terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Tráficos e escravaturas : ontem e hoje

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Padre Joseph B. Ballong-Wen-Mewuda
historiador  

‘Nos rastos da mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz 2015 que chama a atenção para o flagelo do tráfico humano e da escravatura no mundo de hoje, apresentamos na rubrica ‘África Global’ alguns aspectos relacionados com isso, procurando detectar as linhas de continuidade ou descontinuidade entre os tráficos humanos e escravaturas de ontem e de hoje. Fazê-mo-lo com a ajuda do Padre Joseph Ballong, historiador africano, originário do Togo.

O dia 1 de Janeiro é considerado pela Igreja Dia Mundial da Paz e por essa ocasião tornou-se tradição o Papa emitir, com alguma antecedência, uma mensagem sobre a qual reflectir a fim de promover a paz no mundo.

Desta vez, o Papa Francisco chama a atenção para as diversas formas de tráficos e escravaturas humanas que afectam a nossa época, intitulando a sua mensagem ‘Nunca mais escravos, mas sim irmãos’...

Nela, o Papa começa por fazer notar que o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é um ser relacional que se realiza no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade; para o desenvolvimento do ser humano é fundamental que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente – prossegue o Papa – o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e vocação do ser humano a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade.  Isto acontece - sublinha o Papa - porque o pecado leva o ser humano a afastar-se de Deus e a recusar a comunhão com o outro, traduzindo-se tudo isso na cultura da servidão, com cortejo de males que dela resultam. Só a conversão aos ensinamentos de Deus Pai, nos pode livrar do pecado.

O Papa vai adiante nas oito páginas da sua mensagem, analisando as múltiplas faces da escravatura de ontem e de hoje, indicando algumas das suas causas profundas (a principal das quais a recusa de humanidade no outro), o compromisso comum que devemos assumir para enfrentar este flagelo, e terminando com o convite a globalizarmos a fraternidade em vez da escravidão e da indiferença.

Como complemento à leitura desta mensagem e para ajudar na interpretação de algumas publicações que, não raro, identificam pura e simplesmente os tráficos e escravaturas de ontem com os de hoje, sem fazer as devidas distinções, o historiador togolês, Padre Joseph Ballong, membro da Rádio Vaticano, foi convidado a explicar se há alguma continuidade ou diferença entre os tráficos e as escravaturas de ontem e de hoje. Foi em Novembro passado, na Sala Marconi da Rádio Vaticano, no contexto da apresentação do romance ‘Efémera Liberdade’ da moçambicana Amilca Ismail. Um livro que conta a história duma jovem trazida da África para a Itália e posta no circuito da prostituição com o seu dramático percurso e desfecho.

Ouçamos então o P. Ballong que começou por fazer uma breve introdução história sobre o Tráfico Transatlantico Negreiro :

A escravatura presente de forma não importante nas sociedades africanas muito antes do contacto com os europeus, consiste em exercitar sobre a uma pessoa qualquer tipo de poder ou então um conjunto de poderes ligados ao direito de propriedade. Nas sociedades africanas onde existia a escravatura, a maior parte dos escravos – pouco numerosos – ocupavam-se do trabalho doméstico e acabavam por ser considerados como filhos da família, podendo nalguns casos, tornar-se herdeiros dos bens familiares.

Pelo contrário, o tráfico é o comércio dos Negros (homens, mulheres e crianças), raptados na África Ocidental, central e austral, vendidos como escravos e transportados principalmente para a América a partir do fim do século XV. Esse comércio praticado pela maior parte das nações européias, americanas, pelos árabes com a cumplicidade activa dos próprios africanos, sobretudo os chefes, durou até ao fim do século XIX e marcou fortemente a evolução das sociedades da África negra.

Os principais protagonistas europeus deste comércio indigno de qualquer consciência humana, aboliram-no respectivamente em 1833 (Reino Unido) em 1860 (Estados Unidos da América) e 1848 (França). Mas o tráfico clandestino e ilegal continuou nalgumas regiões : o Brasil, por exemplo, aboliu oficialmente o tráfico em 1850 e a escravatura em 1889. Estão a ver, portanto, que há uma diferença entre tráfico e escravatura.

Depois do fim do tráfico atlântico, um outro tráfico continuou entre a ilha de Zanzibar e o mundo árabe. Alexandria, por exemplo, é, em meados do século XIX, um dos principais mercados de escravo. Entre 1800 e 1880 cerca de um milhão, seiscentos e cinquenta mil pessoas foram vítimas do tráfico trans-sahariano’.

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Depois desta breve introdução histórica o Padre Joseph Ballong passou a fazer a distinção entre tráfico e escravatura :

Como se vê o tráfico é diferente da escravatura. Mas o tráfico precisa da escravatura, ou então precede a escravatura. Para que uma pessoa seja propriedade de uma outra pessoa e seja vendida como simples mercadoria, transformada em objecto de troca comercial, é necessário que seja reduzida, ou pelo menos considerada como escrava. Pode existir escravatura sem tráfico como se viu no Estados Unidos no século XIX. O tráfico transatlântico é, portanto, diferente da noção contemporânea de tráfico de seres humanos.

O tráfico, ou os tráficos dos Negros foi, ou foram um fenómeno histórico de grande amplitude em razão do número de vítimas – entre 11 e 42 milhões, segundo as diferentes estimativas dos historiadores. Há variações nos números, mas quando se trata de um ser humano, ao qual é negada a própria dignidade, o facto é muito grave em si, porque se nega nesse ser humano, diria, a imagem e semelhança de Deus. Então, neste caso os números e os dados não têm nenhum significado.’

O nosso historiador recordou ainda que esse tipo de tráfico utilizou numerosos métodos de submissão da pessoa humana, formas desumanas de transporte em longas distâncias, pois que iam abastecer-se em África e iam vender nas Américas… Era um comércio que comportava muitos riscos, entre os quais o da revolta dos escravos durante a travessia e não só; requeria também muitos investimentos financeiros, por isso, quem o fazia eram pessoas próximas do poder constituído.

Tráfico de seres humanos hoje : antes de mais existe ainda a forma clássica de escravatura. Não devemos iludir-nos! Embora tenham  sido abolidas em todos os países há mais de 20 anos, o tráfico e a escravatura tradicionais existem ainda hoje sob diversas formas. Em alguns países a escravatura sobrevive sob a forma clássica. É o caso da Mauritânia, onde foi oficialmente abolida a 5 de Julho de 1980. Mas segundo dados estatísticos, em 1994, 11 milhões de habitantes, isto é 45% da população deste país africano, eram escravos. Existem também mercados de escravos no Sudão e nalguns países do Golfo Pérsico.’

Não obstante a maior consciência que se tem hoje dos direitos humanos; as convenções internacionais e leis que proíbem a escravatura – sublinham tanto a mensagem do Papa como o Padre Ballong – a situação de submissão humana no mundo é ainda impressionante :

Segundo a ONU e as suas instituições especializadas como a OIT, Organização Internacional do Trabalho, existem hoje no mundo entre 200 e 250 milhões de escravos adultos, dados aos quais é preciso acrescentar cerca de 250 a 300 milhões de crianças e adolescentes de idade compreendida entre os cinco e 14 anos e que estão a trabalhar. Estes dados cobrem, contudo, situações muito diversas no mundo. De forma geral, pode-se dizer que este fenómeno se caracteriza como deslocação de seres humanos para fins comerciais e de lucro económico’.

Padre Ballong sublinha que muitas pessoas são deslocadas com a força ou através do engano, falsas promessas duma vida melhor, e envolvidas em situações que nunca teriam imaginado e em que o respeito pela sua dignidade é totalmente espezinhada. E as vítimas dessas situações são essencialmente mulheres e crianças :

Para o caso das crianças, segundo a OIT e a INTERPOL, há cinco corredores internacionais de crianças objecto de tráfico para prostituição : da América Latina para a Europa e Medio Oriente;  do Sul e Sudeste asiático para a Europa do Norte e Medio Oriente; da Europa para o mundo árabe; da África para a Europa, Canadá e Medio Oriente e, finalmente, o tráfico nas zonas de fronteira.’

