sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Santo André, Apóstolo

Por Maria Vanda (Ir. Maria Silvia, Obl. OSB)

 
A Liturgia da Horas e a reflexão no dia de Santo André : 
 
 Ofício das Leituras
 
Segunda leitura
Das Homilias sobre o Evangelho de João, de São João Crisóstomo, bispo
(Hom. 19,1: PG 59,120-121)   (Séc.IV)
  
Encontramos o Messias
André, tendo permanecido com Jesus e aprendido com ele muitas coisas, não escondeu o tesouro só para si mas correu depressa à procura de seu irmão, para fazê-lo participar da sua descoberta. Repara o que lhe disse: Encontramos o Messias (que quer dizer Cristo) (Jo 1,41). Vede como logo revela o que aprendera em pouco tempo! Demonstra assim o valor do Mestre que o persuadira, bem como a aplicação e o zelo daqueles que, desde o princípio, já estavam atentos. Esta expressão, com efeito, é de quem deseja intensamente a sua vinda, espera aquele que deveria vir do céu, exulta de alegria quando ele se manifestou, e se apresa em comunicar aos outros a grande notícia.

Repara também a docilidade e a prontidão de espírito de Pedro. Acorre imediatamente. E conduziu-o a Jesus (Jo 1,42), afirma o Evangelho. Mas ninguém condene a facilidade com que, não sem muita reflexão, aceitou a notícia. É provável que o irmão lhe tenha falado pormenorizadamente mais coisas. Na verdade, os evangelistas sempre narram muitas coisas resumidamente, por razões de brevidade. Aliás, não afirma que acreditou logo, mas: E conduziu-o a Jesus (Jo 1,42), e a ele o confiou para que aprendesse com Jesus todas as coisas. Estava ali, também, outro discípulo que viera com os mesmos sentimentos.  

Se João Batista, quando afirma: Eis o Cordeiro e batiza no Espírito Santo (cf. Jo 1,29.33), deixou mais clara, sobre esta questão, a doutrina que seria dada pelo Cristo, muito mais fez André. Pois, não se julgando capaz de explicar tudo, conduziu o irmão à própria fonte da luz, tão contente e pressuroso, que não duvidou sequer um momento. 

 
Fonte :
‘In Liturgia das Horas IV’, pg. 1481 a 1482
 
 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Migrantes : Vítimas e Sujeitos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo do Pe. Alfredo José Gonçalves

