*Artigo de Padre Joseph B. Ballong-Wen-Mewuda,
historiador
‘Nos
rastos da mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz 2015 que chama a atenção para o flagelo do
tráfico humano e da escravatura no mundo de hoje, apresentamos na rubrica ‘África Global’ alguns aspectos
relacionados com isso, procurando detectar as linhas de continuidade ou
descontinuidade entre os tráficos humanos e escravaturas de ontem e de hoje.
Fazê-mo-lo com a ajuda do Padre Joseph Ballong, historiador africano,
originário do Togo.
O
dia 1 de Janeiro é considerado pela Igreja Dia Mundial da Paz e por essa ocasião tornou-se tradição o Papa
emitir, com alguma antecedência, uma mensagem sobre a qual reflectir a fim de
promover a paz no mundo.
Desta
vez, o Papa Francisco chama a atenção para as diversas formas de tráficos e
escravaturas humanas que afectam a nossa época, intitulando a sua mensagem ‘Nunca mais escravos, mas sim irmãos’...
Nela,
o Papa começa por fazer notar que o ser humano, criado à imagem e semelhança de
Deus, é um ser relacional que se realiza no contexto de relações interpessoais
inspiradas pela justiça e a caridade; para o desenvolvimento do ser humano é
fundamental que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e
autonomia. Infelizmente – prossegue o Papa – o flagelo generalizado da
exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e vocação do
ser humano a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a
caridade. Isto acontece - sublinha o
Papa - porque o pecado leva o ser humano a afastar-se de Deus e a recusar a
comunhão com o outro, traduzindo-se tudo isso na cultura da servidão, com
cortejo de males que dela resultam. Só a conversão aos ensinamentos de Deus
Pai, nos pode livrar do pecado.
O
Papa vai adiante nas oito páginas da sua mensagem, analisando as múltiplas faces
da escravatura de ontem e de hoje, indicando algumas das suas causas profundas
(a principal das quais a recusa de humanidade no outro), o compromisso comum
que devemos assumir para enfrentar este flagelo, e terminando com o convite a
globalizarmos a fraternidade em vez da escravidão e da indiferença.
Como
complemento à leitura desta mensagem e para ajudar na interpretação de algumas
publicações que, não raro, identificam pura e simplesmente os tráficos e
escravaturas de ontem com os de hoje, sem fazer as devidas distinções, o
historiador togolês, Padre Joseph Ballong, membro da Rádio Vaticano, foi
convidado a explicar se há alguma continuidade ou diferença entre os tráficos e
as escravaturas de ontem e de hoje. Foi em Novembro passado, na Sala Marconi da
Rádio Vaticano, no contexto da apresentação do romance ‘Efémera Liberdade’ da moçambicana Amilca Ismail. Um livro que conta
a história duma jovem trazida da África para a Itália e posta no circuito da
prostituição com o seu dramático percurso e desfecho.
Ouçamos
então o P. Ballong que começou por fazer uma breve introdução história sobre o Tráfico
Transatlantico Negreiro :
‘A escravatura presente de forma não importante
nas sociedades africanas muito antes do contacto com os europeus, consiste em
exercitar sobre a uma pessoa qualquer tipo de poder ou então um conjunto de
poderes ligados ao direito de propriedade. Nas sociedades africanas onde
existia a escravatura, a maior parte dos escravos – pouco numerosos –
ocupavam-se do trabalho doméstico e acabavam por ser considerados como filhos
da família, podendo nalguns casos, tornar-se herdeiros dos bens familiares.
Pelo contrário, o tráfico é o comércio
dos Negros (homens, mulheres e crianças), raptados na África Ocidental, central
e austral, vendidos como escravos e transportados principalmente para a América
a partir do fim do século XV. Esse comércio praticado pela maior parte das
nações européias, americanas, pelos árabes com a cumplicidade activa dos
próprios africanos, sobretudo os chefes, durou até ao fim do século XIX e
marcou fortemente a evolução das sociedades da África negra.
Os principais protagonistas europeus
deste comércio indigno de qualquer consciência humana, aboliram-no
respectivamente em 1833 (Reino Unido) em 1860 (Estados Unidos da América) e
1848 (França). Mas o tráfico clandestino e ilegal continuou nalgumas regiões :
o Brasil, por exemplo, aboliu oficialmente o tráfico em 1850 e a escravatura em
1889. Estão a ver, portanto, que há uma diferença entre tráfico e escravatura.
Depois do fim do tráfico atlântico, um outro
tráfico continuou entre a ilha de Zanzibar e o mundo árabe. Alexandria, por exemplo,
é, em meados do século XIX, um dos principais mercados de escravo. Entre 1800 e
1880 cerca de um milhão, seiscentos e cinquenta mil pessoas foram vítimas do
tráfico trans-sahariano’.
**
Depois
desta breve introdução histórica o Padre Joseph Ballong passou a fazer a
distinção entre tráfico e escravatura :
‘Como se vê o tráfico é diferente da
escravatura. Mas o tráfico precisa da escravatura, ou então precede a
escravatura. Para que uma pessoa seja propriedade de uma outra pessoa e seja
vendida como simples mercadoria, transformada em objecto de troca comercial, é
necessário que seja reduzida, ou pelo menos considerada como escrava. Pode
existir escravatura sem tráfico como se viu no Estados Unidos no século XIX. O tráfico
transatlântico é, portanto, diferente da noção contemporânea de tráfico de
seres humanos.