Mas não é só :

Pode-se também acrescentar um fenómeno que existe desde há cerca de dez anos para cá na África Ocidental, onde alguns países vão recrutar crianças de 5, 6 anos para trabalhar no sector doméstico. Por vezes raptam-nas à saída da escola e muitas crianças são encontradas infelizmente na Nigéria, onde são reduzidas ao estado de escravatura’.

O Padre Joseph Ballong terminou a sua intervenção na apresentação do livro da Amilca Ismail sobre a jovem africana vítima de tráfico e escravatura para fins sexuais, respondendo à pergunta se há continuidade ou descontinuidade entre os tráficos e escravaturas de ontem e de hoje?

Continuidade. Pode-se dizer que há antes de mais a negação ou o desprezo da dignidade da pessoa humana criada, mulher e homem, à imagem e semelhança de Deus Pai’ .

Para este historiador togolês, o metro com que qualquer indivíduo ou sociedade deve medir o seu grau de civilização e humanidade é o respeito do ser humano. Mas não obstantes os passos de gigante dados pela humanidade em temos tecnológicos, pode-se dizer o mesmo no que toca ao respeito da dignidade humana? – Perguntou-se.

No que toca à descontinuidade, o Padre Ballong disse que se pode eventualmente evocar os dados muito impressionantes, o modo sistemático, a brutalidade das operações de captura e as condições desumanas de vida e de transporte que acompanharam o Tráfico Transatlântico de Negros, cujos principais protagonistas eram nações cristãs para estabelecer graus de culpabilidade e de gravidade ontem e hoje. Mas recorrer a isso para estabelecer a diferença com os tráficos e escravaturas modernas é, segundo ele, um falso problema, na medida em que quando se trata dos direitos inalienáveis da pessoa humana, os números não têm, a seu ver, muito sentido.

A dignidade humana é única por todo o lado, em toda e qualquer época, embora hoje parece ser mais sentida’’.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://www.news.va/pt/news/tráficos-e-escravaturas-ontem-e-hoje-p-joseph-ball

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O furacão Francisco e a perturbação dos intelectuais

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  
‘No dia 24 de dezembro, foi publicado no Corriere della Sera um artigo de Vittorio Messori com o título ‘As dúvidas sobre a virada do Papa Francisco’.

Neste artigo, o conhecido escritor católico propõe uma ‘reflexão pessoal’, na verdade, ‘uma espécie de confissão’, sobre a ‘imprevisibilidade’ do Papa Francisco, destinada a perturbar ‘a tranquilidade do católico médio’ com uma série de escolhas que poderiam parecer também contraditórias.

Messori enumera alguns aspectos do Pontificado de Bergoglio que, em sua opinião, poderiam causar confusão, para depois concluir, com a humildade própria do crente, que ‘chefe único e verdadeiro da Igreja é aquele Cristo onipotente e onisciente, que sabe melhor do que nós qual seja a melhor escolha para seu temporário representante terreno’ : e isso explica porque, na perspectiva milenária da história, ‘todo Papa desempenhou o seu papel apropriado e, no final, se demonstrou necessário’.

O artigo publicado pelo jornal Milanês é uma oportunidade para entender melhor o pontificado do Papa Francisco.

O primeiro elemento de reflexão é sobre o papel histórico do papa Francisco. No mundo em que nós costumamos chamar de ‘avançado’, os cenários de escravidão, guerra, mercantilização, exploração descontrolada e negação da dignidade humana estão mais presentes do que nunca. E diante de tudo isso, o que fazem os grandes da terra? De tempo em tempo se reúnem e produzem um documento morno, em nome da realpolitik, que termina normalmente com um nada feito.

Só um homem, da varanda da praça de São Pedro e nas principais instâncias internacionais, se atreve a gritar para despertar as consciências, se atreve a falar de globalização da indiferençaacusando os perversos mecanismos do poder. Aquele homem é o Papa Francisco. Totalmente compatível com o ensinamento de Jesus nos Evangelhos.

O Papa Francisco, em sua entrevista para Eugenio Scalfari explicou : ‘Eu acredito em Deus. Não em um Deus católico, não existe um Deus católico, existe Deus. E acredito em Jesus Cristo, na sua encarnação’.

Este conceito representa, talvez, uma negação da Igreja como ‘corpo místico de Cristo’? Absolutamente não. A Igreja mantém o seu carácter de universalidade, mas o Papa Francisco é, ao mesmo tempo, consciente de que as grandes religiões do mundo têm uma base comum. Basta pensar que o cristianismo, o judaísmo e o islamismo são chamados de ‘religiões abraâmicas’ porque vêem em Abraão um pai comum da fé.

Podemos recordar o caso em que, no ‘Sermão da Montanha’, Jesus não quebra a continuidade com Abraão, mas diz : ‘Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; Não vim para abolir, mas para cumprir’ (Mt 5, 17).

Esclarecedora, a tal respeito, a leitura do último livro do padre Antonio Spadaro, Oltre il muro. Dialogo tra un musulmano, un rabbino e um Cristiano, Rizzoli, 2014, (Além do muro. Diálogo entre um muçulmano, um cristão e um rabino), que traz na capa uma frase simbólica do Papa Francisco : ‘Precisa-se da coragem do diálogo. Construir a paz é difícil, mas viver sem a paz é um tormento’.

Messori argumenta que há uma contradição entre o Papa Francisco que rejeita o proselitismo como uma ferramenta para difundir a fé católica e a situação da América Latina, onde há uma perda de católicos para o protestantismo pentecostal.

Mais uma vez, porém, o Pontífice argentino explicou que : ‘A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração de testemunhas’. O significado é claro : a fé não é um ‘produto’ que é vendido com as técnicas de marketing. E o Papa não é uma ‘contabilidade’, que leva em conta o número de fiéis.

Como podemos esquecer a cena maravilhosa narrada no Evangelho, quando Jesus, pressionado pela multidão, pergunta : ‘Quem tocou na minha roupa?’. Jesus não se preocupa com o clamor que o circunda, mas daquela alma individual que se dirige a ele em busca de ajuda.

Dito isso, deve-se notar que a personalidade e o estilo pontifical do papa Francisco estão exercendo uma atração tal que, em todo o mundo, tem havido uma recuperação significativa de consenso com relação à fé católica.

É o ‘populismo’ isto?, se pergunta Messori. Da nossa parte nos limitamos a observar que, na linguagem leiga, haverá sempre uma palavra, um termo, uma definição, para tentar ler com corrosiva ironia as coisas mais belas. Também isso é um sintoma da ‘dor de viver’ contemporânea, contra a qual Francisco lançou seu desafio.

Messori centra-se no compromisso comunicativo da Igreja, definindo ‘terrível’ a responsabilidade de quem hoje deva ‘anunciar o Evangelho’, mostrando que ‘o Cristo não é um fantasma desaparecido e remoto, mas o rosto humano do Deus criador’.

Neste sentido, lembramos de um congresso realizado em Roma na Comunidade de Santo Egídio, por ocasião do Dia Mundial das Comunicações Sociais, 2014. Recordamos em particular, as palavras da jornalista Elisabetta Piqué, que há anos conhece Bergoglio : ‘O Papa Francisco não tem uma estratégia de mídia, nele não há nada estudado, mas, em um mundo desprovido de líderes autênticos, as pessoas gostam dele justamente por isso’.

Acreditamos que estas palavras constituam também uma resposta eficaz às ‘contradições’ aparentes de Bergoglio : um sacerdote sério, humilde, rigoroso e, ao mesmo tempo, animado pelo Evangelho do sorriso, da paixão de estar com as pessoas. Um Pontífice da Igreja Universal, que não perdeu a vocação do ‘sacerdote da rua’.

Precisa-se sair para fora – afirmava o arcebispo Bergoglio no ano 2000 - e falar com as pessoas reunidas nas varandas.  Temos que sair das nossas conchas e dizer que Jesus vive, e afirmá-lo com alegria, mesmo que às vezes pareça um pouco louco’. É o programa que hoje está levando como Pontífice, com o nome de Francisco’.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://www.zenit.org/pt/articles/o-furacao-francisco-e-a-perturbacao-dos-intelectuais

sábado, 27 de dezembro de 2014

Santos Inocentes, Mártires

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘Nesta data se comemora as Crianças Inocentes que o cruel Herodes mandou matar.