‘O tema do título poderia ser formulado da seguinte maneira : os migrantes em geral sofrem a migração ou, ao contrário, são capazes de fazer dela uma força motriz que move a história? Grande parte dos estudiosos que se debruça sobre o fenômeno da mobilidade humana coloca o acento na primeira dessas hipóteses. Segundo suas análises, os migrantes, refugiados, prófugos, exilados, trabalhadores temporários, etc., não passam de vítimas de algum fator externo, com poucas ou nenhuma chance de alternativa. Vítimas de condições sócio-econômicas adversas, do ponto de vista histórico e estrutural; de políticas públicas insuficientes, injustas ou excludentes; de catástrofes naturais que devastam, ao mesmo tempo, seus pertences e a vida de suas famílias; de prenconceitos religiosos, discriminação ou perseguição ideológica, de tensões e conflitos, violência e guerras sangrentas, e assim por diante.
Neste caso, migração converte-se em sinônimo de fuga. Na retaguarda ficaram os destroços de uma existência sacudida violentamente por um terremoto, seja este de natureza sísmica, socio-econômica, política ou bélica. Impossível o retorno, a única alternativa de sobrevivência descortina-se no horizonte do amanhã, embora nebuloso, desconhecido e incerto. A decisão pessoal de migrar encontra resposta num conjunto mais amplo de circunstâncias que envolvem o indivíduo, o grupo familiar ou todo um povo ou nação. Um período mais prolongado de seca, uma enchente ou um conflito armado, por exemplo, podem ser a causa imediata da migração. Marcam a hora da saída. No fundo, porém, a falta de água ou o excesso dela, bem como a luta aberta entre facções inimigas, não fizeram senão agravar causas remotas e há muito em curso, tais como a estrutura agrária e agrícola, o abandono em que vivem os pequenos produtores, a disputa ideológica pelo poder ou a sedução das “luzes da cidade”. Deste modo, fatores bem precisos e visíveis fazem aflorar fatores subterrâneos e invisíveis, determinando o momento da partida.
Nem por isso a segunda alternativa deve ser descartada. Apesar de vítimas de causas remotas e imediatas, os migrantes podem fazer da fuga uma nova busca. De forma consciente ou inconsciente, o próprio fato de migrar, e de fazê-lo em massa, converte-se em protagonismo. Os fluxos migratórios, a exemplo das ondas do mar, sempre desencadeiam energias que mexem com as águas paradas. Os grandes deslocamentos humanos, como as marés, interferem no ritmo dos acontecimentos. Numa palavra, as migrações fazem história, sim, e os migrantes se transformam em sujeitos da mesma! De fato, se, por um lado, a saída em bloco da própria terra questiona a região ou país que não é capaz de oferecer cidadania a seus filhos, por outro, a chegada a um novo lugar obriga a uma tomada de posição diante dos “diferentes e estranhos”. Tanto na origem quanto no destino, os deslocamentos humanos interpelam a sociedade, exigindo mudanças urgentes e necessárias nas relações inter-regionais e/ou internacionais.
A presença do outro – seja ele quem for, venha ele de onde vier, tenha ele os hábitos que tiver, fale ele a língua que falar – sempre perturba e às vezes revolucina a mesmice do cotidiano. De início, porque a identidade de cada pessoa e de cada grupo ou povo só amadurece no confronto com os valores de outra cultura. Mas não é só isso. No caso dos migrantes, além da questão étnica, que nunca deixa de ser relevante, sobrepõe-se a problemática socio-econômica. Ou seja, o outro é também pobre: fugitivo, retirante, exilado, sem nome, sem família, sem lugar, sem papéis e sem pátria. Interpela não somente a minha identidade, mas também o meu bolso, o meu emprego, a minha posição social, o meu filho na escola, a minha paz. Não me deixa indiferente, obriga-me a tomar consciência da situação. Positiva ou negativamente, devo dar uma resposta. Resposta que se torna uma exigência não apenas para cada pessoa, família ou grupo, mas para as associações e organizações de base, movimentos sociais e partidos políticos, instituições e entidades, Igrejas e autoridades em geral.
“Eu era estrangeiro e me receberam em sua casa” ou “eu era estrangeiro e não me receberam em sua casa”, diz o Evangelho (Mt 25, 35.43). Diante do migrante que bate à porta (representando a figura do próprio Jesus), duas posições opostas, contrastantes: enquanto a primeira acolhe o forasteiro, a segunda finge ignorá-lo. Mas a história não há de perdoar aqueles que, nos momentos mais decisivos e trágicos dos embates humanos, permaneceram de braços cruzados, argumentando neutralidade. Há muito o mito da neutralidade está morto e sepultado. Ainda segundo o texto bíblico, a uns o juiz chamará de “benditos de meu Pai”; aos outros, “malditos de meu Pai”. O comportamento para com o outro/estrangeiro torna-se critério para entrar no Reino de Deus. Quando o outro, além de estranho e pobre, é uma vítima caída quase sem vida à beira da estrada, o critério de salvação torna-se igualmente decisivo, como na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37). Aqui, porém, ainda resta uma oportunidade de conversão e ação solidária: “Vá, e faça a mesma coisa!”, diz Jesus ao doutor da lei.
Justamente essa oportunidade que nos dá a presença do outro pode tornar-se em força motriz da história, a segunda hipótese a que nos referíamos no início. O migrante nunca é somente vítima, mas energia viva que protagoniza mudanças. Pondo-se em marcha, e fazendo-o em forma coletiva, como as águas de um rio em movimento, o migrante inquieta, incomoda e interpela, mas também irriga e fecunda a terra com seus valores culturais e religiosos, seu trabalho, sua inteligência e criatividade. Requer, por isso, uma tomada de posição, seja em termos individuais e familiares, seja em termos sociais e eclesiais, seja ainda em termos de grupo, partido ou governo. Ao movimentar-se, mobiliza igualmente outras forças sociais, quer estas o rechacem quer o acolham. Sua insistência na luta por um futuro mais promissor amplia as janelas do horizonte ou, como dizia Dom J. B. Scalabrini – pai e apóstolo dos migrantes – “alarga o conceito de pátria”, pois esta para o migrante “é a terra que lhe dá o pão”.
A tradição judaico-cristã fez uma experiência de Deus diferente dos demais povos vizinhos. Enquanto para estes Deus era um ente acima e além da história, sentado no trono do templo, sempre sedento de sacrifícios, para os israelitas Javé é aquele que, frente à realidade do povo, “vê a aflição, ouve o clamor, conhece o sofrimento e desce para libertá-lo” (Ex 3,7-10). Um Deus atento, sensível e solidário à condição social de seus filhos e filhas e que, por isso, caminha pelas estradas do êxodo, do deserto e do exílio. Contra os tiranos e tiranias de todos os tempos e lugares, Deus irrompe na história para abrir-lhe novos horizontes, novas alternativas. Deus que nos chama a caminhar, senhor do tempo e da história. De igual forma, os deslocamentos humanos de massa cruzam mares bravios, atravessam desertos inóspitos e rompem muros e fronteiras – descerrando com a energia de águas represadas todas as possibilidades da trajetória humana sobre a face da terra. Força motriz da história, na medida em que, “com a cara e a coragem” lhe desvendam potencialidades ocultas.

Fonte :
* Artigo na íntegra da Web Rádio Migrantes

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Advento e Esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
* Web Radio Migrantes
 
‘Os dicionários traduzem “advento” por vinda, chegada (do verbo latino advenire = chegar a). Do ponto de vista litúrgico trata-se simultaneamente do início do ano e da preparação ao Natal. Tempo de avaliação da própria existência, de arrependimento, de conversão e de expectativa... Revisão do caminho de nossa fé em vista da celebração do nascimento de Jesus. Costuma também ser um momento especial, tanto em termos familiares quanto em termos comunitários e eclesiais. Diante da ansiedade e da euforia que precedem os preparativos da festa, convém ao cristão interrogar-se como está seu compromisso pastoral, social e político nas pegadas do peregrino de Nazaré. Interrogação que pode evitar afogar-se ou asfixiar-se na agitação febril que costuma tomar conta do oceano em que navega nossa frágil embarcação. As ondas provocadas pelo mercado mundial impedem, não raro, distinguir o farol e o porto de nossa meta final. 
 
