terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Quaresma : Outono do Tempo Litúrgico

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Paulo Augusto Tamanini,
Hieromonge


‘Na natureza há quatro grandes estações que, de modo emblemático, caracterizam os dias, as noites, a temperatura, as temporadas de chuvas ou a falta delas. Cada uma destas estações é marcada por singularidades que fazem diferir uma das outras e traz benefícios a toda a Criação. A primavera, dita como a estação mais linda, nos presenteia com os aromas das flores que despontam das mais diferentes espécies. Os pássaros compõem a sinfonia da natureza, cada qual com seu acorde específico, dando aos nossos ouvidos a doce sensação de encantamento. No verão, a temperatura é mais elevada, o ciclo das chuvas é ocasional, o sol se levanta mais cedo e se põe tardiamente. O outono é quando as plantas deixam cair suas folhas velhas ao chão para dar lugar, mais tarde, às novas que virão. Os galhos secos, sem vida, adormecem ao solo depois de terem cumprido sua função singular. A chegada do inverno é anunciada pelo silenciar dos pássaros, pela ausência do verde nas árvores, já quase sem folhas. A temperatura vai bruscamente declinando, principalmente à noite, e assim permanece até perto do meio-dia. O anoitecer dá o ar de sua graça mais cedo e as chuvas finas são acompanhadas pelo assoviar dos ventos gélidos.

A Igreja, da mesma forma, tem seus grandes ciclos, cada qual com suas características e finalidades. Usando desta metodologia, talvez imitando a Natureza, a Igreja nos ensina as verdades da fé, sobre a qual devemos guiar nossa vida espiritual. Por analogia, diria que estamos vivendo o Tempo da Quaresma, como a mãe natureza vive seu outono. É o momento do desvencilhar-se, é o momento de nos libertar e de deixar cair por terra o ‘homem velho’ para dar lugar ao ‘homem novo’. Homem novo este que virá acompanhado com o perfume da ressurreição e os cantos dos anjos que entoam o solene ‘Aleluia primaveril’.

É preciso ter coragem para abandonar nossas ‘folhas velhas’ e nossos ‘galhos secos’ que teimam em permanecer em nós, mesmo sem vida. Estão agarrados a nós como se nos pertencessem de maneira definitiva. Lutam por ficar e não se deixam facilmente vencer. Na natureza, entra em cena o vento que ajuda as plantas a se libertar daquilo que não é mais necessário. Ventos fortes, às vezes, é preciso, para levar as folhas e os galhos secos que ‘insistiam’ em permanecer agarrados à arvore.

Nós cristãos, como na natureza, temos um forte aliado : é o Espírito Santo de Deus. Ele nos auxilia na tarefa tão árdua de discernir o momento certo de nos desprender das coisas antigas para que haja em nós possibilidade de regeneração. É necessário rezar e pedir a Deus que envie, nesta Quaresma, o seu Espírito Santo para cumprir a missão de levar para longe o que nos atrapalha e nos suga. Da mesma forma que as folhas e os galhos secos não resistem à força dos ventos, não há pecado em nós, não há vício em nós que resista à força do Espírito de Deus em nossas vidas.

As folhas secam e os galhos, com elas, perdem a vitalidade, pois os nutrientes já não lhes chegam. A planta faz uma ‘abstenção’, pratica um ‘jejum’. O jejum, neste tempo de Quaresma, tem seu papel primordial : ele fará com que somente o necessário em nós seja o bastante. A Quaresma é o tempo do ‘basta-me o necessário’; na Quaresma não deve existir lugar para a fartura, para o excesso, para o exagero. Pelo contrário, é o tempo marcado pela modéstia, pelo comedimento, pela prudência. Onde há exagero há risco da ostentação. Onde a ostentação se instala os vícios e os pecados se fartam e se alojam. O Jejum e a abstenção de determinados alimentos, antes mesmo de serem vistos como ‘privações’ ou ‘proibições’ que nos vem do exterior, devem ser considerados como preciosos indícios da presença de Deus na vida do fiel que tem a sincera intenção de se libertar do ‘homem velho’, mas não encontra força para isso. Deus age, em sua providência, nas mais diversas maneiras e, no jejum, que fazemos de forma livre e consciente, a Providência Divina age e dá condições para que o fiel se fortifique espiritualmente e seja um vencedor em seu intento. O jejum e abstenção podem até enfraquecer nosso corpo, contudo fortalece nosso espírito e dá a ele o sustento indispensável para vencermos o pecado.

Contemplemos a Natureza e aprendamos dela as mais belas lições de vida que ela nos revela a cada instante. Ela espera seu tempo certo para agir; tem paciência e confia. Assim também, o Espírito Santo nos tornará pessoas mais pacientes e confiantes, pela Graça que nos vem do Alto.

É preciso estar atento às vozes de Deus em nosso cotidiano. Ele nos fala de maneira paterna e amorosamente. Não esbraveja e muito menos altera sua voz. Para ouvir a voz de Deus é imprescindível calar, é necessário emudecer. A Quaresma é o momento do ouvir Deus e cessar a ‘tagarelice’ de nossa língua; é o momento de cessar a inquietude dos afazeres e nos colocar em atitude de oração. Observemos as plantas como agem no outono : parecem estar adormecidas, parecem contemplar o Criador numa postura silenciosa e ouvinte. Uma das maneiras mais eficazes de se ouvir Deus é deixar somente que Ele fale, através do suave vento que toca o ouvido de nossas almas.

As plantas, obedientes à natureza, deixam que se cumpram nelas a fase do desapego às folhas velhas; elas não relutam, não vão contra seu destino. É preciso que aprendamos isso também das árvores : sejamos obedientes à vontade de Deus em nossas vidas sem que haja resistência de nossa parte, frente à ação da Providência. Sejamos obedientes à vontade do Pai e confiemos em seu amor e em sua ação restauradora.

Por mais que caiam as folhas e os ramos secos das árvores, ainda restam-lhe o caule e as raízes. O caule permanece de pé, ‘olhando’ para o céu, recebendo do sol a luz e os elementos necessários para sua vida. As raízes continuam a retirar do solo o substrato para alimentar a planta. Por mais que caiam por terra nossos vícios, nossos pecados; por mais que vão para longe aquilo que não faz parte de nossa essência de Filhos de Deus, permanecem em nós, intocáveis, a imagem e semelhança divinas que olham para os céus, retirando do sol de nossa fé, as luzes necessárias para a vida espiritual. Por mais que as ‘folhas’ e os ‘galhos’ sejam levados de nossa existência, por graça e obra de Deus, nossas raízes continuarão a tirar da Tradição da Igreja, dos Santos Padres, da Vida dos Santos e da Sagrada Escritura, os elementos nutritivos elementares para permanecermos firmes, confiantes e cheios de vida. Nós somos cristãos, contudo não somos os únicos. Antes de nós muitos testemunharam sua fé, levando uma vida cheia de Deus, testemunhando a Ressurreição d’Aquele que é Verdade e Vida. Construíram sua história baseados na fé e deixaram o seu legado para as gerações que depois vieram. Foram exemplos de vida a serem seguidos, pelo seu testemunho de coragem, solidez e perseverança. É nesses modelos de vida que nossas ‘raízes’ buscam nutrientes para alimentar o ‘caule’ de nossa existência. É também permanecendo fiel à Igreja, conhecendo os preciosos escritos dos Padres e lendo as páginas da Sagrada Escritura que permaneceremos firmes, apesar das tempestades da vida. As raízes não buscam somente nutrientes sólidos, mas a água que é condição indispensável para sua sobrevivência. Precisamos beber da fonte, saciando assim nossa sede de Deus. A água é a oração. Assim como sem ela uma planta não sobrevive, nossa fé sem oração, não resistirá. Um cristão sem oração é inconcebível. Uma planta que não se nutre de água é impensável. Mesmo aquelas que vivem em ambientes de deserto, retiram do ar, durante à noite, sua água. A quaresma é o tempo propício para a oração e não devemos ignorá-lo.

As raízes cumprem outro papel preponderante : fixar a planta no chão. Um cristão é alguém que vive no mundo, apesar de não pertencer a ele. É neste mundo, no espaço de sua casa, de sua família, de sua vizinhança que ele dá testemunho de sua fé. A árvore é mais fiel que nós. Uma vez fixada à terra, permanece ali, enfrentando as mais torrenciais das chuvas, os mais impetuosos dos ventos; ali ficará até sua morte. Nós, ao contrário, por motivos variados, sentimos necessidade, vez por outra, de fugir de nosso ambiente, quando as coisas parecem ficar difíceis. É nas maiores dificuldades que somos convidados a testemunhar nossa fé em Deus. O ato de fugir não deve fazer parte das atitudes de um cristão, ante as intempéries da vida.

A Natureza é um dos sinais visíveis e sensíveis da constante e permanente ação providencial de Deus que continua a nos ensinar grandes verdades. Basta-nos sermos discípulos atentos ao que o Mestre nos ensina, também através da sábia natureza.’


Fonte :


sábado, 25 de fevereiro de 2017

Papa Francisco : Mensagem para a Quaresma 2017

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘...Texto integral da Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma 2017, sobre o tema ‘A Palavra é um dom. O outro é um dom’ :

Amados irmãos e irmãs!