Conforme destaca o Evangelho de São Mateus, Herodes chamou os Sumos Sacerdotes para lhes perguntar em que lugar exato ia nascer o rei do Israel, que os profetas haviam anunciado. Eles lhe responderam : ‘Tem que ser em Belém, porque assim o anunciou o profeta Miquéias dizendo : ‘E você, Belém, não é a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que será o pastor de meu povo de Israel’ (Miq. 5, 1).

Então Herodes se propôs averiguar exatamente onde estava o menino, para depois mandar a seus soldados a que o matassem. E fingindo disse aos Reis Magos : - ‘Vão e averiguem a respeito desse menino, quando o encontrarem retornam e me informam isso, para ir eu também a adorá-lo’. Os magos se foram a Belém guiados pela estrela que lhes apareceu outra vez, ao sair de Jerusalém, e cheios de alegria encontraram ao Divino Menino Jesus junto à Virgem Maria e São José; adoraram-no e lhe ofereceram seus presentes de ouro, incenso e mirra. Em sonhos receberam o aviso divino de que não voltassem para Jerusalém e retornaram a seus países por outros caminhos, e o pérfido Herodes ficou sem saber onde estava o recém-nascido. Isto o enfureceu até o extremo, por isso rodeou com seu exército a pequena cidade de Belém, e deu a ordem de matar a todos os garotinhos menores de dois anos, na cidade e arredores.

O próprio evangelista São Mateus afirmará que nesse dia se cumpriu o que tinha avisado o profeta Jeremias : ‘Uma gritaria se ouça em Ramá (perto de Belém), é Raquel (a esposa de Israel) que chora a seus filhos, e não quer consolar, porque já não existem’ (Jer. 31, 15).’


Fontes   :
* Artigo na íntegra de http ://www.acidigital.com/santos/santo.php?n=369

São João, Apóstolo e Evangelista

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


São João teve a imensa sorte de ser o discípulo mais amado por Jesus. Nasceu na Galileia e foi filho de Zebedeu e irmão do São Tiago, o maior. São João era pescador, tal como seu irmão e seu pai, e conforme destacaram os antigos relatos, ao que parecer foi São João, que também foi discípulo de João Batista, um dos dois primeiros discípulos de Jesus junto com o André. A primeira vez que João conheceu Jesus estava com seu irmão São Tiago, e com seus amigos Simão e André remendando as redes à borda do lago; o Senhor passou perto e lhes disse : ‘Venham comigo e os farei pescadores de almas’. Ante este sublime chamado, o apóstolo deixou imediatamente suas redes, com seu pai e o seguiu.

João evangelista conformou junto com o Pedro e São Tiago, o pequeno grupo de preferidos que Jesus levava a todas partes e que presenciaram seus maiores milagres. Os três estiveram presentes na Transfiguração, e presenciaram a ressurreição da filha de Jairo. Os três presenciaram a agonia de Cristo no Horto das Oliveiras; e junto a Pedro se encarregou de preparar a Última Ceia.

A João e seu irmão São Tiago lhes pôs Jesus um apelido : ‘Filhos do trovão’, devido ao caráter impetuoso que ambos tinham. Estes dois irmãos vaidosos e de gênio difícil se tornaram humildes, amáveis e bondosos quando receberam o Espírito Santo. João, na Última Ceia, teve a honra de recostar sua cabeça sobre o coração de Cristo. Foi o único dos apóstolos que esteve presente no Calvário. E recebeu dEle em seus últimos momentos o mais precioso dos presentes. Cristo lhe encomendou que se encarregasse de cuidar da Mãe Santíssima Maria, como se fora sua própria mãe, lhe dizendo : ‘Eis aí a sua mãe’. E dizendo a Maria : ‘Eis aí a seu filho’.

No domingo da ressurreição, foi o primeiro dos apóstolos em chegar ao sepulcro vazio de Jesus. Depois da ressurreição de Cristo, na segunda pesca milagrosa, João foi o primeiro em reconhecer Jesus na borda do lago. Em seguida Pedro lhe perguntou ao Senhor apontando a João : ‘E este o que?’. Jesus lhe respondeu : ‘E se eu quiser que fique até que eu venha, a ti o que?’. Com isto alguns acreditaram que o Senhor tinha anunciado que João não morreria. Mas o que anunciou foi que ficaria vivo por bastante tempo, até que o reinado de Cristo se estendeu muito. E em efeito viveu até o ano 100, e foi o único apóstolo ao qual não conseguiram matar os perseguidores. João se encarregou de cuidar da Maria Santíssima como o mais carinhoso dos filhos.

Com Ela foi se evangelizar Éfeso e a acompanhou até a hora de sua gloriosa morte. O imperador Dominiciano quis matar o apóstolo São João e o fez ser atirado em uma panela de azeite fervente, mas ele saiu de lá mais jovem e mais são do que havia entrado, sendo banido da ilha de Patmos, onde foi escrito o Apocalipse. Depois voltou outra vez a Éfeso onde escreveu o Evangelho.

São João Evangelista é representado com uma águia ao lado, como símbolo da elevada espiritualidade que transmite com seus textos. Nenhum outro livro tem tão elevados pensamentos como seu Evangelho.

Conforme assinala São Jerônimo quando São João era já muito ancião se fazia levar às reuniões dos cristãos e o único que lhes dizia sempre era isto : ‘irmãos, amai-vos uns aos outros’. Uma vez lhe perguntaram por que repetia sempre o mesmo, e respondeu : ‘é que esse é o mandamento de Jesus, e se o cumprimos, todo o resto virá além disso’. São Epifanio assinalou que São João morreu por volta do ano 100 aos 94 anos de idade.’.


Fontes  :
* Artigo na íntegra de http ://www.acidigital.com/santos/santo.php?n=368

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Santo Estêvão, o Protomártir

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘Nos capítulos 6 e 7 dos Atos dos Apóstolos encontramos um longo relato sobre o martírio de Estêvão, que é um dos sete primeiros Diáconos nomeados e ordenados pelos Apóstolos. Santo Estêvão é chamado de Protomártir, ou seja, ele foi o primeiro mártir de toda a história católica. O seu martírio ocorreu entre o ano 31 e 36 da era cristã. Eis a descrição, tirada do livro dos Atos dos Apóstolos :

Estêvão, porém, cheio de graça e poder, fazia prodígios e grandes sinais entre o povo. Levantaram-se então alguns da sinagoga, chamados dos Libertos e dos Cirenenses e dos Alexandrinos, e dos da Cicília e da Ásia e começaram a discutir com Estêvão, e não puderam resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava. Subornaram então alguns homens que disseram : ‘Ouvimo-lo proferir palavras blasfematórias contra Moisés e contra Deus’. E amotinaram o povo e os Anciãos e Escribas e apoderaram-se dele e conduziram-no ao Sinédrio; e apresentaram falsas testemunhas que disseram : ‘Este homem não cessa de proferir palavras contra o Lugar Santo e contra a Lei; pois, ouvimo-lo dizer que Jesus, o Nazareno, destruirá este Lugar e mudará os usos que Moisés nos legou’. E todos os que estavam sentados no Sinédrio, tendo fixado os olhares sobre ele, viram o seu rosto como o rosto de um anjo’.

Num longo discurso, Estêvão evoca a história do povo de Israel, terminando com esta veemente apóstrofe :

Homens de cerviz dura, incircuncisos de coração e de ouvidos, resistis sempre ao Espírito Santo, vós sois como os vossos pais. Qual dos profetas não perseguiram os vossos pais, e mataram os que prediziam a vinda do Justo que vós agora traístes e assassinastes? Vós que recebestes a Lei promulgada pelo ministério dos anjos e não a guardastes’. Ao ouvirem estas palavras, exasperaram-se nos seus corações e rangiam os dentes contra ele. Mas ele, cheio do Espírito Santo, tendo os olhos fixos no céu, viu a glória de Deus e Jesus que estava à direita de Deus e disse : ‘Vejo os céus abertos e o Filho do homem que está à direita de Deus’. E levantando um grande clamor, fecharam os olhos e, em conjunto, lançaram-se contra ele. E lançaram-no fora da cidade e apedrejaram-no. E as testemunhas depuseram os seus mantos aos pés de um jovem, chamado Saulo. E apedrejavam Estêvão que invocava Deus e dizia : ‘Senhor Jesus, recebe o meu espírito’. Depois, tendo posto os joelhos em terra, gritou em voz alta : ‘Senhor, não lhes contes este pecado’. E dizendo isto, adormeceu’.