 Protagonistas desse período são as figuras do profeta Isaías, do chamado precursor, profeta João Batista, e de Maria de Nazaré. O primeiro nos apresenta a boa notícia: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz brilhou para os que habitavam um país tenebroso” (Is 9,1). O segundo surge como um apelo à mudança, “a voz daquele que clama no deserto: preparem os caminhos do Senhor, endireitem suas estradas” (Lc, 3,4). Quanto a Maria, aceitando ser mãe do Messias, torna-se o protótipo vocacional de quem diz “sim” ao projeto de Deus, exultando de alegria porque o Senhor “olhou para a humildae de sua serva, doravante todas as gerações me vhamarão de bem-aventurada” (Lc1,48). Nos bastidores do palco, porém, esconde-se um quarto personagem, José, simplesmente José, o operário paciente e fiel, que age por trás das cortinas e dos holofotes, sem proferir uma única palavra. Aquele que se encontra sempre no lugar certo e na hora certa, quando se trata de defender a integridade física da família, cuja presença poucos notam, mas cuja ausência seria imediatamente sentida. 
 
 Na perspectiva da dimensão social e política do Evangelho, bem como na dinâmica do compromisso com a cidadania, cada celebração natalícia representa um degrau na superação da fome e da miséria, da injustiça e da violência, da corrupção e da exploração que reinam no mundo. Um passo a mais na pavimentação das veredas que buscam construir o caminho da solidariedade e da paz. Em termos mais concretos, cada natal prepara o grande Natal do Reino de Deus, onde todos, após a passagem pela terra estrangeira, como migrantes deste “vale de lágrimas” e de sofrimento, são chamados a ser cidadãos da pátria definitiva. Natal, antes de tudo, é reconhecimento que o planeta Terra constitui, ao mesmo tempo, a casa de todo ser vivo, vegetal, animal e humano (biodiversidade) e a antecâmera do Reino eterno, cuja alicerce ergue-se a partir das coordenadas da trajetória da humanidade – não acima, nem fora, nem além. O grande Natal tem raízes na história, sim, mas não se esgota no aqui e agora da mesma. 
 
 Semelhante passagem, entretanto, exige uma dupla transformação. Por um lado, a conversão pessoal, que consiste em reaproximar-se de Deus e de si mesmo, no sentido de reencontrar o centro motriz que movimenta a própria existência. Significa aprender a distinguir o essencial do supérfluo; o absoluto do relativo; os prazees, paixões e desejos imediatos dos valores pétreos e imorredouros; o indispensável daquilo que pode ser descartado. Em outras palavras, resgatar as motivações mais profundas que dão significado aos nossos anos, dias, horas, minutos, segundos... Reformular o núcleo vital que move ações e reações, o sentido último da existência humana. “Não ajuntem riquezas aqui na terra, onde a traça e a ferrugem corroem, e onde os ladrões assaltam e roubam” – dirá o Senhor. “De fato, onde está o seu tesouro aí estará também o seu coração” (Mt 6,19-21). Trata-se não de espiritualizar o pão nosso de cada dia, que deve ser garantido para todos sem exceção, mas da consciência de que a resolução dos problemas sociais, por si só, não elimina as perguntas fundamentais do ser humano. Os bens materiais, de tão sólidos e visíveis, facilmente se pulverizam e se dissolvem no vazio e no nada, ao passo que os bens celestes, de tão espirituais e invisíveis, permanecem solidamente como herança da alma que busca e espera. Efetivamente, nem as traças ou ferrugem, nem os ladrões os podem danificar! 
 
 Por outro lado, a mudança pessoal se complementa com uma conversão social. Ou seja, o reencontro consigo mesmo e com Deus conduz necessariamente ao compromisso com os pobres, os excluídos, os infesos, os doentes, os mais necessitados, os últimos, como tem insistido com tanta frequência o Papa Francisco. Isto quer dizer que a oração, a meditação e a contemplação – quando profundas e verdadeiras – conferem suporte à caridade. E esta representa a expressão mais viva e verdadeira do cristianismo ativo, como mostra o poema da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (1Cor 13,1-13). Sem a prática concreta do amor solidário, não passaríamos de “sinos ruidosos ou címbalo estridentes”, afirma o apóstolo. Ou latas rolando no asfalto: quanto mais vazias, mais barulho fazem! Não podemos esquecer, além disso, que semelhante conversão social tem implicações políticas. De fato, o cristão não paira angelicamente nas nuvens, aima dos embates e contradições da vida cotidiana. Ao contrário, como pessoa humana dentro de um contexto histórico concreto, seu modo de agir, querendo ou não, terá sempre consequências de ordem política. Tudo o que dilacera o tecido social – medos, dúvidas, angústias, crises, interrogações, assimetrias, tribulações – dilacera igualmente a Igreja e “seus fiéis”. O mito da neutralidade há muito está morto e sepultado! 
 
 Em síntese, a celebração natalina nos convida, ao mesmo tempo, a concentra-se sobre si mesmo e sobre o encontro com Deus, para descentrar-se no amor ao próximo. O êxodo de si mesmo em favor dos outros requer raízes profundas na intimidae com o Pai, como demonstra a prática de Jesus. Como já vimos, a oração precede e reforça a caridade. Quem é incapaz de centrar-se em Deus e em sua própria alma, será incapaz de descentrar-se em direção ao próximo. Inconsciente de que é a graça de Deus que age em suas próprias ações (não as energias ou a inteligência humana), dificilmente poderá ser portavoz de uma palavra de conforto para a multidão dos sofredoes. Isto porque a palavra viva, criativa, verdadeira e libertadora é filha do silêncio diante do mistério divino, não da profusão dispersiva das palavras humanas. As palavras (no pural e em minúsculo) tendem a esconder a Palavra (no singular e maiúscula). 
 
