quarta-feira, 30 de março de 2016

Paquistão : as madrassas e os “cristãos das catacumbas”

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 lahore Cristiani-Pakistan

‘No domingo da Ressurreição, o Paquistão mergulhou de novo nas profundezas do ódio e da morte. Em Lahore, na região central do país, um suicida se explodiu em um parque repleto de famílias que celebravam com alegria.

O saldo (infelizmente) provisório é de 72 vítimas, incluindo 30 crianças, e pelo menos 340 feridos. A maioria pertence à comunidade cristã do Paquistão, 4% de uma população de preponderância muçulmana e que é alvo, pela enésima vez, de ataques atrozes.

A chacina alimentou um clima de tensão e de alarme. Em conversa com Zenit, quem fala desse clima é o professor Shahid Mobeen, que leciona Pensamento e Religião Islâmica na Pontifícia Universidade Lateranense e é fundador da Associação de Paquistaneses Cristãos na Itália.

Após o ataque, as minorias religiosas ficaram apavoradas. É difícil sair de casa’, explica ele, com base nos contínuos testemunhos que recebe por telefone de seu país. Mobeen conta que sua irmã estava em Lahore no domingo. Com ela e outros membros da família ‘está tudo bem’, porque tinham ficado em casa com outros parentes.

Parece que retornaram os tempos das catacumbas para os cristãos do país asiático. ‘Muitos pais estão evitando mandar os filhos para a escola e muitos também evitam os locais de maior aglomeração’.

Era o caso, no domingo, do parque infantil de Gulshan-e-Iqbal, onde muitas famílias cristãs comemoravam a tarde de Páscoa depois de terem participado das celebrações religiosas.

O ataque foi reivindicado pelos jihadistas do grupo Jamatul Ahrar, ligado ao principal grupo do Taliban paquistanês (Tehrik e Taleban Pakistan – TTP). Pode ser uma mostra de força do Taliban diante do Estado Islâmico (EI), que busca apoio entre as franjas mais extremistas do islã no Paquistão. Mobeen recorda que, ‘recentemente, foi desbaratado um grupo que pretendia criar uma filial do EI no Paquistão. Existem campos de treinamento onde os mujaheddin são recrutados pelo EI para cometer ataques não só no Paquistão, mas também no exterior’.

Muitos analistas interpretam o ataque em Lahore como um sinal enviado ao governo, que tem se mostrado disposto a alterar a lei antiblasfêmia introduzida em 1986 e que vem gerando muitas injustiças (e vítimas) entre os cristãos. Além de condenar à pena de morte quem ‘insulta’ a religião islâmica, essa lei tem sido usada muitas vezes como pretexto para indiciar, aprisionar e até linchar sem prova alguma os assim chamados ‘infiéis’.

Eu não acho que seja um sinal desse tipo’, objeta Mobeen. Ele acredita que, com este ataque, o grupo TTP ‘quis registrar a sua presença em Lahore para o primeiro-ministro Nawaz Sharif’, que é da cidade. O professor recorda ainda que o Talibã ‘já atacou várias outras áreas do país, como as que fazem fronteira com o Afeganistão e as do Sul’.

A demonstração de instabilidade do Paquistão ameaça a visita do papa Francisco, que recebeu o convite do governo de Islamabad faz algumas semanas. De acordo com Mobeen, a presença do papa no Paquistão se torna agora uma quimera, porque o ataque ‘mostrou todas as falhas de segurança das autoridades’ – autoridades, aliás, que, apesar dos discursos, parecem impotentes diante do crescimento do fundamentalismo islâmico, atribuído por Mobeen ao papel das madrassas, escolas corânicas que, ao longo dos anos e graças a abundante financiamento do exterior, têm corroído lentamente a educação pública no país.

Mobeen observa que os pais, ‘muitas vezes, sem contarem com escolas do Estado, são obrigados a enviar seus filhos às madrassas’, onde as crianças podem acabar doutrinadas para a jihad. Especialmente quando essas instituições são zonas francas do islamismo mais radical, livres de qualquer monitoramento.

De 40 mil madrassas no território nacional, as registradas pelo Estado e que seguem um mínimo do currículo não chegam a 8.000’, diz Mobeen. Isto significa que ‘cerca de 32 mil madrassas, frequentadas por centenas de milhares de crianças, são potenciais promotoras da ‘guerra santa’ contra o Ocidente, contra a democracia e contra as instituições’.

Para mudar a situação, Mobeen pede ao governo paquistanês que reative o Ministério Federal das Minorias, porque ‘nós, cristãos, não somos dhimmi (indivíduos não-muçulmanos) a ser protegidos, mas sim co-fundadores do Paquistão com pleno direito de cidadania’. A paz não passa pela proteção de uma minoria, mas pelo reconhecimento da igualdade de oportunidades.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


terça-feira, 29 de março de 2016

As obras de misericórdia corporais

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


 

*Artigo de JOVENS EM MISSÃO

‘As obras de Misericórdia são as ações caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar, perdoar, suportar com paciência e rogar a Deus pelo próximo são obras de misericórdia espirituais. As obras de misericórdia corporais consistem em dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, albergar quem não tem teto, vestir os nus, visitar os doentes e os presos, e sepultar os mortos.


Caridade fraterna e justiça que agrada a Deus

Ser cristão é ser como Jesus Cristo, é manifestar a fé em atos de caridade : «A fé se não tiver obras está completamente morta» (ler Carta de Tiago 2, 14-26). Como pode um cristão dizer que tem fé, se esta não se manifesta nos seus atos? Que sentido teria uma fé assim?

A transmissão oral da fé é fundamental, mas é preciso que esta fé se torne vida em cada um de nós. Neste tempo, em que a fé celebrada na Igreja corre o risco de apagar-se como uma chama que já não recebe alimento, a prioridade é tornar Deus presente neste mundo através dos gestos que são manifestação concreta de Deus que é Amor.

No Ano Santo da Misericórdia, recordamos a tradição das Obras de Misericórdia. Não são ‘caridadezinha’, mas amor ao próximo como arte do encontro, como arte da relação, como arte de viver em fraternidade e na prática da justiça que agrada a Deus.


As obras de misericórdia corporais

O evangelista São Mateus apresenta no capítulo 25 uma narração do Juízo Final (Mt 25, 31-36). E apresenta as obras de misericórdia corporais que dizem respeito às necessidades materiais do outro.

Dar de comer a quem tem fome e dar de beber a quem tem sede são duas obras que se complementam e referem-se à ajuda que devemos disponibilizar em alimentos e outros bens aos mais necessitados, àqueles que não têm o indispensável para comer em cada dia.