Santo Estêvão, rogai por nós!’.


Fontes :
* Artigo na íntegra de http://santo.cancaonova.com/santo/santo-estevao-primeiro-martir-de-toda-a-historia-catolica/
  

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Natal do Senhor

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘‘Hoje é a festa do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a terra’. Com estas palavras a Igreja anuncia o grande dia de hoje, que é o aparecimento na terra do Filho de Deus feito homem. O Evangelho de São Lucas conta o Nascimento de Nosso Senhor, como segue : ‘Aconteceu naqueles dias que saiu um edito de Cesar Augusto, para que fosse alistado todo o mundo. Este primeiro alistamento foi feito por Cirino, governador da Síria. E iam todos se alistar, cada um na sua cidade natal. E subiu também José da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de Davi, para se alistar com sua esposa Maria, que estava grávida. Aconteceu, porém, que estando ali, se completaram os dias em que devia dar à luz. E deu à luz o Filho primogênito e envolveu-o em paninhos e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem. E naquela mesma região estavam uns pastores, vendo alternadamente e guardando, nas vigílias da noite, o rebanho.

E eis que se lhes apresentou um Anjo do Senhor e a claridade de Deus cercou-os de resplendor, e tiveram grande temor. O Anjo, porém , disse-lhes : ‘Não temais; porque eis que vos anuncio um grande gozo, e que o  será para todo o povo. É que hoje vos nasceu na cidade de Davi o Salvador, que é o Cristo Senhor. E este é o Sinal para vós : Achareis um menino envolto em paninhos e posto numa manjedoura’. E subitamente apareceu o Anjo com uma multidão da milícia celeste, louvando a Deus e dizendo : ‘Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens de boa vontade’. E aconteceu que depois que os Anjos se retiraram para o céu, os pastores falavam entre si, dizendo : ‘Passemos até Belém e vejamos que é isto que sucedeu, que é que o Senhor nos mostrou. E vieram a toda pressa e acharam Maria e José e o Menino posto na manjedoura. E vendo isto, conheceram a verdade do que se lhes havia dito acerca deste Menino. E todos que os ouviram falar, se admiraram do que lhes  haviam referido os  pastores’.

O Nascimento de Nosso Senhor está cheio de mistérios. Considera em primeiro lugar, porque o Filho Unigênito de Deus quis vir ao mundo em tanta pobreza, em lugar tão desprezível, na estação de inverno, nas trevas da noite e longe da sociedade. Porque não quis celebrar seu aparecimento na capital, em Jerusalém, em um dos muitos palácios que lá havia, rodeado de todo conforto? São Bernardo diz :

Não penseis que tudo isto tivesse acontecido por acaso. A criança não escolhe a hora e o dia do nascimento, porque para escolher lhe falta liberdade e uso da razão. Com Jesus Cristo não se dá isto. Ele, Deus feito homem, podendo determinar tempo e Lugar, escolheu justamente o que era agradável à natureza humana e à Santíssima Virgem. Porque procedeu assim? Os Santos Padres respondem : Primeiro : para nos mostrar mais claramente seu grande amor e incitar-nos a amá-lo também. Se Cristo tivesse vindo numa estação mais agradável; se tivesse escolhido a magnificência e comodidade de um palácio, sem dúvida haveríamos de reconhecer-lhe o amor para conosco que agora mais ainda realça, vendo-o nascer em pobreza, numa gélida noite e numa estrebaria. Segundo : Cristo o Senhor, já desde o nascimento quis mostrar-nos o caminho para o céu e ensinar-nos pelo exemplo o que mais tarde nos disse  pela palavra. Não só o Menino Jesus como também a gruta, o presépio, os paninhos nos dizem que o caminho do céu é áspero e íngreme, e não há outro para nós, se nos queremos aproveitar para o aparecimento de Nosso Senhor. A concupiscência da carne e dos olhos, a soberba da vida são as raízes de todos os pecadores e as causadoras da desgraça dos homens.

A pobreza do Menino Jesus ensina-nos a necessidade da humildade, da cruz e do sofrimento, como meios de combater os vícios, de desapegar-nos do mundo, e servir a Deus com toda a pureza. Tudo isto nos mostra e exemplo de Cristo no presépio. Dizem os Santos Padres, que o presépio de Belém é o púlpito, a tribuna do Deus Menino.

Os ensinamentos de Nosso Senhor devem ser por nós imitados, quer nos tenham sido transmitidos por palavras, quer pelo exemplo. Do pobre nascimento de Cristo devemos aprender duas coisas : Primeiro, amemos o Menino de Belém. E segundo, tornemo-nos semelhantes  ao Menino de Belém!

Demos ao menino Jesus o nosso mais sincero e ardente amor, e imitemo-lo nas virtudes da pobreza e da humildade. Ao Menino Jesus é aplicável a palavra que mais tarde o Divino Mestre, quando pôs um menino no meio dos Apóstolos disse : ‘Se não vos converterdes e não vos tornardes semelhantes às crianças, não entrareis no reino dos céus’.

Eis o que o Menino Jesus nos ensina ao nascer : desprezar os bens do mundo, para alcançar os bens eternos.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://www.paginaoriente.com/santos/natal2512.htm

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Consolação e esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  

‘O Papa tem uma palavra para todos : pastores; jovens, idosos, organizações carititativas, cristãos em geral, membros doutros grupos religiosos e étnicos, comunidade internacional... a todos apelando a não resignar-se à situação de conflito, mas a dar, isso sim,  o próprio contributo para que se possa construir o mosaico da paz.

Seguindo as pegadas de São Paulo na sua carta aos Coríntios, o Papa Franscisco situa a suamissiva no espírito da consolação e esperança que nos vêm de Deus e que se manifesta mais uma vez, de forma inefável, na comemoraçao do nascimento de Cristo.

O Papa diz acompanhar todos os dias as notícias que chegam do Oriente Médio, onde aflições e tribulações não têm faltado, infelizmente, mas mostra-se particularmente preocupado por aquilo a que define de ‘organização terrorista, de dimensões antes inconcebíveis, que comete toda a espécie de abusos e práticas indignas do homem’, atingindo de forma particular os cristãos expulsos das suas terras, onde viviam desde o tempo dos apóstolos. Um sofrimento que brada a Deus, apelando ao compromisso de todos por meio da oração e iniciativas.

A todos, sem distinção de religião ou grupo étnico, o Papa exprime, em seu nome e da Igreja em geral ‘unidade e solidariedade’. E fá-lo pensando de modo particular ‘nas crianças, nas mães, nos idosos, nos deslocados e refugiados, em quantos padecem a fome, naqueles que têm de enfrentar a dureza do inverno sem um teto para se protegerem’.

Franciso encoraja à unidade em Cristo, nossa consolação e nossa esperança, uma unidade mais do que nunca necessária. E recorda os ‘pastores e fiéis, a quem foi pedido o sacrifício da vida, nos últimos tempos, muitas vezes pelo simples fato de serem cristãos’; as ‘pessoas sequestradas, incluindo bispos ortodoxos e sacerdotes de diferentes Ritos’, pedindo a Deus para que possam regressar sãs e salvas às suas comunidades.

O Papa indica depois alguns sinais do ‘Reino de Deus’ no meio dessas hostilidades e sofrimentos :

Antes de mais, alegra-se pela a comunhão vivida com fraternidade e simplicidade entre católicos, ortodoxos e fiéis de outras Igrejas na região. Um ‘ecumenismo do sangue’ – diz - exprimindo o desejo de que possam sempre ‘dar testemunho de Jesus através das dificuldades. A vossa presença é preciosa para o Oriente Médio’ – escreve Francisco na sua carta em que agradece aos cristãos pela sua ‘perservença’; cristãos que ele define de ‘fermento na massa’, um pequeno rebanho, mas com ‘grande responsabilidade’ na terra onde nasceu e donde irradiou o cristianismo.