A Quaresma é um novo começo, uma estrada que leva a um destino seguro : a Páscoa de Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte. E este tempo não cessa de nos dirigir um forte convite à conversão : o cristão é chamado a voltar para Deus «de todo o coração» (Jl 2, 12), não se contentando com uma vida medíocre, mas crescendo na amizade do Senhor. Jesus é o amigo fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando pecamos, espera pacientemente pelo nosso regresso a Ele e, com esta espera, manifesta a sua vontade de perdão (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).

A Quaresma é o momento favorável para intensificarmos a vida espiritual através dos meios santos que a Igreja nos propõe : o jejum, a oração e a esmola. Na base de tudo isto, porém, está a Palavra de Deus, que somos convidados a ouvir e meditar com maior assiduidade neste tempo. Aqui queria deter-me, em particular, na parábola do homem rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31). Deixemo-nos inspirar por esta página tão significativa, que nos dá a chave para compreender como temos de agir para alcançarmos a verdadeira felicidade e a vida eterna, incitando-nos a uma sincera conversão.


1.      O outro é um dom

A parábola inicia com a apresentação dos dois personagens principais, mas quem aparece descrito de forma mais detalhada é o pobre : encontra-se numa condição desesperada e sem forças para se solevar, jaz à porta do rico na esperança de comer as migalhas que caem da mesa dele, tem o corpo coberto de chagas, que os cães vêm lamber (cf. vv. 20-21). Enfim, o quadro é sombrio, com o homem degradado e humilhado.

A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata duma pessoa anônima; antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase de família, torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua condição concreta ser a duma escória humana (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).

Lázaro ensina-nos que o outro é um dom. A justa relação com as pessoas consiste em reconhecer, com gratidão, o seu valor. O próprio pobre à porta do rico não é um empecilho fastidioso, mas um apelo a converter-se e mudar de vida. O primeiro convite que nos faz esta parábola é o de abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido. A Quaresma é um tempo propício para abrir a porta a cada necessitado e nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada um de nós encontra-o no próprio caminho. Cada vida que se cruza conosco é um dom e merece aceitação, respeito, amor. A Palavra de Deus ajuda-nos a abrir os olhos para acolher a vida e amá-la, sobretudo quando é frágil. Mas, para se poder fazer isto, é necessário tomar a sério também aquilo que o Evangelho nos revela a propósito do homem rico.


2.     O pecado cega-nos

A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que vive o rico (cf. v. 19). Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se reservava para os deuses (cf. Jr 10, 9) e os reis (cf. Jz 8, 26). O linho fino era um linho especial que ajudava a conferir à posição da pessoa um caráter quase sagrado. Assim, a riqueza deste homem é excessiva, inclusive porque exibida habitualmente : «Fazia todos os dias esplêndidos banquetes» (v. 19). Entrevê-se nele, dramaticamente, a corrupção do pecado, que se realiza em três momentos sucessivos : o amor ao dinheiro, a vaidade e a soberba (cf. Homilia na Santa Missa, 20 de setembro de 2013).

O apóstolo Paulo diz que «a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro» (1 Tm 6, 10). Esta é o motivo principal da corrupção e uma fonte de invejas, contendas e suspeitas. O dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto de se tornar um ídolo tirânico (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 55). Em vez de instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a solidariedade com os outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao mundo inteiro, numa lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz.

Depois, a parábola mostra-nos que a ganância do rico fá-lo vaidoso. A sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e efémera da existência (cf. ibid., 62).

O degrau mais baixo desta deterioração moral é a soberba. O homem veste-se como se fosse um rei, simula a posição dum deus, esquecendo-se que é um simples mortal. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio eu e, por isso, as pessoas que o rodeiam não caiem sob a alçada do seu olhar. Assim o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira : o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.

Olhando para esta figura, compreende-se por que motivo o Evangelho é tão claro ao condenar o amor ao dinheiro : «Ninguém pode servir a dois senhores : ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24).


3.     A Palavra é um dom

O Evangelho do homem rico e do pobre Lázaro ajuda a prepararmo-nos bem para a Páscoa que se aproxima. A liturgia de Quarta-Feira de Cinzas convida-nos a viver uma experiência semelhante à que faz de forma tão dramática o rico. Quando impõe as cinzas sobre a cabeça, o sacerdote repete estas palavras : «Lembra-te, homem, que és pó da terra e à terra hás de voltar». De fato, tanto o rico como o pobre morrem, e a parte principal da parábola desenrola-se no Além. Dum momento para o outro, os dois personagens descobrem que nós «nada trouxemos ao mundo e nada podemos levar dele» (1 Tm 6, 7).

Também o nosso olhar se abre para o Além, onde o rico tece um longo diálogo com Abraão, a quem trata por «pai» (Lc 16, 24.27), dando mostras de fazer parte do povo de Deus. Este detalhe torna ainda mais contraditória a sua vida, porque até agora nada se disse da sua relação com Deus. Com efeito, na sua vida, não havia lugar para Deus, sendo ele mesmo o seu único deus.

Só no meio dos tormentos do Além é que o rico reconhece Lázaro e queria que o pobre aliviasse os seus sofrimentos com um pouco de água. Os gestos solicitados a Lázaro são semelhantes aos que o rico poderia ter feito, mas nunca fez. Abraão, porém, explica-lhe : «Recebeste os teus bens na vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado» (v. 25). No Além, restabelece-se uma certa equidade, e os males da vida são contrabalançados pelo bem.

Mas a parábola continua, apresentando uma mensagem para todos os cristãos. De facto o rico, que ainda tem irmãos vivos, pede a Abraão que mande Lázaro avisá-los; mas Abraão respondeu : «Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam» (v. 29). E, à sucessiva objeção do rico, acrescenta : «Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos» (v. 31).

Deste modo se patenteia o verdadeiro problema do rico : a raiz dos seus males é não dar ouvidos à Palavra de Deus; isto levou-o a deixar de amar a Deus e, consequentemente, a desprezar o próximo. A Palavra de Deus é uma força viva, capaz de suscitar a conversão no coração dos homens e orientar de novo a pessoa para Deus. Fechar o coração ao dom de Deus que fala, tem como consequência fechar o coração ao dom do irmão.

Amados irmãos e irmãs, a Quaresma é o tempo favorável para nos renovarmos, encontrando Cristo vivo na sua Palavra, nos Sacramentos e no próximo. O Senhor – que, nos quarenta dias passados no deserto, venceu as ciladas do Tentador – indica-nos o caminho a seguir. Que o Espírito Santo nos guie na realização dum verdadeiro caminho de conversão, para redescobrirmos o dom da Palavra de Deus, sermos purificados do pecado que nos cega e servirmos Cristo presente nos irmãos necessitados. Encorajo todos os fiéis a expressar esta renovação espiritual, inclusive participando nas Campanhas de Quaresma que muitos organismos eclesiais, em várias partes do mundo, promovem para fazer crescer a cultura do encontro na única família humana. Rezemos uns pelos outros para que, participando na vitória de Cristo, saibamos abrir as nossas portas ao frágil e ao pobre. Então poderemos viver e testemunhar em plenitude a alegria da Páscoa.

Vaticano, 18 de outubro de 2016.

Festa do Evangelista São Lucas

FRANCISCO’


Fonte :


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Em fuga das guerras e carestias para reencontrar a esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘Um casal em fuga da Eritreia, uma mulher emigrada do Peru para o Chile e uma família ítalo-portuguesa que se tornaram empresários de sucesso no Canadá levaram nesta manhã de terça-feira 21 de fevereiro o seu testemunho à Sala Clementina do Palácio apostólico no Vaticano, narrando ao Papa Francisco experiências de vida em movimento constante. O Pontífice recebeu-os em audiência juntamente com os outros 250 participantes no sexto fórum internacional Migrações e paz, sobre o tema : «Integração e desenvolvimento. Da reação à ação».

Organizada pelo Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral, em colaboração com os missionários escalabrinianos e a Konrad Adenauer Stiftung, os dois dias de trabalho têm como objetivo principal propor sugestões concretas para as políticas e os programas em matéria migratória, identificando as melhores práticas europeias e americanas.

Fiori Temanu, eritreia ortodoxa, atravessou o mar Vermelho para chegar ao Iémen, de onde – por causa da guerra – fugiu para a Jordânia para depois chegar a Itália. É casada com o concidadão Amanuel Adndehaymanot, que desembarcou em Lampedusa através da rota mediterrânea.

Hoje têm um filho, Adonai, e juntos quiseram dirigir um premente apelo ao Pontífice a fim de que se abram «canais legais de entrada nos países de acolhimento, a fim de que outros requerentes de asilo não arrisquem a vida nas mãos dos traficantes ou atravessando o deserto e o mar. Todos estamos cientes – concluíram – de quantos ainda hoje vivem o drama da emigração forçada».