 Ao celebrar o nascimento de Jesus, não podemos nos contentar com uma festa egocêntrica, pessoal ou quando muito intrafamiliar. O espírito do Natal amplia as fronteiras da família, expandindo a Boa Nova do Evangelho a todas as pessoas, especialmente às que têm sua vida mais ameaçada. Também neste ponto, a prática de Jesus se desloca dos limites de parentesco para incorporar todos e todas, de modo particular os estrangeiros, os marginalizados, os não-cidadãos. O profeta itinerante da Galileia inaugura um novo tipo de família. Não estabelece barreiras à participação no banquete do Reino. Mais ainda, privilegia os que a sociedade de então deixava à margem, tais como pecadores, pobres e enfermos – trilogia dos condenados – segundo as leis rígidas, cristalizadas e fossilizadas dos saduceus e fariseus.  
 
 Somente dessa forma podemos definir o Natal como esperança para os desesperançados, Boa Nova para os que se desiludiram completamente com os projetos humanos e das formulações político-partidárias. Luz para a imensa multidão do “sem” que habita as periferias e porões da sociedade moderna e pósmoderna. Os três reis magos, guiados por uma estrela, provenientes do Oriente, talvez sejam os protagonistas dessa nova esperança, a qual independe de sexo, cor e raça, língua e povo, credo, ideologia ou nação. Da mesma forma que a estrela e os magos, também é do Oriente que nos chegam os primeiros raios da aurora, aunciando o Astro-Rei, o novo sol que nasce Menino na gruta de Belém, mas já traz em si o esplendor do Reino de Deus, onde a compaixão, a misercicórdia e o perdão revestem toda lei e o julgamento. No advento do Messias, prevalece o primado de que “quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). Podemos concluir com as palavras de Bruno Forte: “A esperança da vida sem lágrimas e sem ocaso, que plenifica o coração dos homens, é também a esperança de Deus” (In Gesù di Nazaret, storia di Dio, Dio della storia, Ed. Paoline, Napoli, 1981, pag. 280). 
  

Fonte :
* Artigo na íntegra da Web Rádio Migrantes

 

domingo, 24 de novembro de 2013

São Columbano

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Bento XVI, Papa Emérito


            Hoje gostaria de falar do santo abade Columbano, o irlandês mais conhecido do início da Idade Média : com razão ele pode ser chamado um santo ‘europeu’, porque como monge, missionário e escritor trabalhou em vários países da Europa ocidental. Juntamente com os irlandeses do seu tempo, ele estava consciente da unidade cultural da Europa. Numa carta, escrita por volta do ano 600 e dirigida ao Papa Gregório Magno, encontra-se pela primeira vez a expressão ‘totius Europae – de toda a Europa’, referindo-se à presença da Igreja no continente (cf. Epistula I,1).
 
            Columbano nasceu por volta do ano 543 na província de Leinster, no sudeste da Irlanda. Educado na própria casa por ótimos mestres que o iniciaram no estudo das artes liberais, confiou-se depois à guia do abade Sinell da comunidade de Cluain-Inis, na Irlanda setentrional, onde pode aprofundar o estudo das Sagradas Escrituras. Com cerca de trinta anos entrou no Mosteiro de Bangor, no nordeste da ilha, onde era abade Comgall, um monge muito conhecido pela sua virtude e pelo seu rigor ascético. Em total sintonia com o seu abade, Columbano praticou com zelo a severa disciplina do mosteiro, conduzindo uma vida de oração, de ascese e de estudo. Ali foi também ordenado sacerdote. A vida em Bangor e o exemplo do abade influenciaram a concepção do monaquismo que Columbano maturou com o tempo e difundiu depois ao longo da sua vida.
 
            Aos cinquenta anos, seguindo o ideal ascético tipicamente irlandês da peregrinatio pro Christo, isto é, do fazer-se peregrino por Cristo, Columbano deixou a ilha para empreender com doze companheiros uma obra missionária no continente europeu. De fato, devemos ter presente que a migração de povos do norte e do leste fizeram voltar ao paganismo regiões inteiras já cristianizadas. Por volta do ano 590, este pequeno grupo de missionários chegou à costa da Bretanha. Acolhidos com benevolência pelo rei dos Francos da Austrásia (atual França), pediram apenas um pouco de terra inculta. Obtiveram a antiga fortaleza romana de Annegray, totalmente em ruínas e abandonada, já coberta pela floresta. Habituados a uma vida de extrema renúncia, os monges conseguiram em poucos meses construir sobre as ruínas o primeiro eremitério. Assim, a sua reevangelização começou a desenvolver-se antes de tudo mediante o testemunho da vida. Com a nova cultivação da terra começou também uma nova cultivação das almas. A fama daqueles religiosos estrangeiros que, vivendo de oração e em grande austeridade, construíam casas e arroteavam a terra, difundiu-se rapidamente, atraindo peregrinos e penitentes. Sobretudo muitos jovens pediam para ser acolhidos na comunidade monástica para viver, como eles, esta vida exemplar que renovava a cultura da terra e das almas. Depressa se tornou necessária a fundação de um segundo mosteiro. Foi edificado a poucos quilômetros de distancia, sobre as ruínas de uma antiga cidade termal, Luxeuil. O mosteiro tornar-se-ia depois o centro da irradiação monástica e missionária de tradição irlandesa no continente europeu. Um terceiro mosteiro foi erigido em Fontaine, a uma hora de caminho mais ao norte.
 