Outro sinal do ‘Reino de Deus’ indicado pelo Papa é ‘o esforço por colaborar com pessoas doutras religiões, com os judeus e com muçulmanos’. Francisco recorda que não há outro caminho senão o do diálogo inter-religioso. O diálogo é um ‘serviço à justiça e uma condição necessária para a tão desejada paz’ – remata.

O Papa encoraja aos cristãos a ajudarem a maioria muçulmana que vive à sua volta a dar, com coragem e firmeza, testemunho de um Islã como religião de paz e respeitoso dos direitos humanos. Encoraja-os também a usufruir do direito de participar plenamente na vida e crescimento das suas nações, a serem construtores de paz, reconciliação e desenvolvimento, a construirem pontes segundo o espírito das bem-Aventuranças e a colaborarem com as autoridades nacionais e internacionais.

E aqui exprime a sua gratidão aos pastores, desde os patriarcas às religiosas pela sua presença, acompanhamento e solicitude junto das comunidades, recordando-lhes que a presença dos pastores junto dos seu rebanho é importante sobretudo nos momentos de dificuldade.

Aos jovens, o Papa manda um abraço, convidando-os a não terem medo, nem vergonha de ser cristãos. Aos idosos, memória do povo, exprime a sua estima, esperando que a essa memória seja semente de crescimento para as novas gerações. O seu apreço vai também para a Cáritas e outras organizações caritativas católicas de vários países, enaltecendo de modo particular o esforço na educação para a cultura do encontro, respeito e dignidade de cada ser humano.

Assegurando a ajuda de toda a Igreja, em oração e todos os meios à disposição, o Papa repudia mais uma vez o tráfico de armas, recordando que o que é necessário são projetos de vida. E incita a Comunidade internacional a acudir os povos do Oriente Médio, ‘promovendo a paz por meio da negociação e da atividade diplomática’.

Nos rastos da sua viagem ao Oriente Médio e do encontro de oração no Vaticano com os Presidentes de Israel e da Palestina, o Papa convida a continuar a rezar pela paz no Oriente Médio.

E conclui recordando ‘às queridas irmãs e irmãos cristãos do Oriente Médio’ que têm uma ‘grande responsabilidade’ e que não estão sozinhos a enfrentá-la. Exprime também o desejo de ‘ter a graça de ir pessoalmente’ visitá-los e confortá-los.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.news.va/pt/news/consolacao-e-esperanca-papa-aos-cristaos-do-medio
  

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Dicionário online da História Cultural da Igreja na América Latina

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘O Pontifício Conselho para a Cultura apresentou neste sábado o Dicionário online da História Cultural da Igreja na América Latina. Apresentamos a seguir, a íntegra do comunicado de imprensa do referido Dicastério :

Este Dicionário de História Cultural da Igreja na América Latina nasce por iniciativa do Conselho Pontifício da Cultura, que convocou em Lima uma reunião de representantes das conferências episcopais da América Latina e Caraíbas em Julho de 2006. Sentia-se a necessidade de oferecer ao público interessado na história da formação do Continente latino americano, um instrumento de fácil consulta, no qual se manifestasse a contribuição inquestionável que o fato cristão deu à identidade, unidade e originalidade da América Latina.

Naquela reunião foram-se perfilando cada vez mais os objetivos e o método. Convidava-se cada um a apresentar os contributos que haviam de ajustar-se a esta dupla modalidade : informações sobre fundos históricos pouco conhecidos de arquivos e bibliotecas e obras especificas sobre o assunto. Foram recebidas, lidas e comentadas indicações sobre possíveis artigos ou verbetes para o dicionário e várias comunicações que tocavam os mais diversos temas.

Relativamente a obras gerais, seja de análise como de síntese, existem histórias eclesiásticas e culturais gerais ou para cada pais, como também uma rica bibliografia especifica, no campo tanto civil como eclesiástico, dicionários bibliográficos e obras miscelâneas de natureza diversa, mas falta um dicionário que recolha o papel do cristianismo no forjar do continente. Está claro que a historiografia cultural da Igreja na América Latina atualmente tem diante de si um campo vasto e complexo. Preparar um dicionário de fácil consulta para todos os públicos é uma empresa árdua, mas necessária. Por isso, resultava aconselhável uma obra bem classificada por artigos ou verbetes e dividida segundo alguns critérios de extensão (artigos maiores , intermédios e menores) tivesse presente o titulo que se queria dar ao Dicionário : Cultural da Igreja na América Latina, que, sem renunciar a sínteses dos grandes temas que pudessem apresentar-se, se caracterizava, porém, por um trabalho de confronto do material bibliográfico e de ordenação dos dados históricos já possuídos e elaborados.

O projeto inicial partiu do P. Bernard Ardura, premostratense, então secretário do P. C. da Cultura, sustentado pelo então Presidente Cardeal Paul Poupard. O projeto será logo apoiado pelo atual Presidente Sua Eminência o Cardeal Gianfranco Ravasi. Procurou-se em cada país latino-americano, através da Comissão da Cultura de cada Conferência Episcopal, um coordenador que se responsabilizasse por encontrar os colaboradores para os temas relativos ao seu país.

Resulta evidente que coordenar artigos e verbetes sobre argumentos muito diversos, dispersos por toda a área da geografia latino-americana e das Caraíbas, e alguns outros países como Espanha e Portugal ou os Estados Unidos da América, por razões óbvias dos seus vínculos históricos com o continente latino-americano, não é empresa fácil, vindo a constituir-se a dita circunstância um dos motivos que explicam a lentidão com que a obra procedeu, e de não poucas falhas que podem encontrar-se.


O titulo

Existem, aqui e acolá no mundo de língua espanhola e portuguesa, títulos como Enciclopédia da Religião católica; Dicionário de Ciências Eclesiásticas, Biografia eclesiástica, Dicionários Biográficos de personalidades nos diversos países, etc. Com estes dicionários ou enciclopédias coincide o nosso Dicionário ao exigir para os seus artigos a natural ordem alfabética e ao cingir-se a temas e verbetes de conteúdo eminentemente cultural e eclesiástico, pelo menos em alguma das facetas. O alcance do titulo, Dicionário de História Cultural da Igreja na América Latina resulta complexo e presta-se a que possam fixar-se ao dito conteúdo diferentes metas. O Dicionário tem por objeto o papel e o influxo que o Cristianismo teve e continua a ter na criação da História Cultural do Continente Latino-americano. Não é um Dicionário da História Cultural genérica do Continente, mas específica e relativa ao que o titulo indica. Logicamente, em muitos dos seus artigos entram temas, fatos e personagens que de uma maneira ou de outra tiveram relação de forma positiva ou negativa com esses aspeto histórico especifico do Dicionário. Em concreto, o principal problema que deriva de semelhante titulação é se o Dicionário deva alcançar também temas mais amplos da história cultural do Continente. Não é este o objetivo do Dicionário. Por isso se impuseram critérios restritivos. Só em proporção muito pequena se poderão tocar temas do mundo cultural mais amplo por terem que ver direta ou indiretamente com o objetivo assinalado pelo Dicionário nos seus conteúdos específicos.

Quanto às línguas do Dicionário tendo presente a composição linguística majoritária da América Latina optou-se por respeitar as línguas usadas pelos autores dos verbetes : a espanhola e portuguesa. Depressa se viu a conveniência de apresentar o Dicionário em rede telemática em lugar da impressão em papel, que levaria um largo tempo de preparação e de espera. Assim o Dicionário irá crescendo com o tempo e alimentando-se com artigos que irão confluindo nele como afluentes de um rio. Estes novos artigos e verbetes seguirão os mesmos critérios de todo o Dicionário, mas poderão ser corrigidos e melhorados na medida em que os seus autores e a direção editorial o considerem oportuno. A intervenção nos artigos apenas será feita pelos autores e pela direção editorial do Dicionário. As correções metodológicas serão da responsabilidade da direção editorial. Nenhuma pessoa alheia poderá por isso intervir diretamente no mesmo, ainda que o Dicionário acolha as sugestões convenientes para a sua melhoria e as colaborações com novos artigos sobre argumentos específicos.