Jesus, segundo o Evangelho de S. Lucas, recomenda : «Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e quem tem mantimentos faça o mesmo» (Lc 3, 11).

Dar pousada aos peregrinos é uma obra que remonta aos tempos antigos, em que dar hospedagem aos viajantes era um assunto de vida ou de morte, pelas dificuldades e riscos das caminhadas e viagens. Não é o normal hoje em dia. Mas, mesmo assim, poderia acontecer recebermos alguém em nossa casa, não por pura hospitalidade de amizade ou família, mas por alguma, verdadeira, necessidade. O êxodo dos refugiados que chega à Europa dá, atualmente, uma nova urgência à prática desta obra de fraternidade e justiça social e cristã.

Vestir os nus é um apelo para aliviar outra necessidade básica : o vestuário. Muitas vezes é-nos proporcionada com as recolhas de roupa que se fazem nas paróquias e noutros centros. Ao entregar a nossa roupa é bom pensar que podemos dar o que nos sobra ou já não nos serve, mas também podemos dar do que ainda nos é útil. A carta de São Tiago propõe-nos sermos generosos : «Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser : ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará?’» (Tg 2, 15-16).

Visitar os enfermos. Trata-se de uma verdadeira atenção para com os doentes e idosos, tanto no auxílio físico, como em lhes proporcionar um pouco de companhia. O melhor exemplo da Sagrada Escritura é o da parábola do Bom Samaritano que curou o ferido e, ao não poder continuar a cuidar dele diretamente, confiou os cuidados que necessitava a outro em troca de pagamento (ver Lc 10, 30-37).

Visitar os presos é prestar-lhes não só ajuda material, mas também assistência espiritual que lhes sirva para melhorarem como pessoas, emendar-se, aprender a desenvolver um trabalho que lhes possa ser útil quando terminarem o tempo que lhes foi imposto pela justiça, etc. Significa também resgatar os inocentes e sequestrados. Em tempos antigos os cristãos pagavam para libertar escravos ou se trocavam por prisioneiros inocentes.

Por fim, enterrar os mortos. Foi um amigo de Jesus Cristo, José de Arimateia, que lhe cedeu o seu túmulo. Mas, não apenas isso, teve a valentia para se apresentar ante Pilatos e pedir-lhe o corpo de Jesus. Nicodemos também participou e ajudou a sepultá-lo (Jo 19, 38-42). Enterrar os mortos parece um mandato supérfluo, porque, de fato, todos são enterrados. Mas, por exemplo, em tempo de guerra, pode ser um mandato muito exigente. Porque é importante dar sepultura digna ao corpo humano? Porque o corpo humano foi morada do Espírito Santo. Somos templos do Espírito Santo (1 Cor 6. 19).


A obra de misericórdia mais pobre

Visitar os presos é uma obra de misericórdia muito difícil de ser praticada nos tempos atuais. Muitas são as razões que as pessoas afirmam para não o praticar : não dá jeito, não têm tempo, não sabem como fazer, poderiam ser julgados, não conhecem as pessoas de lado nenhum, não se devem meter em assuntos alheios…

É difícil transformar os corações, os de dentro e os de fora. Uma sobressai : por causa do aumento da violência e da sensação de impunidade, acabamos por desejar que as pessoas que cometem crimes sejam condenadas para que desapareçam das nossas vidas. Ou seja, estamos a deixar de acreditar no ser humano. Começamos a acreditar mais no castigo do que na recuperação, mais na destruição do que na conversão, mais na força do crime do que no amor de Deus e o amor humano. Deixamo-nos levar por este mundo violento, um mundo que descarta as pessoas, esquecendo-nos que também os encarcerados são filhos e filhas de Deus.

As prisões não podem ser um ponto final na vida das pessoas, mas um ponto de passagem. Cair na rua desamparado também não pode ser o ponto final de uma pessoa que passou pela prisão.

A Igreja, seguindo o exemplo de Jesus Cristo, é uma comunidade terapêutica, comunidade de irmãos capaz de reconstruir pessoas com percursos de vida insensatos. O cristão acredita que todas as pessoas possuem dignidade, conferida por Deus, devendo ser valorizadas pelo que são, e não pelo que têm, fazem ou produzem. O cristão crê na arte de visitar, levando para dentro da cadeia a ideia de liberdade com responsabilidade, com palavras e gestos de conforto, carinho, companheirismo e esperança.’


Fonte :
* Artigo na íntegra

segunda-feira, 28 de março de 2016

Iêmen : uma geração inteira de crianças abandonada à própria sorte

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘‘Um ano depois do recrudescimento do conflito no Iêmen, quase 90% das crianças do país precisam de ajuda humanitária de emergência. Dez milhões de crianças estão em situação desesperada e largamente ignorada. Uma geração inteira de crianças foi abandonada à própria sorte’. As palavras são de Edward Santiago, diretor geral no Iêmen da organização Save the Children, dedicada desde 1919 a salvar crianças em perigo e proteger os seus direitos. ‘Ao optar por apoiar a ação militar ignorando as consequências devastadoras para os civis, os governos internacionais estão exacerbando a crise e pondo em risco a vida das crianças’.

Para milhões deles, o terror dos ataques aéreos e dos bombardeios, bem como a destruição de tudo o que os rodeia, já faz parte da vida diária – e não podemos permitir que isso continue’, declara Edward.

Mesmo antes que a crise atual se agravasse, o Iêmen já era o país mais pobre e menos desenvolvido do Oriente Médio. Agora, a vida de milhares de crianças está em risco se os combates continuarem e se a entrega de ajuda humanitária vital continuar sendo dificultada.

O relatório ‘As crianças do Iêmen Sofrem em Silêncio’, da Save the Children, explica que um ano de guerra gerou uma crise humanitária das piores do mundo, deixando o país sem medicamentos, alimentos e combustível.

O médico de um hospital apoiado pela Save the Children em Sana’a nos disse que um recém-nascido morreu no mês passado durante uma queda de energia que desligou as incubadoras. Tinha faltado o combustível necessário para os geradores auxiliares. As outras estruturas de saúde com que trabalhamos estão ficando sem materiais básicos como curativos, antibióticos e iodo. E, nos últimos seis meses, todas viram duplicar ou até triplicar os casos de doenças potencialmente fatais nesses contextos, como a malária, a desnutrição aguda grave, os problemas respiratórios e a diarreia’.

Uma análise recente da equipe de saúde e nutrição da Save the Children na cidade de Saada também identificou a falta crítica de alimentos terapêuticos para crianças desnutridas.

