quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Maria, Mãe de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ


Iniciamos o novo ano civil com o Dia Mundial da Paz (49º), que contempla o tema : ‘Vence as indiferenças e conquista a paz’! Nesse mesmo dia, a solenidade litúrgica que encerra a oitava do Natal é a de ‘Santa Maria, Mãe de Deus’.

Em tempos de tantos vilipêndios à nossa fé, em especial a Maria e a Jesus, esta celebração é o momento de reafirmarmos a nossa vida cristã diante de tantas ofensas que hoje ocorrem em nossa sociedade dita ‘cristã’. Diante disso tudo, somos chamados ainda mais a aprofundar a nossa fé e pedir ao Senhor que a aumente e nos faça colocá-la em prática com a graça de Deus.

A afirmação dogmática de Maria, mãe de Deus, vem sendo trabalhada por vários Concílios Ecumênicos : em 325 o Concílio de Nicéia e em 381 o Concílio de Constantinopla procuraram responder a respeito do Mistério da consubstancialidade de Deus uno e trino, Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. No terceiro Concílio Ecumênico, o de Éfeso, em 431, foi declarado que Santa Maria é a Mãe de Deus. Muitos não compreendiam e até pessoas de igreja como Nestório, patriarca de Constantinopla, ensinavam de maneira errada : que no mistério de Cristo existiam duas pessoas : uma divina e uma humana, mas não é isso que testemunha a Sagrada Escritura. Jesus Cristo é verdadeiro Deus em duas naturezas e não duas pessoas, uma natureza humana e outra divina; e a Santíssima Virgem é, consequentemente, Mãe de Deus.

No século IV, ensinava o bispo Santo Atanásio : ‘A natureza que Jesus Cristo recebeu de Maria era uma natureza humana. Segundo a Divina Escritura, o corpo do Senhor era um corpo verdadeiro, porque era um corpo idêntico ao nosso’. Maria é, portanto, nossa irmã, pois nós todos somos descendentes de Adão. Fazendo a relação deste mistério da encarnação, no qual o Verbo assumiu a condição da nossa humanidade com a realidade de que nada mudou na Trindade Santa, mesmo tendo o Verbo tomado um corpo no seio de Maria, a Trindade continua sendo a mesma; sem aumento, sem diminuição; é sempre perfeita. Nela, reconhecemos uma só divindade. Assim, a Igreja proclama um único Deus em três pessoas. Por isso, a Santíssima Virgem, mãe de Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, é a Mãe de Deus.

Neste primeiro dia do ano civil, a Igreja celebra a Solenidade da Virgem Maria, Mãe de Deus. Título mariano de grande importância para nós cristãos. Nós nos colocaremos na escola de Maria, a discípula perfeita, a primeira pregadora da Divina Misericórdia. Nesta meditação, vemos o sentido do ‘sim’ de Maria, a abertura para Deus que a coloca numa disponibilidade aberta ao horizonte da fé voltado para o ilimitado.

Neste dia é a conclusão da Oitava do Natal, dia no qual a Igreja volta-se para a Virgem que gerou em seu seio e deu à luz o verdadeiro Deus feito homem. Chegou a plenitude dos tempos e ‘Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher’, aquela mesma que os pastores encontraram velando o ‘recém-nascido deitado na manjedoura’. Somos gratos à Virgem Santa e, contemplando o seu Filhinho, reconhecemos nele o Deus perfeito e a proclamamos verdadeiramente Mãe de Deus : ‘Salve, ó Santa Mãe de Deus! Vós destes à luz o Rei que governa o céu e a Terra pelos séculos eternos!’ – assim canta a Igreja hoje, saudando a Toda Santa Virgem Maria. Nossos irmãos orientais, de rito bizantino, no Natal, cantam : ‘Ó Cristo, que podemos oferecer-vos como dom por vos terdes manifestado sobre a Terra na nossa humanidade? Com efeito, cada uma das vossas criaturas exprime a sua ação de graças, e a vós traz : os Anjos, o seu cântico; o céu, uma estrela; os Magos, os seus dons; os Pastores, a admiração; a terra, uma gruta; o deserto, uma manjedoura; e nós, uma Virgem Mãe’! Eis, pois, caríssimos irmãos, nosso presente ao Salvador : a mais bela flor de nossa raça, o mais belo membro da Igreja, a Virgem Maria.

Os evangelhos, sobretudo o de São João, sublinham e testemunham a vinda de Deus na carne humana. O papel de Maria recebe relevo nas mãos de São Lucas. Para São Mateus, ela faz o elo de ligação entre as duas alianças. São Marcos, ao sublinhar a humanidade de Cristo, ressalta sua origem, sua procedência histórica. Em tudo isto, podemos ler indiretamente e de modo implícito o papel particular de Maria no evento da salvação, que depois será confirmado nos séculos seguintes, quando os bispos reunidos em Concílio declaram Maria como a Mãe do Verbo encarnado, a mãe do Filho de Deus, e por isto a Mãe de Deus.

Ao recordar a Maternidade Divina de Nossa Senhora, a Igreja recorda também as condições maravilhosas dessa maternidade : ela aconteceu de modo virginal! Com efeito, a Mãe do Senhor concebeu virginalmente, virginalmente deu à luz e virgem permaneceu para sempre! A Virgem não somente concebeu, mas também virginalmente deu à luz um filho – eis a profecia de Isaías (cf. 7,14). A Igreja canta esse mistério com palavras admiráveis : ‘Na sarça que Moisés via arder sem se consumir, admiramos o sinal da vossa incomparável virgindade, ó Mãe de Deus!’ e ainda, pensando na porta selada, pela qual somente o Senhor passaria, como profetizou Ezequiel (cf. 44,2), a Igreja exclama : ‘A porta eterna do Templo eternamente fechado, feliz e pronta se abre somente ao Rei esperado’.