E é uma história de migração com um final feliz também a de Ofelia Cueva, peruana que vive no Chile desde há vinte anos. «Era uma professora – recordou – quando em 1997 deixei o meu país para ir trabalhar como doméstica em Santiago. Dado que os proprietários não permitiam que eu ficasse em casa nos fins de semana, passava o tempo lendo livros nas estações de metropolitano. Um sábado em que fazia muito frio, vendo muitos migrantes no metropolitano, decidi organizar-me para me ocupar deles nos fins de semana». Precisamente como o santo bispo Giovanni Battista Scalabrini, que teve a inspiração para a sua missão numa estação ferroviária milanesa, também a de Ofelia ‘migrante com os migrantes’ foi – como ela próprio disse – um dom «da providência divina, pois no dia seguinte na paróquia escalabriniana da capital do Chile o sacerdote que coordenava a pastoral dos migrantes» confiou-lhe a direção dos alojamentos do novo centro integrado de apoio aos migrantes (Ciami) que os missionários estavam implementando em Santiago. E assim «desde o mês de março de 2000 – acrescentou – trabalho no Ciami para oferecer alojamento, refeições, assistência jurídica, formação profissional, emprego e acompanhamento psicológico e religioso. Em dezessete anos acolhemos mais de oito mil mulheres emigradas no Chile e mais da metade delas, graças ao nosso centro, encontraram um trabalho estável».

Por fim, Vilma Cortellucci narrou a própria história de migrante no Canadá. Italiana, casou-se com Manuel, nascido em Portugal que emigrou primeiro para a Argentina e, em seguida, foi para Toronto. E juntamente com o irmão Nicola e a cunhada Rosanne abriram uma bem sucedida empresa de construção. Mas não obstante o bem-estar alcançado nunca esqueceram as suas origens, colaborando ativamente com a paróquia dos escalabrinianos na metrópole canadense. A ponto que atualmente desempenham cargos dirigenciais nos Scalabrini international migration network de Nova Iorque. «Apoiamos – explicaram – os missionários na sua defesa e no seu compromisso na assistência a migrantes e refugiados do mundo inteiro, sobretudo na América Latina, Haiti, África e Ásia».’


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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Iraque : Cristãos erguem grande cruz como sinal da vitória sobre a escuridão do ISIS

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘No dia 18 de fevereiro, o Patriarca católico caldeu de Bagdá (Iraque), Dom Louis Sako, visitou a aldeia de Telekuf /Tesqopa, libertada do Estado Islâmico (ISIS), onde celebrou a primeira Missa depois de dois anos e meio na igreja de São Jorge e também abençoou a grande cruz que foi colocada em uma colina como sinal da vitória da fé cristã sobre a escuridão dos jihadistas.

Em sua homilia, Dom Louis Sako indicou que este acontecimento é ‘a primeira centelha de luz que brilha em todas as cidades da planície de Nínive depois da escuridão do ISIS, que durou aproximadamente dois anos e meio’.

Esta é a nossa terra e o nosso lar’, disse aos fiéis. Também assinalou que este é o momento de recuperar a esperança e que as pessoas regressem aos seus povoados para começar uma nova fase.

O Patriarca indicou que os cristãos demonstram ao mundo que as forças da escuridão, que causaram destruições e devastaram a sua terra, são efêmeras e que a Igreja de Cristo, embora esteja sofrendo, está construída sobre a rocha.

Depois da Missa, todas as pessoas se dirigiram a uma colina localizada nos arredores da cidade. Dom Sako abençoou a grande cruz que foi erguida em meio aos fogos de artifício e entre gritos de ‘Vitória, vitória! Vitória por aqueles que escolheram a fé e pelos que regressam!’.

Em seguida, o Patriarca católico manifestou que esta cruz anunciará ‘ao mundo inteiro que esta é a nossa terra, nascemos e morreremos nela. Nossos ancestrais foram enterrados nesta terra pura e vamos ficar aqui para preservá-los com todas as nossas forças e pelas nossas futuras gerações’.

É um apelo sincero e grande para o retorno e a reconstrução. Aderimo-nos à nossa terra, ao nosso futuro na terra de nossos ancestrais. Aqui podemos estar orgulhosos da nossa história e podemos ter a concessão de todos os nossos direitos’, disse Dom Louis Sako.

Antes da celebração da Missa, chegou uma delegação a Telekuf /Tesqopa para avaliar o estado dos danos e, deste modo, pedir o apoio de organizações internacionais para a reconstrução. A igreja de São Jorge foi limpa pelos voluntários da organização de ajuda francesa SOS Chrétiens d'Orient.

A colocação das cruzes se tornou um gesto comum desde que o exército iraquiano começou a ofensiva para recuperar a cidade de Mosul, o baluarte do ISIS no Iraque.

Em cada povoado libertado, construíram cruzes de madeira e colocaram-nas nos tetos das igrejas e das casas.

Os muçulmanos também participaram destes acontecimentos. Na semana passada, um grupo de jovens muçulmanos se juntou a limpeza de uma igreja dedicada à Virgem Maria, localizada no leste de Mosul, libertada pelo exército iraquiano.

Esta ação faz parte de uma campanha que busca recordar a convivência religiosa que existia na cidade em 2014, antes da ocupação dos jihadistas.’


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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Uma semente de solidariedade lançada no deserto das Arábias

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
*Artigo do Padre Olmes Milani,
Missionário Scalabriniano


‘Quando o ser humano se determina para o bem, não há obstáculo intransponível. Até poucas décadas atrás ninguém pensaria que numa desolada região desértica, ao sul da Península Arábica, pudessem surgir jardins, parques, bosques, e até agricultura. Contudo, as limitações impostas pelo clima e as extensas regiões arenosas sem vida se renderam diante da criatividade e capacidade humanas. Assim o deserto árido e inóspito, além da areia e pedras, hospeda muitas variedades de árvores locais e peregrinas. Até mesmo aves migratórias fazem escala aqui antes de chegar ao destino final de sua viagem.

As transformações havidas nesta região fazem despontar uma pergunta.  Se no campo das atividades econômica e urbanística foi possível transformar radicalmente uma região na qual nada se esperava, por que não tentar plantar uma semente que desperte a esperança em dias em que os seres humanos possam unir ideias, crenças e mãos para produzir a solidariedade e a paz?

O terreno para receber a semente da esperança está sendo preparado com amor e unindo as pessoas da Igreja de Santa Maria, em Dubai, como parte das celebrações do Jubileu de Ouro de sua fundação.

Sob a liderança do ‘Grupo Samaritanos’, a comunidade internacional da  Igreja de Santa Maria, foi mais longe. Está sendo organizada a ‘Marcha para a Esperança’ cuja finalidade é angariar fundos para pagar o tratamento de pessoas portadoras de câncer, sem condições de arcar com os altos custos da medicina.   A boa causa atraiu o apoio da ‘Emirates Red Crescent’ do Governo do país, do Governo do Emirado e do Município de Dubai, do Conselho de esportes e empresas comerciais.

Uma caminhada de 5 quilômetros acontecerá no Parque Creek de Dubai, com a participação de alguns milhares de pessoas, no dia 24 de fevereiro.  Participantes e suas famílias passarão o dia no parque onde haverá diversão para as crianças, barracas de comida e espetáculos musicais ao vivo.

A nota diferencial é que essa atividade é organizada pela Igreja num país islâmico, contando com o apoio de suas instituições governamentais. É um fato inédito nos Emirados Árabes Unidos a indicar que, além da convivência pacífica e harmoniosa de que gozam as religiões, é possível fazer projetos em conjunto para uma boa causa. É só começar, afinal, ‘Quem observa o vento, nunca semeará, e o que olha para as nuvens nunca colherá’ (Eclesiastes 11,4). Nós esperamos continuar a semear e colher.’


Fonte :

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Silêncio, que é um filme

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Fernando Félix,
Jornalista


‘O realizador norte-americano Martin Scorsese visitou o Japão em 1989. Conheceu o romance Silêncio do escritor católico japonês Shusaku Endo, publicado em 1966. Manteve desde então – e apesar de ter produzido doze filmes entretanto – o desejo de adaptar para a grande tela a obra de Endo.

O que uniu Endo e Scorsese? As suas inquietações e os seus dilemas acerca do que é o Cristianismo, da sua inculturação e de como é assumido pelas pessoas.

Shusaku Endo morreu em 1996. Todavia, continua a ser uma referência para os cristãos japoneses. Eles constituem apenas um por cento da população. Carregam consigo uma história de perseguição, de clandestinidade e vivem em constante necessidade de diálogo cultural e inter-religioso.


Fé, medo do sofrimento e compaixão

O romance Silêncio remete-nos para os primeiros tempos da evangelização do Japão. Esta nação asiática, imperial, budista, recebeu o Evangelho pelo jesuíta espanhol São Francisco Xavier, entre 1549 e 1552, a pedido da Coroa portuguesa. Poucas décadas depois, a comunidade católica sofreu uma dura perseguição : os primeiros mártires, encabeçados por São Paulo Miki, foram crucificados em Nagasáqui em 1597.

No século XVII, as comunidades cristãs continuavam a sofrer a perseguição cruel ordenada pelos xoguns (comandantes do Exército do imperador). E chegou à Europa o rumor de que o padre Cristóvão Ferreira (representado por Liam Neeson), jesuíta português, tinha renegado a fé. Então, dois dos seus alunos foram ao Japão para verificar a veracidade dessa alarmante notícia. Uma vez lá, inseriram-se na vida dos camponeses e pescadores batizados, que viviam a fé às escondidas, para escapar às autoridades locais, que procuravam cristãos a quem obrigar a abjurar mediante suplícios atrozes e perversos.