No Iêmen, uma em cada três crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição aguda. São quase 10 milhões sem acesso a água potável e mais de 8 milhões que não conseguem cuidados básicos de saúde. Cerca de 600 hospitais e centros de saúde tiveram que fechar por causa de danos estruturais ou porque ficaram sem recursos’.

A crise no Iêmen teve impacto psicológico devastador nas crianças: estima-se que, todo dia, 6 sejam mortas ou feridas. Em 2015, nos bombardeios sobre áreas povoadas, 93% das vítimas eram civis.

De acordo com uma pesquisa realizada pela Save the Children com 150 crianças em Aden e Lahj, 70% das crianças sofrem sintomas associados a sofrimento e traumas, incluindo ansiedade, baixa auto-estima, sentimentos de tristeza e falta de concentração’, explica Santiago. ‘Além disso, cada vez mais crianças são recrutadas por grupos armados, raptadas, mantidas reféns e obrigadas a arriscar a vida por causa das milhares de minas que foram espalhadas recentemente’.

Quase metade das crianças em idade escolar no Iêmen não tem acesso à educação, já que os ataques contra escolas são em média dois por semana. Mais de 1.600 escolas foram fechadas ou estão sendo usadas ​​como abrigos de emergência para as famílias que se viram obrigadas a fugir da própria casa.

Apesar das enormes necessidades, o plano de resposta humanitária das Nações Unidas para o Iêmen só recebeu 56% dos fundos previstos em 2015 e 12% no que transcorreu até agora de 2016 – mas nenhum financiamento foi dedicado até agora à educação e proteção das crianças.

As nações ricas estão fechando os olhos para o sofrimento das crianças e, em alguns casos, estão fazendo negócios de bilhões de dólares com a venda de armas que continuam a ser usadas contra civis’, denuncia Santiago.

As resoluções do Conselho de Segurança da ONU são ignoradas em total desrespeito pelo direito internacional e pela proteção de civis, especialmente crianças. É preciso muito mais ajuda para aqueles que sofrem e mais pressão diplomática para acabar com o conflito no Iêmen’.

O cessar-fogo que acaba de ser anunciado poderia ser um passo positivo’, conclui o diretor da Save the Children no Iêmen. ‘As negociações de paz anteriores não levaram a nenhum resultado substancial e o cessar-fogo falhou. Desta vez, as coisas devem ser diferentes : são as crianças que estão pagando o preço de cada novo dia de conflito. Só se poderá avançar se, desta vez, a prioridade das partes em conflito for verdadeiramente a paz e a solução duradoura’.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


sábado, 26 de março de 2016

Ressurreição

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Frei Patrício Sciadini, OCD,
Provincial dos carmelitas descalços no Egito


‘Procurando no arquivo da minha memória para refletir sobre a ressurreição, veio-me de repente uma frase de minha mãe Domênica, pronunciada há muitos anos, exatamente depois da Missa de Páscoa, enquanto estávamos tomando café com o ovo bento, como é costume na Itália. Ninguém, no Dia de Páscoa, deixava de comer o ovo abençoado pelo padre, na visita às famílias, e um pedaço de bolo feito com uva passa.

É a bênção da ressurreição, e minha mãe, comentando comigo a homilia da Missa, dizia : ‘Ressurreição é acordar-se do sono, do torpor, do desânimo, do desespero e recomeçar o caminho da vida, sabendo que o Senhor caminha conosco’. Já tivera muitas experiências na sua vida de mulher analfabeta, mas com longa caminhada no meio do povo.

A ressurreição – dizia ela – ‘é o nascer da semente que fica enterrada dias e dias debaixo da terra e que ao primeiro cair da água e surgir do sol vai nascendo, dando vida nova a toda a planície. É ver como, passado o inverno que parece morte, mas não é, tudo volta a florescer e a ser bonito. Assim é a Páscoa. A gente sofre tanto na Sexta-feira Santa, sofre até chorar, ao ver Jesus traído pelos melhores amigos, coroado de espinhos, sem ter feito nenhum mal, mas ao contrário, só ter feito o bem a tanta gente. Sofre ao ver Jesus carregando a cruz sobre a qual será crucificado’.

Dá dó ver que os apóstolos o abandonaram… A gente sofre. Os olhos se enchem de lágrimas quando se vê o Cristo que nem pode mais carregar a cruz, mas é obrigado e chicoteado. Cristo morre, mas Ele acorda, sai do sepulcro e vive de novo, e manda as mulheres darem o anúncio da vida nova’.

Sei que isto é verdade, não por ter lido, não sei ler – prossegue mãe Domênica – mas porque vocês padres dizem que está escrito no Evangelho. E mesmo que não estivesse escrito, sei que é verdade, quando olho a vida das pessoas ao meu lado. Você conheceu a Albina, ela tinha câncer, sofria terrivelmente, mas todas as vezes que sabia que alguém ia visitá-la, costumava dizer à minha irmã que cuidava dela : ‘Olhe, me deixe bonita como uma páscoa porque hoje vêm as minhas amigas e quero que vejam que estou ressuscitada’.

Páscoa é o nascer da semente que fica dias e dias debaixo da terra e que ao primeiro cair da água e ao surgir do sol, vai nascendo, dando vida nova a toda a planície.

E ela era alegre, feliz, embora a mordida da dor fosse forte e a fizesse sofrer atrozmente. Essa me parece que é a ressurreição, a coragem de aguentar o sofrimento e crer que é possível ser feliz quando se pensa na alegria dos outros. Quantas pessoas eu tenho visto ressuscitar com a nossa ajuda, reviver, serem outras. Quantas crianças, por um pedaço de pão recebido com carinho e amor, abrem o seu sorriso e nos falam da vida que renasce…

Minha mãe continuava dizendo com força e coragem : ‘Acham que só vocês que estudam e são padres, porque sabem latim, conhecem a ressurreição? Não, também nós sabemos disto’.

Outra coisa linda, que parece uma ressurreição, é o nascimento de uma criança. As dores do parto são de morrer, mas a criança que vem ao mundo é alegria, é ressurreição, é vida nova. A ressurreição é despertar do sono e abrir os olhos à nova vida e ver como Deus não quer ver ninguém sofrer nem desanimar. A Páscoa é a festa mais bela, por isso toda a natureza coopera, até as flores do meu jardim no Dia de Páscoa são mais bonitas e perfumadas…

Esse acontecimento que estava guardado na minha memória me fez sorrir silenciosamente e dei nota 10 com louvor à minha mãe em teologia bíblica. Sem que ela tenha lido um texto de exegese, e nada saber de estudo, entendia que a ressurreição não é de ontem, mas de hoje, e que Jesus está vivo entre nós no sorriso, na vida, na criança que nasce, no doente que sabe superar a dor para receber os que ama, etc.