E, como penhor de que nossas preces serão ouvidas, supliquemos à Mãe de Deus toda Santa, toda Misericordiosa : ‘À vossa proteção recorremos, ó Santa Mãe de Deus! Protegei os pobres, ajudai os fracos, consolai os tristes, rogai pela Igreja, protegei o clero, ajudai-nos todos, sede nossa salvação! Santa Maria, sois a Mãe dos homens, sois a Mãe do Cristo que nos fez irmãos! Rogai pela Igreja, pela humanidade e fazei que, enfim, tenhamos paz e salvação’!’


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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Turquemenistão : Uma pequena comunidade que progride

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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 *Artigo de www.southworld.net


O Turquemenistão é um país interior da Ásia Central. Situa-se ao longo da antiga Rota da Seda, que liga Pequim ao mar Mediterrâneo e que durante séculos foi a via mais importante de ideias e de comércio entre a China e o mundo ocidental.


De acordo com etimologias populares que remontam ao século XI, a palavra turkmen deriva do termo persa tir, que os Turcos pronunciam «tür» (flecha) e kàmon, que se pronuncia «keman» (arco). Ao que se pensa, os Persas chamar-lhes-iam assim para salientar que eram arqueiros experimentados. Mas, com o passar do tempo, os povos turcos esqueceram-se do significado da palavra e confundiram o sufixo «man» – que mais tarde se tornaria «men» – com a palavra turca que significa «eu» (de fato, na maior parte das línguas turcas, turkmen significa «eu sou turco»). Geograficamente, o Turquemenistão estende-se por uma área de aproximadamente 500 000 km² e tem fronteiras com o Cazaquistão e o Usbequistão a nordeste, com o Afeganistão a sudeste, com o Irã ao sul e com o mar Cáspio a ocidente.
As cordilheiras de Kopet-Dag e Paropamisos (Indocuche), em forma de S, delimitam as fronteiras do país, enquanto a leste existem os desfiladeiros e as luxuriantes montanhas da Reserva Natural de Kugitang.

O deserto de Caracum é o coração do país. Cobre cerca de 80 por cento do território – uma área de quase 40 000 km² – criando uma paisagem deslumbrante, que é muito mais variada do que seria de esperar. O nome Caracum, que significa «areias negras» em línguas turcas, é emblemático, porque a areia é o elemento natural predominante nesta zona. A areia do deserto de Caracum contém um sal característico, resultante da evaporação das águas do mar e dos rios da região e os resquícios de depósitos minerais e alcalinos.

Tal como a maioria dos países da região, o Turquemenistão é uma terra de antigas tradições nômades. A sociedade turcomana tem mantido vivos os seus traços culturais, por meio do uso das roupas tradicionais, que em alguns casos são o emblema do estatuto social de uma pessoa, do artesanato dos tapetes e jóias, bem como pelas atividades como a criação de cavalos, a caça e as danças tradicionais. Os poemas e as canções folclóricas foram transmitidos oralmente de geração em geração antes de serem passados a escrito no século XX.

O Turquemenistão tem uma população de aproximadamente cinco milhões de habitantes. Atualmente, 85 por cento destes habitantes são turcomanos, 5 por cento usbeques e 4 por cento russos. A homogeneidade étnica resulta em parte dos fluxos migratórios das minorias russa e usbeque que se seguiram à fragmentação da URSS e independência do Turquemenistão em 1991.


Para lá do deserto

No início da década de 90, alguns padres católicos chegaram à Ásia Central, precisamente ao Cazaquistão. Um grupo de católicos de origem alemã residentes em Turkmenbashy, junto ao mar Cáspio, tendo tido conhecimento da presença de alguns padres na Ásia Central, escreveu ao Papa João Paulo II pedindo que fossem enviados sacerdotes para a sua zona. O papa reencaminhou a carta para o núncio em Almaty, no Cazaquistão, arcebispo Marian Oles, que se deslocou a Turkmenbashy e depois informou o Vaticano sobre a sua visita a essa comunidade. O papa entendeu que era altura de abrir uma missão católica no Turquemenistão e o próprio núncio foi encarregado de encontrar os missionários adequados para enviar para Turkmenbashy.

Os Oblatos de Maria Imaculada aceitaram a incumbência. O padre Marcello Zago, o superior geral, escolheu o padre Andrzej Madej, da província polaca, que chegou a Ashgabat em 1997.

Passados dezoito anos, a Igreja no Turquemenistão é composta hoje em dia por cerca de 160 batizados e outros tantos catecúmenos, pessoas de diferentes nacionalidades e diferentes origens. «Entre 1997 e Março de 2010, a Igreja no Turquemenistão foi apenas um gabinete da Nunciatura Apostólica, com estatuto diplomático», afirma o padre Andrzej. «Mas, em Março de 2010, obtivemos o reconhecimento legal do Ministério da Justiça como Igreja Católica Romana do Turquemenistão. A comunidade de Ashgabat era obviamente a maior, mas há também famílias católicas em Turkmenbashy, Mary e mais algumas aldeias e vilas.» A comunidade católica no Turquemenistão é servida por três padres e cinco religiosos.

O padre Andrzej faz um balanço dos dezoito anos que passou no Turquemenistão. «Criamos uma missão católica romana e, apesar de constituírem ainda uma comunidade pequena, os católicos estão a crescer. A nossa prioridade é a evangelização. Temos também o ‘ministério dos sacramentos’. A nossa missão pretende ser uma fonte de alegria e um raio de luz no deserto de Caracum, espalhando a mensagem de Jesus de amor, solidariedade e esperança, sempre no respeito pela cultura e pelas tradições deste belo país.»

O padre Andrzej realça também os antecedentes e nacionalidades diferentes dos membros da comunidade católica do Turquemenistão. «Todos os domingos, fiéis de quinze nacionalidades diferentes celebram a Eucaristia. São egípcios, filipinos, polacos, italianos, americanos, coreanos, etc. Ao mesmo tempo, a comunidade católica foi estabelecendo uma boa relação com a população do Turquemenistão.»