O conteúdo

O Dicionário não pretende fazer investigação de primeira mão sobre cada um dos artigos. O conjunto do Dicionário deveria oferecer uma panorâmica elementar sobre o tema de cada artigo, nos diversos setores da História Cultural da Igreja na América Latina. O que se intenta é isso : recolher em breves resumos os dados históricos já conhecidos e elaborados sobre fatos, instituições, personagens e assuntos culturais e eclesiásticos relacionados com o objetivo do Dicionário. Com estas distinções, mesmo sendo óbvias, pretende-se congregar os aspectos : os não biográficos, os temáticos e os biográficos. Contudo, a insistência será mais sobre os assuntos histórico-culturais-eclesiásticos da História Cultural da Igreja na América Latina.

Interessa por em relevo que a principal preocupação na hora de recolher os ditos assuntos nos correspondentes artigos se polariza para critérios que incluam não só os grandes acontecimentos e situações extraordinárias da Igreja latino-americana do ponto de vista cultural, mas também a sua vida testemunhal no campo da santidade reconhecida e da missão evangelizadora, da reflexão teológica, assim como as suas instituições ordinárias culturais e de caráter social. Com isto propõe-se que nenhuma manifestação cultural apreciável dessa Igreja, ao longo dos seus mais de quinhentos anos de vida, fique segregada. Não poucos artigos constituem pequenos tratados que dariam para bons ensaios; por isso, na sua redação entraram por vezes vários colaboradores, tratando um mesmo argumento sob diversos aspetos. Outros artigos não passam de um mero intento de recopilação ordenada, e que não pode, nem em quantidade nem em qualidade, aspirar a resultados definitivos. Quanto às biografias encontramo-nos perante varias soluções : faz-se referência a pessoas cujo peso na marcha da Igreja latino-americana foi claramente específico e de influência notória positiva ou negativa.

Ao encerrar as nossas observações sobre o conteúdo do Dicionário, deve-se assinalar que sendo um Dicionário ‘aberto’ muitos outros temas específicos poderão ser nele incluídos. Tudo depende também do interesse que possa suscitar a iniciativa, tratando-se de algo totalmente voluntário e gratuito sobre uma abundante e rica história de temas, assuntos e pessoas da História Cultural da Igreja na América Latina’.


Fontes :
* Artigo na íntegra de http://www.news.va/pt/news/apresentado-dicionario-online-da-historia-cultural

sábado, 20 de dezembro de 2014

'A paz de Cristo reine nos vossos Corações' (Col 3, 15) - Terceira pregação do Advento de 2014

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)


A paz, fruto do Espírito.


1.      A paz, fruto do Espírito

Depois de refletir sobre a paz como dom de Deus em Cristo Jesus para toda a humanidade e sobre a paz como tarefa pela qual trabalhar, vamos agora falar da paz como fruto do Espírito. São Paulo coloca a paz em terceiro lugar entre os frutos do Espírito : ‘O fruto do Espírito’, diz ele, ‘é amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio’ (Gl 5, 22).

Descobrimos o que são os ‘frutos do Espírito’ ao analisar, justamente, o contexto dessa ideia. O contexto é o da luta entre a carne e o espírito, isto é, entre o princípio que regula a vida do homem velho, cheio de concupiscências e desejos terrenos, e o que regula a vida do homem novo, guiado pelo Espírito de Cristo. Na expressão ‘frutos do Espírito’, ‘Espírito’ não indica o Espírito Santo em si mesmo, mas o princípio da nova vida, ou ‘o homem que se deixa guiar pelo Espírito’.

Diferentemente dos carismas, que são obra exclusiva do Espírito, que os dá a quem quer e quando quer, os frutos são o resultado de uma colaboração entre a graça e a liberdade. Eles são, portanto, o que hoje queremos dizer por virtude, se dermos a essa palavra o sentido bíblico de um agir habitual ‘segundo Cristo’, ou ‘segundo o Espírito’, em vez do sentido filosófico aristotélico de um agir habitual ‘de acordo com a reta razão’. Além disso, os dons do Espírito são diferentes de pessoa para pessoa, enquanto os frutos do Espírito são os mesmos para todos. Nem todos na Igreja podem ser apóstolos, profetas, evangelistas; mas todos indistintamente, do primeiro ao último, podem e devem ser caridosos, pacientes, humildes, pacíficos.

A paz fruto do Espírito é, portanto, diferente da paz como dom de Deus e da paz como tarefa pela qual trabalhar. Ela indica a condição habitual (habitus), o estado de ânimo e o estilo de vida de quem, mediante o esforço e a vigilância, chegou a certa pacificação interior. A paz fruto do Espírito é a paz do coração. E é dessa coisa tão bela e tão desejada que vamos falar hoje. Ela é diferente, sim, da tarefa de sermos pacificadores, mas nos ajuda maravilhosamente a atingir este objetivo. O título da mensagem do papa João Paulo II para a Jornada Mundial da Paz de 1984 era ‘A paz nasce de um coração novo’. E Francisco de Assis, ao mandar os seus frades para todo o mundo, lhes recomendava : ‘A paz que anunciais com a boca, tende-a primeiro nos vossos corações’. (1).


2. A paz interior na tradição espiritual da Igreja

Alcançar a paz interior ou do coração foi um empenho de todos os grandes buscadores de Deus ao longo dos séculos. No Oriente, a começar pelos Padres do deserto, esse empenho se concretizou no ideal da hesychia, da quietude, que ousou propor uma perspectiva altíssima, se não até sobre-humana : retirar da mente todo pensamento, retirar da vontade todo desejo, retirar da memória toda lembrança, para deixar à mente só o pensamento de Deus, à vontade só o desejo de Deus e à memória só a lembrança de Deus e de Cristo (a mneme Theou). Uma luta titânica contra os pensamentos (logismoi), não só os maus, mas também os bons. Exemplo extremo desta paz obtida com uma guerra feroz veio a ser, na tradição monástica, o monge Arsênio, que, à pergunta ‘o que devo fazer para me salvar?’, ouviu a resposta de Deus : ‘Arsênio, foge, cala e mantém-te em quietude’ (literalmente, pratica a hesychia) (2).

Mais tarde, essa corrente espiritual dará espaço à prática da oração do coração, ou oração ininterrupta, ainda hoje amplamente praticada na cristandade oriental e da qual ‘Os contos de um peregrino russo’ representam a expressão mais fascinante. No início, porém, ela não se identificava com essa prática. Era uma maneira de se chegar à perfeita tranquilidade do coração; não uma tranquilidade vazia, um fim em si mesma, mas uma tranquilidade plena, semelhante à dos bem-aventurados, um começar a viver na terra a condição dos santos no céu.

A tradição ocidental perseguiu o mesmo ideal, mas de outras maneiras, acessíveis tanto àqueles que praticam a vida contemplativa quanto aos que praticam uma vida ativa. A reflexão começa com Agostinho. Ele dedica um livro inteiro da Cidade de Deus a refletir sobre as diversas formas da paz, dando a cada uma delas uma definição que fez escola até a nossa época, incluindo a da paz como ‘tranquillitas ordinis’, a tranquilidade da ordem. Mas é principalmente com o que diz nas Confissões que ele influenciou os traços do ideal da paz do coração.

Ele dirige a Deus, no início do livro e como que de passagem, palavras destinadas a ter uma ressonância imensa em todo o pensamento posterior : ‘Fizeste-nos para ti e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti(3). Mais adiante, ele ilustra esta afirmação com o exemplo da gravidade.

Na boa vontade está a nossa paz. Todo corpo, devido ao seu peso, tende ao lugar que lhe é próprio. Um peso não puxa somente para baixo, mas para o lugar que lhe é próprio. O fogo tende ao alto, a pedra ao chão, impulsionados ambos pelo seu peso a buscar o seu lugar… O meu peso é o meu amor; ele me leva para onde eu me levo(4).