Cheguei à conclusão de que o dogma da fé na ressurreição de Jesus Cristo é o mais fácil de acreditar e o mais belo, que é para todos incentivo a não permitir que o desânimo entre na vida, que o pessimismo faça desaparecer a beleza do amanhã. É só olhar ao nosso redor e temos uma experiência maravilhosa de como vida e morte se alternam no cenário do mundo, mas a vitória é sempre da vida.

Todo gesto de amor, de gratidão, todo sorriso dado a alguém tem o efeito de ressurreição, de alegria que vem de dentro. A Páscoa é momento de sair pelas ruas e distribuir sorrisos, apertos de mão, e dizer para cada pessoa : ‘Coragem, não tenha medo, Cristo ressuscitou, Ele está vivo!’.

Cristo veio para nos ensinar o caminho a ser percorrido, do nascimento até a morte, mas depois da morte Ele quis dar para todos uma lição maravilhosa : a morte, que é o nada, não pode vencer nem ser rainha; Deus faz com que a vida retorne na eternidade.

Não é necessário estudar para acreditar na ressurreição de Jesus e na nossa. É suficiente parar e olhar dentro de nós mesmos e ver quantas vezes morremos e quantas vezes ressuscitamos, retomando o caminho da esperança e do amor. Sentir que Jesus ressuscita em nós porque nos doa a coragem de viver. Dizer aos outros como Ele disse : ‘Coragem, eu venci o mundo!’’


Fonte :
* Artigo na íntegra


sexta-feira, 25 de março de 2016

A Sexta-feira Santa nos convida a ter ouvidos de discípulo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘Distante do que significa ter ‘ouvido de mercador’, desejar e ter ouvido de discípulo é um programa de vida, que exige compromisso com ações que possam gerar respostas e atingir metas importantes, que transformem a realidade do povo. Incontestavelmente, trata-se da qualificação do papel que se exerce, nas diferentes circunstâncias, pensando particularmente as consequências e incidências sobre a vida dos outros e nos rumos da sociedade. O silêncio desta Sexta-feira Santa ecoa como insistente convite para que se conheça e se assuma a postura interior de se ter ouvidos de discípulo. A carência dessa postura favorece a multiplicação de arbitrariedades e promove o esvaziamento de diálogos decisivos na construção da sociedade.

Ouvidos de discípulo é referência, na profecia de Isaías, ao servo de Javé, que testemunha o dom recebido da escuta. Receba-o, preze-o e agradeça a Deus por este dom. Dádiva que o faz portador de uma sabedoria, capacitando-o para suportar e enfrentar adversidades sem perder o rumo. Uma escuta que, continuamente, abre os ouvidos do discípulo para estar em condições de dar respostas que fazem a diferença. Graça de Deus que está na contramão da soberba do saber e da tirania de definir rumos, ou enjaulá-los, na rigidez provocada pela inexistência do exercício da escuta.


Os ganhos qualificadores de se ter ouvido de discípulo

O horizonte do caminho da paixão e morte de Jesus projeta para a humanidade, pela celebração desta Sexta-feira Santa, os ganhos qualificadores de se ter ouvido de discípulo. A profecia que leva a dizer a verdade e ao compromisso com a justiça e o bem nasce na mente e no coração de quem tem esse ouvido. Discípulo é aquele que vai à escola. Não como professor. Menos ainda como os que acreditam saber de tudo, pois se valem dos lugares que ocupam para definir, sem a escuta necessária, os rumos da sociedade, o atendimento de suas demandas e, com essa conduta, permanecem distantes da competência para gerar o novo que possibilita sair da crise, devolver esperanças aos corações.

Quem escolhe a escuta como dinâmica para a configuração de sua maestria se abre ao que é dito por quem está acima de tudo e de todos – Deus – e consequentemente à escuta dos pobres. Capacita-se para o diálogo amplo e plural que a sociedade exige no complexo processo de definição de suas dinâmicas e busca de novas saídas. Quem escuta se torna servidor. Uma obrigação de fé e também uma nota inteligente no desempenho de papéis cidadãos. Quem não escuta manda a partir do pedestal ocupado. Quem escuta dialoga e se deixa interpelar por clamores e necessidades que formatam posturas adequadas e, assim, permitem a superação de equívocos. Essa postura é antídoto para teimosias e tudo que obscurece os caminhos para as resoluções criativas e solidárias.


Construir para os homens um novo tempo

Os cristãos, nesta Sexta-feira Santa, celebrando a Paixão e Morte de Cristo, ao acompanhar os passos de sua amorosa escuta de Deus, na sua corajosa entrega de si pela salvação do mundo, são interpelados a contemplar o Mestre, Senhor e Salvador. Ele é Servo por escutar amorosamente o seu Pai, obediente ao desígnio n’Ele realizado de salvar a humanidade, de construir para os homens um novo tempo na força do amor que o leva a morrer na cruz e a ressuscitar. A atitude exemplar de Jesus é certamente o caminho inspirador que a sociedade brasileira precisa para reencontrar rumos e redefinir saídas.

O silêncio é condição para a escuta que permite identificar os clamores dos pobres, alcançar equilíbrio nas relações, cultivar o bem no coração da humanidade e promover a beleza que recupera a sensibilidade perdida. É urgente aceitar o convite que esta Sexta-feira Santa brada em seu silêncio. Trata-se de convocação para que todos adotem o ouvido de discípulo e, assim, avanços possam se tornar realidade. Ouvir como discípulo é tarefa que ilumina a cidadania e, entre outras fundamentais conquistas, possibilita entendimentos para a efetivação da reforma política, sem enrolações interesseiras. O ouvido de discípulo permite também escutar as muitas razões para que não se efetive a diminuição da maioridade penal. Evita irracionalidades, favorece o gosto pelo diálogo entre poderes e segmentos, criando condições para o aparecimento de líderes, que estão em falta, com capacidade humanística para priorizar as urgências dos mais pobres.

Desenvolver o ouvido de discípulo é uma prática com força de remédio para curar as rudezas dos corações e das mentes que perderam o sentido nobre de pertencimento a um povo, de fidelidade à sua identidade. É a cura para corações e mentes que ao ferir o tecido cultural e humanístico fazem da vida um inferno verdadeiro, com desfigurações, violências e barbáries. Queiramos todos cultivar o ouvido de discípulo.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


quinta-feira, 24 de março de 2016

Via Sacra

Participe da Via Sacra dos 
Oblatos Beneditinos Seculares do 
Mosteiro de São Bento de São Paulo


Saída às 13h00
Concentração no Largo de Santa Ifigênia


domingo, 20 de março de 2016

Trevas cobriam o abismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


A política partidária instalou incontestavelmente o caos na sociedade.
  