Martin Scorsese adapta o romance de Endo para o cinema, mas não faz um filme simplesmente comercial. Silêncio é uma expressão da arte de questionar os modos de ver e ouvir, de observar o mundo. Scorsese faz um filme em que os conflitos terrenos se transferem para um campo de batalha íntimo e espiritual. Uma das surpresas é a ausência de música. A verdade faz-se ouvir pelos sons do quotidiano e nessa verdade ecoam duas vozes íntimas : a consciência e o misterioso silêncio de Deus.

Tanto no livro de Shusaku Endo como no filme de Scorsese, o Cristianismo não é uma religião superior para classes superiores. A vida dos camponeses e dos pescadores é marcada pela miséria e pela violência dos ferozes perseguidores. Os dois jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (interpretado por Andrew Garfield) e Francisco Garupe (na pele de Adam Driver), escondem-se durante o dia e exercem em segredo a sua missão sacerdotal pela noite. Então, à luz do dia, vêem a perseguição que cerca a todos, que é brutal, que exprime um ódio gratuito, mesmo quando se insiste que o Cristianismo «não foi feito para o Japão». E, à noite, observam a realidade com os olhos da fé : o martírio dos japoneses pobres e humildes batizados é participação na morte e ressurreição de Cristo.

Pode vislumbrar-se o gênio artístico de Scorsese unido ao de Endo para narrar o martírio nas suas características básicas – é cruel, desumano, horrendo –, como se pode ver logo na abertura, onde se assiste ao suplício, com água a ferver das fontes termais, dos cristãos às mãos de soldados.

Endo e Scorsese deixam um questionamento : o que há de heróico ou sublime na maneira como os cristãos japoneses são assassinados quando enfrentam o medo do sofrimento, negam a apostasia e recusam pisar a fumie (imagem de Jesus Cristo de bronze numa madeira)? Não haverá também algo heróico ou sublime naqueles que, realmente, pisam a madeira, querendo com isso salvar os cristãos dos suplícios atrozes e da morte, e intimamente, crêem praticar um ato de amor supremo?

Há pelo menos duas cenas em que isso é exposto. Uma é a agonia noturna do padre Rodrigues, que enfrenta o tremendo dilema de manter-se firme na sua fé e condenar os seus, ou apostatar, mas salvar o próximo. A outra é quando o rosto do próprio Cristo na tábua pede ao padre Rodrigues para O pisar, o convida a confiar e não ter medo : «Pisa! Pisa! Eu sei melhor do que ninguém quão cheio de dor está o teu pé. Pisa! Para ser pisoteado pelos homens Eu vim a este mundo. Para partilhar a dor dos homens carreguei a cruz

Para a magia artística do filme sublinhe-se a direção de Rodrigo Prieto na fotografia, que cria choques emocionais a partir das escolhas das luzes e das sombras, e a montagem de Thelma Schoonmaker, que dá expressividade à solidão e dor dos jesuítas.


A humanidade e a coragem dos Judas

Os dois jesuítas acabam por ser capturados depois de serem traídos por Kichijiro, um cristão que é facilmente associado ao apóstolo Judas Iscariotes. Em mais de uma ocasião, ao longo do filme, ele renega a fé e pede perdão pelas traições e recaídas. E o padre Rodrigues nunca lhe nega a absolvição na confissão, inclusive quando ele próprio apostatou e se sente indigno de exercer o sacerdócio. Desta maneira, Silêncio reconhece a natureza humana debilitada pelo pecado e frágil. Quem trai pode continuar a trair. A coragem é um dom que não se pode dar por garantido, mas que se agradece.

Scorsese não demoniza os Japoneses, pois dá-lhes a possibilidade de exporem as suas razões pela repressão do Cristianismo. O velho governador-inquisidor Inoue (desempenhado por Issei Ogata) é intencionalmente inteligente e astuto. Também não reduz a história a um choque de religiões, frisando que o conflito é igualmente cultural, de mentalidades e político.

Acerca do Cristianismo, ficam expostas duas ideias. Para muitos dos camponeses e pescadores convertidos, resume-se à promessa de um Paraíso que compensará uma vida terrena de miséria e dor. Por outro lado, não estariam os missionários apóstatas a negar a imagem do Deus ocidental que levaram, o Deus-Juiz, quando a população vivia na miséria e do que necessitava era de um Deus que os amparasse? «No início, o padre Rodrigues tinha uma imagem de Cristo vigoroso, forte, valente, corajoso, poderoso. Depois, na prisão em Nagasáqui, esse Cristo começou a ser sofredor, de olhos tristes. Finalmente, quando pisa a imagem, vê um Cristo desfeito, de sofrimento», explicou o padre Adelino Ascenso, missionário no Japão durante mais de uma década, à Rádio Renascença.

Os católicos que sobreviveram à perseguição – milhares abjuraram a fé publicamente para sobreviver, mas continuaram a praticar em segredo – tiveram de ocultar-se durante 250 anos, até à chegada de missionários europeus no século XIX.’


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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

São crianças, não escravos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Bernardino Frutuoso,
Jornalista


‘No dia 8 de Fevereiro, memória litúrgica de santa Josefina Bakhita, a religiosa sudanesa que quando era menina sofreu a trágica experiência de ser vítima do tráfico, celebramos a Jornada Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas. Este ano o tema escolhido – São crianças, não escravos – apresenta-nos a dolorosa e inumana situação que vive uma multidão de menores, vítimas deste abominável flagelo.

Em pleno século XXI, há 45,8 milhões de pessoas no mundo que vivem em situação de escravidão (Global Slavery Index, 2016). Segundo as Nações Unidas, uma de cada três vítimas são crianças. Este complexo fenômeno transnacional tem raízes que se centram na pobreza, na marginalização, nas desigualdades sociais, nos conflitos armados e assume múltiplas formas : exploração laboral e sexual, matrimônios forçados, tráfico de órgãos, práticas criminosas (crianças-soldados, mendicidade, tráfico de drogas, gangues delinquentes). A característica destas novas escravidões é a vítima ser obrigada a realizar uma atividade contra a sua vontade, por meio de ameaças ou outras formas de coação, tendo a sua liberdade de movimentos condicionada.

O tráfico de seres humanos assenta na exploração dos «mais indefesos» aos quais, como referiu o Papa Francisco, «é roubada a dignidade, a integridade física e psíquica, mesmo a vida». Um negócio que, infelizmente, tem procura e dá lucros de milhões de dólares ficando atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. É uma realidade globalizada, presente em todos os continentes e em 167 países do planeta. Cinquenta e oito por cento das vítimas concentram-se em cinco países – Índia, China, Paquistão, Bangladesh, Usbequistão –, mas também estão presentes em países que contam com sistemas jurídicos sofisticados. Há anos, no Reino Unido, teve grande relevo midiático o caso de Victoria Climbié, uma menina trazida pela tia da Costa do Marfim para a Europa sob o pretexto de lhe oferecer uma boa educação. A menor foi vítima de abusos sexuais e torturada sistematicamente durante cinco meses pela tia e o seu companheiro. Acabou por morrer em consequência dos maus tratos. Tinha 8 anos. Um relatório de 2004 denunciava que havia cerca de dez mil menores oriundos do Oeste de África que viviam no Reino Unido. Na Europa, em 2015, foram reportadas mais de 30 mil vítimas de tráfico, entre elas cerca de mil crianças.

O tráfico de seres humanos é, nas palavras do papa, um «crime contra a humanidade». Governos, instituições e todas as pessoas de boa vontade estão chamados a comprometer-se de modo eficaz e coerente na luta contra este flagelo, seja para eliminar as suas causas como para acompanhar soluções dignas para as pessoas que caem nas malhas deste tráfico. E os cristãos – «chamados a responder aos problemas sociais deste tempo» como frisa Francisco – temos de pôr-nos na linha da frente neste compromisso. Estas pessoas, discriminadas e exploradas, são, no hoje da nossa História, «a porta das chagas de Cristo» que é preciso transpor, como expressa o teólogo Tomáš Halík na obra O meu Deus é um Deus ferido (Paulinas, 2015). A fé cristã é paixão por Deus e pela Humanidade : ao tocar nas feridas do mundo, tocamos em Deus. Essa é a mística da revolução do amor que queremos viver.’


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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Pela força da palavra

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘A credibilidade perde espaço no mundo contemporâneo em razão do enfraquecimento da palavra. Este é um tempo de ‘palavra fraca’ e os impactos negativos dessa situação têm incidência nos diferentes âmbitos. Diz-se que é, mas não é. Promete-se e não se cumpre. Definem-se prazos que não são respeitados. Garante-se que foi e não foi. Afirma-se desconhecer, mas conhece intimamente. Compromete-se em ir e não vai. Ensina e não se abre à aprendizagem. Elogia com falsidade. Passa a ideia de convicção sem, de fato, ter certeza. Fala uma coisa e é outra. Refere-se a preceitos morais e não os cumpre. Jura que não fez, mas continua fazendo. Usa a palavra para camuflar o que deve ser revelado. E assim, constata-se uma interminável ladainha que fragiliza a palavra.  Desconsidera-se que a palavra é, por si, uma força que cria e recria.