E, conclui o padre Andrzej, «há também algumas vocações a despontar dentro desta pequena comunidade. A nossa presença pretende ser um sinal. Posso dizer que a vida da comunidade de Ashgabat é diferente todos os dias, todos os dias existem novas oportunidades de encontro. Praticamos formas de ecumenismo e cuidados aos outros. A Boa Nova fascina e atrai pessoas para Jesus. A Palavra de Deus tem o poder de unir pessoas que estão dispersas ‘como ovelhas sem pastor’. Hoje, a Igreja é uma comunidade de reconciliação, que cura os corações e as feridas da separação, proporcionando nova paz e confiança»’


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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Nova igreja maronita nas ruínas de Damasco

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



Uma igreja maronita dedicada aos Beatos Irmãos Massabki, martirizados em Damasco em 1860, será inaugurada em 8 de janeiro no Bairro Kachkoul da capital síria. Foi o que informou à Agência Fides Dom Samir Nassar, Arcebispo da Igreja Maronita de Damasco, definindo o acontecimento como ‘um autêntico presente de Natal. Será um oásis de oração e um sinal de alegria e de esperança em meio a um mundo de violência, de intolerância e de medo’. ‘Em meio às ruínas, esta nova capela se apresenta como a estrela dos Magos, que conduz ao Menino Divino’, ressaltou.


A primeira das três capelas em Damasco

Não obstante a guerra, não obstante os graves problemas sociais e econômicos – conta o Arcebispo – os nossos sacerdotes e fieis deram início a três projetos para desenvolver três capelas em três bairros de Damasco. Agora surge a primeira. As outras duas serão nos Bairros de Douwaylaa e Jaramana. Estes lugares servem para fortalecer as comunidades dos fiéis, organizar catequeses e encontros sobre a Bíblia e noites de oração e fraternidade. Neste tempo difícil, de precariedade e violência, Cristo continua a atrair sempre mais’.


Em 2015, um Natal de Ressurreição em Damasco

Construir uma igreja em tempos de guerra e de desolação – conclui o prelado – expressa o desejo de vencer a morte e a coragem de viver a fé. Os nossos corajosos fieis escolheram permanecer na cidade, ir contracorrente e colocar a sua confiança em Jesus Cristo, nesta noite obscura. Este ano o Natal em Damasco será também uma festa de Ressurreição’.’


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sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O dever da exemplaridade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

No discurso natalício do Papa Francisco à cúria não podia faltar a evocação do discurso fundador de Paulo VI, de 1963. Dirigido aos seus colaboradores a 21 de Setembro, precisamente três meses depois da eleição e na vigília da retomada do concílio suspenso aquando da morte de João XXIII, o equilibradíssimo texto de Montini sobre o dever da exemplaridade certamente contribuiu para a reflexão do seu sucessor que, com toda a evidência, meditou prolongadamente para preparar a sua exigente intervenção, explicitamente vinculada às outras dos anos passados.
  
E assim como os discursos precedentes, também este catálogo de virtudes que todos os curiais devem propor-se, pode ser aplicado, como disse Bergoglio, a «cada cristão, cada cúria, comunidade, congregação, paróquia e movimento eclesial». Doze pares de virtudes, cujas iniciais formam a palavra «misericórdia» e que o Pontífice apresentou como «antibióticos» para as enfermidades espirituais : missionariedade e pastoreação, idoneidade e sagacidade, espiritualidade («spiritualità») e humanidade, exemplaridade e fidelidade, racionalidade e amabilidade, inocuidade e determinação, caridade e verdade, honestidade («onestà») e maturidade, respeito e humildade, «dadivosidade» e atenção, impavidez e prontidão, fiabilidade («affidabilità») e sobriedade.

Portanto, antídotos; dos quais há evidente necessidade, a ponto que no sucessivo encontro com os funcionários do Vaticano o Papa pediu perdão pelos escândalos provocados pelas vicissitudes, verdadeiramente deploráveis, dos últimos tempos. Assegurando ao mesmo tempo que o que aconteceu constituiu e constituirá «objeto de reflexão sincera e de providências decisivas. A reforma irá em frente com determinação, lucidez e firmeza, porque Ecclesia semper reformanda».

Não foi por acaso que na época do concílio, Paulo VI dirigiu aos curiais palavras que vale a pena recordar também hoje : «Olha-se de todos os lados para a Roma católica, para o pontificado romano, para a Cúria romana. O dever de ser autenticamente cristão é aqui sumamente exigente. Não vos recordaríamos este dever, se a nós mesmos não o recordássemos cada dia. Em Roma tudo é escola : a letra e o espírito. Como se pensa, como se estuda, como se fala, como se sente, como se age, como se sofre, como se reza, como se serve, come se ama; cada momento, cada aspecto da nossa vida tem ao nosso redor uma irradiação, que pode ser benéfica, se for fiel àquilo que Cristo quer de nós; maléfica, se for infiel».

Com efeito, é nesta mesma luz que deve ser lido o discurso do Pontífice: assim Francisco reiterou, com o seu predecessor, a gratidão e o apreço pela «eficiência dos serviços que a Cúria Romana presta ao Papa e à Igreja inteira, com desvelo, responsabilidade, empenho e dedicação», acrescentando no sulco da espiritualidade inaciana que esta é uma «verdadeira consolação» que fortalece a vontade de «ir em frente no caminho do bem». Na consciência cristã do limite de cada esforço pessoal, que o Pontífice expressou citando uma oração que recitava uma grande figura do catolicismo norte-americano, o cardeal John Francis Dearden.’


Fonte :


Natal missionário: Boa notícia para todos os povos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Natal - 25.12.2015

Isaías 9,1-6; 62,11-12; 52,7-10
Salmos 95, 96, 97
Tito 2,11-14; 3.4-7
Hebreus 1,1-6
Lucas 2,1-14; 2,15-20 João 1,1-18


O Natal, tema familiar a todos, pode contemplar-se partindo de ângulos e experiências diversas, com a certeza que o mistério não se esgota : pelo contrário, oferece a cada pessoa, em cada época da sua vida e da sua história, riquezas impensáveis, tesouros sempre novos a descobrir. No contexto da série destes comentários bíblicos e missionários, que temos vindo a apresentar, prefiro, desta vez, apresentar algumas reflexões mais espontâneas, tiradas de diferentes contextos culturais e geográficos, que nos possam ajudar na contemplação do mistério do Natal e encontrar caminhos para partilhar com outros, de perto e de longe, a alegria do nascimento do Filho de Deus na nossa natureza humana. Com esta abertura de horizontes, a nossa leitura missionária do Natal aproximar-se-á mais do acontecimento histórico de Belém.