Enquanto estamos nesta terra, o lugar do nosso repouso é a vontade de Deus, o abandono aos seus quereres. ‘Não se acha descanso se não se consente à vontade de Deus sem resistência(5). Dante Alighieri resumirá este pensamento agostiniano em seu célebre verso : ‘Na sua vontade está a nossa paz(6).

Só no céu é que esse lugar de repouso será Deus mesmo. Agostinho termina, por isto, a sua abordagem do tema da paz fazendo um elogio apaixonado à paz da Jerusalém do céu, que vale a pena ler para nos inflamarmos nós também do seu desejo :

Há também a paz final (…) Naquela paz não é necessário que a razão domine os impulsos, porque eles não existirão, mas Deus dominará o homem, a alma espiritual o corpo e será tão grande a serenidade e a disponibilidade à submissão quanto é grande a delícia de viver e dominar. E então, em todos e em cada um, esta condição será eterna e teremos a certeza de que é eterna e, por isso, a paz de tal felicidade, ou seja, a felicidade de tal paz, será o sumo bem(7).

A esperança desta paz eterna marcou toda a liturgia dos fiéis defuntos. Expressões como ‘paz’, ‘na paz de Cristo’, ‘descanse em paz’ são as mais frequentes nos túmulos dos cristãos e nas preces da Igreja. A Jerusalém celeste, com alusão à etimologia do nome, é definida como ‘beata pacis visio(8), bem-aventurada visão de paz.


3. O caminho da paz

A concepção de Agostinho sobre a paz interior como adesão à vontade de Deus é confirmada e aprofundada pelos místicos. Meister Eckhart escreve : ‘Nosso Senhor diz : ‘Somente em mim tereis a paz’ (cf. Jo 16,33). Quanto mais se penetra em Deus, mais se penetra na paz. Quem já tem o seu ‘eu’ em Deus tem a paz; quem tem o seu ‘eu’ fora de Deus não tem a paz(9). Não se trata, pois, apenas de aderir à vontade de Deus, mas de não ter outra vontade se não a de Deus, de morrer de todo à própria vontade. A mesma coisa se lê, na forma de experiência vivida, em Santa Ângela de Foligno : ‘A divina bondade, de duas vontades, fez só uma, de modo que não posso querer a não ser como Deus quer (…) Não me encontro mais na condição costumeira, mas fui conduzida a uma paz em que estou com Ele e contente de tudo(10).

Outro desenvolvimento, mais ascético do que místico, é o de Santo Inácio de Loyola com a sua doutrina da ‘santa indiferença(11). Ela consiste em colocar-se em estado de total disponibilidade para acolher a vontade de Deus, renunciando, desde o começo, a toda preferência pessoal, como uma balança pronta a se inclinar para o lado que tiver o maior peso. A experiência da paz interior se torna assim o critério principal em todo discernimento. Deve ser considerada em conformidade com o querer de Deus a escolha que, após prolongada ponderação e oração, for acompanhada de maior paz do coração.

Nenhuma corrente espiritual saudável, porém, nem no Oriente, nem no Ocidente, jamais pensou que a paz do coração seja uma paz barata e sem esforço. A seita do ‘livre Espírito’ tentou argumentar o contrário na Idade Média, assim como o movimento quietista no século XVII, mas ambos foram condenados pela hierarquia e pela consciência da Igreja. Para manter e aumentar a paz do coração é preciso domar, momento a momento, em especial no início, uma revolta : a da carne contra o espírito.

Jesus tinha dito de mil maneiras : ‘Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo’; ‘quem ama a própria vida a perderá, mas quem perder a sua vida a encontrará’ (Mc 8, 34). Existe uma falsa paz que Jesus diz que veio para tirar, e não para trazer à terra (cf. Mt 10, 34). Paulo traduzirá tudo isso em uma espécie de lei fundamental da vida cristã :

Os que vivem segundo a carne gostam do que é carnal; os que vivem segundo o espírito apreciam as coisas que são do espírito. Ora, a aspiração da carne é a morte, enquanto a aspiração do espírito é a vida e a paz. Porque o desejo da carne é hostil a Deus, pois a carne não se submete à lei de Deus, nem o pode. Os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus (...) Se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis’ (Rm 8, 5-13).

A última frase contém um ensinamento importantíssimo. O Espírito Santo não é a recompensa para os nossos esforços de mortificação, mas o que os torna possíveis e frutuosos; não só no final, mas também no início do processo : ‘Se, mediante o Espírito, fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis’. Neste sentido é que se diz que a paz é fruto do Espírito; é o resultado do nosso esforço, possibilitado pelo Espírito de Cristo. Uma mortificação voluntarista e confiante demais em si mesma pode se tornar, ela própria, uma obra da carne (e se tornará com frequência).

Entre aqueles que ilustraram ao longo dos séculos este caminho para a paz do coração, destaca-se, pela concretude e pelo realismo, o autor da Imitação de Cristo. Ele imagina uma espécie de diálogo entre o Divino Mestre e o discípulo, como entre um pai e seu filho :

Mestre : ‘Meu filho, hei de ensinar-te o caminho da paz e da verdadeira liberdade’.

Discípulo : ‘Faze, Senhor, como dizes; de bom grado escutarei teus ensinamentos’.

Mestre : ‘Cuida, meu filho, de fazer a vontade dos outros em vez da tua própria. Escolhe sempre ter menos que mais. Procura sempre ocupar o lugar mais baixo e ser inferior a todos. Deseja sempre, e ora, para que em ti se faça inteiramente a vontade de Deus. O homem que assim procede entra no reino da paz e da tranquilidade’.

Outro meio sugerido ao discípulo é evitar a vã curiosidade :

Filho, não sejas curioso; não te afanes inutilmente. Que te importa aquilo ou isto? ‘Tu, segue-me’ (Jo 21,22). Que te importa que tal pessoa seja assim ou diferente, ou que a outra aja e diga isso ou aquilo? Não terás que responder pelos outros, mas renderás contas de ti mesmo. Eis que eu conheço a todos, vejo tudo o que acontece sob o sol e sei a condição de cada um : o que pensa, o que quer, a que mira a sua intenção. Tudo deve ser, portanto, colocado em minhas mãos. E tu, mantém-te em paz segura, deixando os outros se agitarem a seu critério : o que eles fizerem recairá sobre eles, pois a mim não podem enganar(12).


4. ‘Paz porque em ti tem confiança’

Sem a pretensão de substituir esses meios ascéticos tradicionais, a espiritualidade moderna enfatiza outros meios mais positivos para se manter a paz interior. O primeiro é a confiança e o abandono em Deus. ‘Tu lhe assegurarás a paz, paz porque em ti tem confiança’, lemos em Isaías (26, 3). Jesus, no Evangelho, motiva o seu convite a não temermos e a não nos inquietarmos com o amanhã no fato de que o Pai Celestial sabe do que precisamos, ele que alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo (cf. Mt 6, 5).

Esta é a paz de que Santa Teresa do Menino Jesus se tornou mestra e modelo. Um exemplo heroico desta paz que vem da confiança em Deus também vem do mártir do nazismo Dietrich Bonhöffer. Preso e em aguardo da execução, ele escreveu alguns versos que se tornaram um hino litúrgico em muitos países anglo-saxônicos :

Envoltos em maravilha por forças amigas, esperamos confiantes o porvir.

Deus está conosco de noite e de manhã, estará conosco em cada novo dia (13).

Um estudioso franciscano, Eloi Leclerc, em seu livro A sabedoria de um pobre, relata como Francisco de Assis encontrou a paz num momento de profunda perturbação. Ele estava entristecido com a resistência de alguns ao seu ideal e sentia o peso da responsabilidade pela numerosa família que Deus lhe tinha confiado. Partiu de Verna e foi a São Damião para se encontrar com Clara. Clara o escutou e, para dar-lhe ânimo, apresentou um exemplo.

Suponhamos que uma de nossas irmãs viesse pedir-me desculpas por ter quebrado um objeto. Bem, eu lhe faria, sem dúvida, uma observação e lhe daria, como de costume, uma penitência. Mas se ela viesse dizer-me que havia posto fogo ao convento e que tudo foi queimado ou quase, creio que, neste caso, eu nada teria a dizer. Eu me surpreenderia perante um evento maior que eu. A destruição do convento é um fato grande em demasia para que eu possa ficar por ele profundamente perturbada. O que o próprio Deus construiu não pode basear-se na vontade ou no capricho de uma criatura humana. O edifício de Deus se alicerça em bases muito mais sólidas’.