É inconsistente o dito popular : ‘palavras são apenas palavras e nada mais’. Recorde-se o Salmo 33 que sublinha a força da palavra, quando se canta que pela palavra de Deus foram feitos os céus, pelo sopro de sua boca todos os seus exércitos.  E em Jesus Cristo, o filho de Deus Pai, a Palavra se fez carne e veio morar entre nós.  Vale ler e reler as narrativas iniciais dos primeiros capítulos do Livro do Gênesis, 1-3, e compreender o sentido, o alcance e a força da palavra : ‘Faça-se!’.

Pela palavra, até mesmo no silêncio, Deus fala e vem ao encontro de cada pessoa. A palavra tece os diálogos, fazendo-os autênticos e construtivos quando a sua força se manifesta, não pela imposição, mas a partir da transparência e da verdade. Há de se constatar que o falar não é qualquer coisa. A palavra é essencial na construção da vida pessoal, na edificação da sociedade e na busca por novos horizontes.  Assim, a palavra, para edificar vínculos duradouros na verdade e no amor, em vista da justiça e da paz, não dispensa sinceridade, transparência, honestidade e o compromisso com o bem comum. É incontestável que a sociedade contemporânea precisa avançar na recuperação do sentido da palavra, para que por sua força possam ser sanadas as consequências das incompreensões, distorções, equívocos que têm como parâmetro a mesquinhez. Esses males conduzem o mundo rumo a fracassos, incompetências institucionais, familiares, governamentais e religiosas.

Embora a contemporaneidade seja tão marcada por grandes avanços tecnológicos, que incluem as redes intermináveis para a transmissão das palavras, em velocidades surpreendentes, ainda é tempo de se aprender a falar. Esse é um investimento indispensável no alicerce básico da consciência humana, que abrange a individualidade e a clareza de pertencimento comunitário e familiar.  Deus, em diálogo com cada pessoa – porque Ele fala – estabelece uma dinâmica que leva a esse necessário aprendizado, cultivando nos corações o gosto de ser sincero, bom, lúcido e capaz de agir como instrumento da paz.

O segredo, portanto, é dar centralidade e primado à Palavra de Deus.  Ao escutar a Palavra, cada pessoa abre-se à verdade, aprende as lições do amor, capacita-se para ser justo.  Mais que outras escutas, é essencial ouvir a Palavra de Deus que também revela, inevitavelmente, a dramática possibilidade de o homem subtrair-se a esse diálogo de aliança com Deus. O resultado nefasto é a expansão de domínios perversos no coração.

Proclamar a Palavra é investir no cumprimento da tarefa dada pelo Mestre Jesus, a Palavra encarnada. Cristo quer o Povo de Deus congregado em uma ‘Igreja em saída’, missionária, próxima de todos, presente especialmente nos lugares mais pobres e sofridos, em diálogo com a sociedade. Uma Igreja que ajude a confeccionar o tecido da cultura solidária e da vida.

Nenhuma outra palavra tem a força da Palavra de Deus, capaz de renovar a Igreja, as pessoas e reconstruir a sociedade contemporânea tão marcada pelo cansaço, fracasso e pelas banalizações. Proclamar a Palavra é o compromisso primeiro, entre muitos outros, assumido pela Arquidiocese de Belo Horizonte, como Igreja no mundo e a serviço do Povo. É seu Projeto de Evangelização, para que surja o novo pela força da Palavra de Deus, iluminando as palavras de cada cidadão.’


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terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Creio na Ressurreição da Carne : Introdução à Teologia do Corpo (Prólogo)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Rômulo Cyríaco


O início de uma série de artigos iluminadores para aprofundar em um dos elementos constitutivos mais fascinantes da natureza humana


‘Entre 1979 e 1984, ao longo de muitas quartas-feiras, o amado Papa São João Paulo II dedicou-se a um belíssimo projeto : esclarecer aos fiéis e ao mundo, solidamente e em definitivo, qual é realmente a doutrina católica a respeito do corpo e da sexualidade do ser humano. Para isso, fundamentou-se nas Escrituras e em toda a Tradição Apostólica e dos Padres da Igreja, desde o cristianismo primitivo. Foram mais de uma centena de catequeses, nas quais tratou do assunto em profundidade, com brilhantismo e admirável rigor filosófico e teológico. A presente série de artigos oferecerá uma introdução a estas catequeses, que foram publicadas sob o título de Teologia do Corpo.


Prólogo para uma introdução à Teologia do Corpo

Antes mesmo de tocarmos nos conceitos específicos do projeto teológico de São João Paulo II, para ‘preparar o terreno’, é conveniente expor um pouco da intrínseca e inevitável relação de toda autêntica teologia católica com a realidade do corpo.

Após a Anunciação, o Espírito Santo gerou o Filho no ventre de Maria, a Santíssima Virgem. Jesus Cristo é Deus encarnado. Sua missão espiritual é marcada por uma forte corporeidade. Contemplemos a Paixão de Cristo : a agonia no Horto das Oliveiras, a flagelação, a coroa de espinhos, o carregamento da Cruz, a crucifixão, a lança que faz jorrar sangue e água de seu flanco, e também a Sua Ressurreição : ‘Vede minhas mãos e meus pés : sou eu mesmo! Tocai-me e vede, porque um espírito não tem carne nem ossos, como estais vendo que eu tenho’ (Lc 24,39).

Cristo, em sua missão, era um Sacramento Vivo. Pensemos na mulher hemorroíssa, que curou-se ao tocar somente as vestes de Jesus… Um pedaço de tecido, que protegia o Corpo de Deus. Tantos milagres similares relatados na vida dos Santos – pelas luvas que cobriam as chagas de Padre Pio, pelo lenço com o qual o mesmo enxugava as lágrimas que derramava na Celebração Eucarística. Pois Cristo, Ressuscitado, permanece Vivo na realidade sacramental de sua Igreja, Seu Corpo Místico. Pois Cristo Se doa inteiramente, até o fim dos tempos, em Espírito e em Corpo, à Igreja, Sua Esposa. Apenas aguardando nossa inteira doação, como membros da Igreja, para nos cumular de graças, e tornar-nos participantes de Sua Encarnação, Paixão, e Gloriosa Ressurreição.


Nós, católicos, não somos espiritualistas.

Quem quer que pense o oposto, dentro ou fora da Igreja, pensa em território longínquo ao depósito da fé cristã, e, sabendo ou não, foi fisgado pelas heresias gnósticas, que consideram o corpo e a matéria como essencialmente maus, e o espírito, exclusivamente, como bom. Não há nada mais distante da fé católica do que a consideração do corpo como mau. Pois, antes de mais nada, não é o corpo que peca, como alguns podem pensar; mas o espírito decaído.

Os animais de outras espécies, que não têm alma nem liberdade, não pecam. Mas os demônios, seres espirituais, pecam a todo instante. Nós, seres humanos, é por termos alma e sermos livres que podemos pecar, e cair na escravidão. Somos livres para sustentar nossa liberdade; ou para abrir mão dela, trocando nosso direito de primogenitura por um prato de lentilhas (Gn 25, 34). A queda da alma humana, no Pecado Original, assim como todo pecado atual, é o que tira de nós a essencial integração de nossos corpos e almas, e instaura em cada homem um conflito entre os impulsos da carne, e uma alma a estes sujeitada – ferida, desorientada, resistente ao Espírito.

Não somos espiritualistas, e, portanto, para sermos autenticamente católicos, precisamos rejeitar toda sorte de gnosticismo. Certamente, como veremos melhor nos próximos artigos, nós desejamos a ‘vida conforme o Espírito’, e não conforme à carne. Mas isso não quer dizer que gostaríamos de nos desfazer de nossos corpos, para uma afirmação exclusiva de nossos espíritos. Ao contrário, significa que queremos precisamente a espiritualização dos nossos corpos enquanto tais. E isto ‘significa não somente que o espírito dominará o corpo, mas, diria, que ele penetrará inteiramente no corpo, e que as forças do espírito penetrarão nas energias do corpo’ (Teologia do Corpo, 67,1).

Como disse São Paulo aos Coríntios : ‘Sim, nós que moramos na tenda do corpo estamos oprimidos e gememos, porque, na verdade, não queremos ser despojados, mas queremos ser revestidos, de modo que o que é mortal, em nós, seja absorvido pela vida.’ (2 Cor 5,4).

Queremos um corpo espiritualizado, repleto e pleno da Presença, da Graça e da Glória do Espírito Santo, do Deus Vivo, fonte e origem de toda a vida. ‘Sois vós, ó Senhor, o meu Deus! Desde a aurora ansioso vos busco! A minh’alma tem sede de vós, minha carne também vos deseja, como terra sedenta e sem água!’ (Sl 62,2). Que mais é o próprio Corpo de Cristo, Deus feito Homem, que contemplamos com imensa adoração, e que recebemos em nossos corpos e almas no Santíssimo e Diviníssimo Sacramento da Eucaristia? Um Corpo pleno do Espírito, consubstancial ao Pai, que Se entregou e Se entrega por nós, e que nos revelou o Caminho, que é Ele mesmo : peguemos nossa cruz e O sigamos; entreguemo-nos em sacrifício por Deus e pelo próximo; pois esse é o Caminho da Vida e, com a Vida, o fardo será leve, o jugo será suave. Essa é a realidade fundamental na qual tocou todo mártir, e todo cristão autêntico, alimentado do viço do martírio, pela fé viva e pela graça do Espírito Santo : é melhor morrer pela Vida, sacrificar-se para ganhá-La, do que viver pela morte.