Deus em carne humana : para todos

O Natal é incarnação, significa Deus em carne, em natureza humana. «Caro salutis est cardo» (a carne é fundamento da salvação), como diziam os primeiros Padres da Igreja. Estamos na presença de um acontecimento histórico : a salvação passa através da carne de Cristo, o seu nascimento, paixão, morte, ressurreição, ascensão, eucaristia… É a carne de Deus, a carne de Maria, carne que sangra, se cansa, sofre… Não é uma aparência de carne, como diziam os primeiros hereges, os docetistas, mas carne concreta, componente essencial da pessoa humana. A salvação de Deus chega-nos, historicamente, através da carne de Cristo Redentor; mas, ao mesmo tempo, passa necessariamente através da nossa carne, carne remida e carne necessitada de redenção. É necessário falar com termos realistas da nossa carne em todas as suas situações e etapas : a carne forte, dos anos juvenis e adultos (trabalho, atividades, família, viagens, lazer…); é a carne bela (procura da beleza, moda, luxo, vaidade…); é a carne frágil (debilidades físicas, doenças, sofrimento, morte…); é a carne destinada à ressurreição, como dizemos no Credo. Sem distinções de cores : a salvação de Deus é a mesma para todos. A Liturgia canta, neste tempo de Natal: «toda a carne», isto é, todo ser humano, «verá a salvação de Deus». É esta a bela notícia, a grande alegria anunciada pelos anjos em Belém «a todo o povo e a todos os povos» (Lucas 2,10).


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De Belém ao Calvário – Do presépio à Cruz

Nos tempos de Hitler, Edith Stein compôs a obra «O Mistério de Natal» em que escreveu : «Os mistérios do Cristianismo são um todo indivisível. Quem explora um mistério, acaba por tocar todos os outros. Assim, o caminho que começa em Belém avança irresistivelmente para o Calvário, vai do presépio à cruz». Basta ler as palavras de Simeão no Templo, a fuga para o Egito, o massacre dos inocentes… A Irmã Teresa da Cruz (Edith Stein) consumou o seu holocausto em 1942, em Auschwitz. Estes factos repetem-se, hoje como ontem. No Iraque, em Orissa (Índia), na Indonésia, nos EUA, no Egito, na Nigéria, no Sudão, na RD Congo, na China, noutras partes do mundo continua o martírio dos cristãos e de outros inocentes. Mas a criança do presépio é o Senhor ressuscitado. Edith Stein conclui : «Cada um de nós, a humanidade toda, chegará, juntamente com o Filho do Homem, através do sofrimento e da morte, à sua mesma glória». São estas as últimas palavras do Mistério de Natal, escrito por uma mártir do nosso tempo.


Mensagem de Belém

«Deste lugar desejaria chegar a toda a humanidade, desejaria que a mensagem que sai desta gruta austera e pobre chegasse a todos : até nas pequenas coisas do nosso dia a dia, até nas mais escondidas ou aparentemente insignificantes, até naquelas que nos fazem sofrer, está presente o mistério de Deus que, com amor, se inclina para cada um de nós. Cada ano, da Missa do Natal, eu saio com um olhar novo. Até a vista da cidade de Belém, com a sua desolação e o seu abandono pela falta de peregrinos, nos faz pensar que um dia tudo isto dará lugar à alegria, à felicidade e à paz». (Carta de Belém, 2004, do Cardeal Carlos Maria Martini)


O olhar do pintor

Giotto, o conhecido pintor medieval, pintou o nascimento de Jesus em Belém, que se encontra na Capela Scrovegni, em Pádua. A pintura evidencia o momento do primeiro olhar : Maria e o Menino olham-se nos olhos. Pela primeira vez. Surpresa, alegria inefável, gratidão…! Maria descobre no rosto do menino o seu próprio rosto, porque Jesus é todo seu. O Menino reflete-se no rosto da mãe e glorifica a Deus seu Pai. Naqueles olhos que reciprocamente se contemplam, descobre-se o novo olhar de Deus para com a pessoa humana e o novo olhar da pessoa humana sobre Deus e os seus irmãos. Olhar de misericórdia, acolhimento, confiança. Daquele momento, as relações com Deus, entre os seres humanos e com a criação inteira, descobrem-se transformadas por este intercâmbio de olhares, que assinala uma nova relação, baseada no respeito, na misericórdia, na fraternidade.


Bom Natal!

«Empenhamo-nos nós também em descer…
Não para reordenar o mundo,
Não para o refazer à nossa medida,
mas para o amar;
para amar também aquilo que não podemos aceitar,
aquele que não é amável,
porque,
por detrás de cada rosto e de cada coração,
está, junto a uma sede de amor,
o rosto e o coração do Amor.
Empenhamo-nos,
Porque nós acreditamos no amor,
A única certeza que não tem medo do confronto,
A única certeza que basta para nos comprometermos para sempre!»
(Primo Mazzolari)


«É Natal cada vez que permitires ao Senhor de renascer,
Para o dares aos outros»
(Madre Teresa de Calcutá) 


Fonte :


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Presépio negro

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
 
*Artigo de Padre José Vieira,
Missionário Comboniano
  
Enternecem-me as representações africanas do presépio, esculpidas ou pintadas. Singelas, lineares, às vezes minimalistas, outras vezes com explosões de cor, luz e movimento como os ícones etíopes da natividade que tanto me fascinam: olhares enormes, redondos, contemplativos; corpos solenes; mãos esguias, adoradoras; uma paleta de cores ricas de vida : amarelos, azuis, encarnados, brancos… Cabeças e asas de anjos a anunciar a grande alegria : nasceu-vos um Salvador!