‘‘A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo...’. Assim começa a narração do Livro do Gênesis, permitindo uma analogia com o atual momento político do Brasil. A política partidária instalou incontestavelmente o caos na sociedade. Está perdida a capacidade para o diálogo que gera consensos e entendimentos. Não paira, absolutamente, o Espírito de Deus no mundo da política. É uma escuridão que fomenta o caos - um ‘salve-se quem puder’ que passa por cima do bem comum como um trator. Não há esperança de que a política partidária consiga, rapidamente, oferecer contribuições para os rumos da nação. A lista de desmandos, escolhas absurdas, interesseiras e manipulações é interminável. Comenta-se, em muitas esferas da sociedade, sobre a expectativa do surgimento de um líder político capaz de gerar agregação e apontar novas direções. Isso parece ser difícil de ocorrer, justamente pelo atual cenário vivido pela política partidária. Quem seria capaz, agora, de reverter essa difícil situação? O mundo da política partidária no Brasil configura-se como um devastador desastre humano à semelhança das incidências horrendas que ferem o meio ambiente.

A deterioração da esfera política e o tratamento inadequado das questões ambientais se desenvolvem a partir da mesma raiz. Aqui vale relembrar as palavras do Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, quando se refere à nova idolatria do dinheiro. O caos vem dessa idolatria. É inexistente a nobreza de fazer política pelo bem comum, com o objetivo de ajudar a nação a alcançar patamares de civilidade e de funcionamentos que promovam, sem populismos, os seus cidadãos. A falta dessa nobreza é resultado de carência na formação humanística que ilumina intuições, capacita para o bem, muito acima do interesse de enriquecimentos ilícitos. O Papa Francisco afirma que ‘uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e nossas sociedades’. Essa verdade explica os desajustes no tecido da cultura, que delineia a identidade da sociedade e influencia suas direções.

O Papa Francisco oferece a chave de interpretação desse caos instalado que produz, por exemplo, a crise financeira que pesa sobre os ombros de todos. A base da desordem é a negação da primazia do ser humano. Esse colapso antropológico tem muitas feições. Descompassa relações, articulações de grupos e segmentos na sustentação de uma sociedade que deve se mover no horizonte da justiça e da solidariedade. É triste constatar o que ocorre na política partidária. O desejo de ocupar cargos públicos não vem acompanhado do sentido cidadão mais profundo de ajudar decisivamente na construção de uma sociedade solidária e justa. Trata-se de interesse doentio pelo dinheiro, para alimentar ilusórias sensações de poder e segurança. Uma ambição que produz essa economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano.

Ora, a idolatria do dinheiro é perigosa, gera ilusões e desgasta o mais nobre sentido da política, que é promover o bem comum. Essa idolatria é tão terrível que faz crescer, de modo generalizado, a sensação de que não há mais tempo para fazer o que é necessário. Isto fica explícito nas muitas lamentações e ladainhas exaustivamente propaladas. O interesse mesmo é ganhar sempre mais, produzir menos. Nada de sacrifícios e esforços para alcançar o bem de todos. Uma luz precisa brilhar para iluminar essas trevas. E de onde ela pode vir? Em primeiro lugar, da corresponsabilidade e seriedade cidadã de cada indivíduo. Sistemicamente, essa luz pode e precisa brilhar com o fortalecimento, em seriedade e audácia, dos diferentes segmentos da sociedade - empresarial, religioso, judiciário, acadêmico e intelectual, artístico e outros mais. Cada setor, pela seriedade e honestidade, tem o dever de dissipar as trevas que preenchem o abismo onde está inserida a sociedade brasileira. Que venha de todas as pessoas e grupos, pelo compromisso com o bem, a justiça e a verdade, essa a luz que tem a força para resgatar o país do caos.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


sexta-feira, 18 de março de 2016

'O caminho rumo à unidade dos cristãos' - Quinta pregação da Quaresma de 2016

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Canada: documento vescovi del 50° dell’Unitatis Redintegratio
*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

                          Reflexão sobre a ‘Unitatis Redintegratio’

