ (que deu o nome ao grupo) dos mártires é André Dung-Lac, primeiro, catequista, depois, sacerdote vietnamita. Ele nasceu de pais pagãos em 1795. Seus pais eram tão pobres que se desfizeram dele de boa vontade para vendê-lo a um catequista. Viveu na missão de Vinh-Tri, onde foi batizado, educado na fé, vindo a tornar-se um catequista. Continuou seus estudos teológicos e, em 15 de março de 1823, foi ordenado sacerdote e nomeado pároco em diversas áreas. Durante a perseguição perpetrada por Minh-Manh, foi preso várias vezes e resgatado dos mandarins pelos cristãos locais. Mesmo correndo perigo, exerceu o apostolado entre os fiéis e administrava os sacramentos. Preso novamente em 10 de novembro de 1839 pelo prefeito de Ke-Song, foi libertado mediante o pagamento de 200 moedas de prata coletadas entre os cristãos. Foi novamente preso em Hanói em 16 de novembro de 1839, submetido a interrogatórios extenuantes, convidado várias vezes para apostatar e pisar na cruz, mas, tendo permanecido firme em sua fé, foi sentenciado a ser decapitado, o que foi feito em 21 de dezembro de 1839. Foi colocado como ‘líder’ do grupo no calendário litúrgico, devido à devoção e culto que goza em seu país, devido ao exemplo brilhante dado durante sua vida.

Os outros 116 mártires do Vietnam, cada um tem uma história edificante de seu martírio, realizado em diferentes lugares e épocas, mas, compartilham a mesma glória dos santos.

A festa litúrgica comum dos 117 mártires do Vietnam foi criada para o dia 24 de novembro, com memórias individuais para alguns deles, especialmente os pertencentes às congregações missionárias.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://pelos-caminhos-de-deus.blogspot.com.br/2014/11/santo-andre-dung-lac.html

sábado, 22 de novembro de 2014

O mundo não foi abandonado por quem o criou

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará

‘As estruturas de poder estão presentes em cada canto do mundo, lutam por elas as pessoas através de eleições, sucessão, golpes ou tramoias. Alguém vai sempre exercer o poder, e sua dinâmica conduz o mundo para frente ou para trás, podendo inclusive levar a enormes desastres. Gente de todas as idades acaba assistindo filmes ou espetáculos, retratos do quotidiano, que reportam as lutas pelo domínio de fatias da vida social, tomam partido, torcem pela parte que lhes é simpática e tantas vezes aplaudem a derrota ou morte de pessoas e grupos. No correr da história alternam-se os poderosos, utiliza-se o poder que, em princípio, deveria emanar do povo, manipulam-se as massas e as esperanças se acendem ou se apagam segundo as tendências de cada época.

É neste mundo, carregado de conflitos e lutas, que alguns até já consideraram indispensáveis para chegar à solução dos grandes problemas da sociedade, que a Palavra de Deus anuncia uma realidade chamada ‘Reino’. A história do Povo de Deus no Antigo Testamento foi também acompanhada pela constituição de reino e reinos, lutas pelo poder, desastres e esperanças. Invasões, exílios, domínio de potências estrangeiras, tudo fez parte da história que se fez sagrada porque conduzida pelo amor do próprio Deus, Senhor desta história, que misteriosamente conduz os acontecimentos.

Mesmo apanhando e sofrendo muito, aquele povo tinha como ponto de honra a escolha feita por Deus. Diante de todas as forças, havia uma certeza : ‘Tu, porém, Israel, és o meu servo, foste tu, Jacó, a quem eu escolhi, descendência de Abraão, meu amigo! Lá num canto do mundo eu te dei a mão, eu te chamei lá dos confins da terra. Eu te disse : Tu és o meu servo. Eu te escolhi e não te deixei. Não tenhas medo, que eu estou contigo. Não te assustes, que sou o teu Deus. Eu te dou coragem, sim, eu te ajudo. Sim, eu te seguro com minha mão vitoriosa. Ficarão envergonhados e desapontados todos os que têm raiva de ti. Ficarão como nada e destruídos os que quiserem lutar contra ti. Vais procurar sem nunca encontrar quem queira combater contra ti. Os que quiserem te armar guerra, serão como o vazio e o nada. Isso, porque eu sou o Senhor, o teu Deus, eu te pego pela mão e digo: Não temas, que eu te ajudarei. Não tenhas medo, vermezinho Jacó, não te assustes, Israel, mísero inseto! Eu te ajudarei’ – oráculo do Senhor, que é o teu Libertador, o Santo de Israel’ (Is 41, 8-14).