O presépio é uma criação plástica de Francisco de Assis. Montou-o pela primeira vez com figuras de barro em 1223 na floresta de Grécio, no Lácio italiano. Com o andar do Cristianismo através das muitas culturas, foi ajuntando matizes e materiais locais que aprofundam o mistério da encarnação : Jesus faz-se homem em cada raça, é mistério intercultural.

Há um pensar que me vara o coração com um estremecimento apertado : se, em vez de nascer em Belém da Judeia, Jesus tivesse nascido, por exemplo, em Bentiu – no Sudão do Sul, Bourem – no Mali, Bongor – no Chade, Blama – na Serra Leoa, ou no Bailundo – em Angola, que chance teria de chegar à idade adulta?

A infância africana continua sob céus pesados apesar dos grandes progressos na assistência sanitária das últimas décadas. A Unicef, a agência da ONU para a infância, denuncia que no Sahel, no Nordeste da África, a crise alimentar ameaça cerca de 6,4 milhões de crianças de má nutrição aguda, afetando o seu desenvolvimento integral; que 2,4 milhões de crianças estão a ser atingidas pela crise na República Centro-Africana; que mais de 2,5 milhões de crianças sofrem de má nutrição severa aguda na República Democrática do Congo; que a guerra étnica no Darfur e nos montes Nuba, no Sudão, deixou as crianças vulneráveis às doenças e à fome, incluindo 1,2 milhões que sofrem de má nutrição aguda.

As estatísticas da mortalidade infantil são ainda mais tremendas : a Organização Mundial de Saúde diz que na África 8,1 % das crianças morrem antes de fazerem cinco anos. Em números redondos, em 2013, faleceram 2,9 milhões de crianças africanas com menos de cinco anos, um contador implacável de cinco crianças a morrer por cada minuto que passa.

A ONG Child Mortality documenta que, na África Subsariana, uma em cada 12 crianças morre antes dos cinco anos (nos países ricos o rácio é de uma por 147). Por países, em Angola perecem 15,7% das crianças antes dos cinco anos, no Chade 13,9%, na Somália 13,7%, na República Centro-Africana 13% e no Mali 11,5%. Portugal tem uma taxa de mortalidade infantil de 0,4% : morrem quatro crianças por cada mil nascimentos antes dos cinco anos.

O que é que mata os bebês africanos? Infecções, pneumonias, diarreias, malária, má nutrição e outras doenças facilmente tratáveis com medicamentos baratos e vacinas. Mas as crianças continuam a morrer...

Relacionada com a natividade africana está também a mortalidade materna. Os números são do Banco Mundial e da ONU e respeitam ao ano de 2013 : na Serra Leoa, o país com o índice mais elevado, morrem 1100 mães por 100 mil partos vivos. Segue-se o Chade com 980, a vizinha República Centro-Africana com 880, o Burundi com 740 e o Sudão do Sul e a República Democrática do Congo com 730. Em Portugal, a mortalidade materna é de oito mães por cada 100 mil nascimentos. As mamães morrem de complicações antes, durante e depois do parto, porque os governos canalizam os recursos para a guerra, descuidando da saúde pública. Muitas são demasiado jovens para gerar filhos...

O Papa Francisco escreveu uma frase muito eloquente na exortação apostólica A Alegria do Evangelho : «Na sua encarnação, o Filho de Deus convida-nos à revolução da ternura!»


Fonte :


segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Natal no Cantinho da Terceira Idade

Por Vera Maria Ataíde Martins Stella (Ir. Julia, Obl. OSB)




O grupo de Oblatos do Mosteiro de São Bento de São Paulo, por iniciativa de seu Diretor Espiritual, Dom Lourenço Palata Viola e com o auxílio de seu assistente, Dom Mateus Malta, empenhou-se em arrecadar donativos para uma instituição muito carente que acolhe idosos, o ‘Cantinho da Terceira Idade’ (em Parelheiros – São Paulo).

Sem dúvida, essa atitude tornou o grupo mais unido e digno de testemunhar a sua fé, não apenas por palavras, mas por ações concretas que vão muito além do espírito de Natal, pela caridade e misericórdia que o Papa Francisco sempre nos recomenda.

No ano da Misericórdia, façamos dessa ação uma constante no nosso grupo e assim nos tornarmos verdadeiramente cristãos e oblatos com espírito beneditino. 


sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

'Maria no Mistério de Cristo e da Igreja' - Terceira pregação do Advento de 2015

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)


1. A mariologia da Lumen gentium

O objeto desta última meditação de Advento é o capítulo VIII da Lumen Gentium, intitulado ‘A Bem-Aventurada Virgem Maria, no mistério de Cristo e da Igreja’. Ouçamos de novo o que o Concílio fala a este respeito :

A Virgem Santíssima, predestinada para Mãe de Deus desde toda a eternidade simultaneamente com a encarnação do Verbo, por disposição da divina Providência foi na terra a nobre Mãe do divino Redentor, a Sua mais generosa cooperadora e a escrava humilde do Senhor. Concebendo, gerando e alimentando a Cristo, apresentando-O ao Pai no templo, padecendo com Ele quando agonizava na cruz, cooperou de modo singular, com a sua fé, esperança e ardente caridade, na obra do Salvador, para restaurar nas almas a vida sobrenatural. É por esta razão nossa mãe na ordem da graça [1]’.

Junto com o título Mãe de Deus e dos crentes, a outra categoria fundamental que o Concílio usa para ilustrar o papel de Maria, é a de modelo, ou de figura :

Pelo dom e missão da maternidade divina, que a une a seu Filho Redentor, e pelas suas singulares graças e funções, está também a Virgem intimamente ligada, à Igreja : a Mãe de Deus é o tipo e a figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo, como já ensinava S. Ambrósio [2]’.