            Em Luxeuil, Columbano viveu quase vinte anos. Ali, o santo escreveu para os seus seguidores a Regula monachorum, durante um certo período mais difundida na Europa do que a de São Bento, designando a imagem ideal do monge. É a única antiga regra monástica irlandesa que hoje possuímos. Como integração, ele elaborou a Regula coenobialis, uma espécie de código penal para as faltas dos monges, com punições bastante surpreendentes para a sensibilidade moderna, explicáveis apenas com a mentalidade do tempo e do ambiente. Com outra obra famosa intitulada De poenitentiarum misura taxanda, escrita também em Luxeuil, Columbano introduziu no continente a confissão e a penitencia privadas e reiteradas; foi chamada penitencia ‘tarifada’ devido à proporção estabelecida entre gravidade do pecado e tipo de penitencia imposta pelo confessor. Estas novidades despertaram a suspeita dos bispos da região, uma suspeita que se transformou em hostilidade quando Columbano teve a coragem de os reprovar abertamente pelos costumes de alguns deles. A ocasião em que se manifestou o contraste foi a contenda sobre a data da Páscoa : de fato, a Irlanda seguia a tradição oriental, em contraste com a tradição romana. O monge irlandês foi convocado em 603 a Châlon-sur-Saôn para prestar contas diante de um sínodo dos seus costumes relativos à penitencia e à Páscoa. Em vez de se apresentar ao sínodo, ele enviou uma carta com a qual minimizava a questão convidando os Padres sinodais a discutir não só sobre o problema da data da Páscoa, segundo ele um pequeno problema, ‘mas também de todas as necessárias normas canônicas desatendidas por muitos, o que é mais grave’ (cf. Epistula II, 1). Contemporaneamente escreveu ao Papa Bonifácio IV, como alguns anos antes já se tinha dirigido ao Papa Gregório Magno (cf. Espitula I) para defender a tradição irlandesa (cf. Espitula III).           

            Sendo muito intransigente em todas as questões morais, Columbano entrou depois em conflito também com a casa real, porque tinha reprovado asperamente o rei Teodorico pelas suas relações adulterinas. Isso originou uma rede de intrigas e manobras a nível pessoal, religioso e político que, no ano 610, se transformou num decreto de expulsão de Luxeuil para Columbano e para todos os monges de origem irlandesa, que foram condenados ao exílio definitivo. Foram escoltados até o mar e embarcados para a Irlanda com o patrocínio da corte. Mas o navio encalhou a pouca distância da praia e o capitão, vendo nisto um sinal do céu, renunciou a prosseguir e, com receio de ser amaldiçoado por Deus, reconduziu os monges para a terra firme. Eles em vez de voltarem para Luxeuil, decidiram começar uma nova obra de evangelização. Embarcaram no Reno e subiram o rio. Depois de uma primeira etapa em Tuggen, junto do lago de Zurique, foram para a região de Bregenz, perto do lado de Constancia, para evangelizar os Alamanos.
 
            Mas pouco depois, Columbano, devido a vicissitudes políticas pouco favoráveis à sua obra, decidiu atravessar os Alpes com a maior parte dos seus discípulos. Permaneceu só um monge de nome Galo, da sua ermida ter-se-ia depois desenvolvido a famosa Abadia de Sankt Gallen, na Suíça. Tendo chegado a Itália, Columbano encontrou um acolhimento favorável junto da corte real longobarda, mas teve que enfrentar imediatamente grandes dificuldades : a vida da Igreja estava dilacerada pela heresia ariana que ainda prevalecia entre os longobardos e por um cisma que tinha separado a maior parte das Igrejas da Itália setentrional da comunhão com o bispo de Roma. Columbano inseriu-se com autoridade neste contexto, escrevendo um libelo contra o arianismo e uma carta a Bonifácio IV para o convencer a dar alguns passos decididos em vista de um restabelecimento da unidade (cf. Epistula V). Quando o rei dos longobardos, em 612 ou 613, lhe confiou um terreno em Bobbio, no vale da Trebbia, Columbano fundou um novo mosteiro que depois se tornaria um centro de cultura comparável com o famoso de Montecassino. Nele viu o fim dos seus dias : faleceu a 23 de novembro de 615 e nesta data é comemorado no rito romano até hoje.
 