Na voz dos profetas acendeu-se a esperança de que seriam cumpridas as promessas com a chegada do Messias, enviado de Deus, a quem caberia restaurar o Reino. Muitos desanimaram, mas permaneceu um ‘resto’ fiel, gente de fibra, que tinha a certeza da fidelidade de Deus e passava às sucessivas gerações a mesma esperança.

E as promessas se cumpriram, mas do jeito de Deus, quando muitos até projetavam a realização do Reino modo muito parecido com os reinos, exércitos e conquistas conhecidos! De repente, aparece Jesus, com o rosto da simplicidade e da pobreza. É chamado nazareno, por ter vivido num lugar de gente briguenta, de onde não se esperava nada de bom (Cf. Jo 1, 46). Reúne discípulos que certamente não faziam parte do melhor que pudesse existir na sociedade do tempo. Atrás dele vão doentes, pecadores, escória da população, e ninguém passa em vão ao seu lado. Entra em casa de todos, maus e bons, ricos e pobres. Multidões acorrem a ele e a esperança se acende. Mostra-se apaixonado pelo Reino de Deus e quer anunciá-lo. Para que os simples o compreendam, utiliza parábolas, histórias do cotidiano, tiradas do grande livro da vida. Convida as pessoas a descobrirem o mistério do Reino, presente e ao mesmo tempo escondido, que não impõe, mas está bem perto, mora ao lado das pessoas. O próprio Jesus é o Reino de Deus presente e a adesão à sua pessoa significa entrar e viver no Reino. O Reino de Deus está no meio das pessoas (Cf. Lc 17, 21). Seu trono é a Cruz, prova definitiva e plena de amor, com a qual a morte é vencida e a vida resplandece na Ressurreição do Senhor e as portas se abrem para todos.

O Reino de Deus não chega pela força, mas exige o uso do precioso dom da liberdade. Diante dele há que se tomar uma decisão : ‘Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo’ (Mt 6, 33). E buscá-lo é optar por valores que significam caminhar contra a correnteza da avassaladora luta pelo poder, presente no mundo e dentro de cada pessoa. Uma das escolhas se chama ‘serviço’ (Cf. Mc 10, 45), buscar não o domínio sobre os outros, mas exercitar a disponibilidade para construir o bem das pessoas. Quer dizer converter-se a cada dia, frente às responsabilidades pessoais, especialmente as que significam poder sobre quem quer que seja. Outro passo é a confiança na Providência Divina, pois o mundo não foi abandonado por quem o criou, mas é misteriosamente guardado e acompanhado pelo Senhor, que sabe conduzir tudo para o bem.

Acreditar no Reino de Deus é decidir-se a contribuir pela sua implantação e exige uma sensibilidade especial em relação às pessoas, como se expressa o Senhor na Parábola do Juízo final. Ver alguém com fome e dar de comer, com sede e dar de beber; receber em casa o forasteiro, vestir quem está nu, cuidar dos doentes e visitar os presos. São situações tão concretas e humanas, que dizem respeito justamente ao Reino de Deus. Não se trata de sonhar com alguma manifestação gloriosa do Senhor, mas apenas reconhecer sua presença. Ele como que se esconde atrás de cada pessoa humana. O Reino se faz presente a cada momento. Acreditar nele é viver bem o dia a dia e não fugir das responsabilidades. Deus entrou na vida humana de forma irreversível, para que cada ato de amor humano introduza a humanidade nas realidades da eternidade.

Na Solenidade de Cristo Rei do Universo, abram-se as portas para que todos se sintam acolhidos e bem recebidos. É o que a Igreja suplica : Deus eterno e todo-poderoso, que dispusestes restaurar todas as coisas no vosso amado Filho, rei do universo, fazei que todas as criaturas, libertas da escravidão e servindo à vossa majestade, vos glorifiquem eternamente. Amém.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/o-mundo-nao-foi-abandonado-por-quem-o-criou