A maior novidade do tratado conciliar sobre Nossa Senhora consiste, como se sabe, justamente no lugar em que foi colocado, ou seja, na constituição sobre a Igreja. Com isso o Concílio – não sem sofrimentos e lágrimas – operava uma profunda renovação da mariologia, em comparação com os últimos séculos [3]. O discurso sobre Maria não é independente, como se ela ocupasse um lugar intermédio entre Cristo e a Igreja, mas recolocado, como tinha sido na época dos Padres, no âmbito da Igreja. Maria é vista, como dizia Santo Agostinho, como o membro mais excelente da Igreja, mas um membro dela, não fora, ou acima dela:

Santa é Maria, bem-aventurada é Maria, porém, mais importante que a Virgem Maria é a Igreja. Por quê? Porque Maria é uma parte da Igreja, um membro santo, excelente, superior a todos os demais, contudo, é um membro de todo o corpo. Se é um membro de todo o corpo, sem dúvida, mais importante que um membro é o corpo [4]’.

As duas realidades iluminam-se mutuamente. Se, de fato, o discurso sobre a Igreja ilumina o que é Maria, o discurso sobre Maria ilumina o que é a Igreja, ou seja, ‘corpo de Cristo’ e, como tal, ‘quase que uma extensão da encarnação do Verbo’. São João Paulo II destaca isso na sua encíclica Redemptoris Mater : ‘Apresentando Maria no mistério de Cristo, o Concílio Vaticano II encontra também o caminho para aprofundar o conhecimento do mistério da Igreja [5]’.

Outra novidade da mariologia do Concílio é a insistência na fé de Maria [6], um tema também retomado e desenvolvido por João Paulo II que o faz tema central da sua encíclica mariana ‘Redemptoris Mater [7]’. É um retorno à mariologia dos Padres que, mais do que sobre os privilégios da Virgem, apela à sua fé, como contribuição pessoal de Maria no mistério da salvação. Também aqui se nota a influência de Santo Agostinho :

Ora, até a própria bem-aventurada Virgem Maria, ao crer, concebeu a quem deu à luz crendo...Depois que o anjo falou, ela, cheia de fé (fide plena), concebendo a Cristo antes no coração que no ventre, respondeu: Eis aqui a Serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra [8]’.

2. Maria Mãe dos crentes em perspectiva ecumênica

O que eu gostaria de fazer é iluminar o caráter ecumênico dessa mariologia do Concílio, ou seja, como ela possa contribuir – e mais ainda, já está contribuindo – para aproximar católicos e protestantes neste terreno delicado e controverso que é a devoção à Virgem.

Esclareço, em primeiro lugar, o princípio que está na base das reflexões a seguir. Se Maria se coloca fundamentalmente ao lado da Igreja, a consequência disso é que as categorias e as afirmações bíblicas usadas para lançar-lhe luz são aquelas relacionadas às pessoas humanas que constituem a Igreja, aplicadas a ela ‘a fortiori’, em vez daquelas relacionadas às pessoas divinas, aplicadas a ela ‘por redução’.

Para entender, por exemplo, da forma mais correta, o delicado conceito da mediação de Maria na obra da salvação, é mais útil começar pela mediação criatural, ou de baixo, como é aquela de Abraão, dos apóstolos, dos sacramentos e da própria Igreja, e não da mediação divino-humana de Cristo. A maior distância, de fato, não é a que existe entre Maria e o resto da Igreja, mas é aquela que existe entre Maria e a Igreja, de um lado, e Cristo e a Trindade do outro, ou seja, entre as criaturas e o Criador.

Agora, tiremos de tudo isso a conclusão. Se Abraão, pelo que fez, mereceu na Bíblia o nome de ‘pai de todos nós’, ou seja, de todos os crentes (cf. Rm 4, 16; Lc 16, 24), entendemos melhor, assim, como a Igreja não hesita em chamar Maria ‘Mãe de todos nós’, mãe de todos os crentes.

Dessa comparação entre Abraão e Maria podemos derivar uma luz ainda maior, que afeta não só o simples título, mas também o seu conteúdo e significado. Mãe dos crentes é um simples título de honra, ou algo a mais? Aqui se prefigura a possibilidade de um discurso ecumênico sobre Maria. Calvino interpreta o texto onde Deus diz à Abraão : ‘Em ti serão abençoadas todas as famílias da terra’ (Gn 12, 3), no sentido de que ‘Abraão será não só exemplo e patrono, mas causa de benção [9]’. Um conhecido exegeta protestante moderno escreve, no mesmo sentido :

Nós nos perguntamos se as palavras de Gênesis 12, 3 [‘Em ti serão abençoadas todas as famílias da terra’] pretendem afirmar somente que Abraão se tornará uma espécie de fórmula para abençoar, e que a benção que ele gozava passará em provérbio [...]. Deve-se retornar à interpretação tradicional que vê aquela palavra de Deus ‘como uma ordem dada à história’ (B. Jacob). Foi reservado à Abraão, no plano salvífico de Deus, o papel de mediador da benção para todas as gerações da terra [10]’.

Tudo isso nos ajuda a entender o que a tradição, a partir de Santo Ireneu, diz de Maria : que ela não é só um exemplo de benção e de salvação, mas, de uma forma que depende unicamente da graça e da vontade de Deus, também causa de salvação. ‘Como Eva, escreve Santo Ireneu, desobedecendo, tornou-se causa de morte para si e para todo o gênero humano, assim Maria..., obedecendo, tornou-se causa de salvação para si e para todo o gênero humano [11]’. As palavras de Maria : ‘Todas as gerações me chamarão de bem-aventurada’ (Lc 1, 48) devem ser consideradas, também, ‘uma ordem dada por Deus para a história’.