            A mensagem de São Columbano concentra-se numa firme chamada à conversão e ao desapego dos bens terrenos em vista da herança eterna. Com a sua vida ascética e com o seu comportamento sem cedências face à corrupção dos poderosos, ele evocava a figura severa de São João Batista. A sua austeridade, contudo, nunca é fim em si mesma, mas unicamente o meio para se abrir livremente ao amor de Deus e corresponder com todo o ser aos dons por Ele recebidos, reconstruindo assim em si a imagem de Deus e ao mesmo tempo arroteando a terra e renovando a sociedade humana. Cito das suas Instructiones : ‘Se o homem usar retamente as faculdade que Deus concedeu à sua alma, então será semelhante a Deus. Recordemo-nos que Lhe devemos restituir todos aqueles dons que Ele depositou em nós quando estávamos na condição originária. Ensinou-nos o Seu modo com os Seus mandamentos. O primeiro deles é o de amar o Senhor com todo o coração, porque Ele nos amou primeiro, desde o início dos tempos, ainda antes que nós viéssemos à luz desse mundo.’ (Cf. Inst. XI) O santo irlandês encarnou realmente estas palavras na própria vida. Homem de grande cultura, escreveu também poesias em latim e um livro de gramática revelou-se rico de dons da graça. Foi incansável construtor de mosteiros, assim como intransigente pregador penitencial, empregando todas as suas energias para alimentar as raízes cristãs da Europa que estava a nascer. Com a sua energia espiritual, com a sua fé, com o seu amor a Deus e ao próximo tornou-se realmente um dos Padres da Europa : ele mostra-nos também hoje onde estão as raízes das quais pode renascer esta nossa Europa.

(11 de junho de 2008)
 
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.  



sábado, 23 de novembro de 2013

O Reino e a Fé

Por Maria Vanda (Ir. Maria Silvia, Obl. OSB)

* Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
arcebispo de Belém do Pará, reflete sobre o Reino de Deus e
a necessidade reavivar o desejo de anunciar novamente Jesus Cristo
 
 
“Acima dele havia um letreiro: ‘Este é o Rei dos Judeus’. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: ‘Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!’ Mas o outro o repreendeu: ‘Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma pena? Para nós, é justo sofrermos, pois estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal’. E acrescentou: ‘Jesus, lembra-te de mim, quando começares a reinar’. Ele lhe respondeu: ‘Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso’” (Lc 23, 38-43). A situação dos três condenados é a mais crítica que se possa pensar e, no entanto, alguém é capaz de dar um verdadeiro salto, o salto da fé, que supera as circunstâncias mais dolorosas e abre o horizonte do Reino de Deus, “Reino eterno e universal: Reino da verdade e da vida, Reino da santidade e da graça, Reino da justiça, do amor e da paz”. Da dura realidade da Cruz brotaram as fontes da Evangelização. 
 
Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, revelou-se apaixonado pelo Reino de Deus. Anunciou o Reino com toda força, indicou seus sinais na natureza e na vida das pessoas, proclamou-o presente e ao mesmo tem por vir, alertou para o fato de que este Reino se encontra perto de nós! Seus discípulos percorrerão o mundo inteiro, para chegar aos confins da terra, descobrindo as sementes do Reino de Deus plantadas pelo Espírito Santo, mostrando-as presentes, proclamando a Boa Nova da Salvação e realizando o próprio Reino na Igreja, testemunha e presença do domínio de Deus. 
 
Só que Deus não domina com os critérios e modalidades correntes. Falar de Reino de Deus exige pensar em semente, luz, fermento, grão de trigo que morre para dar a vida... Até o fim dos tempos, quando o Senhor vier em sua glória, este Reino, qual trigo no meio do joio, será provocado pela presença do mal, ainda que os discípulos de Jesus saibam, com a certeza da fé, que a vitória será do bem e da verdade. Ele, Jesus Cristo, é Senhor da história, princípio e fim, alfa e ômega da aventura humana! Nele está a vida verdadeira e o sentido de toda a procura do bem e da verdade! 
 
Se parece muito bonito e confortador afirmar tais verdades, bem sabemos que elas pertencem ao âmbito da fé. Sem a fé, a realidade será compreendida de forma diversa, tanto que aparecem dois modos de encarar a vida, ambos fadados a bloquear o sentido da própria existência. De um lado, perder de vista a eternidade para que fomos criados por Deus, justamente por não enxergar a maravilhosa realidade de criaturas em que nos encontramos. As pessoas que vivem assim só acreditam em si mesmas e naquilo que vêem com os olhos da carne. É a pretensão de autonomia absoluta, na qual somos apenas obra do acaso ou dos processos físico-químicos da natureza, pelo que “comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (Cf. 1 Cor 15, 32). É ainda possível enxergar a existência como uma fatídica destinação de sofrimento, com a qual o pessimismo se instala e corrói as pessoas. De Deus se tem apenas medo, pois é visto como um vigia implacável, juiz severo, pronto a condenar os atos humanos. A fé se reduz a crença, os mitos se instalam e o medo ocupa o coração e cresce o risco do fanatismo. É o outro lado de uma medalha com a qual se pretende pagar o preço da passagem pela vida. Sabemos que nenhuma das duas visões é a autêntica fé cristã. 
 
A fé cristã, do homem e da mulher que se encantam pelo Reino “de” Deus, escancara novas e inusitadas oportunidades. Jesus Cristo é o centro da fé cristã. O cristão crê em Deus através de Jesus Cristo, que nos revelou a face de Deus e é Deus com o Pai e o Espírito Santo. Ele é o cumprimento das Escrituras, aquele em quem acreditamos, aquele “que em nós começa e completa a obra da Fé” (Hb 12,2). Jesus Cristo, consagrado pelo Pai no Espírito Santo, é o verdadeiro realizador da evangelização, com a qual a Igreja se apresenta diante do mundo. 
 