Quando vivemos a eficácia Eucarística da Igreja de Cristo, imediatamente mostra-se sem sentido, por exemplo, uma doutrina luterana como a da sola fides, pois, como poderia bastar uma fé em Cristo que se dissociasse da totalidade da Sua Revelação? Não seria completa fé. Pois a Revelação inclui a entrega sacramental do Seu Corpo e do Seu Sangue, os quais, pela fé católica, desejamos mais que tudo, e os quais, pelo Santíssimo Sacramento, efetivamente temos.

Não porque pedimos demais de Cristo, mas porque Ele mesmo quis e quer que comamos do Seu Corpo e que bebamos do Seu Sangue, conforme o sacramento que instituiu com seus apóstolos na noite de Sua Paixão, para que o repetíssemos até o fim dos tempos. Portanto, se temos a fé, somos obedientes a Cristo, cremos Nele e também em tudo o que Ele disse, sem nenhuma exceção : ‘Pois minha carne é verdadeiramente comida e meu sangue é verdadeiramente bebida.’ (Jo 6,55). Isto disse Cristo, para que ninguém depois pudesse dizer que tudo não passou de uma metáfora. Na Santa Missa, oramos, mas também pedimos a Jesus, como Ele mesmo, Ressuscitado, pediu aos apóstolos : ‘Tendes aqui alguma coisa para comer?’. Sim, a Eucaristia, Corpo e Sangue de Cristo, é o maná que chove dos céus todos os dias para a sobrevivência e salvação da humanidade no exílio deste mundo desertificado pelo pecado. O Senhor disse a Moisés : ‘Vou fazer chover pão do alto do céu. Sairá o povo e colherá diariamente a porção de cada dia. Pô-lo-ei desse modo à prova, para ver se andará ou não segundo minhas ordens.’ (Ex 16,4). Éramos mendigos espirituais, nus, famintos e sedentos, e prisioneiros do pecado; o Verbo de Deus nos visitou, para nos libertar; Jesus veio para nos dar, eternamente, de comer e de beber, e para nos vestir. Ele apenas espera que consintamos com a salvação, que O procuremos, pois Ele jamais nos forçaria a comer, a beber, jamais nos vestiria à força. É preciso abrir a boca, levantar os braços, acolher as ordens salvíficas de Nosso Senhor.

A mentalidade esotérica da ‘Nova Era’, por exemplo, poderá pensar a frase em que falamos de um ‘corpo espiritualizado’, como referindo-se a um corpo que de alguma maneira é mais espírito que corpo, um corpo semi-descorporificado. Mas nós não falamos disso. Falamos de um corpo que é plenamente vivo enquanto corpo, presente, sólido, fértil, cheio da unção divina, e que de Deus pode receber e acolher a graça para realizar livremente os Seus mandamentos, que mantêm e sustentam, no interior do corpo e da alma, a vida plena. Se queremos um corpo espiritualizado, queremos na mesma medida um espírito corporificado. Tal é a unidade vital gradualmente acessível ao cristão católico conforme os avanços de sua busca pela santidade.

As quedas, os desvios, os pecados, necessariamente rompem tal unidade, e nos deixam sentir novamente o gosto amargo da miserável separação entre o homem e seu Criador. Deus permite tais quedas, não poucas vezes, para que voltemos com maior sede à nossa busca pela Comunhão, e também para que percebamos que a santificação somente é possível pela graça do Espírito, como dom Divino, de modo algum resultado exclusivo de nossos próprios esforços. Em nossos esforços próprios, infelizmente, estamos mais acostumados e inclinados ao egoísmo e ao pecado como regra, que à firme perseverança no estado de graça. Neste último estado, quando o sustentamos, o frescor e a alegria da fé, pela nossa maior conformação ao Cristo, faz manifestar a vida vigorosamente dentro de nós, e ao nosso imediato redor. Então, como é grande o desejo de sustentar tal estado! Pois, pelo pecado, tornamo-nos fracos, quando não obstinadamente egoístas, incapazes do amor-caridade, da entrega e do sacrifício pelo próximo, pela vida e por Cristo. Deus, em seu plano salvífico, quer nos restabelecer tal capacidade. Reconhecendo-nos pecadores, tornamo-nos sedentos pela Vida que é dom de Deus, queremos-na de novo em nossos corpos – sim – mas não conforme à carne : conforme o Espírito, unção vital e  ‘alegria dos anjos’, provinda de Deus Criador.

A fé solicita uma entrega a Deus que é tão espiritual quanto corpórea, em igual intensidade : a necessidade de vincular profundamente a fé com as obras (Tg 2,17). A isto veremos em detalhes nos próximos artigos. Aqui, basta dizer, ecoando a Teologia do Corpo, que a realização vocacional do ser humano, conforme pensada por Deus desde o princípio para todos e cada um de nós, concretiza-se somente com uma doação integral de si que abrange os dois aspectos do ser indissociavelmente, a alma e o corpo, tanto na reciprocidade conjugal do matrimônio, na complementaridade sexual, ser-para o marido ou a esposa, quanto no celibato voluntário ‘por amor ao Reino dos Céus’, ser-para Cristo, em serviço à comunidade como membro da Igreja, Sua Esposa.


Jesus Cristo : transcendente e imanente.

O cristianismo autêntico não apenas não nega o corpo, a sexualidade e a dimensão sensível da existência, como também se situa radicalmente fora do dualismo platônico. Este coloca a verdade transcendente como radicalmente separada da dimensão corpórea ou sensível, imanente, e, mais do que isso, como estando estas duas dimensões em um conflito intransponível. A verdade, transcendente, seria passível de ser intuída e tocada somente por nossas almas, alcançada apenas na proporção em que se conseguisse, o máximo possível, desvencilhar-se do corpo e da dimensão sensível, fontes de engano. Tal incorreção filosófica – contida também no gnosticismo – aparece e reaparece em diversas heresias, sob diversos nomes, ao longo da história da Igreja.

É quase uma unanimidade entre as heresias, por mais distintas que pareçam, uma dificuldade em aceitar uma realidade básica e essencial do cristianismo autêntico : o fato de que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Cristo é Homem sem deixar de ser Deus, e é Deus sem deixar de ser Homem. Nós, de fé católica, adoramos a Humanidade de Cristo, não apenas a sua Divindade, pois adoramos o Cristo inteiro. Tal perfeita Humanidade, que em tudo foi igual à nossa com a exceção do pecado, foi o instrumento de Deus para a nossa salvação. A dificuldade em aceitar esta verdade fundamental da fé cristã aparece, inclusive, na base de todo o protestantismo. O problema é que tal verdade é exatamente aquela através da qual se dá a nossa Salvação : a ponte criada entre a transcendência e a imanência, entre o divino e o humano, ponte que segue, construída e aberta, dentro de toda grande basílica, e de toda pequena paróquia, concretamente presente dentro de todo sacrário; a gloriosa Comunhão do divino com o humano, à qual somos convidados por Cristo. E essa ponte já era mantida desde muito antes da construção do primeiro templo católico, é claro, quando os apóstolos, com a comunidade cristã primitiva, celebravam a Eucaristia após a ascensão de Cristo, ainda que isso fosse feito numa pequena casa, escondida da perseguição dos judeus e dos romanos.

Se os homens conhecessem o valor da Santa Missa, a polícia teria que estar sempre às portas das igrejas para manter a ordem por causa da grande quantidade de pessoas que a assistiriam’. Qual a razão de tal frase, do nosso amado São Pio de Pietrelcina? Basta imaginar como seria a frequência nas igrejas, diariamente, se toda a humanidade subitamente soubesse, reconhecesse, se desse conta de que na Eucaristia nós recebemos o Corpo e o Sangue de Deus literalmente, em nossas almas, para nelas operar Suas graças…


Deus tem um Nome e é o Senhor da História.

Também é digno de nota, aqui, o fato de que em outras tradições religiosas e místicas, costuma-se buscar, através de um esforço do ser humano para desligar-se das ‘distrações’ sensíveis – isto é, tudo o que é sensível sendo visto como obstáculo -, uma unidade puramente espiritual com a divindade (anônima) que descansaria dentro de cada um, em que o homem poderia dizer à divindade, ‘eu = tu’. Na tradição judaico-cristã, por sua vez, é o próprio Deus que procura o homem, lá onde ele está, e faz sua Aliança com ele, revelando seu Santo Nome ao ser humano, a começar pelas revelações veterotestamentárias : Moisés disse a Deus : ‘Quando eu for para junto dos israelitas e lhes disser que o Deus de seus pais me enviou a eles, que lhes responderei se me perguntarem qual é o seu nome?’ Deus respondeu a Moisés : ‘EU SOU AQUELE QUE SOU’. E ajuntou : ‘Eis como responderás aos israelitas : (Aquele que se chama) EU SOU envia-me junto de vós.’ (Ex 3,13-14).

