*Artigo
de Fernando Félix,
Jornalista
‘O realizador
norte-americano Martin Scorsese visitou o Japão em 1989. Conheceu o romance Silêncio do escritor católico japonês
Shusaku Endo, publicado em 1966. Manteve desde então – e apesar de ter
produzido doze filmes entretanto – o desejo de adaptar para a grande tela a
obra de Endo.
O que uniu Endo e
Scorsese? As suas inquietações e os seus dilemas acerca do que é o
Cristianismo, da sua inculturação e de como é assumido pelas pessoas.
Shusaku Endo
morreu em 1996. Todavia, continua a ser uma referência para os cristãos
japoneses. Eles constituem apenas um por cento da população. Carregam consigo
uma história de perseguição, de clandestinidade e vivem em constante
necessidade de diálogo cultural e inter-religioso.
Fé, medo do sofrimento
e compaixão
O romance Silêncio remete-nos para os primeiros
tempos da evangelização do Japão. Esta nação asiática, imperial, budista,
recebeu o Evangelho pelo jesuíta espanhol São Francisco Xavier, entre 1549 e
1552, a pedido da Coroa portuguesa. Poucas décadas depois, a comunidade
católica sofreu uma dura perseguição : os primeiros mártires, encabeçados por
São Paulo Miki, foram crucificados em Nagasáqui em 1597.
No século XVII, as
comunidades cristãs continuavam a sofrer a perseguição cruel ordenada pelos
xoguns (comandantes do Exército do imperador). E chegou à Europa o rumor de que
o padre Cristóvão Ferreira (representado por Liam Neeson), jesuíta português,
tinha renegado a fé. Então, dois dos seus alunos foram ao Japão para verificar
a veracidade dessa alarmante notícia. Uma vez lá, inseriram-se na vida dos
camponeses e pescadores batizados, que viviam a fé às escondidas, para escapar
às autoridades locais, que procuravam cristãos a quem obrigar a abjurar
mediante suplícios atrozes e perversos.
Martin Scorsese
adapta o romance de Endo para o cinema, mas não faz um filme simplesmente
comercial. Silêncio é uma expressão
da arte de questionar os modos de ver e ouvir, de observar o mundo. Scorsese
faz um filme em que os conflitos terrenos se transferem para um campo de
batalha íntimo e espiritual. Uma das surpresas é a ausência de música. A
verdade faz-se ouvir pelos sons do quotidiano e nessa verdade ecoam duas vozes
íntimas : a consciência e o misterioso
silêncio de Deus.
Tanto no livro de
Shusaku Endo como no filme de Scorsese, o Cristianismo não é uma religião
superior para classes superiores. A vida dos camponeses e dos pescadores é
marcada pela miséria e pela violência dos ferozes perseguidores. Os dois
jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (interpretado por Andrew Garfield) e
Francisco Garupe (na pele de Adam Driver), escondem-se durante o dia e exercem
em segredo a sua missão sacerdotal pela noite. Então, à luz do dia, vêem a
perseguição que cerca a todos, que é brutal, que exprime um ódio gratuito,
mesmo quando se insiste que o Cristianismo «não
foi feito para o Japão». E, à noite, observam a realidade com os olhos da
fé : o martírio dos japoneses pobres e humildes batizados é participação na
morte e ressurreição de Cristo.
Pode vislumbrar-se
o gênio artístico de Scorsese unido ao de Endo para narrar o martírio nas suas
características básicas – é cruel, desumano, horrendo –, como se pode ver logo
na abertura, onde se assiste ao suplício, com água a ferver das fontes termais,
dos cristãos às mãos de soldados.
Endo e Scorsese
deixam um questionamento : o que há de heróico ou sublime na maneira como os
cristãos japoneses são assassinados quando enfrentam o medo do sofrimento,
negam a apostasia e recusam pisar a fumie
(imagem de Jesus Cristo de bronze numa madeira)? Não haverá também algo heróico
ou sublime naqueles que, realmente, pisam a madeira, querendo com isso salvar
os cristãos dos suplícios atrozes e da morte, e intimamente, crêem praticar um
ato de amor supremo?
Há pelo menos duas
cenas em que isso é exposto. Uma é a agonia noturna do padre Rodrigues, que
enfrenta o tremendo dilema de manter-se firme na sua fé e condenar os seus, ou
apostatar, mas salvar o próximo. A outra é quando o rosto do próprio Cristo na
tábua pede ao padre Rodrigues para O pisar, o convida a confiar e não ter medo :
«Pisa! Pisa! Eu sei melhor do que ninguém
quão cheio de dor está o teu pé. Pisa! Para ser pisoteado pelos homens Eu vim a
este mundo. Para partilhar a dor dos homens carreguei a cruz.»
Para a magia
artística do filme sublinhe-se a direção de Rodrigo Prieto na fotografia, que
cria choques emocionais a partir das escolhas das luzes e das sombras, e a
montagem de Thelma Schoonmaker, que dá expressividade à solidão e dor dos
jesuítas.
A humanidade e a
coragem dos Judas
Os dois jesuítas
acabam por ser capturados depois de serem traídos por Kichijiro, um cristão que
é facilmente associado ao apóstolo Judas Iscariotes. Em mais de uma ocasião, ao
longo do filme, ele renega a fé e pede perdão pelas traições e recaídas. E o
padre Rodrigues nunca lhe nega a absolvição na confissão, inclusive quando ele
próprio apostatou e se sente indigno de exercer o sacerdócio. Desta maneira, Silêncio reconhece a natureza humana
debilitada pelo pecado e frágil. Quem trai pode continuar a trair. A coragem é
um dom que não se pode dar por garantido, mas que se agradece.
Scorsese não
demoniza os Japoneses, pois dá-lhes a possibilidade de exporem as suas razões
pela repressão do Cristianismo. O velho governador-inquisidor Inoue
(desempenhado por Issei Ogata) é intencionalmente inteligente e astuto. Também
não reduz a história a um choque de religiões, frisando que o conflito é
igualmente cultural, de mentalidades e político.
Acerca do
Cristianismo, ficam expostas duas ideias. Para muitos dos camponeses e
pescadores convertidos, resume-se à promessa de um Paraíso que compensará uma
vida terrena de miséria e dor. Por outro lado, não estariam os missionários
apóstatas a negar a imagem do Deus ocidental que levaram, o Deus-Juiz, quando a
população vivia na miséria e do que necessitava era de um Deus que os
amparasse? «No início, o padre Rodrigues
tinha uma imagem de Cristo vigoroso, forte, valente, corajoso, poderoso.
Depois, na prisão em Nagasáqui, esse Cristo começou a ser sofredor, de olhos
tristes. Finalmente, quando pisa a imagem, vê um Cristo desfeito, de sofrimento»,
explicou o padre Adelino Ascenso, missionário no Japão durante mais de uma
década, à Rádio Renascença.
Os católicos que
sobreviveram à perseguição – milhares abjuraram a fé publicamente para
sobreviver, mas continuaram a praticar em segredo – tiveram de ocultar-se
durante 250 anos, até à chegada de missionários europeus no século XIX.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EulyFZAEEpUPEhSkLn
Nenhum comentário:
Postar um comentário