Sua missão continua no espaço e no tempo (Cf. Homilia de Bento XVI, na abertura do Ano da Fé, 11 de outubro de 2012). É um movimento que parte do Pai e, com a força do Espírito, conduz a levar a Boa Nova aos pobres. A Igreja é o instrumento desta obra de Cristo, unida a Ele como o corpo à cabeça. “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21). E soprando sobre os discípulos, disse: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22). O próprio Cristo quis transmitir à Igreja a missão, e o fez e continua a fazê-lo até o fim dos tempos, infundindo o Espírito Santo nos discípulos, dando-lhes a força para “proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19). 
 
Nossa vida cristã é resposta a este imenso amor de Deus. É fundamental reavivar o desejo ardente de anunciar novamente Jesus Cristo. Nos últimos tempos aconteceu o avanço de uma "desertificação" espiritual. Já se podia perceber, a partir de algumas páginas trágicas da história, o pouco o valor dado à vida num mundo sem Deus, mas agora, infelizmente, vemos que o vazio que se espalhou. Mas é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer e a sua importância vital. No deserto é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida. Há sinais da sede de Deus, de um sentido para a vida, ainda que muitas vezes expressos de modo confuso ou negativo. E no deserto existe, sobretudo, necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança. A fé vivida abre o coração à graça de Deus, que liberta do pessimismo (Cf. Bento XVI, Porta Fidei). 
 
Na conclusão do Ano da Fé, nasce uma nova perspectiva de missão. Acolhamos neste final de semana o impulso evangelizador da Exortação Apostólica “Evangelium Gaudium”, com a qual o Papa Francisco impulsiona a tarefa da Evangelização. O Reino de Deus é de novo anunciado e com novo ardor, novos métodos e novas expressões. Deus seja louvado porque não podemos parar!
 
 
Fonte :




sexta-feira, 22 de novembro de 2013

São Clemente Romano

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Bento XVI, Papa Emérito, sobre
São Clemente I, Papa e Mártir 

            Meditamos em catequeses anteriores sobre as figuras de cada um dos Apóstolos e sobre as primeiras testemunhas da fé cristã, que os textos neotestamentários mencionam. Agora dedicamos a nossa atenção aos Padres apostólicos, isto é, à primeira e à segunda geração na Igreja depois dos Apóstolos. E assim podemos ver o início do caminho da Igreja na história.
 
            São Clemente, bispo de Roma nos últimos anos do século I, é o terceiro sucessor de Pedro, depois de Lino e Anacleto. Em relação à sua vida, o testemunho mais importante é o de Santo Ireneu, bispo de Lion até 202. Ele afirma que Clemente ‘tinha visto os Apóstolo’, ‘tinha-se encontrado com eles’, e ‘ainda tinha nos ouvidos a sua pregação e diante dos olhos a sua tradição’ (Adv. Haer. 3,3,3). Testemunhos tardios, entre o século IV e VI, atribuem a Clemente o título de mártir.
 
            A autoridade e o prestígio deste bispo de Roma eram tais que lhe foram atribuídos diversos textos, mas a sua única obra certa é a Carta aos Coríntios. Eusébio de Cesaréia, o grande ‘arquivista’ das origens cristãs, apresenta-a nestes termos : ‘É transmitida uma carta de Clemente reconhecida autentica, grande e admirável. Foi escrita por ele, por parte da Igreja de Roma, à Igreja de Corinto... Sabemos que desde há muito tempo, e ainda nos nossos dias, ela é lida publicamente durante a reunião dos fiéis.’ (Hist. Eccl. 3,16) A esta carta era atribuído um caráter quase canônico. No início deste texto escrito em grego, Clemente lamenta que ‘as improvisas adversidades, que aconteceram uma após outra’ (1,1), lhe tenham impedido uma intervenção imediata. Estas ‘adversidades’ devem identificar-se com a perseguição de Domiciano : por isso, a data de composição da carta deve remontar a um tempo imediatamente sucessivo à morte do imperador e ao final da perseguição, isto é, logo depois do ano 96.
 
            A intervenção de Clemente, ainda estamos no século I, era solicitada pelos graves problemas em que se encontrava a Igreja de Corinto : de fato, os presbíteros da comunidade tinham sido depostos por alguns jovens contestadores. A lamentável vicissitude é recordada, mais uma vez, por Santo Ireneu, que escreve : ‘Sob Clemente, tendo surgido um contraste não pequeno entre os irmãos de Corinto, a Igreja de Roma enviou aos Coríntios uma carta importantíssima para os reconciliar na paz, renovar a sua fé e anunciar a tradição, que há pouco tempo tinha recebido dos Apóstolos’. (Adv. Haer. 3,3,3) Portanto, poderíamos dizer que esta carta constitui o primeiro exercício do primado romano depois da morte de São Padre. A carta de Clemente retoma temas queridos a São Paulo, que escrevera duas grandes cartas aos Coríntios, em particular a dialética teológica, perenemente atual, entre indicativo da salvação e imperativo do compromisso moral.
 
            Antes de tudo há o feliz anúncio da graça que salva. O Senhor previne-nos e dá-nos perdão, o Seu amor, a graça de sermos cristãos, Seus irmãos e irmãs. É um anúncio que enche de alegria a nossa vida e dá segurança ao nosso agir : o Senhor previne-nos sempre com a Sua bondade e a bondade do Senhor é sempre maior do que todos os nossos pecados. Mas é necessário que nos comprometamos de modo coerente com o dom recebido e correspondamos ao anúncio da salvação com um caminho generoso e corajoso de conversão. Em relação ao modelo paulino, a novidade é que Clemente faz seguir à parte doutrinal e à parte prática, que eram contempladas em todas as cartas paulinas, uma ‘grande oração’ que praticamente conclui a carta.
 