É um fato encorajador verificar que os mesmos iniciadores da Reforma reconheceram à Maria o título e a prerrogativa de Mãe, também no sentido de Mãe nossa e mãe da salvação. Em uma pregação para a Missa de Natal, Lutero dizia : ‘Este é o consolo e a transbordante bondade de Deus : que o homem, em quanto crente, possa gloriar-se de um bem tão precioso, que Maria seja a sua verdadeira mãe, Cristo o seu irmão, Deus o seu Pai... Se acredita nisso, então, sente-te verdadeiramente no ventre da virgem Maria e seja o seu filho querido [12]’. Zwingli, em um sermão de 1524, chama Maria ‘a pura Virgem Maria, mãe da nossa salvação’ e diz que nunca, a seu respeito, ‘pensou e nem sequer ensinou ou afirmou em público algo de ímpio, desonroso, índigno ou ruim [13]’.

Como, então, chegamos à situação atual de tanto desconforto dos irmãos protestantes com relação à Maria, a ponto de que em alguns ambientes tornou-se quase que um dever diminuir Maria, atacar continuamente neste ponto os católicos e, de qualquer forma, encobrir tudo o que a própria escritura fala dela?

Este não é o lugar para fazer uma revisão histórica; somente quero dizer qual me parece ser o caminho correto para sair desta triste situação sobre Maria. Tal caminho passa por um sincero reconhecimento, de nós católicos, do fato que, muitas vezes, especialmente nos últimos séculos, contribuímos para fazer Maria inaceitável para os irmãos protestantes, honrando-a de forma, às vezes, exagerada e imprudente e, especialmente, não colocando tal devoção dentro de um quadro bíblico bem claro que mostrasse o papel subordinado com relação à Palavra de Deus, ao Espírito Santo e ao próprio Jesus. A mariologia nos últimos séculos tornou-se uma fábrica contínua de novos títulos, novas devoções, muitas vezes polêmicas com os protestantes, usando, às vezes, Maria – a Mãe comum! – como uma arma contra eles.

A esta tendência o Concílio Vaticano II reagiu oportunamente. Ele recomendou que os fieis ‘tanto nas palavras como nos fatos evitem diligentemente tudo o que possa induzir ao erro os irmãos separados ou qualquer outra pessoa, sobre a verdadeira doutrina da Igreja’, e recordou aos próprios fieis que ‘a verdadeira devoção não consiste nem em uma estéril e passageiro sentimentalismo, nem em uma certa e vã crença [14]’.

Do lado protestante, acredito que exista a necessidade de tomar nota da influência negativa que houve, na atitude deles sobre Maria, não só a polêmica anticatólica, mas também o racionalismo. Maria não é uma ideia, mas é uma pessoa concreta, uma mulher, e como tal, não se presta para ser facilmente teorizada ou reduzida a princípio abstrato. Ela é o próprio ícone da simplicidade de Deus. Por isso não podia, em um clima dominado por um exasperado racionalismo, não ser eliminada do horizonte teológico.

Uma mulher luterana, morta há alguns anos, Madre Basilea Schlink, fundou uma comunidade de religiosas dentro da Igreja luterana, chamadas ‘As irmãs de Maria’, agora difundidas em vários países do mundo. Em um livreto seu, que eu mesmo organizei a edição italiana, depois de ter recordado vários textos de Lutero sobre Maria, escreve :

‘Ao ler as palavras de Lutero que até o fim da sua vida honrou Maria, santificou as suas festas e cantou todos os dias o Magnificat, sente-se o quanto se distanciou, no geral, da correta atitude sobre ele... Vemos o quanto nós, evangélicos, nos deixamos submergir pelo racionalismo... O racionalismo que admite só o que se pode compreender com a razão, difundindo-se, jogou fora das Igrejas evangélicas as festas de Maria e tudo o que se refere à ela, e fez perder o sentido de toda referência bíblica a Maria: e desta herança sofremos ainda hoje. Se Lutero, com esta frase : ‘Depois de Cristo ela é, em todo o cristianismo, a joia preciosa, jamais louvada o suficiente’, nos inculca este elogio, eu, de minha parte, devo confessar de estar entre aqueles que, durante longos anos da própria vida, não o fizeram, contornando até o que diz a Escritura : ‘De agora em diante todas as gerações me chamarão bem-aventurada’ (Lc 1, 48). Eu não tinha me colocado entre estas gerações [15]’.

Todas estas premissas nos permitem cultivar no coração a esperança de que, um dia, não distante, católicos e protestantes possamos não estar mais divididos, mas unidos por Maria, em uma comum veneração, diferente nas formas, mas unânimes no reconhecer nela a Mãe de Deus e a Mãe dos crentes. Eu tive a alegria de constatar pessoalmente alguns sinais desta mudança em ato. Em mais de uma ocasião, pude falar de Maria a um auditório protestante, notando entre os presentes não só a acolhida, mas, pelo menos em um caso, uma verdadeira emoção, como a redescoberta de algo caro e uma purificação da memória.

3. Maria, mãe e filha da misericórdia de Deus

Deixemos agora de lado o discurso ecumênico e tentemos ver se também este ano da misericórdia não nos ajuda a descobrir algo novo da Mãe de Deus. Maria é invocada na antiguíssima oração da Salve Regina, como ‘Mater misericordiae’, Mãe da misericórdia; na mesma oração lhe é dirigida a invocação : ‘illos tuos misericordes oculos ad nos converte’; Volte a nós aqueles seus olhos misericordiosos’. Na missa de abertura do ano jubilar na Praça de São Pedro, do passado 8 de dezembro, ao lado do altar estava exposto um antigo ícone da Mãe de Deus, venerada em um santuário pelos grego-católicos de Jaroslav, na Polônia, conhecida como a ‘Porta da misericórdia’.

Maria é mãe de misericórdia em um duplo sentido. Foi a porta através da qual a misericórdia de Deus, com Jesus, entrou no mundo, e agora é a porta por meio da qual nós entramos na misericórdia de Deus, nos apresentamos diante do ‘trono da misericórdia’ que é a Trindade. Tudo isso é verdade, mas é só um aspecto da relação entre Maria e a misericórdia de Deus. Ela, de fato, não é só canal e mediadora da misericórdia de Deus; é também o objeto e a primeira destinatária. Não é só aquela que nos obtém misericórdia, mas também aquela que obteve, primeiramente e mais do que todos, misericórdia.