  1. O caminho ecumênico após o Vaticano II
A moderna ciência hermenêutica tornou familiar o princípio de Gadamer da ‘história dos efeitos’ (Wirkungsgeschichte). De acordo com este método, compreender um texto exige levar em conta os efeitos que ele produziu na história, inserindo-se nessa história e dialogando com ela [1]. O princípio se mostra muito útil quando aplicado à interpretação da Escritura. Ele nos diz que não podemos compreender plenamente o Antigo Testamento a não ser à luz do seu cumprimento no Novo – e que não se pode entender o Novo Testamento se não à luz dos frutos que ele produz na vida da Igreja. Não é suficiente, portanto, o habitual estudo histórico-filológico das ‘fontes’, ou seja, das influências sofriadas por um texto; é necessário levar em conta também as influências exercidas por ele. É a regra que Jesus tinha formulado muito tempo antes, dizendo que toda árvore se conhece pelos frutos (cf. Lc 6, 44).
Guardadas as proporções, este princípio – como vimos nas meditações anteriores – também se aplica aos textos do Vaticano II. Hoje eu quero mostrar a sua aplicação, especialmente, ao decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio, que é o tema desta meditação. Cinquenta anos de caminho e progresso no ecumenismo estão demonstrando as potencialidades contidas naquele texto. Depois de recordar as razões profundas que levam os cristãos a procurar a unidade entre si, e depois de observar entre os crentes das diversas Igrejas a difusão de uma nova atitude a este respeito, os Padres conciliares expressaram assim a intenção do documento :
Portanto, considerando com alegria todos esses fatos, depois de ter exposto a doutrina sobre a Igreja e movido pelo desejo de restaurar a unidade entre todos os discípulos de Cristo, este sagrado Concílio pretende agora propor a todos os católicos as ajudas, diretrizes e modos para que possam responder a esta vocação e a esta graça divina[2].
As realizações ou frutos deste documento foram de dois tipos. No âmbito doutrinal e institucional, foi constituído o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos; foram também lançados diálogos bilaterais com quase todas as confissões cristãs, a fim de promover um melhor conhecimento mútuo, um debate de posições e a superação dos preconceitos.
Junto com este ecumenismo oficial e doutrinal, desenvolveu-se desde o início um ecumenismo do encontro e da reconciliação dos corações. Neste âmbito, destacam-se alguns encontros célebres que marcaram o caminho ecumênico nestes 50 anos : o de Paulo VI com o patriarca Atenágoras, os inúmeros encontros de João Paulo II e de Bento XVI com os líderes de diferentes igrejas cristãs, do papa Francisco com o patriarca Bartolomeu em 2014 e, mais recentemente, com o patriarca de Moscou, Cirilo, em Cuba, que abriu um novo horizonte para o caminho ecumênico.
A este mesmo ecumenismo espiritual pertencem ainda as muitas iniciativas em que os crentes de diferentes Igrejas se encontram para orar e proclamar juntos o Evangelho, sem tentativas de proselitismo e na plena fidelidade de cada um à própria Igreja. Eu tive a graça de participar de muitos desses encontros. Um deles permanece particularmente vivo na minha lembrança porque foi como uma profecia daquilo a que o movimento ecumênico deveria nos levar.
Em 2009, foi realizada em Estocolmo uma grande manifestação de fé chamada ‘Jesus manifestation’, ‘Manifestação por Jesus’. No último dia, os crentes das várias Igrejas, cada um por uma via diferente, caminhavam em procissão para o centro da cidade. O pequeno grupo local de católicos, liderados pelo bispo local, também andava pelo seu caminho, rezando. Chegados ao centro, as filas se rompiam e era uma única multidão que proclamava o senhorio de Cristo perante 18.000 jovens e transeuntes atônitos. Aquela que pretendia ser uma manifestação ‘por’ Jesus se tornou uma poderosa manifestação ‘de’ Jesus. Sua presença podia quase ser tocada com a mão num país não habituado a manifestações religiosas desse tipo.
Esses desenvolvimentos do documento sobre o ecumenismo também são fruto do Espírito Santo e sinal do invocado novo Pentecostes. Como é que o Ressuscitado convenceu os apóstolos a se abrirem para os gentios e a acolhê-los na comunidade cristã? Levou Pedro até a casa do centurião Cornélio e o fez assistir à vinda do Espírito sobre os presentes com as mesmas manifestações que os apóstolos tinham experimentado no dia de Pentecostes : o falar em línguas, o glorificar a Deus em alta voz. Não restou a Pedro senão tirar a conclusão : ‘Se Deus deu a eles o mesmo dom que deu a nós… quem era eu para pôr impedimentos a Deus?’ (Atos 11, 17).
O Senhor ressuscitado está fazendo a mesma coisa hoje. Ele envia o seu Espírito e os seus carismas para os fiéis das mais diversas Igrejas, mesmo às que acreditávamos mais distantes de nós, muitas vezes com idênticas manifestações externas. Como não ver nisto um sinal de que Ele nos exorta a aceitar-nos e reconhecer-nos como irmãos, embora ainda a caminho de uma unidade visível mais plena? Em todo caso, foi isso o que me converteu ao amor pela unidade dos cristãos, habituado como estava pelos meus estudos pré-conciliares a ver ortodoxos e protestantes apenas como ‘adversários’ a refutar em nossas teses de teologia.