            A ocasião imediata da carta oferece ao bispo de Roma a possibilidade para uma ampla intervenção sobre a identidade da Igreja e sobre a sua missão. Se em Corinto se verificaram abusos, observa Clemente, o motivo deve ser procurado no enfraquecimento da caridade e de outras virtudes cristãs indispensáveis. Por isso ele convoca os fiéis à humildade e ao amor fraterno, duas virtudes verdadeiramente constitutivas do ser na Igreja : ‘Somos uma porção santa’, admoesta, ‘realizemos portanto tudo o que a santidade exige.’ (30,1) Em particular, o bispo de Roma recorda que o próprio Senhor ‘estabeleceu onde e de quem quer que os serviços litúrgicos sejam realizados, para que tudo, feito santamente e com o Seu consentimento, seja aprovado pela Sua vontade...de fato, foram confiadas ao sumo sacerdote as funções litúrgicas que lhe são próprias, aos sacerdotes foi preordenado o lugar que lhes é próprio, aos levitas competem serviços próprios. O leigo está vinculado aos ordenamentos leigos’ (40, 1-5: observe-se que, nesta carta do final do século I, pela primeira vez na literatura cristã, aparece a palavra grega laikós, que significa ‘membro do laos’, isto é, ‘do povo de Deus’).
 
            Deste modo, referindo-se à liturgia do antigo Israel, Clemente revela o seu ideal de Igreja. Ela é reunida pelo ‘único Espírito de graça derramado sobre nós’, que sopra nos diversos membros do Corpo de Cristo, no qual todos, unidos sem separação alguma, são ‘membros uns dos outros’ (46, 6-7). A clara distinção entre o ‘leigo’ e a hierarquia não significa absolutamente uma contraposição, mas apenas esta ligação orgânica de um corpo, de um organismo, com as diversas funções. De fato, a Igreja não é lugar de confusão e de anarquia, onde cada qual pode fazer como lhe apetece em qualquer momento : cada um neste organismo, com a estrutura articulada, exerce o seu ministério segundo a vocação recebida. Em relação aos chefes das comunidades, Clemente explicita claramente a doutrina da sucessão apostólica. As normas que a regulam derivam definitivamente do próprio Deus. O Pai enviou Jesus Cristo, o qual por Sua vez enviou os Apóstolos. Depois, eles enviaram os primeiros chefes das comunidades e estabeleceram que lhe sucedessem outros homens dignos. Portanto, tudo se realiza ‘ordenadamente pela vontade de Deus’ (42). Com estas palavras, com estas frases, São Clemente ressalta que a Igreja tem uma estrutura sacramental e não uma estrutura política. O agir de Deus que vem ao nosso encontro na liturgia precede as nossas decisões e as nossas idéias. A Igreja é sobretudo dom de Deus e não nossa criatura, e por isso esta estrutura sacramental não garante apenas o comum ordenamento, mas também esta precedência do dom de Deus, do qual todos necessitamos.
 
            Finalmente, a ‘grande oração’ confere um alcance cósmico às argumentações precedentes. Clemente louva e agradece a Deus pela Sua maravilhosa providencia de amor, que criou o mundo e continua a salvá-lo e a santificá-lo. Assume um realce particular a invocação pelos governantes. Depois dos textos do Novo Testamento, ela representa a mais antiga oração pelas instituições políticas. Assim, após as perseguições, os cristãos, sabendo bem que elas iriam continuar, rezam incessantemente por aquelas mesmas autoridades que os tinham condenado injustamente. O motivo é antes de tudo de ordem cristológica : é preciso rezar pelos perseguidores, como fez Jesus na cruz.
 
            Mas esta oração contém também um ensinamento que guia, ao longo dos séculos, a atitude dos cristão em relação à política e ao Estado. Rezando pelas autoridades, Clemente reconhece a legitimidade das instituições políticas na ordem estabelecida por Deus; ao mesmo tempo, ele manifesta a preocupação por que as autoridades sejam dóceis a Deus e ‘exerçam o poder que Deus lhes concedeu na paz e na mansidão com piedade’ (61,2). César não é tudo. Sobressai outra soberania, cuja origem e essência não são deste mundo, mas ‘lá de cima’ : é a da verdade, que se orgulha também em relação ao Estado pelo direito de ser ouvida.
 
            Assim, a carta de Clemente trata numerosos temas de atualidade perene. Ela é muito significativa porque representa, desde o século I, a solicitude da Igreja de Roma, que preside na caridade a todas as outras Igrejas. Com o mesmo Espírito façamos nossas as invocações da ‘grande oração’, onde o bispo de Roma se faz voz do mundo inteiro : ‘Sim, Senhor, faz resplandecer sobre nós a Tua face no bem da paz; protege-nos com a Tua mão poderosa... Nós Te damos graças, através do Sumo Sacerdote e guia das nossas almas, Jesus Cristo, por meio do qual Te glorificamos e louvamos, agora, e de geração em geração, e por todos os séculos. Amém.’ (60-61)  
 
(7 de março de 2007)
 
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.