Deus nos criou, temos o Seu Espírito em nós, mas Deus é também o totalmente Outro por excelência, é o Todo-Poderoso, Inefável, Criador do céu e da terra. Revela-Se na imanência e na História, mas permanece transcendente e Eterno. Diz o salmista : ‘O Senhor, do alto do céu, observa os filhos dos homens, para ver se, acaso, existe alguém sensato que busque a Deus.’ (Sl 13,2). O Criador nos busca e entra em relação conosco, pede que percebamos Seus sinais, que atendamos aos Seus chamados, faz-Se encontrar por nós, quer que entremos em relação com Ele, pela oração, e que O acolhamos em nossos corações; Tu + eu; Tu + cada um de nós.

Deus apresenta-Se ao homem numa relação face a face, digamos, corpo a corpo. Quando isso acontece, Ele não apaga a subjetividade do homem, mas, pelo contrário, concretiza-a, revela-a, dá ao homem seu verdadeiro nome; e a Seu Nome, que é Santo, revela-O, mas ao mesmo tempo guarda-O na eternidade do seu mistério. Assim é Deus : revela-Se a nós, mas permanece sendo o Inefável, o Inexprimível. Inesquecível a passagem do Livro do Gênesis em que Jacó, no deserto, luta com um homem que em seguida revela-Se como sendo o próprio Deus, que ganha corporeidade e toca em Jacó. ‘‘Teu nome não será mais Jacó, retomou ele, mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens, e venceste.’ Jacó perguntou-lhe : ‘Peço-te que me digas qual é o teu nome.’ ‘Por que me perguntas o meu nome?’, respondeu ele. E abençoou-o no mesmo lugar. Jacó chamou àquele lugar Fanuel : ‘porque, disse ele, eu vi a Deus face a face, e conservei a vida’.’ (Gn 32, 28-30).

Com isso, podemos compreender o caráter não-espiritualista da fé no Deus que se revela nas Sagradas Escrituras. A esse respeito, diz o Cardeal Ratzinger : ‘Na mística, vale o primado da interioridade, absolutizando-se, assim, a experiência espiritual. Isso implica que Deus seja totalmente passivo em relação aos homens e que o conteúdo da religião só pode ser a submersão do homem em Deus. Não há nenhum ato de Deus, mas somente a ‘mística’ do homem, o caminho gradativo para a união. O caminho monoteísta parte de uma consideração oposta : aqui, o homem é passivo, o que atua nele é Deus; aqui, o homem nada pode por si mesmo, mas, em contrapartida, há uma ação de Deus, um chamado de Deus, a salvação abrindo-se para o homem na obediência a esse chamado’. Estamos falando de um Deus em ação, que nos procura. ‘Deus procura o homem no meio do mundo e das atividades mundanas e terrenas, vai atrás do homem, entra em relação com ele. Poder-se-ia dizer : a ‘mística’ da Bíblia não é uma mística pictórica, mas verbal, sua revelação não é exibição do homem, mas palavra e ação de Deus. Não é primariamente a descoberta de uma verdade, mas ato do próprio Deus que age na história. O seu sentido não é que a realidade divina se torna visível, mas fazer o receptor da revelação portador da mensagem divina. Pois aqui, em contraposição à mística, Deus é o que atua, e é Ele quem cria a salvação para o homem’.

Todo o espírito heroico dos Santos, todo o seu poder espiritual – como o de Maria, a Torre de Marfim, Senhora do Universo e de toda a Criação, que esmaga as heresias e o demônio – advém de uma total e irrestrita obediência a Deus e Suas ações. ‘Eis aqui a serva do Senhor’… Deus faz maravilhas em quem o serve; em quem mostra a Ele, com docilidade, sua pequenez.

Deus, que havia revelado o Seu Nome, EU SOU, e inspirado os patriarcas e os profetas, encarnou-Se como Jesus Cristo, a Palavra, o Logos de Deus. ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus’ (Jo 1,1). ‘E o Verbo se fez carne’… Deus ganhou um Rosto, um Corpo, revelou-Se como Verdade, deixando-nos conhecer Seu projeto salvífico para a humanidade. O que podemos fazer para sermos salvos é ajoelhar em humildade diante Dele, Revelado e Ressuscitado, e orarmos em súplica : Meu Senhor… Pois Jesus Cristo é, efetivamente, o Senhor do Céu e da Terra. Somos seus servos, e que alegria, que plenitude, encontramos em servi-Lo! ‘Ao simples ecoar / do vosso nome eterno, / joelhos vão dobrando / o céu, a terra, o inferno’.

Na oração, diante de Deus, de Cristo Ressuscitado, descobrimos a nós mesmos, alma e corpo. ‘Ninguém sabe o que é seu corpo até que tenha orado. É no exercício dessa grande função respiratória (Pneuma-Espírito), que é a oração, que nós tomamos consciência de nosso corpo, que o ‘enchemos’ verdadeiramente. A oração é mesmo a função última do corpo, sua função mais perfeita, sua grande função biológica, pois a rigor não existe vida (bios) a não ser pelo Verbo (Logos) e pelo Espírito. Além de todas as suas funções biológicas, no sentido mais comum, o corpo só se realiza na função orante, inaugurada no tempo e levada à perfeição no universo escatológico da ressurreição. A posição que nosso corpo assume na oração, ‘esquema’ tão importante na iconografia cristã primitiva, antecipa e prepara sua forma definitiva de ressuscitado’ (François Cassingena-Trevedy).


‘Quem diz que o Verbo de Deus não veio na carne é o Anticristo’.

Em homilia feita no dia 16/09/2016, o Papa Francisco falou a respeito da ‘lógica da fé Cristã’ – a maneira fundamental de pensar que nasce do verdadeiro assentimento à verdade revelada – que ele descreve como sendo a ‘lógica do dia de depois de amanhã’, que olha para a ressurreição do corpo.

É fácil para todos nós’, disse o Santo Padre, ‘entrar na lógica do passado, porque é concreta’, e é também ‘fácil entrar na lógica do aqui-e-agora, porque nós o vemos’. Quando, no entanto, olhamos para o futuro, então pensamos que ‘é melhor não pensar’, ou caímos na tentação de não pensar no futuro até o fim. ‘A lógica do dia depois de amanhã, esta é difícil. (…) A ressurreição : Cristo ressuscitou (…) e está claro que Ele não ressuscitou como um espírito. Na passagem em Lucas sobre a ressurreição : ‘Mas me toquem’. Um espírito não tem carne, não tem ossos. ‘Toquem-me, me deem de comer’. A lógica do dia depois de amanhã é a lógica na qual entramos na [ressurreição da] carne’.

Nós traímos um certo gnosticismo, e pensamos que tudo será espiritual, porque temos medo da carne’. O Papa clama aos cristãos que digam ‘não’ a uma piedade espiritualista, e entrem na lógica da carne de Cristo. Não esqueçam, diz ele, ‘que esta foi a primeira heresia’ que o apóstolo João condena : ‘Quem diz que o Verbo de Deus não veio na carne é o Anticristo’.

Nós temos medo de aceitar e sustentar as últimas consequências da carne de Cristo. Uma piedade espiritualista é mais fácil, um pietismo sutil; mas entrar na lógica da carne de Cristo, isso é difícil. E esta é a lógica do dia de depois de amanhã. Nós vamos ressuscitar como Cristo, com nossa carne’.

O Papa já havia clamado aos cristãos, em outra ocasião, que não apenas dessem esmolas aos pobres, aos miseráveis necessitados, jogando para eles algumas moedas rapidamente para livrar-se deles, mas que não tivessem medo de tocá-los. ‘Quantas vezes encontramos um pobre e, mesmo sendo generosos e sentindo compaixão, não o tocamos. Oferecemos uma moeda, mas evitamos tocar sua mão. Esquecemos que aquele é o corpo de Cristo! Jesus nos ensina a não ter medo de tocar o pobre e o excluído, porque Ele está neles. Tocar o pobre pode nos purificar da hipocrisia’.

A humanidade de Deus, em Cristo, revela-nos de uma vez por todas que ‘O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível : o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser sinal d’Ele’ (Teologia do Corpo 19,4). Adoramos o Corpo de Cristo e o Seu Sagrado Coração, ‘tabernáculo do Altíssimo’. Adoramos a Cruz e as imagens de Cristo, pois são sinal do mistério da verdadeira encarnação de Deus. Veneramos as imagens da Virgem Maria e dos Santos, pois nos remetem aos protótipos, que, efetivamente, viveram e pisaram esta terra, e trouxeram (continuam trazendo) à nossa realidade material e sensível – após todo pecado, terra de exílio – a plenitude da Divindade. Quando se beija a mão de um padre, está-se prestando respeito à autoridade espiritual conferida por Cristo aos seus apóstolos, para ministrar o caminho da salvação na economia sacramental da Igreja.