Misericórdia é sinônimo de graça. Só na Trindade o amor é natureza e não é graça; é amor, mas não misericórdia. Que o Pai ame o Filho, não é graça ou concessão; é, em certo sentido, necessidade; o Pai tem necessidade de amar para existir como Pai. Que o Filho ame o Pai, não é concessão ou graça; é necessidade intrínseca, embora se perfeitamente livre; ele precisa ser amado e amar para ser Filho. É quando Deus cria o mundo e, nele, as criaturas livres que o seu amor se torna gratuito e imerecido, ou seja, graça e misericórdia. Isso antes ainda do pecado. O pecado fará somente que a misericórdia de Deus, de dom, se torne perdão.

O título ‘cheia de graça’ é, portanto, sinônimo de ‘cheia de misericórdia’. Maria mesma proclama isso no Magnificat : ‘Olhou, diz, a humildade da sua serva’, ‘recordou-se da sua misericórdia’; ‘a sua misericórdia se estende de geração em geração’. Maria se sente beneficiária da misericórdia, testemunha privilegiada dela. Nela a misericórdia de Deus não se materializou como perdão dos pecados, mas como preservação do pecado.

Deus fez com ela, dizia Santa Teresa do Menino Jesus, o que faria um bom médico em tempos de epidemia. Ele vai de casa em casa para curar aqueles que contraíram a infecção; mas se existe um pessoa que ele gosta especialmente, como a esposa ou a mãe, tentará, se possível, que nem sequer seja contagiada. E assim fez Deus, preservando Maria do pecado original pelos méritos da paixão do Filho.

Falando da humanidade de Jesus, Santo Agostinho diz : ‘Com base no que, a humanidade de Jesus mereceu ser assumida pelo Verbo eterno do Pai na unidade da sua pessoa? Qual foi a sua boa obra que precedeu isso? O que tinha feito antes desse momento, no que tinha acreditado, ou pedido, para ser elevada a tal inefável dignidade?’. E acrescentava em outro lugar : ‘Procure o mérito, procure a justiça, reflita e veja se encontra outra coisa além de graça [16]’.

Estas palavras lançam uma luz singular também sobre a pessoa de Maria. Dela deve-se dizer, com mais razão : o que fez Maria, para merecer o privilégio de dar ao Verbo a sua humanidade? O que tinha acreditado, pedido, esperado ou sofrido, para vir ao mundo santa e imaculada? Procure também aqui, o mérito, procure a justiça, procure tudo o que quiser, e veja se encontra nela, no início, algo além de graça, ou seja, misericórdia!

Também São Paulo não vai parar, durante toda a vida, de confessar-se como um fruto e um troféu da misericórdia de Deus. Define-se como ‘alguém que alcançou misericórdia do Senhor’ (1 Cor 7, 25). Não se limita a formular a doutrina da misericórdia, mas torna-se testemunha viva dela: ‘Eu era um blasfemo, um perseguidor e um violento. Mas alcancei misericórdia’ (1 Tm 1, 12).

Maria e o Apóstolo nos ensinam que o melhor modo de pregar a misericórdia é dar testemunho da misericórdia que Deus teve conosco. Sentir-nos, também nós, frutos da misericórdia de Deus em Cristo Jesus, vivos só por causa dela. (Sentir, não necessariamente dizer). Um dia Jesus curou um pobrezinho possuído por um espírito imundo. Ele quis segui-Lo e unir-se ao grupo dos discípulos; Jesus não o permitiu, mas lhe disse : ‘Volte para a sua casa, para os seus, anuncie-lhes o que o Senhor te fez e a misericórdia que teve contigo’ (Mc 5,19 s.).

Maria, que no Magnificat glorifica e agradece a Deus por sua misericórdia com ela, nos convida a fazer o mesmo neste ano da misericórdia. Nos convida a fazer ressoar todos os dias na Igreja o seu cântico, como o coro que repete um canto atrás da coryphaea. Permitam-me, portanto, convidá-los a proclamar juntos, de pé, como oração final, em vez da antífona mariana, o cântico à misericórdia de Deus que é o Magnificat. ‘A minha alma engradece ao Senhor...’’

Fonte :
*Artigos na íntegra
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[1] LG, 61
[2] LG, 63
[3] Sulle vicende dello schema mariologico nelle discussioni conciliari, cf. la citata Storia del Concilio Vaticano II, a cura di G. Alberigo, II, pp. 520-522; III, pp. 446-449; IV, pp.74 ss.
[4] Santo Agostinho, Discorso 72,7 (Miscellanea Agostiniana, I, Roma 1930,  p.163).
[5] São João Paulo II, Enc. “Redemptoris Mater”, 5.
[6] Cf. LG, 58.
[7] RM, 5: “Nestas reflexões refiro-me, principalmente àquela “peregrinação da fé”, na qual a ‘Beata Virgem avançou’, conservando fielmente a sua união com Cristo”.
[8] Santo Agostinho, Discorsi, 215, 4 (PL, 38, 1074).
[9] Calvino, Le livre de la Genèse, I, Ginevra 1961, p. 195.
[10] G. von Rad, Das erste Buch Moses, Genesis, Göttingen9 1972 (trd. Ital. Genesi, Brescia 1978, p. 204).
[11] S. Ireneo, Adv. Haer. III, 22,4.
[12] Lutero, Kirchenpostille (ed. Weimar, 10,1, p. 73).
[13] H. Zwingli, Predigt von der reinen Gottgebärerin Maria (in Zwingli, Hauptschriften, der Prediger, I, Zurigo 1940, p. 159).
[14] LG, 67.
[15] Mutter Basilea Schlink, Maria, der Weg der Mutter des Herrn, Darmstadt 1982 (ed. Ital. Milano, Ancora, 1983, pp.102-103).
[16] Santo Agostinho, La predestinazione dei santi, 15,30 (PL 44,981); Discorsi 185,3 (PL 38,999).