O tráfico, ou os tráficos dos Negros
foi, ou foram um fenómeno histórico de grande amplitude em razão do número de
vítimas – entre 11 e 42 milhões, segundo as diferentes estimativas dos
historiadores. Há variações nos números, mas quando se trata de um ser humano,
ao qual é negada a própria dignidade, o facto é muito grave em si, porque se
nega nesse ser humano, diria, a imagem e semelhança de Deus. Então, neste caso
os números e os dados não têm nenhum significado.’
O
nosso historiador recordou ainda que esse tipo de tráfico utilizou numerosos
métodos de submissão da pessoa humana, formas desumanas de transporte em longas
distâncias, pois que iam abastecer-se em África e iam vender nas Américas… Era
um comércio que comportava muitos riscos, entre os quais o da revolta dos
escravos durante a travessia e não só; requeria também muitos investimentos
financeiros, por isso, quem o fazia eram pessoas próximas do poder constituído.
‘Tráfico de seres humanos hoje : antes de
mais existe ainda a forma clássica de escravatura. Não devemos iludir-nos!
Embora tenham sido abolidas em todos os
países há mais de 20 anos, o tráfico e a escravatura tradicionais existem ainda
hoje sob diversas formas. Em alguns países a escravatura sobrevive sob a forma
clássica. É o caso da Mauritânia, onde foi oficialmente abolida a 5 de Julho de
1980. Mas segundo dados estatísticos, em 1994, 11 milhões de habitantes, isto é
45% da população deste país africano, eram escravos. Existem também mercados de
escravos no Sudão e nalguns países do Golfo Pérsico.’
Não
obstante a maior consciência que se tem hoje dos direitos humanos; as
convenções internacionais e leis que proíbem a escravatura – sublinham tanto a
mensagem do Papa como o Padre Ballong – a situação de submissão humana no mundo
é ainda impressionante :
‘Segundo a ONU e as suas instituições
especializadas como a OIT, Organização Internacional do Trabalho, existem hoje
no mundo entre 200 e 250 milhões de escravos adultos, dados aos quais é preciso
acrescentar cerca de 250 a 300 milhões de crianças e adolescentes de idade
compreendida entre os cinco e 14 anos e que estão a trabalhar. Estes dados
cobrem, contudo, situações muito diversas no mundo. De forma geral, pode-se
dizer que este fenómeno se caracteriza como deslocação de seres humanos para
fins comerciais e de lucro económico’.
Padre
Ballong sublinha que muitas pessoas são deslocadas com a força ou através do
engano, falsas promessas duma vida melhor, e envolvidas em situações que nunca
teriam imaginado e em que o respeito pela sua dignidade é totalmente
espezinhada. E as vítimas dessas situações são essencialmente mulheres e
crianças :
‘Para o caso das crianças, segundo a OIT e a
INTERPOL, há cinco corredores internacionais de crianças objecto de tráfico
para prostituição : da América Latina para a Europa e Medio Oriente; do Sul e Sudeste asiático para a Europa do
Norte e Medio Oriente; da Europa para o mundo árabe; da África para a Europa,
Canadá e Medio Oriente e, finalmente, o tráfico nas zonas de fronteira.’
Mas
não é só :
‘Pode-se também acrescentar um fenómeno que
existe desde há cerca de dez anos para cá na África Ocidental, onde alguns
países vão recrutar crianças de 5, 6 anos para trabalhar no sector doméstico.
Por vezes raptam-nas à saída da escola e muitas crianças são encontradas
infelizmente na Nigéria, onde são reduzidas ao estado de escravatura’.
O Padre
Joseph Ballong terminou a sua intervenção na apresentação do livro da Amilca
Ismail sobre a jovem africana vítima de tráfico e escravatura para fins
sexuais, respondendo à pergunta se há continuidade ou descontinuidade entre os
tráficos e escravaturas de ontem e de hoje?
‘Continuidade. Pode-se dizer que há antes de
mais a negação ou o desprezo da dignidade da pessoa humana criada, mulher e
homem, à imagem e semelhança de Deus Pai’ .
Para
este historiador togolês, o metro com que qualquer indivíduo ou sociedade deve
medir o seu grau de civilização e humanidade é o respeito do ser humano. Mas
não obstantes os passos de gigante dados pela humanidade em temos tecnológicos,
pode-se dizer o mesmo no que toca ao respeito da dignidade humana? –
Perguntou-se.
No que
toca à descontinuidade, o Padre Ballong disse que se pode eventualmente evocar
os dados muito impressionantes, o modo sistemático, a brutalidade das operações
de captura e as condições desumanas de vida e de transporte que acompanharam o Tráfico
Transatlântico de Negros, cujos principais protagonistas eram nações cristãs
para estabelecer graus de culpabilidade e de gravidade ontem e hoje. Mas
recorrer a isso para estabelecer a diferença com os tráficos e escravaturas
modernas é, segundo ele, um falso problema, na medida em que quando se trata
dos direitos inalienáveis da pessoa humana, os números não têm, a seu ver,
muito sentido.
‘A dignidade humana é única por todo o lado,
em toda e qualquer época, embora hoje parece ser mais sentida’’.
Fonte :
* Artigo na íntegra de http
://www.news.va/pt/news/tráficos-e-escravaturas-ontem-e-hoje-p-joseph-ball
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