São Pio de Pietrelcina, o mais extraordinário místico católico do século XX, teve os estigmas de Cristo em suas mãos, pés e na lateral do tórax por 50 anos. É assim a vida dos maiores místicos cristãos da nossa história : eles têm o seu coração transverberado, as feridas de Cristo revividas em seu próprio corpo, e a mais imensa capacidade de amar, face a face, corpo a corpo. ‘Agora eu me alegro nos sofrimentos por vós e completo em minha carne o que resta das aflições do Cristo em favor de seu corpo, que é a Igreja’, diz o inspirado Apóstolo Paulo (Cl 1, 24).


Ética e espiritualidade.

Uma outra ligação entre o corpo e o espírito na fé cristã, já presente em toda a tradição veterotestamentária, vem da total indissociabilidade da espiritualidade com a ética e a moral.

A sociedade contemporânea, amplamente mundana e antieclesial, está sendo ‘educada’ para rejeitar a moral judaico-cristã, e a divulgar uma vaga ‘espiritualidade’ dissociada de toda ‘religião’, a partir dos enganosos imperativos do poder global contemporâneo, que se serve também das ideologias revolucionárias-totalitárias de viés marxista, para impor globalmente uma mudança de consciência que favoreça a aceitação de suas pautas mais caras, como o controle populacional e, para isso, a legalização do aborto e da eutanásia, o ‘casamento’ gay, a ideologia de gênero etc. – em suma, a descaracterização da família, do casamento e da sexualidade como instituições naturais. Sobre isso, no livro ‘Poder Global e Religião Universal’, Mons. Juan Claudio Sanahuja mostra como, hoje, quer-se estabelecer uma ‘religião’ universal sem dogmas nem hierarquias, mais de acordo com o projeto de poder totalitário que está em curso, através de uma tentativa de neutralização e esvaziamento do conteúdo da Revelação Divina tal como anunciada e protegida pela Igreja há dois milênios. A tradição judaico-cristã, com sua defesa da dignidade irredutível de toda vida humana (da concepção até a morte), e de outros valores fundamentais para a salvaguarda da mesma em sua realização plena, é (e permanecerá sendo) obstáculo para a revolução antinatural do mundo.

No ambiente secular, em que se dissemina a desinformação e a confusão – além da obstinação ideológica – muitos passam a rejeitar a Igreja como sendo uma instituição ‘antiquada’, e a apostar em práticas ‘espirituais’ inteiramente dissociadas de qualquer código ético e moral claro. Quer-se religiões, seitas ou práticas em cujas atividades a pessoa possa ter algum ‘bem-estar’, sentir-se ‘espiritualizada’, ou então obter realizações pessoais (em geral, de cunho material), mas que possa seguir vivendo como ‘quiser’, determinando suas próprias regras de ação e relação, sem ser ‘importunada’ por uma moral fundamental e imutável, que fosse compartilhada e sustentada pela comunidade. Vive-se uma ‘espiritualidade’ difusa, que não transforma toda a conduta do ser humano, mas, pelo contrário : que sustenta o relativismo moral dos dias atuais. Pode-se pecar à vontade – ‘nada é pecado’, isso seria questão de pontos de vista, sempre relativos – mas depois tem-se uma sessão de alguma coisa, seja lá o que for, para sentir-se bem, e obter ‘bons fluidos’.

Na espiritualidade cristã, conhecemos que, para estarmos próximos de Deus e protegidos contra os ataques do diabo e de seus demônios, é necessário que obedeçamos aos mandamentos divinos. Aquele que obedece aos mandamentos divinos mas não é nenhum místico, não faz experiências sublimes de meditação, ainda assim está salvo, mantém-se em território espiritual protegido. Não poderíamos dizer o mesmo do contrário. De nada adianta uma mística desobediente. (Daí, também, o engano das práticas ‘espirituais’ que recorrem à magia, adivinhação, comunicação com espíritos, e ofendem o coração de Deus, ignorando Seus mandamentos). A obediência aos mandamentos nos mantêm em Deus, no seu jardim, e assim somos inspirados por Ele. Recorrendo novamente ao Cardeal Ratzinger, sabemos que ‘para os diversos caminhos religiosos fora da revolução iniciada pelos profetas, salvas são as almas interiores, seja qual for a religião a que pertençam. Para o cristianismo, são os crentes, qualquer que seja o grau de interioridade que eles alcançaram. Uma criancinha, um trabalhador sobrecarregado de trabalho, quando creem, são maiores do que os grandes ascetas’. Existem grandes personalidades religiosas fora do cristianismo. ‘Mas isso não tem importância alguma; o que importa é a obediência à palavra de Cristo’ (Jean Daniélou).

É pela obediência completa aos mandamentos de Deus que – mesmo antes da Ressurreição escatológica da Carne, que nos foi prometida por Cristo e que professamos em nosso Credo –  obtemos, não apenas a salvação de nossas almas, mas também a redenção de nossos corpos mesmo nessa vida de exílio, pois, pela obediência a Deus, podemos recuperar a integração corpo-alma e a abertura ao Espírito Santo, ‘distribuidor dos dons celestes’, e viver conforme a Sua Vontade.

Comerás livremente o fruto de qualquer espécie de árvore que está no jardim; contudo, não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com toda a certeza morrerás’ (Gn 2, 16-17). A transgressão dos mandamentos divinos leva à morte : isto é, à ruptura entre o corpo e a alma.

Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho’ (Sl 119,105). Deus nos revelou Suas Leis, porque nos ama imensamente, e quer que saibamos o que fazer para recuperarmos a vida que perdemos com o pecado, quer que recuperemos a nossa própria realidade. Fomos desorientados pelo Pecado; este nos cega para a visão do Criador, e então, desobedientes, nos frustramos em todas as tentativas de encontrarmos a nós mesmos. Deus, nosso Pastor, quer nos reorientar, quer nos reconduzir ao Seu rebanho, quer nos devolver o acesso à Árvore da Vida, que perdemos no pecado. Trata-se, desde a Criação, e desde a Redenção, de uma constante escolha entre comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, proibida a toda criatura, ou comer da Árvore da Vida, entregando a Deus o que é de Deus, isto é – tudo, e nós mesmos. Em espírito, e em corpo.

Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância.’ (Jo 10,10).

Quando pecamos, a vida escapa de nós, sentimos nossos corpos e almas esvaziarem-se de consistência e de sentido. Na comunhão bem feita com Deus, consistência e sentido são a própria matéria inseparável da vida, e quando sentimos isso, a ação de Deus, o Inefável, torna-se verdadeiramente palpável… Palpável na paz profunda e eterna, que suspende o tempo, que recai sobre o espírito e irriga o corpo na Eucaristia. Na atmosfera sobrenatural e milagrosa da adoração ao Santíssimo Sacramento… Em que, no sagrado silêncio, todos os fiéis parecem dizer em uníssono : Deus, como sois Real! Como sois o Dono de toda a Realidade! Como a vida é irreal sem Vós! Não Vos pedimos nada além da Vossa Una e Trina Presença. Quando entrais num ambiente, ó Deus Todo-Poderoso, Pai, Filho, Espírito Santo, a tudo santificais e realizais… Na adoração ao Santíssimo, tudo o que é puro em nossos corações, tudo o que já foi purificado em nós pela conformação ao Cristo e à Virgem Maria, regozija interiormente, em paz e alegria; e tudo o que ainda não se santificou, mexe, incomoda, constrange-nos diante da Perfeição; toda inclinação para o pecado treme dentro de nós em santo temor. E como Jacó despertado do sono, depois de ter visto a escada para o céu, deitado sozinho ao ar livre com a cabeça sobre uma pedra, exclamamos : ‘Em verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia!’ (Gn 28,16).

E, cheio de pavor, disse : ‘Quão terrível é este lugar! É nada menos que a casa de Deus; é aqui, a porta do céu.’ No dia seguinte, pela manhã, tomou Jacó a pedra sobre a qual repousara a cabeça e a erigiu em estela, derramando óleo sobre ela. Deu o nome de Betel [em hebraico, Casa de Deus] a este lugar, que antes se chamava Luza. Jacó fez então este voto : ‘Se Deus for comigo, se ele me guardar durante esta viagem que empreendi, e me der pão para comer e roupa para vestir, e me fizer voltar em paz para a casa paterna, então o Senhor será o meu Deus.’’ (Gn 28,17-21).

Após encontrarmos com Deus corpo a corpo, após vermos tão de perto a escada para o céu como Jacó, não há como não querer retornar no dia seguinte mais dignos dessa visão, mais puros e conformados ao Cristo, para melhor subi-la. A Virgem Santíssima, que é a própria escada para subir ao céu, pois foi a escada que o céu usou para descer à terra, é nosso mais precioso auxílio, guarda-nos durante esta viagem, como Mãe da Igreja, para levar-nos à Comunhão com seu Filho Ressuscitado, que reina no topo e em todo lugar. A porta da Igreja é estreita – entra-se somente com a luta pela inteira conversão a Ele – mas do outro lado há pão para comer (Eucaristia), há roupa para vestir (a unção do Espírito Santo, o revestimento do ‘novo Homem’, isto é, de Cristo, o novo Adão). Há paz, plenitude de vida e verdade, no retorno à casa paterna. Há também uma boa Mãe.

Quem crê em mim, como diz a Escritura : De seu seio jorrarão rios de água viva’ (Jo 7,38).’


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