  1. A um ano do V Centenário da Reforma Protestante (1517) 
Na Quaresma do ano passado, tentei mostrar os resultados obtidos pelo diálogo ecumênico, no campo da teologia, com o Oriente ortodoxo. O título que dei ao livreto dessas meditações foi ‘Dois pulmões, uma única respiração’, que resume o nosso rumo e o que, em grande parte, já foi realizado [3]. Nesta ocasião, eu gostaria de voltar a atenção para as relações com o outro grande interlocutor do diálogo ecumênico, o mundo protestante, sem entrar em questões históricas e doutrinais, mas para mostrar que tudo que nos impulsiona a avançar no esforço de restaurar a unidade do Ocidente cristão.
Uma circunstância torna esse esforço particularmente atual. O mundo cristão se prepara para os quinhentos anos da Reforma em 2017. É vital, para o futuro da Igreja, não desperdiçarmos esta oportunidade mantendo-nos prisioneiros do passado, ou simplesmente usando tons mais irônicos ao apontar erros e razões de ambos os lados. É o momento, penso eu, de um salto qualitativo, como quando um barco chega à eclusa de um canal que lhe permitem continuar a navegação num nível superior.
A situação mudou profundamente nestes quinhentos anos, mas, como sempre, é difícil notá-lo. As questões que causaram a separação entre a Igreja de Roma e a Reforma no século XVI foram, sobretudo, as indulgências e o modo como ocorre a justificação do ímpio. Mas, de novo, podemos dizer que estes são os problemas determinantes da fé do homem de hoje? Numa conferência realizada no ‘Centro Pró-União’ de Roma, o cardeal Walter Kasper salientava justamente que, enquanto o problema existencial número um para Lutero era como superar o sentimento de culpa e obter um Deus benévolo, o problema hoje é o contrário : como devolver ao homem de hoje o verdadeiro senso do pecado que ele perdeu completamente.
Acredito que todas as discussões seculares entre católicos e protestantes sobre a fé e as obras acabaram nos fazendo perder de vista o ponto principal da mensagem paulina. O que o apóstolo quer afirmar acima de tudo em Romanos 3 não é que somos justificados pela fé, mas que somos justificados pela fé em Cristo; não é tanto que somos justificados pela graça quanto que somos justificados pela graça de Cristo. Cristo é o coração da mensagem, antes ainda que a graça e a fé.
Depois de apresentar nos dois capítulos precedentes da carta a humanidade em seu estado universal de pecado e perdição, o Apóstolo tem a incrível coragem de proclamar que esta situação mudou radicalmente ‘em virtude da redenção realizada por Cristo’, ‘pela obediência de um só homem’ (Rm 3, 24; 5, 19).
A afirmação de que esta salvação é recebida pela fé, e não pelas obras, está presente no texto e era a coisa mais urgente sobre a qual lançar luz no tempo de Lutero, quando era pacífico, ao menos na Europa, que se tratava da fé em Cristo e da graça de Cristo. Mas esta vem em segundo plano, não no primeiro. Cometemos o erro de reduzir a um problema de escolas, dentro do cristianismo, aquela que, para o Apóstolo, era uma afirmação bem mais ampla e universal. Hoje somos chamados a redescobrir e proclamar juntos o fundo da mensagem paulina.
Na descrição das batalhas medievais há sempre um momento em que, superados os arqueiros, a cavalaria e todo o resto, concentravam-se todos em torno do rei. Ali se decidia o fim da batalha. Para nós também a batalha é hoje em torno do Rei… A pessoa de Jesus Cristo é o que realmente está em jogo. Precisamos voltar, do ponto de vista da evangelização, à época dos apóstolos. Há uma analogia entre o nosso tempo e o deles. Eles tinham diante de si de um mundo pré-cristão; no Ocidente, temos diante de nós um mundo largamente pós-cristão.
Quando o apóstolo Paulo quer resumir em uma frase a essência da mensagem cristã, ele não diz ‘Anunciamos esta ou aquela doutrina’. Ele diz : ‘Nós anunciamos Cristo crucificado’ (1 Cor 1,23). E ainda : ‘Nós anunciamos Cristo Jesus, o Senhor’ (2 Cor 4,5). Este é o verdadeiro ‘articulus stantis et cadentis Ecclesiae’, o artigo com que a Igreja fica em pé ou cai.
Isto não significa ignorar tudo o que a Reforma protestante produziu de novo e de válido, seja na teologia, seja na espiritualidade, especialmente com a reafirmação do primado da Palavra de Deus. Significa, antes, permitir que toda a Igreja se beneficie das suas conquistas positivas, livrando-se de certos excessos e enrijecimentos devidos ao calor do momento, a ingerência da política e às polêmicas sucessivas.
Um passo significativo nesta direção foi a ‘Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação’, assinada em 31 de outubro de 1999 entre a Igreja católica e a Federação Mundial das Igrejas Luteranas [4]. Em sua conclusão, ela diz :
A compreensão da doutrina da justificação exposta nesta Declaração mostra a existência de um consenso entre luteranos e católicos sobre verdades fundamentais da doutrina da justificação. À luz desse consenso, são aceitáveis as diferenças ​​que subsistem no que diz respeito à linguagem, à elaboração teológica e às ênfases tomadas pela compreensão da justificação […] Por este motivo, a elaboração luterana e a católica da fé na justificação estão abertas uma à outra, em suas diferenças, e não invalidam o consenso atingido sobre verdades fundamentais[5].
Eu estava presente quando o acordo foi proclamado em São Pedro durante vésperas solenes presididas pelo papa João Paulo II e pelo arcebispo de Uppsala, Bertil Werkström. Uma observação que o papa fez na homilia me impactou. Expressava, se bem me lembro, este pensamento : chegou a hora de parar de fazer desta doutrina da justificação pela fé um tema de lutas e disputas entre teólogos, e de ajudar todos os batizados, em vez disso, a fazerem desta verdade uma experiência pessoal e libertadora. Desde aquele dia, eu nunca deixei, toda vez que tive a oportunidade na minha pregação, de exortar os irmãos a fazerem essa experiência.
A justificação mediante a fé em Cristo deveria ser pregada por toda a Igreja e com maior vigor do que nunca. Mas não mais em oposição às ‘boas obras’, que é uma questão superada e resolvida, mas em oposição, se a algo, à pretensão do mundo secularizado de salvar-se sozinho, com a sua ciência, com a tecnologia ou com técnicas espirituais de invenção própria. Estou convencido de que, se estivessem vivo hoje, esta seria a maneira de Lutero, Calvino e dos outros reformadores de pregar a justificação gratuita mediante a fé!
As sociedades modernas – lemos num livro que fez história – são construídas sobre a ciência. Devem a ela a sua riqueza, o seu poder e a certeza de que riquezas e poderes ainda maiores estarão amanhã disponíveis ao homem, se ele quiser […]. Equipadas de todo poder, dotadas de todas as riquezas que a ciência lhes oferece, as nossas sociedades ainda tentam viver e ensinar sistemas de valores já minados na própria base por esta mesma ciência[6].
Os ‘sistemas de valores ultrapassados’, para o autor, são, naturalmente, os sistemas religiosos. Jean-Paul Sartre chega à mesma conclusão a partir de um ponto de vista filosófico. Ele põe nos lábios de um seu personagem : ‘Eu mesmo me acuso e só eu posso absolver-me, eu, o homem. Se Deus existe, o homem não é nada[7]. E a esse tipo de desafios do cientificismo ateu e do secularismo devem responder os cristãos de hoje com a doutrina de que ‘o homem não é justificado diante de Deus pelas próprias obras, mas pela graça e pela fé’ (cf. Gal 2, 16).

  1. Além das fórmulas 
Estou convencido de que sobre o diálogo ecumênico com as igrejas protestantes pesa com força o freio das fórmulas. Explico. As formulações doutrinais e dogmáticas, que, em seu início, eram fruto de processos vitais e refletiam a vida coral da comunidade e a verdade laboriosamente alcançada, tendem com o passar do tempo a se enrijecer e se tornar ‘palavras de ordem’, etiquetas que indicam alguma ‘pertença’. A fé não termina mais na realidade da coisa, mas na sua formulação. Estamos no oposto do que deveria ser, de acordo com a famosa declaração de Tomás de Aquino : ‘Fides non terminatur ad enuntiabile, ad sed rem’ : a fé não termina em sua formulação, mas na coisa em si [8].
É o fenômeno do formalismo, já vivo na antiguidade uma vez terminada a fase de entendimento dos grandes dogmas [9]. Só recentemente se entendeu, por exemplo, que as divisões no Oriente cristão entre calcedonianos e as chamadas Igrejas monofisitas ou nestorianas se baseavam, em muitos casos, em fórmulas e no sentido diferente aplicado, nelas, aos termos ousia e hipóstase, que não tocavam a substância da doutrina. Foi possível restaurar, assim, a comunhão entre e com várias Igrejas orientais.
Este obstáculo é especialmente visível nas relações com as Igrejas da Reforma. Fé e obras, Escritura e tradição : são contraposições compreensíveis e, em parte, justificadas no seu nascimento, mas que se tornam enganosas se forem repetidas e mantidas como se nada tivesse mudado em quinhentos anos de vida.
Consideremos a contraposição entre fé e obras. Ela faz sentido se por boas obras se entendem de modo especial (como infelizmente acontecia nos tempos de Lutero) indulgências, peregrinações, jejuns, esmolas, velas votivas e assim por diante. Deixa de fazer sentido se por boas obras entendemos as obras de caridade e de misericórdia. Jesus, no Evangelho, nos adverte que sem elas não entraremos no reino dos céus – e que Ele será forçado a dizer : ‘Afasta-te de mim’. Não somos justificados, portanto, pelas boas obras, mas não somos salvos sem as boas obras. Nisto acreditamos todos, católicos e protestantes, e já o dizia o Concílio de Trento.
O mesmo deve ser dito da contraposição entre Escritura e tradição, o vem à tona tão logo se toca o problema da revelação, como se os protestantes tivessem só as Escrituras e os católicos Escritura e Tradição juntas. Mas, na realidade, não há nenhuma Igreja sem a própria tradição. O que explica a existência de tantas denominações diferentes dentro do protestantismo se não a sua forma diferente de interpretar as Escrituras? E o que é a Tradição, no seu conteúdo mais verdadeiro, se não, precisamente, a Escritura lida na Igreja e pela Igreja?
Nem mesmo a fórmula luterana ‘simul iustus et peccator’, ‘justo e pecador ao mesmo tempo’, é um obstáculo intransponível para a comunhão. Faz parte da tradição católica, desde o tempo dos Padres, a definição da Igreja como ‘casta meretriz’ (casta meretrix) e como ‘santa e sempre necessitada de reforma[10]. O que é dito da Igreja como um todo, como corpo de Cristo, não se deveria aplicar também a cada um dos seus membros?
O que pode estar sujeito a explicação diferente e complementar é a forma de se entender essa coexistência de santidade e pecado no homem redimido. No anexo à declaração conjunta sobre a justificação há uma explicação da fórmula ‘simul iustus et peccator’ que não está em desacordo com a doutrina católica. Afirma-se que a justificação opera uma real renovação na vida do batizado, ainda que nunca se torne uma posse adquirida, na qual o homem possa apoiar-se diante de Deus, mas permaneça sempre dependente da ação do Espírito Santo.
Em 1974, uma notícia surpreendeu e divertiu o mundo inteiro. Um soldado japonês, enviado durante a última guerra mundial a uma ilha das Filipinas para se infiltrar entre os inimigos e recolher informações, tinha vivido trinta anos escondendo-se aqui e ali pela selva e alimentando-se de raízes, frutas e alguma caça, convencido de que guerra ainda estava acontecendo e de que ele ainda estava em sua missão. Quando enfim o encontraram, não foi fácil convencê-lo de que a guerra tinha acabado e de que ele podia voltar para casa. Eu acho que acontece algo semelhante entre os cristãos. Há cristãos que é preciso convencer, em ambos os lados, de que a guerra acabou, de que as guerras de religião entre católicos e protestantes acabaram. Temos muito mais o que fazer em vez de guerra uns contra os outros! O mundo esqueceu, ou nunca conheceu, o seu Salvador, Aquele que é a luz do mundo, o caminho, a verdade e a vida, e nós perdemos tempo polemizando entre nós?