Francisco compreendeu a lição e respondeu :

O porvir desta grande família religiosa que o Senhor confiou aos meus cuidados constitui um fato importante demais para que possa depender de mim sozinho e das minhas frágeis forças e para que eu fique por ele perturbado. É um fato de Deus. Bem o disseste. Mas reza para que esta palavra floresça em mim como semente de paz(14).

O Pobrezinho retornou resserenado para junto dos seus, repetindo para si mesmo ao longo do caminho : ‘Deus existe e isto basta! Deus existe e isto basta!’. Não é um episódio historicamente documentado, mas interpreta bem, no estilo dos Fioretti, um momento da vida de Francisco.

Nós nos aproximamos do Natal e eu gostaria de destacar o que considero o mais eficaz para conservarmos a paz do coração : a certeza de sermos amados por Deus. ‘Paz na terra aos homens por Deus amados’, ou, literalmente, ‘Paz na terra aos homens do (divino) beneplácito (eudokia)’ (Lc 2, 14). A Vulgata traduzia esse termo como ‘boa vontade’ (bonae voluntatis), entendendo com ela a boa vontade dos homens, ou os homens de boa vontade. Mas é uma interpretação errada, hoje reconhecida por todos como tal, embora, por deferência à tradição, o Glória da Missa continue dizendo, pelo menos em alguns idiomas, ‘e paz na terra aos homens de boa vontade’. As descobertas de Qumran trouxeram a prova definitiva. ‘Homens, ou filhos, da benevolência’ é como são chamados, em Qumran, os filhos da luz, os eleitos da seita (15). Trata-se dos homens que são objeto da benevolência divina.

Para os essênios de Qumran, ‘o divino beneplácito’ discrimina; aplica-se somente aos adeptos da seita. No Evangelho, ‘os homens da divina benevolência’ são todos os homens, sem exceção. É como dizer ‘os homens nascidos de mulher’ : não se quer dizer que alguns nasceram de mulher e outros não; o que se quer é caracterizar a todos os homens de acordo com a sua maneira de vir ao mundo. Se a paz fosse concedida aos homens pela sua ‘boa vontade’, seria limitada a poucos, àqueles que a merecem; mas, como ela é concedida pela boa vontade de Deus, pela graça, é oferecida a todos.

Assueta vilescunt’, diziam os latinos; as coisas repetidas muitas vezes perdem vigor, e isto acontece, infelizmente, também com as palavras de Deus. Temos que fazer com que isto não aconteça neste Natal. As palavras de Deus são como fios elétricos desencapados. Se os tocamos, levamos um choque; já se não houver corrente ou estivermos de luvas isolantes, podemos manejá-los como quisermos e não receberemos choque algum. O poder e a luz do Espírito estão sempre em ato, mas depende de nós recebê-los, por meio da fé, do querer e da oração. Quanta força, quanta novidade continham aquelas palavras, ‘Paz na terra aos homens amados pelo Senhor’, quando foram proclamadas pela primeira vez! Devemos renovar o nosso ouvido, como o ouvido dos pastores que as ouviram pela primeira vez e, ‘sem demora’, se puseram a caminho.

São Paulo nos indica um modo de superar todas as nossas ansiedades e reencontrar toda vez a paz de coração, mediante a certeza de sermos amados por Deus. Escreve ele :

Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou, como não nos dará também com ele todas as coisas? (...) Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? (...) Mas, em todas essas coisas, somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou’ (Rm 8, 31-37). 

A perseguição, os perigos, a espada não são uma lista abstrata ou imaginária; são os motivos de angústia que ele experimentou, de fato, na vida; ele os descreve amplamente na segunda carta aos coríntios (cf. 2 Cor 11, 23). O apóstolo os revisa na mente e constata que nenhum é forte o suficiente para resistir à comparação com o pensamento do amor de Deus. Implicitamente, o Apóstolo nos convida a fazer o mesmo : olhar para a nossa vida tal como ela se apresenta, trazer à tona os medos e motivos de tristeza aninhados nela e que não nos deixam aceitar serenamente a nós mesmos : aquele complexo, aquele defeito físico ou moral, aquele insucesso, aquela lembrança dolorosa; expor tudo isso à luz do pensamento de que Deus nos ama e concluir com o Apóstolo : ‘Em todas estas coisas, posso ser mais do que vencedor, pela virtude daquele que me amou’.


Da sua vida pessoal, o Apóstolo passa, logo em seguida, a considerar o mundo ao seu redor. Ele escreve :

Pois estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem outra qualquer criatura nos poderá apartar do amor que Deus nos testemunha em Cristo Jesus, nosso Senhor’ (Rm 8, 37-39).

Ele observa o ‘seu’ mundo, com os poderes que o tornavam ameaçador : a morte com o seu mistério, a vida presente com as suas seduções, as forças astrais ou infernais que incutiam tanto terror ao homem velho. Somos convidados, nós também, a fazer o mesmo : olhar, à luz do amor de Deus, para o mundo que nos rodeia e que nos faz ter medo. O que Paulo chama de ‘altura’ e ‘profundidade’ são para nós o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, o universo e o átomo. Tudo está pronto para nos esmagar; o homem é fraco e sozinho num universo muito maior do que ele e, além disso, ainda mais ameaçador agora, com as atuais descobertas científicas, as guerras, as doenças incuráveis, o terrorismo... Mas nada disso pode nos separar do amor de Deus. Deus existe e isto basta!

Santa Teresa de Ávila nos deixou uma espécie de testamento, que nos convém repetir toda vez que precisarmos reencontrar a paz do coração : ‘Nada te perturbe, nada te assuste; tudo passa, Deus não muda; a paciência consegue tudo; a quem tem Deus, nada falta. Só Deus basta(16).

Que o Natal de nosso Senhor, Santo Padre, veneráveis padres, irmãos e irmãs, seja realmente para nós, como dizia São Leão Magno, ‘o natal da paz(17)! Das três dimensões da paz : a paz entre o céu e a terra, a paz entre todos os povos e a paz em nossos corações.’


Fonte  :
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(1) Lenda dos três companheiros, 58 (Fontes Franciscanas, 1469)
(2) Apophtegmata Patrum, Arsênio 1-3 (J.C. GUY, ed., I padri del deserto. Così dissero, così vissero, Milano 1997, 29).
(3) Santo Agostinho, Confissões, I, 1.
(4) Ib. XIII, 9.
(5) Santo Agostinho, Adnotationes in Iob, 39
(6) Dante Alighieri, Paraíso, 3, v.85
(7) Santo Agostinho, A cidade de Deus, XIX, 27.
(8) Hino do ofício da dedicação da Igreja.
(9) Meister Eckhart, Prédicas, 7 (Ed. J. Quint, Deutsche Werke, I,. Stuttgart 1936, pág. 456)
(10) Il libro della Beata Angela, VII (ed. Quaracchi, 1985, p. 296).
(11) Cf. G. Bottereau, Indifference, em ‘Dictionnaire de Spiritualité ,vol 7,1688 ss.
(12) Imitação de Cristo, III, 23-24.
(13) Von guten Mächten wunderbar geborgen /erwarten wir getrost, was kommen mag.
Gott ist mit uns am Abend und am Morgen / und ganz gewiss an jedem neuen Tag.
(14) E. Leclerc, La sagesse d’un pauvre, Paris, Desclée de Brouwer,  22e éd. 2007.
(15) Cf Inni, I QH, IV, 32 s, (XI, 9) (I manoscritti di Qumran, organização de L. Moraldi, UTET, Turim 1971, págs. 386 e 428).
(16) ’Nada te turbe, nada te espante, todo se pasa, Dios no se muda; la paciencia todo lo alcanza; quien a Dios tiene nada le falta. Solo Dios basta’.
(17) São Leão Magno, Sermo de Nativitate Domini, XXXVI, 5 (PL 54, 215