*
Artigo de Bento XVI, Papa Emérito, sobre
São Clemente I, Papa e Mártir
São Clemente I, Papa e Mártir
Meditamos em catequeses anteriores
sobre as figuras de cada um dos Apóstolos e sobre as primeiras testemunhas da
fé cristã, que os textos neotestamentários mencionam. Agora dedicamos a nossa
atenção aos Padres apostólicos, isto é, à primeira e à segunda geração na
Igreja depois dos Apóstolos. E assim podemos ver o início do caminho da Igreja
na história.
São Clemente, bispo de Roma nos últimos
anos do século I, é o terceiro sucessor de Pedro, depois de Lino e Anacleto. Em
relação à sua vida, o testemunho mais importante é o de Santo Ireneu, bispo de
Lion até 202. Ele afirma que Clemente ‘tinha
visto os Apóstolo’, ‘tinha-se
encontrado com eles’, e ‘ainda tinha
nos ouvidos a sua pregação e diante dos olhos a sua tradição’ (Adv. Haer. 3,3,3). Testemunhos tardios,
entre o século IV e VI, atribuem a Clemente o título de mártir.
A autoridade e o prestígio deste
bispo de Roma eram tais que lhe foram atribuídos diversos textos, mas a sua única
obra certa é a Carta aos Coríntios. Eusébio de Cesaréia, o grande ‘arquivista’ das origens cristãs,
apresenta-a nestes termos : ‘É
transmitida uma carta de Clemente reconhecida autentica, grande e admirável.
Foi escrita por ele, por parte da Igreja de Roma, à Igreja de Corinto...
Sabemos que desde há muito tempo, e ainda nos nossos dias, ela é lida
publicamente durante a reunião dos fiéis.’ (Hist. Eccl. 3,16) A esta carta era atribuído um caráter quase canônico.
No início deste texto escrito em grego, Clemente lamenta que ‘as improvisas adversidades, que aconteceram
uma após outra’ (1,1), lhe tenham impedido uma intervenção imediata. Estas ‘adversidades’ devem identificar-se com a
perseguição de Domiciano : por isso, a data de composição da carta deve
remontar a um tempo imediatamente sucessivo à morte do imperador e ao final da
perseguição, isto é, logo depois do ano 96.
A intervenção de Clemente, ainda
estamos no século I, era solicitada pelos graves problemas em que se encontrava
a Igreja de Corinto : de fato, os presbíteros da comunidade tinham sido
depostos por alguns jovens contestadores. A lamentável vicissitude é recordada,
mais uma vez, por Santo Ireneu, que escreve : ‘Sob Clemente, tendo surgido um contraste não pequeno entre os irmãos de
Corinto, a Igreja de Roma enviou aos Coríntios uma carta importantíssima para
os reconciliar na paz, renovar a sua fé e anunciar a tradição, que há pouco
tempo tinha recebido dos Apóstolos’. (Adv.
Haer. 3,3,3) Portanto, poderíamos dizer que esta carta constitui o primeiro
exercício do primado romano depois da morte de São Padre. A carta de Clemente
retoma temas queridos a São Paulo, que escrevera duas grandes cartas aos
Coríntios, em particular a dialética teológica, perenemente atual, entre indicativo da salvação e imperativo do compromisso moral.
Antes de tudo há o feliz anúncio da
graça que salva. O Senhor previne-nos e dá-nos perdão, o Seu amor, a graça de
sermos cristãos, Seus irmãos e irmãs. É um anúncio que enche de alegria a nossa
vida e dá segurança ao nosso agir : o Senhor previne-nos sempre com a Sua
bondade e a bondade do Senhor é sempre maior do que todos os nossos pecados. Mas
é necessário que nos comprometamos de modo coerente com o dom recebido e
correspondamos ao anúncio da salvação com um caminho generoso e corajoso de
conversão. Em relação ao modelo paulino, a novidade é que Clemente faz seguir à
parte doutrinal e à parte prática, que eram contempladas em todas as cartas
paulinas, uma ‘grande oração’ que
praticamente conclui a carta.