  1. Unidade na caridade 
Mas não é suficiente este motivo prático para fazer a unidade dos cristãos. Não basta estarmos unidos na evangelização e na ação de caridade. Este é um caminho que o movimento ecumênico experimentou em seu início com o movimento ‘Vida e Ação’ (‘Life and Work’), mas que logo se revelou insuficiente. Se a unidade dos discípulos deve ser um reflexo da unidade entre o Pai e o Filho, ela deve ser, acima de tudo, uma unidade de amor, porque esta é a unidade que reina na Trindade. As três pessoas divinas não são unidas por ‘operarem conjuntamente’ a criação e todas as outras obras ad extra; elas o são no seu próprio ser. A Escritura nos exorta a ‘fazer a verdade na caridade – veritatem facientes in caritate’ (Ef 4, 15). E Santo Agostinho diz que ‘não se entra na verdade senão pela caridade – non intratur in veritatem nisi per caritatem[11].
O extraordinário sobre esse caminho para a unidade baseado no amor é que ele já está escancarado diante de nós. Não podemos ‘queimar etapas’ no tocante à doutrina, porque as diferenças existem e devem ser resolvidas com paciência nas instâncias apropriadas. Podemos, porém, ‘queimar etapas’ na caridade e ser totalmente unidos desde já. O sinal verdadeiro e certo da vinda do Espírito não é, como escreve ainda Santo Agostinho, o falar em línguas, mas o amor pela unidade : ‘Sabeis que tendes o Espírito Santo quando permitis que adira o vosso coração à unidade através da sincera caridade[12].
Pensemos no hino à caridade de São Paulo. Cada frase adquire um significado atual e novo se aplicada ao amor entre membros das diferentes Igrejas cristãs, nas relações ecumênicas :
A caridade é paciente…
A caridade não é invejosa…
Não procura só o seu interesse [ou só os interesses da sua própria Igreja].
Não leva em conta o mal recebido [quando muito, o mal causado ​​ao outro!].
Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade [não se alegra com as dificuldades das outras Igrejas, mas sim com os seus sucessos espirituais].
Tudo crê, tudo espera, tudo suporta’ (l Cor 13, 4s).
Amar-se’, foi dito, ‘não significa olhar-se um ao outro, mas olhar juntos na mesma direção’. Mesmo entre os cristãos, amar-se quer dizer olhar na mesma direção que é Cristo. ‘Ele é a nossa paz’ (Ef 2, 14). Se nos convertermos a Cristo e formos juntos para Ele, nós, cristãos, nos aproximamos entre nós até ser, como Ele pediu, ‘um só com Ele e com o Pai’ (cf. Jo 17, 21). Acontece como com os raios de uma roda. Eles partem de pontos distantes da circunferência, mas, à medida que se aproximam do centro, também se aproximam entre si, até formar um só ponto. Acontece como naquele dia em Estocolmo…
Estamos nos aprestando a celebrar a Páscoa. Na cruz, Jesus ‘derrubou o muro de separação que havia no meio, a inimizade […] Por meio dele, podemos todos apresentar-nos ao Pai em um só Espírito’ (Ef 2, 14-18). Nós deixemos de fazê-lo, para a alegria do Coração de Cristo e para o bem do mundo inteiro.

Fonte :
*Artigo na íntegra
------------------------
[1] Cf H.G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen 1960.
[2] UR, 1.
[3] Due polmoni, un unico respiro. Oriente e Occidente di fronte ai grandi misteri della fede. Libreria Editrice Vaticana 2015.
[4] O texto da declaração conjunta pode ser encontrado na Enchiridion Vaticanum (EV) 17,744-817.
[5] Ib, núm. 40.
[6] J. Monod, Il caso e la necessità, Mondadori, Milão 1970, 136s.
[7] J.-P. Sartre, O diabo e o bom Deus, X, 4, Gallimard, Paris 1951, p. 267 s.
[8] S.Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-IIae , q. 1,a.2,ad 2.
[9] G. L. Prestige, God in Patristic Thought, Londres 1952, cap. XIII; ed. italiana  Dio nel pensiero dei Padri, Bolonha, Il Mulino, 1969, pp. 273 ss. (Il trionfo del formalismo).
[10] Cf. H.U. von Balthasar, ‘Casta meretrix, in  Sponsa Chnristi, Morcelliana, Brescia, 1969.
[11] Agostinho, Contra Faustum, 32, 18 (CCL 321, p. 779).
[12] Agostinho, Discursos, 269, 3-4 (PL 38, 1236 s).