A ocasião imediata da carta oferece
ao bispo de Roma a possibilidade para uma ampla intervenção sobre a identidade
da Igreja e sobre a sua missão. Se em Corinto se verificaram abusos, observa
Clemente, o motivo deve ser procurado no enfraquecimento da caridade e de
outras virtudes cristãs indispensáveis. Por isso ele convoca os fiéis à
humildade e ao amor fraterno, duas virtudes verdadeiramente constitutivas do
ser na Igreja : ‘Somos uma porção santa’,
admoesta, ‘realizemos portanto tudo o que
a santidade exige.’ (30,1) Em particular, o bispo de Roma recorda que o
próprio Senhor ‘estabeleceu onde e de quem quer que os serviços litúrgicos
sejam realizados, para que tudo, feito santamente e com o Seu consentimento,
seja aprovado pela Sua vontade...de fato,
foram confiadas ao sumo sacerdote as funções litúrgicas que lhe são próprias,
aos sacerdotes foi preordenado o lugar que lhes é próprio, aos levitas competem
serviços próprios. O leigo está vinculado aos ordenamentos leigos’ (40, 1-5:
observe-se que, nesta carta do final do século I, pela primeira vez na
literatura cristã, aparece a palavra grega laikós, que significa ‘membro do laos’, isto é, ‘do povo de
Deus’).
Deste modo, referindo-se à liturgia
do antigo Israel, Clemente revela o seu ideal de Igreja. Ela é reunida pelo ‘único Espírito de graça derramado sobre
nós’, que sopra nos diversos membros do Corpo de Cristo, no qual todos, unidos
sem separação alguma, são ‘membros uns dos outros’ (46, 6-7). A clara
distinção entre o ‘leigo’ e a
hierarquia não significa absolutamente uma contraposição, mas apenas esta
ligação orgânica de um corpo, de um organismo, com as diversas funções. De
fato, a Igreja não é lugar de confusão e de anarquia, onde cada qual pode fazer
como lhe apetece em qualquer momento : cada um neste organismo, com a estrutura
articulada, exerce o seu ministério segundo a vocação recebida. Em relação aos
chefes das comunidades, Clemente explicita claramente a doutrina da sucessão
apostólica. As normas que a regulam derivam definitivamente do próprio Deus. O
Pai enviou Jesus Cristo, o qual por Sua vez enviou os Apóstolos. Depois, eles
enviaram os primeiros chefes das comunidades e estabeleceram que lhe sucedessem
outros homens dignos. Portanto, tudo se realiza ‘ordenadamente pela vontade de Deus’ (42). Com estas palavras, com
estas frases, São Clemente ressalta que a Igreja tem uma estrutura sacramental
e não uma estrutura política. O agir de Deus que vem ao nosso encontro na
liturgia precede as nossas decisões e as nossas idéias. A Igreja é sobretudo
dom de Deus e não nossa criatura, e por isso esta estrutura sacramental não
garante apenas o comum ordenamento, mas também esta precedência do dom de Deus,
do qual todos necessitamos.
Finalmente,
a ‘grande oração’ confere um alcance
cósmico às argumentações precedentes. Clemente louva e agradece a Deus pela Sua
maravilhosa providencia de amor, que criou o mundo e continua a salvá-lo e a
santificá-lo. Assume um realce particular a invocação pelos governantes. Depois
dos textos do Novo Testamento, ela representa a mais antiga oração pelas
instituições políticas. Assim, após as perseguições, os cristãos, sabendo bem
que elas iriam continuar, rezam incessantemente por aquelas mesmas autoridades
que os tinham condenado injustamente. O motivo é antes de tudo de ordem
cristológica : é preciso rezar pelos perseguidores, como fez Jesus na cruz.
Mas esta oração contém também um
ensinamento que guia, ao longo dos séculos, a atitude dos cristão em relação à
política e ao Estado. Rezando pelas autoridades, Clemente reconhece a
legitimidade das instituições políticas na ordem estabelecida por Deus; ao
mesmo tempo, ele manifesta a preocupação por que as autoridades sejam dóceis a
Deus e ‘exerçam o poder que Deus lhes
concedeu na paz e na mansidão com piedade’ (61,2). César não é tudo.
Sobressai outra soberania, cuja origem e essência não são deste mundo, mas ‘lá de cima’ : é a da verdade, que se
orgulha também em relação ao Estado pelo direito de ser ouvida.
Assim, a carta de Clemente trata
numerosos temas de atualidade perene. Ela é muito significativa porque
representa, desde o século I, a solicitude da Igreja de Roma, que preside na
caridade a todas as outras Igrejas. Com o mesmo Espírito façamos nossas as
invocações da ‘grande oração’, onde o
bispo de Roma se faz voz do mundo inteiro : ‘Sim, Senhor, faz resplandecer sobre nós a Tua face no bem da paz;
protege-nos com a Tua mão poderosa... Nós Te damos graças, através do Sumo
Sacerdote e guia das nossas almas, Jesus Cristo, por meio do qual Te
glorificamos e louvamos, agora, e de geração em geração, e por todos os séculos.
Amém.’ (60-61)
(7 de março de 2007)
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa,
Paulus Editora, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário