terça-feira, 31 de março de 2015

Santa Sé destaca o papel das religiões no combate à pobreza

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘A importância do diálogo inter-religioso na agenda de desenvolvimento pós-2015 foi tema de debate na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, na última sexta-feira (27/03). O Observador Permanente da Santa Sé na ONU, Dom Bernardito Auza, falou antes de tudo do papel das religiões na conquista do primeiro e fundamental objetivo: a erradicação da pobreza.

Por que uma enorme instituição financeira como o Banco Mundial ou uma grande organização internacional como as Nações Unidas se devem voltar para as religiões e suas organizações para melhor assegurar a realização dos objetivos de desenvolvimento sustentável?’ – questionou Dom Auza.Certamente, respondeu ele, pelo reconhecimento das contribuições das religiões e suas organizações para a vida dos indivíduos e das sociedades, em particular, do apoio que prestam àqueles que tentam emancipar-se das várias formas de pobreza extrema.


Luta contra a probreza

De fato, observou Dom Auza, segundo o Presidente do Banco Mundial, Jim Kim, mesmo com as previsões mais otimistas de crescimento para os próximos 15 anos, o mundo ainda não conseguiu erradicar a pobreza extrema. Dos 14,5% atuais da população mundial extremamente pobre, o número só poderia ser reduzida para 7% até 2030. ‘Contudo, com a colaboração de organizações baseadas na religião e outras organizações civis, podemos reduzir esse número para 3% em 2030. Em números reais, isso é uma contribuição significativa’, afirmou o Arcebispo.


Bússola moral

Dom Auza disse ainda que as religiões e organizações confessionais, apesar das suas contribuições, não pretendem ser o que não são. Do ponto de vista cristão, não são entidades econômicas ou políticas; não são um Banco Mundial paralelo nem uma Organização das Nações Unidas, nem são idênticas a simples ONGs. A sua força, disse, não está nos recursos materiais ou conhecimentos científicos, mas no fato de que são uma força espiritual e uma bússola moral, de capacitar indivíduos e sociedades a reconhecer e respeitar a dignidade inerente a cada pessoa humana.

Ao trabalharem para libertar os povos da pobreza, as religiões e organizações baseadas na fé lutam para resolver as causas estruturais da pobreza, a injustiça e a exclusão, disse o diplomata vaticano, citando o Papa Francisco que nos exorta a dizer não a um sistema financeiro que governa ao invés de servir, um sistema que produz desigualdades ao invés de prosperidade partilhada.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.news.va/pt/news/o-papel-das-religioes-no-combate-a-pobreza

segunda-feira, 30 de março de 2015

Os pais de Santa Teresinha, modelos para todos os pais

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
 
Zélia Guerin e Luis Martin

‘Quase todos os dias ouvimos falar que a família está em crise, perdeu o seu rumo, e que os pais hoje em dia não sabem educar, que os jovens não querem mais ficar em casa e preferem  viver longe dos pais e, dizem os psicólogos e a mesma Igreja, que os jovens, vendo as brigas super violentas dos pais, preferem nem se casar. Se diz ainda que o número dos divórcios aumenta cada vez mais e que o matrimonio  não é estável, mas passageiro. O que importa é a convivência e a felicidade pessoal e momentânea... E ainda há quem diga com fundamento que a causa do número dos jovens que pegam o caminho da droga e não raramente o caminho do suicídio seja a desestabilização da família, como primeiro centro educacional sério e evangelizador. E a ladainha pode continuar e dizer por ex. que os jovens preferem ‘as diversões sexuais e afetivas’, mas sem uma ligação  consagrada nem de Deus e nem da lei. E se por acaso, por descuido, aparecer uma gravidez, não há problema, o aborto é solução. Por aí vai.

Que a Igreja esteja preocupada com esta situação é comprovado pelo sínodo da família que se pensava que uma simples sessão fosse necessária e o Papa Francisco e os participantes se viram obrigados a prolongá-lo com uma outra sessão e pode ser que nem baste... Há sobre a mesa problemas grandes e graves que vão da homossexualidade às segundas núpcias, ao matrimônio de fato ou matrimônio ‘aparente, de fachada’. Pais e mães não são mais tão importantes, se pode comprar um pai e mãe de aluguel e tudo está resolvido. Poderíamos continuar no que se diz até escrever um livro, mas a que serve fazer análises se não se encontra a solução e o meio certo?

A Igreja nos oferece uma solução e um remédio eficaz através da canonização dos pais de Santa  Teresinha,  Zélia Guerin e Luis Martin. Um matrimônio que ao longo da vida conjugal viveu situações difíceis, mas que à luz da fé soube enfrentá-las corajosamente. Há mulheres santas e há maridos ateus, como casos na história da santidade, como por exemplo o pai de Santo Agostinho, que se chamava Patrício, era ateu e Monica, a santa que com sua oração conseguiu converter um pouco o marido, mas totalmente o filho  Agostinho, que tinha  um péssimo caminho. Há casos de marido santo e mulher não santa.

Aqui temos um caso especial, os pais, quer dizer marido e mulher, que serão  declarados pela Igreja santos. Não uma santidade ‘honoris causa.’ Mas sim uma santidade concreta, real. É interessante o livro ‘A história de uma família’, que conta a vida da família Martin, provada pelas mortes de recém nascidos, pela doença de Zélia, pela pobreza, vendo um pouco os negócios irem à falência, pelos desentendimentos  com os parentes... E os dois, unidos na fé, na esperança e no amor. Dois caracteres totalmente diferentes e entre eles uma certa  diferença de idade.

Os dois vinham de uma desilusão de vida religiosa. Sabemos que Luis Martin, homem reflexivo e um pouco solitário, quem sabe também um pouco depressivo, queria ser monge, mas não sabendo latim, foi enviado de volta para casa. O seu mesmo trabalho de relojoeiro o levava a passar tempo sozinho. Zélia, uma jovem boa, empreendedora, mas que sentia no seu  coração o desejo da vida religiosa  e sem saber o porque foi recusada. Os dois não sabiam que rumo tomar. A mãe de Luis Martin, preocupada pela idade do filho, que beirava os 37 anos, arrumou o encontro entre os dois, noivado rápido, nem três meses, e ei-los casados à meia noite do 13 de julho de 1858.

Um Luis Martin que não quer filhos e quer viver a castidade, e uma Zélia que não quer filhos, mas o confessor santo que diz ‘matrimônio é feito para ter filhos’, e vão ter nove. Uma bela história de oração, de sacrifício, unidos na oração, no fazer o bem, preocupados com a educação das filhas.

Hoje é necessário ‘recriar’ famílias que saibam colocar ao centro da vida Deus e os filhos, e não o dinheiro e nem a promoção social, nem o bem estar econômico. O amor não é feito de jóias e nem de viagens, é feito de dom de si mesmo que gera a vida. Escrevi um livro sobre os pais de santa Teresinha com a editora Canção Nova, onde dizia que os pais de Santa Teresinha são pais normais, feitos de alegria e de tristeza e são imitáveis para as famílias normais. Nada de excepcional a não ser o amor vivido respeitando o caminho dos filhos. A História de uma Alma, autobiografia de Santa Teresinha, é o melhor testemunho do processo de canonização dos pais desta Santa. Espiritualidade familiar não é idéia, é vida. Todos os problemas da família têm uma única solução : crer no amor. Posso estar errado, mas isto é o que vejo na família de Jesus e de Zélia e Luis Martin.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/os-pais-de-santa-teresinha-modelos-para-todos-os-pais

sábado, 28 de março de 2015

'Oriente e Ocidente Perante o Mistério da Salvação' - Quinta pregação da Quaresma de 2015

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 * Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

‘Com esta meditação, encerramos o nosso percurso pela fé comum do Oriente e do Ocidente, e o encerramos com o que nos diz respeito mais diretamente : o problema da salvação, ou seja, como ortodoxos e mundo latino compreenderam o conteúdo da salvação cristã.

É, provavelmente, o campo em que é mais necessário para nós, latinos, voltar o olhar para o Oriente, a fim de enriquecer e, em parte, corrigir o nosso modo difuso de conceber a redenção operada por Cristo. Temos o privilégio de fazê-lo nesta capela, onde a obra de Cristo e do mistério da salvação foi representada pela arte do padre Rupnik, de acordo com a concepção da Igreja do Oriente e da iconografia bizantina.

Vamos começar com uma autorizada apresentação do modo diferente de entender a salvação entre Oriente e Ocidente, exposta no Dictionnaire de Spiritualité e que sintetiza a opinião dominante nos círculos teológicos :

O propósito da vida para os cristãos gregos é a divinização; o dos cristãos do Ocidente é a conquista da santidade (...). O Verbo se fez carne, de acordo com os gregos, para restituir ao homem a semelhança divina perdida em Adão e para divinizá-lo. De acordo com os latinos, Ele se fez homem para redimir a humanidade (...) e para pagar a dívida devida à justiça de Deus(1).

Procuraremos ver em que se baseia essa diferença de visão e o que há de verdadeiro na maneira de apresentá-la.

1. Os dois elementos da salvação na Escritura

Nas profecias do Antigo Testamento que anunciam ‘a nova e eterna aliança’, já se nota a presença de dois elementos fundamentais : um negativo, que consiste na eliminação do pecado e do mal em geral; e um positivo, que consiste no dom de um coração novo e de um espírito novo; em outras palavras, na destruição das obras do homem e na reedificação ou restauração da obra de Deus. Um texto claro, neste sentido, é este de Ezequiel :

Derramarei sobre vós águas puras, que vos purificarão de todas as vossas imundícies e de todas as vossas abominações. Dar-vos-ei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirar-vos-ei do peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Dentro de vós colocarei o meu espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e observeis os meus preceitos’ (Ez 36, 25-27).

Existe algo que Deus tirará do homem : a iniquidade, o coração de pedra, e algo que Ele colocará no homem : um coração novo, um espírito novo. No Novo Testamento, esses dois componentes são evidentes. Desde o início do Evangelho, João Batista apresenta Jesus como ‘o Cordeiro que tira o pecado do mundo’, mas também como ‘aquele que batiza no Espírito Santo’ (Jo 1, 29.33). Nos sinóticos, prevalece o aspecto da redenção do pecado : Jesus aplica a si, em várias ocasiões, a figura do Servo de Javé que toma sobre si e expia os pecados do povo (cf. Is 52,13-53,9); na instituição da Eucaristia, Ele fala do seu sangue derramado ‘para a remissão dos pecados’ (Mt 26,28).

Em João também está presente este aspecto, ligado, precisamente, ao tema do Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. A sua Primeira Carta apresenta Jesus como ‘a vítima de expiação pelos nossos pecados; não só dos nossos, mas também de todo o mundo’ (1 Jo 2,2). Mais acentuado, porém, é o elemento positivo em João. Com o Verbo feito carne, veio ao mundo a luz, a verdade, a vida eterna e a plenitude de toda a graça (cf. Jo 1, 16). O fruto mais enfatizado da morte de Jesus não é a expiação dos pecados, mas o dom do Espírito (cf. Jo 7,39; 19,34).

Em São Paulo, vemos estes dois elementos em perfeito equilíbrio. Na Carta aos Romanos, que podemos considerar a primeira exposição arrazoada da salvação cristã, ele primeiro destaca aquilo de que Cristo, com a Sua morte na cruz (Rm 3, 25), veio nos libertar : a morte (Rm 5), o pecado (Rm 6) e a lei (Rm 7); em seguida, no oitavo capítulo, ele expõe todo o esplendor daquilo que Cristo, por meio da sua morte e ressurreição, trouxe para o homem : o Espírito Santo e, com Ele, a filiação divina, o amor de Deus e a certeza da glorificação final. Os dois elementos estão presentes no próprio coração do Kerygma. Jesus ‘foi condenado à morte pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação’ (Rm 4, 25); por ‘justificação’ não se quer falar apenas da remissão dos pecados, mas também do que é dito em seguida no texto : da graça, da paz com Deus, da fé, da esperança, do amor de Deus derramado em nossos corações (Rm 5, 1-5).

Como sempre, na passagem da Escritura para os Padres da Igreja, observa-se uma recepção diferente desses dois elementos. De acordo com a opinião comum, resumida por Bardy no texto citado, o Oriente incorporou o elemento positivo da salvação : a divinização do homem e a restauração da imagem de Deus; o Ocidente recebeu o elemento negativo, a libertação do pecado. A realidade é muito mais complexa e a tentativa de esclarecê-la facilitará a mútua compreensão.

Vamos corrigir, primeiro, algumas generalizações que fazem as duas visões da salvação parecerem mais distantes uma da outra do que de fato estão. Não é de admirar, antes de mais, se, no âmbito latino, não encontramos alguns conceitos centrais para os gregos, como o de ‘divinização’ e ‘restauração da imagem de Deus’. Eles não aparecem, como tais, no Novo Testamento, que é a única fonte comum, embora tenham servido para transmitir um modo primorosamente bíblico de entender a salvação. O próprio termo theosis, divinização, despertava reservas devido ao uso que dele se fazia na linguagem pagã e na da Roma imperial (apotheosis).

Os latinos expressaram de preferência o efeito positivo do batismo com o conceito paulino da filiação divina. De acordo com São João da Cruz, realizam-se na alma cristã, pela graça, as operações que ocorrem por natureza na Trindade : uma doutrina que não é distante da visão ortodoxa da deificação, mas baseada na afirmação joanina da inabitação da Trindade (Jo 14,23) (2).

Outra observação. Não é inteiramente verdade que a soteriologia ortodoxa se resuma na visão ontológica da divinização e a ocidental na teoria jurídica de Santo Anselmo, da expiação devida ao pecado. A ideia de sacrifício pelo pecado, de redenção, de pagamento de uma dívida (e até mesmo, em alguns casos, de um resgate pago ao diabo!) está presente em Santo Atanásio, em São Basílio, em São Gregório de Nissa e em São João Crisóstomo não menos do que nos seus contemporâneos latinos. Basta, a este propósito, consultar uma boa reconstrução do pensamento cristão das origens (3). Um texto entre os muitos é este, de Atanásio, que é também um dos mais determinados defensores da tese de divinização :

Restava ainda a pagar a dívida que todos devíamos, porque estávamos todos condenados à morte, e esta foi a causa principal da sua vinda até nós. É por isso que, depois de revelar a sua divindade com as obras, restava-lhe oferecer o sacrifício por todos, cedendo o templo do seu corpo à morte por todos(4).

Para estes Padres gregos antigos, o mistério pascal de Cristo é ainda parte integrante e caminho para a divinização, inclusive na época bizantina. Para Nicolau Cabasilas, havia dois muros que impediam a comunicação entre Deus e nós : a natureza e o pecado. ‘O primeiro foi retirado pelo Salvador com a sua encarnação; o segundo, com a crucificação, pois a cruz destruiu o pecado(5).

Apenas em alguns casos é que vemos afirmar-se, no seio da ortodoxia, a ideia de uma salvação da humanidade realizada à raiz da própria encarnação do Verbo, entendida como a assunção não de uma humanidade singular, mas da natureza humana presente em todos os homens, à maneira do universal platônico. Num caso extremo, a divinização ocorre mesmo antes do batismo. Escreve São Simeão, o Novo Teólogo :

Descendo do teu santuário excelso sem te apartares do seio do Pai, e encarnado e nascido da Santa Virgem Maria, já então me replasmaste e vivificaste, liberto da culpa dos nossos primeiros pais e preparada a ascensão ao céu. Em seguida, depois de me teres criado e feito aos poucos crescer, tu, também em teu santo batismo da nova criação, me renovaste e ornaste com o Espírito Santo(6).

Até aqui, portanto, as diferentes teorias da salvação não são tão fortemente divididas entre Oriente e Ocidente, como se costuma acreditar. A diferença é clara e constante, desde o início até hoje, na compreensão do pecado original e, portanto, no efeito primário do batismo. Os orientais nunca entenderam o pecado original no sentido de uma verdadeira ‘culpa’ hereditária, mas como a transmissão de uma natureza ferida e propensa ao pecado, como uma perda progressiva da imagem de Deus no homem, não só devida ao pecado Adão, mas ao de todas as gerações sucessivas.

Com o símbolo niceno-constantinopolitano, todos professam ‘um só batismo para a remissão dos pecados’, mas, para os orientais, o batismo não tem principalmente o escopo de tirar o pecado original (nas crianças, não tem de forma alguma este escopo), mas sim o de libertar o homem do poder do pecado em geral, restaurar a imagem de Deus, perdida, e inserir a criatura no novo Adão, que é Cristo. Esta perspectiva diferente se reflete, por exemplo, na imagem que temos da Virgem Maria. No Ocidente, ela é vista como ‘Imaculada’, ou seja, concebida sem o pecado (mácula) original, havendo inclusive a definição dogmática deste título; no Oriente, o título correspondente é o de Panagia, a toda santa.


2. Uma comparação assimétrica

Não preciso me debruçar longamente sobre o modo ocidental de conceber a salvação operada por Cristo, porque ele nos é mais familiar. Digamos apenas que acontece aqui um paradoxo notável. Aquele que foi, em todo o cristianismo, o cantor por excelência da graça, aquele que destacou melhor do que todos a sua novidade no tocante à lei e a sua necessidade absoluta para a salvação, aquele que identificou tal dom com o próprio Doador, que é o Espírito Santo, foi também aquele que, por circunstâncias históricas, mais contribuiu para restringir o seu campo de ação.

A polêmica com os pelagianos levou Agostinho a destacar, da graça, especialmente o aspecto de preservação e cura do pecado, a chamada graça preveniente, adjuvante, sanante. A sua doutrina do pecado original, como verdadeira culpa hereditária, transmitida no ato da geração sexual, fez com que o batismo fosse visto prevalentemente como libertação do pecado original.

Nem Agostinho nem outros depois dele silenciaram quanto aos demais bens do batismo: a filiação divina, a inserção no corpo de Cristo, o dom do Espírito e tantos outros magníficos dons. O fato é, porém, que, no modo de administrá-lo e na opinião geral, o aspecto negativo de libertação do pecado original prevaleceu sempre sobre o positivo de dom do Espírito Santo (sendo este atribuído mais destacadamente ao sacramento da confirmação). Mesmo hoje, quando se pergunta a um cristão o que significa estar ‘em graça de Deus’ ou viver ‘em graça’, a resposta é quase sempre viver sem pecados mortais na consciência.

É a consequência inevitável de todas as heresias : a de forçar a teologia a se concentrar momentaneamente num ponto da doutrina em detrimento do todo. É um fato normal em muitos momentos do desenvolvimento do dogma. Foi isto o que levou alguns autores alexandrinos ao limite do monofisismo para se oporem ao nestorianismo, e vice-versa. E o que foi que fez com que a ruptura momentânea do equilíbrio, no caso de Agostinho, fosse tão diferente e tão duradoura? A resposta é simples : a sua própria estatura e autoridade solitária!

Houve, depois dele, quem propusesse uma explicação diferente e mais próxima da dos gregos : João Duns Scotus (1265-1308). O fim principal da encarnação não é, para ele, a redenção do pecado, mas a restauração de todas as coisas em Cristo, ‘em vista do qual todas as coisas foram criadas’ (Col 1,15 ss.); o objetivo é a união, em Cristo, da natureza divina com a humana (7). A encarnação, portanto, teria ocorrido mesmo que Adão não tivesse pecado. O pecado de Adão só determinou a modalidade desta recapitulação de todas as coisas em Cristo, tornando-a ‘redentora’.

Mas a voz de Scotus ficou isolada e só recentemente foi reavaliada pelos teólogos. A que se impôs foi outra voz, que não reequilibrava o pensamento de Agostinho, mas o exasperava. Falo de Lutero, que também teve o mérito, para toda a cristandade, de recolocar a palavra de Deus, a Bíblia, no centro e no topo de tudo, inclusive das palavras dos Padres, que são sempre palavras de homens. Com ele, a diferença em relação ao Oriente, no entendimento da salvação, se torna realmente radical. À teoria da divinização do homem, opõe-se a tese de uma justiça imputada extrinsecamente por Deus, que mantém o batizado ‘justo e pecador’ ao mesmo tempo : pecador em si mesmo, justo aos olhos de Deus.

Mas deixemos de lado este desenvolvimento posterior, que merece uma discussão à parte. Voltando à comparação entre a ortodoxia e a Igreja católica, precisamos destacar um fato que, aos olhos de alguns autores ortodoxos, fazia com que, no passado, a nossa concepção da salvação e da vida cristã parecesse diferente da deles em quase todos os pontos. Trata-se de uma assimetria de fundo. No Oriente, a teologia, a espiritualidade e a mística são unidas; não se concebe uma teologia que não seja também mística, isto é, experiencial. A reconstrução da posição ortodoxa é feita levando-se em conta os teólogos, como os capadócios, o Damasceno, Máximo Confessor, mas também os movimentos espirituais, como os Padres do Deserto, o hesicasmo, o monaquismo, o palamismo, a Filocalia, autores místicos como Simeão, o Novo Teólogo, Serafim de Sarov, e assim por diante.

Infelizmente, isto não aconteceu no Ocidente, onde, inclusive no ensino, a mística e a espiritualidade ocuparam, especialmente com o advento da Escolástica, um lugar diferente da dogmática; mais do que isto : a mistura das coisas chegou a ser vista com desconfiança. A comparação entre o Oriente e o Ocidente latino levaria a resultados muito diferentes e muito menos conflitivos se fossem considerados os muitos movimentos espirituais e autores místicos católicos, nos quais a salvação cristã não é teorizada, mas vivida.

Dos três livros já citados (8), que são os que mais contribuíram para tornar conhecida no Ocidente a ‘teologia mística’ do Oriente cristão, só um menciona (duas vezes, e com tendência negativa) São João da Cruz. No entanto, com o tema da ‘noite escura’, ele, assim como vários outros no Ocidente, se coloca na linha da visão de Deus na escuridão de São Gregório de Nissa. Nenhuma menção é feita ao monaquismo ocidental, a São Francisco de Assis e à sua espiritualidade positiva e cristocêntrica; a escritos místicos como a ‘Nuvem do Não-Conhecimento’, tão em sintonia com o apofatismo da teologia oriental. Mas isto, repito, é culpa mais nossa que dos autores orientais, se é que podemos falar de culpa. Fomos nós que realizamos a nefasta separação entre teologia e espiritualidade e não podemos pedir que os outros façam uma síntese que nem nós tentamos fazer ainda.


3. Uma chance para o Ocidente

Voltemos ao parecer de Bardy, do qual partimos : o Oriente, diz ele, tem uma visão mais otimista e positiva do homem e da salvação; o Ocidente, uma visão mais pessimista. Eu gostaria de mostrar que, também neste caso, a regra de ouro no diálogo entre Oriente e Ocidente não é a do aut - aut, mas a do et - et. Se a doutrina oriental, com a sua altíssima ideia da grandeza e da dignidade do homem como imagem de Deus, destacou a possibilidade da encarnação, a doutrina ocidental, com a insistência no pecado e na miséria do homem, salientou a sua necessidade. Um discípulo tardio de Agostinho, Blaise Pascal, observou :

O conhecimento de Deus sem o da nossa miséria produz orgulho. O conhecimento da nossa miséria sem o de Deus produz desespero. O conhecimento de Jesus Cristo é o ponto de equilíbrio, porque nele encontramos Deus e a nossa miséria(9).

Para Agostinho, Santo Anselmo, Lutero, a insistência na gravidade do pecado (10) era um modo diferente de enfatizar a grandeza do remédio proporcionado por Cristo. Eles acentuavam ‘a abundância do pecado’ para exaltar ‘a superabundância da graça’ (cf. Rm 5,20). Em ambos os casos, a chave de tudo é a obra de Jesus, vista pelos orientais a partir de um lado, por assim dizer, e pelos ocidentais a partir de outro. Os dois lados são legítimos e necessários. Diante da explosão do ‘mal absoluto’ na Segunda Guerra Mundial, alguém notou até que ponto tinha chegado o esquecimento desta amarga verdade sobre o homem, depois de dois séculos de ingênua fé no supostamente imparável progresso do homem (11).

Onde está, então, a lacuna da nossa soteriologia que nos faz ter que olhar para o Oriente? Está no fato de que a graça, mesmo sendo exaltada, acabou reduzida, na prática, à sua dimensão negativa de remédio para o pecado. Até o grito do Exultet pascal, ‘Ó feliz culpa que nos mereceu tão grande Redentor!’, se bem considerarmos, fica na perspectiva do pecado e da redenção.

É precisamente neste ponto, graças a Deus, que vemos há certo tempo uma mudança capaz de marcar época. Todas as Igrejas do Ocidente, ou nascidas dele, têm sido atravessadas há mais de um século ​​por uma corrente de graça que é o movimento pentecostal e as várias renovações carismáticas derivadas dele nas Igrejas tradicionais. Não se trata, na realidade, de um movimento no sentido corrente do termo. Não tem fundador, regra, espiritualidade própria; não tem estruturas de governo, apenas de coordenação e serviço. É justamente uma corrente de graça, que deveria se espalhar por toda a Igreja como um choque elétrico na massa, para, assim, deixar de ser um fenômeno separado.

Não é possível ignorar por mais tempo, ou considerar marginal, um fenômeno que, de formas mais ou menos profundas, atingiu centenas de milhões de crentes em Cristo em todas as confissões cristãs e dezenas de milhões só na Igreja católica. Ao receber pela primeira vez, em 19 de maio de 1975, os líderes da Renovação Carismática Católica na Basílica de São Pedro, o beato papa Paulo VI, em seu discurso, chamou o movimento de ‘uma chance para a Igreja e para o mundo’.

O teólogo Yves Congar, em seu relatório ao Congresso Internacional de Pneumatologia, realizado no Vaticano por ocasião do XVI centenário do Concílio Ecumênico de Constantinopla de 381, declarou a respeito dos sinais do despertar do Espírito Santo em nosso tempo :

Como não situar aqui a corrente carismática, também conhecida como Renovação no Espírito? Ela se espalhou como fogo em palha. É muito mais que uma moda passageira... Por um lado, acima de tudo, ela se parece com um movimento de avivamento : pelo caráter público e verificável da sua ação que muda a vida das pessoas... É como uma jovialidade, um frescor e novas possibilidades dentro da velha Igreja, nossa Mãe(12).

O que, neste momento, eu gostaria de destacar é um ponto preciso : em que sentido e de que maneira podemos dizer que esta realidade é uma chance para a Igreja católica e para as Igrejas nascidas da Reforma? Eu acho que é por isto : ela permite restituir à salvação cristã o rico e edificante conteúdo positivo resumido no dom do Espírito Santo. O objetivo primário da vida cristã reaparece, conforme dizia São Serafim de Sarov, como ‘o recebimento do Espírito Santo(13). São João Paulo II, em um discurso para os líderes da Renovação Carismática Católica em 1998, disse :

O Movimento Carismático Católico (...), como um novo Pentecostes, despertou na vida da Igreja um extraordinário florescimento de grupos e movimentos particularmente sensíveis à ação do Espírito (...). Quantos fiéis leigos têm experimentado em suas próprias vidas o impactante poder do Espírito Santo e dos seus dons! Quantas pessoas redescobriram a fé, o gosto da oração, a força e a beleza da Palavra de Deus, traduzindo tudo isso em generoso serviço à missão da Igreja! Quantas vidas foram profundamente mudadas!(14).

Eu não digo que, entre as pessoas que se identificam com esta ‘corrente de graça’, todas vivam essas características, mas sei, por experiência, que todos, mesmo os mais simples, sabem do que se trata e aspiram a realizá-las na sua vida. Até a imagem externa da vida cristã é diferente : é um cristianismo alegre, contagiante, que nada tem do pessimismo sombrio que Nietzsche censurava. O pecado não é banalizado, porque um dos primeiros efeitos da vinda do Paráclito ao coração do homem é ‘convencê-lo do pecado’ (Jo 16,8).

Não é questão de aderir a este ‘movimento’, ou a qualquer movimento, mas de abrir-se à ação do Espírito no estado de vida em que se esteja. O Espírito Santo não é monopólio de ninguém, muito menos do movimento pentecostal e carismático. O importante é não sair da corrente de graça que atravessa, de várias formas, todo o cristianismo; é ver nela uma iniciativa de Deus e uma chance para a Igreja, e não uma ameaça ou uma infiltração estranha ao catolicismo.

Algo que pode destruir essa chance vem de dentro dela. A Escritura afirma a primazia da obra santificadora do Espírito sobre a sua atividade carismática. Basta ler conjuntamente 1 Coríntios 12 e 13, sobre os diversos carismas e sobre a melhor estrada de todas, que é a caridade. Seria comprometer esta oportunidade se a ênfase nos carismas, e nalgum deles em particular, prevalecesse sobre o esforço de uma autêntica vida ‘em Cristo’ e ‘no Espírito’, com base na conformação a Cristo e, portanto, na mortificação das obras da carne e na busca dos frutos do Espírito.

Espero que o próximo retiro mundial do clero, organizado para junho aqui em Roma em preparação do 50º aniversário da Renovação Carismática Católica, em 2017, sirva para reafirmar vigorosamente esta prioridade, continuando também a incentivar de todas as formas o exercício dos carismas, tão úteis e necessários, de acordo com o Concílio Vaticano II, ‘à renovação e à maior expansão da Igreja(15).

Deixemos os irmãos ortodoxos decidirem se esta corrente de graça é destinada apenas a nós, Igrejas do Ocidente e nascidas dele, ou se um novo Pentecostes é uma necessidade também do Oriente cristão. Enquanto isso, não podemos deixar de lhes agradecer por terem cultivado e tenazmente defendido ao longo dos séculos um ideal de vida cristã bonito e edificante, do qual toda a cristandade se beneficiou, inclusive por meio do silencioso instrumento do ícone.

Desenvolvemos as nossas reflexões sobre a fé comum do Oriente e do Ocidente tendo à nossa frente, nesta capela, a imagem da Jerusalém celeste com os santos ortodoxos e católicos reunidos em grupos mistos, de três em três. Peçamos a eles a ajuda para realizar, na Igreja aqui da terra, a mesma comunhão fraterna de amor que eles vivem na Jerusalém celeste.

Agradeço ao Santo Padre e aos veneráveis padres, irmãos e irmãs, pela benévola atenção e desejo a todos uma Feliz Páscoa!’


Fonte :
------------------------
(1) G. Bardy, Dictionnaire de spiritualité, ascétique et mystique, III, Beauchesne, Paris 1937, col. 1389s; cf. também Y. Spiteris, Salvezza e peccato nella tradizione orientale, EDB, Bolonha 1999.
(2) João da Cruz, Cântico Espiritual A, estrofe 38.
(3) Cf. J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, Londres 1968, cap. 14.
(4) Atanásio, De Incarnatione, 20.
(5) N. Cabasilas, Vida em Cristo, III, 1 (PG 153,  572).
(6) Simeão, o Novo Teólogo, Hinos (SCh 196, 1973, 330 s.).
(7) Duns Scoto, Reportationes Parisienses, III, d.7,q.4,§ 5 (ed. Wadding, vol. XI, pág. 451).
(8) V. Lossky, P. Evdokimov, J. Meyendorf, citados na primeira meditação.
(9) B. Pascal, Pensamentos, 527 (Brunschvicg); cf. M. Pelikan, Jesus Through the Centuries, Harper and Row, Nova Iorque 1987, pág. 73-76.
(10) Anselmo, Cur Deus homo, XXI: (Nondum considerasti quanti ponderis sit peccatum: ‘Não considerastes ainda a gravidade do pecado’).
(11) W. Lippman, cit. por M. Pelikan, op. cit., pág. 76.
(12) Y. Congar, Actualité de la Pneumatologie, em Credo in Spiritum Sanctum, Libreria Editrice Vaticana, 1983, I, pág. 17ss.
(13) Serafim de Sarov, Colóquio com Motovilov, em I. Gorainoff, Seraphim de Sarov, Paris 1996.
(14) João Paulo II, Discurso à Comissão Nacional de Serviço e ao Conselho Nacional da Renovação Carismática, 4 de abril de 1998.
(15) Lumen gentium, 12.


quarta-feira, 25 de março de 2015

Chamados para servir

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

‘Dentro da Quaresma celebramos a solenidade da Anunciação do Senhor. Nesse anúncio aparece o grande ‘sim’ de Maria! Isso nos remete a pensar sobre o nosso sim hoje. A história do chamado de Deus a Santíssima Virgem Maria nos ajuda a compreender e a responder à nossa vocação. Pois, Nossa Senhora é a ‘Carta’ que Deus dá aos corações mais simples para compreender a grandeza do chamado que Ele nos faz. Na simplicidade da Menina de Nazaré está escondida a grande Mãe de Deus, que está nos Céus à espera de cada um de nós. Maria é modelo para toda a Igreja, por isso, sua resposta ao chamado de Deus é também modelo para todos nós. Estas escondem a grandeza e a sublimidade da sua vocação, que nos ajudam a compreender e assumir o desígnio de Deus para todos nós.

Ao celebrarmos a festa da Anunciação do Senhor, ouvindo a disponibilidade da Virgem Maria aos planos de Deus colocando-se a serviço do Reino, nos vem à mente e ao coração o tema da Campanha da Fraternidade deste ano, que nos indica que somos chamados a fazer como Jesus : ‘Eu vim para servir’.

A Virgem Maria é a ‘Carta de Deus’ que nos ajuda a descobrir como o Senhor age no mistério da Salvação e, consequentemente, em nossa vocação. Não há nada que desoriente a mente humana como a simplicidade das obras divinas se comparada com os efeitos que se conseguem (…) O ‘sim’ da Virgem de Nazaré ao chamado de Deus é traduzido com o latim ‘fiat’, que significa ‘faça-se’, mas no original a palavra grega não expressa uma simples aceitação resignada, mas um vivo desejo. É como se dissesse : Eu também desejo, com todo o meu ser, o que Deus deseja; faça-se logo o que Ele quer. Nossa Senhora concebeu Cristo no seu coração antes de concebê-Lo no seu corpo. O ‘sim’ de Maria ao anúncio do Anjo nos ajuda a dar a nossa resposta diante da nossa vocação, do chamado de Deus. O Senhor espera de nós, como esperou de Maria, não somente a aceitação da nossa vocação, mas também o vivo desejo de realizá-la plenamente. Pois, o próprio Jesus desejou ardentemente realizar a vontade do Pai. E nessa solenidade aparecem essas duas respostas : a de Maria e a de Jesus!

Tendo em vista a nossa vocação, enquanto recebemos de Deus, somos convidados a fazer como Maria. Ser uma humilde serva do Senhor! Isso vale para todos, mas, sobretudo, para os que têm alguma responsabilidade de serviço na Igreja. Devemos ser aquele que serve, pois é nisto que consiste a realização de toda a vocação.

Nas ‘Cartas pastorais’ enviadas aos seus discípulos Timóteo e Tito, o apóstolo Paulo se concentra com cuidado na figura dos ministros, mas também sobre a figura dos fiéis, dos idosos, dos jovens. Concentra-se em uma descrição de cada cristão na Igreja. Ora, é emblemático como, junto aos dotes inerentes à fé e à vida espiritual – que não podem ser negligenciadas porque são a própria vida – são elencadas algumas qualidades puramente humanas : o acolhimento, a sobriedade, a paciência, a mansidão, a confiança, a bondade de coração.

É este o alfabeto, a gramática de base de cada ministério! Deve ser a gramática de base de cada um de nós. Sim, porque sem esta predisposição bela e genuína a encontrar, a conhecer, a dialogar, a apreciar e a se relacionar com os irmãos de modo respeitoso e sincero não é possível oferecer um serviço e um testemunho realmente alegre e credível.

O apóstolo exorta a reviver continuamente o dom que foi recebido (Cf. 1 Tm 4, 14; 2 Tm 1, 6). Isto significa que deve estar sempre viva a consciência de que não se é mais inteligente, melhor que os outros, mas somente em força de um dom, um dom de amor dado por Deus, no poder do seu Espírito, para o bem do Seu povo. Esta consciência é realmente importante e constitui uma graça a pedir todos os dias!

A consciência de que tudo é dom, tudo é graça, também nos ajuda a não cair na tentação de colocar-se no centro da atenção e de confiar apenas em si mesmo. São as tentações da vaidade, do orgulho, da suficiência, da soberba. A consciência de sermos por primeiro objeto de misericórdia e da compaixão de Deus deve nos levar a ser sempre humildes e compreensivos nos confrontos dos outros. Estando na consciência de ser chamado a proteger com coragem o depósito da fé (Cf. 1 Tm 6, 20), nos colocaremos em escuta dos irmãos. Somos conscientes de ter sempre algo a aprender, mesmo com aqueles que podem ser ainda distantes da fé e da Igreja. Com os próprios irmãos, depois, tudo isto deve levar-nos a assumir uma atitude nova, com o compromisso da partilha, da corresponsabilidade e com a comunhão.

Assim como a Virgem Maria é a ‘Carta de Deus’, somos chamados a ler com os olhos de fé. Não nos enganemos com a simplicidade das suas palavras, pois o que se realizou a partir dela foi a salvação de toda a humanidade,em Jesus Cristo. Comoa Mãe do Senhor, coloquemo-nos em prontidão para o serviço de Deus. À semelhança de Maria, aceitemos a nossa vocação, o nosso chamado, com o ardente desejo de realizá-la plenamente. Acreditemos que o Senhor nos chama para uma alta vocação e digamos o nosso ‘sim’, o nosso ‘amém’.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/chamados-para-servir

segunda-feira, 23 de março de 2015

Rasgai o coração

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  *Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

‘Esta é uma clamorosa convocação proclamada pelo profeta Joel em época remota, há cerca de 400 anos antes de Cristo. O clamor do profeta é um apelo que indica o caminho para se vencer as pragas. Hoje, ainda que não acolhida pela vivência da religiosidade, é oportuno ouvi-la e compreendê-la como interpelação para enfrentar as crises que estão desarrumando o funcionamento da sociedade. Particularmente, é importante escutá-la quando se chega à conclusão de que a maior crise na atualidade é a de confiança. A credibilidade está em baixa, em razão de posturas e práticas adotadas na esfera privada e no inadequado tratamento do que é de domínio público. É hora de um recomeço, que é complexo e altamente exigente. Esse processo exige a indispensável ação e posicionamentos de lideranças, para que se alcance um novo tempo pela força da credibilidade que cada cidadão precisa prezar.  Ser digno de confiança é o aspecto mais honroso da vida particular, profissional e cidadã.

As muitas reformas necessárias para superar os graves problemas enfrentados pelo país demandam a mudança prioritária e urgente do próprio coração, que é referência simbólica da confluência da racionalidade e dos sentimentos. O coração é lugar da produção e da manutenção de uma consciência pautada em valores cidadãos, no gosto pelo altruísmo e no mais nobre sentido de respeito ao outro. A incompetência humanística de lideranças e a falta de densidade espiritual são os mais desafiadores obstáculos que impedem a recuperação da confiança.

A mesquinhez de se priorizar o atendimento de interesses cartoriais, a estreiteza dos egoísmos, a busca do lucro e da acumulação de riquezas sem parâmetros éticos produziram processos de desumanização que agora não são fáceis de serem revertidos. Sem a recuperação da confiança, alicerçada na verdade das ações e na reverência pela justiça, de nada adiantará a operação de um conjunto, mesmo significativo, de reformas. As mudanças precisam ser precedidas e acompanhadas pela reforma do coração. ‘Rasgai o coração’ precisaria se tornar uma ‘onda’ que leva a um despertar novo da consciência. Um movimento que deveria envolver, inicialmente, os mais altos dirigentes, os ocupantes de cargos representativos, os formadores de opinião e os que têm papel mais decisivo na construção da sociedade. Essa ‘onda’ deve incluir o cidadão simples, que paga o preço mais alto por tudo o que está na raiz da falta de confiança.

A crise de credibilidade envenena os funcionamentos de instituições diversas e desestabiliza as relações interpessoais. Trata-se de um sério problema que não se enfrenta sem a recuperação da competência humanística e também espiritual. A carência dessa qualificação leva às escolhas equivocadas que impedem a sociedade de funcionar nos parâmetros da verdade e da justiça. É hora de fixar o olhar não apenas nas dinâmicas viciadas em tantos segmentos, setores e instâncias. É urgente e prioritária uma reconfiguração do sentido mais profundo que rege o coração.

Rasgar o coração’ é prática que sempre se começa por uma escuta mais atenta e permanente dos clamores dos mais pobres. É inadiável o exercício de reconhecer e buscar superar as muitas misérias, todas produzidas pela falta de cidadania. Trata-se de tarefa capaz de gerar novas lideranças. ‘Rasgai os corações’ é convocação e também um alerta. Indica que eventuais novas estruturas e funcionamentos, se não forem alcançados sem a geração interior e pessoal de novas atitudes, mais cedo ou mais tarde, se tornarão também corruptos, pesados e ineficazes.

É hora de ouvir o clamor dos mais pobres.  Estamos todos desafiados a enfrentar a crise de credibilidade com novas respostas, particularmente com um discurso político que não seja paliativo. A sociedade na qual estamos inseridos estampa a vergonha de uma generalizada falta de envergadura moral e solidária. Um mal que cria o ambiente propício para sermos, cedo ou tarde, as próprias vítimas de alguma praga. O alcançar de um novo tempo tem como ponto de partida o convite : Rasgai o coração!


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4908

sábado, 21 de março de 2015

'Oriente e Ocidente perante o mistério da pessoa do Espírito Santo' - Quarta pregação da Quaresma de 2015

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 * Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

‘Meditaremos sobre a fé comum do Oriente e do Ocidente no Espírito Santo e procuraremos fazê-lo ‘no Espírito’, em sua presença, sabendo que, como diz a Escritura, ‘antes mesmo de a nossa palavra chegar à língua, ele já a conhece’ (cf. Salmo 139, 4).

1. Rumo ao acordo sobre o Filioque

Durante séculos, a doutrina sobre a origem do Espírito Santo no seio da Trindade foi o ponto de maior atrito e tema de acusações mútuas entre o Oriente e o Ocidente, por causa do famoso ‘Filioque’. Tentarei reconstruir o estado da questão para avaliar melhor a graça que Deus está nos dando de chegar ao entendimento também neste problema espinhoso.

A fé da Igreja no Espírito Santo foi definida, como se sabe, no concílio ecumênico de Constantinopla, em 381, com as seguintes palavras : ‘... e (cremos) no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, que procede do Pai e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, Ele que falou pelos profetas(1). Esta fórmula contém a resposta para as duas perguntas fundamentais sobre o Espírito Santo. À pergunta ‘Quem é o Espírito Santo’, responde-se que é ‘Senhor’ (isto é, pertence à esfera do Criador, não das criaturas), que procede do Pai e, na adoração, é igual ao Pai e ao Filho; à pergunta ‘o que o Espírito Santo faz?’, responde-se que Ele ‘dá a vida’ (o que resume toda a obra santificadora, interior e renovadora do Espírito) e que ‘falou pelos profetas’ (o que resume a ação carismática do Espírito Santo).

Apesar destes elementos de grande valor, deve-se dizer, no entanto, que o artigo reflete um estágio ainda provisório, se não da fé, pelo menos da terminologia sobre o Espírito Santo. A lacuna mais óbvia é que ainda não se atribui explicitamente ao Espírito Santo o título de ‘Deus’. O primeiro a lamentar esta reticência foi São Gregório Nazianzeno, que, por conta própria, tinha escrito : ‘O Espírito é Deus? Certamente! Então é consubstancial (homousion)? É claro que sim, se é verdade que Ele é Deus(2). Esta lacuna foi preenchida na prática da Igreja, que, superados os motivos contingentes que até então a tinham contido, não hesitou em atribuir ao Espírito o título de ‘Deus’ e em defini-lo como ‘consubstancial’ ao Pai e ao Filho.

Mas esta não era a única ‘lacuna’. Do ponto de vista da história da salvação, não deveria tardar em parecer estranho que a única obra atribuída ao Espírito fosse a de ter ‘falado pelos profetas’, silenciando-se todas as suas outras obras e, especialmente, a sua atividade no Novo Testamento, na vida de Jesus. Mais uma vez, o complemento da fórmula dogmática ocorreu espontaneamente na vida da Igreja, como fica evidente nesta epiclese da liturgia dita de São Tiago, em que se atribui ao Espírito o título de consubstancial :

Enviai... o vosso Santíssimo Espírito, Senhor que dá a vida, que está sentado convosco, Deus e Pai, e com o vosso Filho unigênito; que reina, consubstancial e coeterno. Ele falou na Lei, nos Profetas e no Novo Testamento; desceu em forma de pomba sobre nosso Senhor Jesus Cristo no rio Jordão, repousando sobre Ele, e desceu sobre os santos apóstolos... no dia do Santo Pentecostes(3).

Outro ponto, o mais importante, sobre o qual a fórmula conciliar nada dizia, era a relação entre o Espírito Santo e o Filho, e, consequentemente, entre cristologia e pneumatologia. A única menção a respeito era a frase ‘encarnado por obra do Espírito Santo em Maria Virgem’, que, provavelmente, já fazia parte do símbolo de fé que o Concílio de Constantinopla tinha adotado como base do seu credo.

Quanto a este ponto, a integração do símbolo aconteceu de maneira menos unívoca e pacífica. Alguns Padres gregos expressaram a eterna relação entre o Filho e o Espírito Santo dizendo que o Espírito Santo procede do Pai ‘através do Filho’, que é ‘a imagem do Filho’ (4), que ‘procede do Pai e recebe do Filho’, que é o ‘raio’ que se difunde do sol (o Pai), através do seu esplendor (o Filho), o fluxo que brota da fonte (o Pai) através do rio (o Filho).

Quando a discussão sobre o Espírito Santo passou para o mundo latino, cunhou-se, para expressar esta relação, a frase segundo a qual o Espírito Santo procede ‘do Pai e do Filho’. ‘E do Filho’, em latim, se diz Filioque : daí o sentido com que se sobrecarregou esta palavra nas disputas entre Oriente e Ocidente e as conclusões manifestamente exageradas a que, às vezes, se chegou.

O primeiro a formular a ideia de que o Espírito Santo procede ‘do Pai e do Filho’ foi Santo Ambrósio (5). Ele não é influenciado por Tertuliano (a quem não conhece e nunca menciona), mas pelas expressões recém-recordadas, que lia nas suas costumeiras fontes gregas : São Basílio e, mais ainda, Santo Atanásio e Dídimo de Alexandria. Todas aquelas formas de expressar-se lançavam luz sobre certa relação, ainda que misteriosas e não esclarecidas, entre o Filho e o Espírito Santo na sua comum origem a partir do Pai. Se a frase ‘por meio do Filho’ quer dizer algo, esse ‘algo’ é aquilo que Ambrósio (desconhecedor, como todos os latinos, da sutil distinção que existe em grego entre ‘provir’, ekporeuesthai, e ‘proceder’, proienai) pretendeu exprimir com ‘e do Filho’.

Santo Agostinho deu à expressão ‘do Pai e do Filho’ (ainda não há nele a expressão literal Filioque) a justificação teológica que caracterizou, a partir de então, toda a pneumatologia latina. Ele usa muitas nuances e, certamente, não coloca Pai e Filho na mesma linha, no tocante ao Espírito Santo, como se percebe na bem conhecida afirmação : ‘O Espírito Santo procede primariamente do Pai (de Patre principaliter) e, pelo dom feito dele ao Filho pelo Pai, sem qualquer intervalo de tempo, de ambos ao mesmo tempo(6).

O que exigia esta doutrina, além de muitas passagens do Novo Testamento (‘Tudo o que o Pai possui é meu’, ‘Ele (o Paráclito) tomará do que é meu’), era a sua concepção das relações trinitárias como relações baseadas no amor. Isto permitia também responder a uma objeção que tinha ficado sempre sem resposta : o que o Pai ainda não tinha manifestado plenamente de si mesmo na geração do Filho, para justificar uma segunda operação trinitária? O que distingue a origem do Espírito Santo da geração do Verbo?

Quem cunhou a expressão literal Filioque para indicar a origem do Espírito Santo a partir ‘do Pai e do Filho’ foi Fulgêncio de Ruspe, que, assim como em outros casos, ‘endureceu’ fórmulas anteriores ainda elásticas da teologia latina (7). Ele se cala quanto à precisação de Agostinho, segundo a qual o Espírito Santo procede ‘principalmente’ do Pai, e insiste em dizer que ‘procede do Filho tal como (sicut) procede do Pai’, ‘inteiramente (totus) do Pai e inteiramente do Filho’, nivelando, assim, as duas relações de origem (8). É nesta versão indiferenciada que a doutrina sobre a origem do Espírito Santo do Pai e do Filho entrará nas definições eclesiais a partir do III Concílio de Toledo, em 589 (9).

Enquanto permaneceu neste nível, a questão não despertou protestos do Oriente. No ano de 809, porém, foi realizado em Aquisgrão, por vontade de Carlos Magno, um sínodo para patrocinar a introdução do Filioque no símbolo niceno-constantinopolitano, que começava, em algumas igrejas, a ser cantado na missa. O imperador, mais que por convicções teológicas pessoais, era motivado pelo desejo de dar uma justificativa também doutrinal à sua política de emancipar-se do império do Oriente.

No final do concílio, uma delegação do imperador foi a Roma a fim de ganhar o papa Leão III para a causa do imperador. Embora partilhasse plenamente da doutrina do Filioque, no entanto, o papa considerava inoportuna a sua inserção no símbolo e manteve com firmeza a sua decisão (10). Nisto ele seguia a mesma linha de ação da Igreja grega, onde tinha havido, como já vimos, importantes integrações e aprofundamentos do artigo sobre o Espírito Santo, sem que se devesse, por isso, mudar o texto do símbolo. Mas diante de uma nova pressão do imperador Henrique II da Alemanha, em 1014, o papa Bento VIII aceitou que a palavra Filioque fosse inserida na recitação também litúrgica do credo, suscitando, em decorrência, as justas recriminações do Oriente ortodoxo.

Hoje, no clima de diálogo e de estima recíproca que tenta estabelecer-se entre o mundo ortodoxo e a Igreja católica, este problema não parece mais um obstáculo intransponível para a plena comunhão. Representantes qualificados da teologia ortodoxa estão dispostos a reconhecer, sob certas condições, a legitimidade da doutrina latina. O teólogo Johannes Zizioulas expõe assim estas condições :

A regra de ouro deve ser a interpretação da pneumatologia latina que era feita por São Máximo, o Confessor : professando a doutrina do Filioque, os irmãos ocidentais não têm a intenção de introduzir uma segunda causa (aition) em Deus fora do Pai; por outra parte, o papel intermediário do Filho na origem do Espírito não deve ser limitado à divina economia, mas se refere também à natureza divina. Se o Oriente e o Ocidente estiverem dispostos, em nosso tempo, a tornar próprios estes dois pontos de São Máximo, haveria uma base suficiente para a reaproximação das duas tradições(11).

Com estas palavras, mantém-se a posição ortodoxa de que o Pai é a única causa ‘não causada’ da origem do Espírito Santo, o que não é incompatível com a posição acima exposta de Agostinho; além disto, fica reconhecida a validade do ponto de vista dos latinos de atribuir ao Filho um papel ativo na origem eterna do Espírito Santo a partir do Pai, mesmo que não se compartilhe com eles a precisação ‘como de um só princípio’ (tamquam ex uno principio).

A este respeito, o Catecismo da Igreja Católica fala de uma ‘legítima complementaridade que, se não for enrijecida, não impede a identidade de fé na realidade do mistério(12). Na mesma linha, manifesta-se um documento de 1995 do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, solicitado pelo papa João Paulo II e positivamente acolhido por expoentes da teologia ortodoxa (13). Como sinal desta vontade de reconciliação, o mesmo João Paulo II começou a prática de omitir a adição Filioque, ‘e do Filho’, em certas celebrações ecumênicas em São Pedro e em outros lugares, nas quais se proclamava o credo em latim.


2. Rumo a uma nova síntese

Como sempre, quando feito realmente ‘no Espírito’, o diálogo não se limita a resolver as dificuldades do passado, mas abre novas perspectivas. A maior novidade na pneumatologia atual não consiste apenas em finalmente se encontrar um acordo sobre o Filioque, mas em partir das Escrituras rumo a uma síntese mais ampla, com uma gama de questões mais ampla e menos condicionada pela história passada.

Com esta releitura, iniciada já faz tempo, emergiu um dado preciso : o Espírito Santo, na história da salvação, não é só enviado pelo Filho, mas também para o Filho; o Filho não é somente aquele que dá o Espírito, mas também aquele que o recebe. O momento da passagem de uma para a outra fase da história da salvação, do Jesus que recebe o Espírito ao Jesus que envia o Espírito, é constituído pelo evento da cruz (14).

No documento do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, já mencionado, encontramos um belo texto que resume todas essas intervenções do Espírito ‘sobre’ Jesus : no nascimento, no batismo, no ato de oferecer-se em sacrifício ao Pai (Heb 9,14), na sua ressurreição (15). Esta relação de reciprocidade, encontrada no âmbito da história, não pode deixar de refletir, de alguma forma, a relação que existe na Trindade. O mesmo documento mencionado chega por isto à seguinte conclusão :

O papel do Espírito no mais íntimo da existência humana do Filho de Deus surge de uma relação trinitária eterna, pela qual o Espírito, no seu mistério de dom de amor, caracteriza a relação entre o Pai fonte do amor e o Filho amado(16).

Mas como conceber essa reciprocidade no âmbito trinitário? Este é o campo que se abre para a reflexão atual da teologia do Espírito. O fato encorajador é que estão se movendo juntos nesta direção, em diálogo fraterno e construtivo, todos os grandes teólogos das Igrejas cristãs : ortodoxa, católica e protestante. Um dos pontos-chave que despertavam (e condicionavam) a reflexão dos Padres, em particular a de Agostinho, era a falta de reciprocidade entre o Espírito Santo e as outras duas pessoas divinas. Podemos chamar, diziam eles, o Espírito Santo de ‘Espírito do Pai’, mas não podemos chamar o Pai de ‘Pai do Espírito’; podemos chamar o Espírito Santo de ‘Espírito do Filho’, mas não podemos chamar o Filho de ‘Filho do Espírito(17).

É neste ponto que hoje se procuram superar as dificuldades. É verdade que não podemos chamar Deus de ‘Pai do Espírito’, mas podemos chamá-lo de ‘Pai no Espírito’; é verdade que não podemos chamar o Filho de ‘Filho do Espírito’, mas podemos chamá-lo de ‘Filho no Espírito’. A preposição usada na Bíblia para falar do Espírito Santo não é ‘de’, mas ‘em’; é ‘no Espírito’ que Cristo grita Abba na terra (cf. Lc 10, 21). Se admitimos que o que acontece na história é um reflexo do que acontece na Trindade, devemos concluir que é ‘no Espírito’ que o Filho pronuncia o seu Abba eterno na geração a partir do Pai (18). O teólogo ortodoxo Olivier Clément antecipou esta conclusão dizendo que ‘o Filho nasce do Pai no Espírito(19).

Resulta de tudo isto um modo novo de conceber as relações trinitárias. O Verbo e o Espírito procedem simultaneamente do Pai. É preciso renunciar a qualquer ideia de precedência entre os dois, não só cronológica, mas também lógica. Como é única a natureza que constitui as três Pessoas divinas, assim é única a operação que tem a sua fonte no Pai e que constitui o Pai como ‘Pai,’ o Filho como ‘Filho’ e o Espírito como ‘Espírito’. Filho e Espírito Santo não devem ser vistos um após o outro, ou um ao lado do outro, mas ‘um no outro’. Geração e procedência não são ‘dois atos separados’, mas dois aspectos, ou dois resultados, de um único ato (20).

Como conceber e expressar esse ato abissal de que brota, toda junta, a rosa mística da Trindade? Estamos diante do núcleo mais íntimo do mistério trinitário, que está para além de todos os conceitos e analogias humanas. Muito sugestiva, eu acho, é a inspiração do teólogo ortodoxo Olivier Clément a este respeito. Ele fala de uma ‘unção eterna’ do Filho pelo Pai por meio do Espírito (21). Essa intuição tem uma sólida base patrística na fórmula ‘ungente, ungido e unção’, usada na mais antiga teologia dos Padres. Santo Irineu escreveu :

No nome 'Cristo' subentende-se aquele que ungiu, aquele que foi ungido e a própria unção com que foi ungido. De fato, o Pai ungiu e o Filho foi ungido, no Espírito que é a unção(22).

São Basílio retomou literalmente esta afirmação, repetida depois por Santo Ambrósio (23). Na sua origem, ela se referia diretamente à unção histórica de Jesus em seu batismo no Jordão. Depois, esta unção foi vista como já realizada no momento da Encarnação (24). Mesmo na época dos Padres, porém, começou-se a remontar a uma ‘unção cósmica’ do Verbo, mencionada por Justino, Irineu e Orígenes, ou seja, a uma unção que o Pai confere ao Verbo em vista da criação do mundo, porque, ‘por meio dele, o Pai ungiu e dispôs tudo(25).

Eusébio de Cesareia vai ainda mais longe, vendo realizada a unção no próprio momento da geração : ‘A unção consiste na geração mesma do Verbo, pela qual o Espírito do Pai passa ao Filho a modo de divina fragrância(26). Maior autoridade tem a opinião de São Gregório de Nissa, que dedica um capítulo inteiro a ilustrar a unção do Verbo mediante o Espírito Santo, na sua geração eterna pelo Pai. Ele parte do pressuposto de que o nome ‘Cristo’, o Ungido, pertence ao Filho desde toda a eternidade :

O óleo da exultação apresenta o poder do Espírito Santo, com que Deus é ungido por Deus, isto é, o Unigênito é ungido pelo Pai... Como o justo não pode ser ao mesmo tempo injusto, assim o ungido não pode não ser ungido. Ora, aquele que nunca é não-ungido é certamente o ungido desde sempre. E todos hão de que admitir que aquele que unge é o Pai e que o unguento é o Espírito Santo(27).

A imagem da unção (porque se trata sempre de uma imagem) adiciona algo de novo, que não é manifestado pela imagem mais usual da inspiração ou do sopro. No Ocidente, é costume dizer que o Espírito é assim chamado porque é inspirado ou soprado e porque inspira e sopra. Nesta visão, o Espírito Santo exerce um papel ‘ativo’ somente fora da Trindade, por inspirar as escrituras, os profetas, os santos, etc., enquanto, na Trindade, ele teria apenas a qualidade passiva de ser soprado pelo Pai e pelo Filho.

Esta ausência de um papel ativo do Espírito dentro da Trindade, considerada, talvez, a maior lacuna da pneumatologia tradicional, é assim superada. Afinal, se reconhecemos ao Filho um papel ativo no tocante ao Espírito, manifestado na imagem do sopro, também reconhecemos ao Espírito Santo um papel ativo em relação ao Filho, manifestado na imagem da unção. Não podemos dizer, do Verbo, que Ele seja ‘o Filho do Espírito Santo’, mas podemos dizer que Ele é ‘o Ungido do Espírito’.


3. O Espírito da verdade e o Espírito da caridade

A renovada escuta das Escrituras nos permite constatar, também de outro ponto de vista, a complementaridade das duas pneumatologias, a oriental e a ocidental. Notou-se, no próprio âmbito do Novo Testamento, uma ênfase maior, por parte de João, no ‘Espírito da verdade’ e, por parte de Paulo, no ‘Espírito da caridade(28). ‘Espírito da verdade’, no Quarto Evangelho, é outro nome do Paráclito (Jo 14, 16-17); os adoradores do Pai devem adorá-lo ‘em Espírito e verdade’; Ele leva ‘a toda a verdade’; a sua unção ‘dá a ciência e ensina todas as coisas’ (1 Jo 2, 20.27). Já para Paulo, o efeito primário do Espírito é a ‘efusão do amor’ nos corações; fruto do Espírito é ‘o amor, a alegria e a paz’ (Gal 5, 21); o amor constitui ‘a lei do Espírito’ (Rm 8 : 2), o amor é ‘o melhor caminho’, o maior de todos os dons do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12,31).

Como no caso da doutrina sobre Cristo, também estas diversas ênfases sobre o Espírito Santo permanecem na tradição, e, mais uma vez, o Oriente reflete de modo predominante a perspectiva de João e o Ocidente a de Paulo. A pneumatologia ortodoxa deu mais destaque ao Espírito luz; a latina, ao Espírito amor. Esta diversidade é claríssima, em todo caso, nas duas obras que mais influenciaram o desenvolvimento das respectivas teologias do Espírito Santo. No tratado Sobre o Espírito Santo, de São Basílio, não desempenha papel algum o tema do Espírito amor, sendo central o do Espírito ‘luz inteligível(29); já no Tratado Sobre a Trindade, de Santo Agostinho, não desempenha papel algum o tema do Espírito luz, ao passo que, bem sabemos, o papel central é ocupado pelo Espírito como amor.

A luz, com os fenômenos que costumam acompanhá-la (a transfiguração da pessoa e a sua completa imersão interior e exterior na luz) é o elemento mais constante entre os orientais, na mística do Espírito Santo. ‘Vinde, ó luz verdadeira!’, começa uma oração de São Simeão, o Novo Teólogo, ao Espírito Santo (30). Até a famosa ‘luz do Tabor’, tão importante na espiritualidade e na iconografia oriental, é intimamente ligada ao Espírito Santo (31). Um texto ortodoxo diz que, no dia de Pentecostes, ‘graças ao Espírito Santo, o mundo inteiro recebeu um batismo de luz(32).

Encerro com um pensamento de Santo Agostinho sobre o Espírito amor, que, aplicado às relações entre as diversas Igrejas, nos faria dar um decisivo passo rumo à unidade dos cristãos. Comentando a doutrina de São Paulo em I Coríntios 12, sobre os carismas, Santo Agostinho faz esta reflexão. Ao ouvir nomear todos aqueles maravilhosos carismas (profecia, sabedoria, discernimento, cura, línguas), alguém poderia sentir-se triste e excluído, por achar que não possui nada disso. Mas, atenção, prossegue o santo :

Se amas, o que possuis não é pouco. Se amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também possuído por ti! Bane a inveja e será teu o que é meu, e, se eu banir a inveja, é meu o que tu possuis. A inveja separa, a caridade une. Somente o olho, no corpo, tem a faculdade de ver; mas é, acaso, só para si mesmo que o olho vê? Não, ele vê pela mão, pelo pé e por todos os membros... Só a mão age no corpo; ela, no entanto, não age apenas para si, mas também para o olho. Se estás prestes a receber um golpe que tem como alvo não a mão, mas o rosto, acaso a mão diz ‘Não me hei de mexer, porque o golpe não é contra mim’?(33).

Eis o segredo que faz da caridade o ‘caminho mais excelente’ (I Cor 12, 31) : ela me faz amar o corpo de Cristo, ou a comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, não somente alguns, são ‘meus’. A caridade multiplica realmente os carismas; faz do carisma de um o carisma de todos. Basta não fazer de si mesmos, mas de Cristo, o centro de interesse; não querer ‘viver para si mesmos, mas para o Senhor’, como diz o Apóstolo (Rm 14, 7-8).

Aplicado às relações entre as duas Igrejas, a do Oriente e a do Ocidente, este princípio nos leva a olhar para aquilo que cada uma tem de diferente da outra, não como um erro ou como uma ameaça, mas como uma riqueza para todos e que deve nos alegrar. Aplicado às nossas relações cotidianas, dentro da Igreja ou da comunidade em que vivemos, ele ajuda a superar os sentimentos naturais de frustração, de rivalidade e de inveja. ‘Bem-aventurado aquele servo’, escreve São Francisco de Assis, ‘que não se orgulha (nem se alegra, acrescento eu) pelo bem que o Senhor diz e faz por meio dele mais do que pelo bem que Ele diz e faz por meio de outro(34). Que o Espírito Santo nos ajude a trilhar este caminho exigente, mas no qual estão prometidos os frutos do Espírito : o amor, a alegria e a paz.’


Fonte :
------------------------
(1) DS, 150.
(2) Gregório Nazianzeno, Discursos, XXXI, 10 (PG 36, 144).
(3) In A. Hänggi - I. Pahl, Prex Eucharistica, Fribourg, Suisse, 1968, pág. 250.
(4) Cf. Atanásio, Cartas a Serapião I, 24 (PG 26, 585s.); Cirilo de Alexandria, Comentário a João, XI, 10 (PG 74, 541C); São João Damasceno, Sobre a fé ortodoxa, I,13 (PG 94, 856B). 
(5) Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, I, 120 (‘Spiritus quoque Sanctus, cum procedit a Patreet a Filio, non separatur’).
(6) Agostinho, A Trindade, XV, 26,47.
(7) Fulgêncio de Ruspe, Epístolas, 14, 21 (CC 91, p. 411); De fid, 6.54 (CC 91A, pp.716.747) (‘Spiritus Sanctus essentialiter de Patre Filioque procedit’); Liber de Trinitate, passim (CC  91A, pp. 633 ss).
(8) Epístolas, 14, 28 (CC 91, p.420).
(9) DS, 470. No símbolo do I Concílio de Toledo de 400 (DS, 188), Filioque é um acréscimo posterior.
(10) Cf. Monumenta Germaniae Historica. Concilia, t.II, p.II, 1906, pp. 235-244, e in PL 102, 971-976.
(11) J. D.  Zizioulas, The Teaching of the 2nd Ecumenical Council on the Holy Spiriti in historical and ecumenical perspective, in ‘Credo in Spiritum Sanctum’, vol. I, Libreria Editrice Vaticana 1983, pág 54.
(12) CIC, nº 248.
(13) Cf. Les traditions Grecque et Latine concernant la procession du Saint-Esprit, in ‘Service d’Information du Conseil Pontifical pour la promotion de l’unité des Chrétiens’, n. 89, 1995, pp. 87-91.
(14) Cf. João Paulo II, Enc. Dominum et vivificantem, 13.24. 41;  Moltmann, Lo Spirito della vita, Queriniana, Brescia 1994, pp. 85 ss.
(15) Les traditions..., cit., p.90.
(16) Les traditions..., cit., p. 90-91.
(17)  Agostinho, A Trindade, V,12,13.
(18) Cf. T. G. Weinandy, The Father’s Spirit of Sonship. Reconceiving the Trinity, Edinburgh 1995.
(19) O. Clément, Les mystiques chrétiens des origines, Paris 1982.
(20) Cf. Moltmann, op. cit., p. 90; Weinandy, op. cit., pp. 53-85.
(21) Cf. O. Clément, op. cit. p.58.
(22)  Irineu, Contra as heresias, III, 18,3.
(23) Basílio, Sobre o Espírito Santo, XII, 28 (PG 32, 116C); S. Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, I,3,44.
(24)  Gregório Nazianzeno, Discursos,  XXX, 2 (PG 36, 105B).
(25)  Irineu, Demonstração da pregação apostólica, 53 (SCh 62, p. 114); cf. A. Orbe, A Unção do Verbo  (Analecta Gregoriana, vol. 113), Roma 1961, pp. 501-568.
(26) Orbe, op.cit., p. 578.
(27)  Gregório Nisseno, Contra Apolinário, 52 (PG 45, 1249 s.).
(28) Cf. E. Cothenet, Saint-Esprit, DBSuppl, fasc. 60, 1986, col. 377.
(29) Basílio, Sobre o Espírito Santo, IX,22-23 (PG 32, 108 s.); XVI,38 (PG 32, 137).
(30) Simeão, o Novo Teólogo, Oração mística (SCh 156, p.150)
(31) Gregório Palamas, Homilia I sobre a Transfiguração (PG 151, 433B-C).
(32) S. de Pentecostes,  em Pentecostaire, Diaconie apostolique, Parma 1994, p.407.
(33) Agostinho, Tratados sobre João, 32,8.
(34) Francisco de Assis, Admonição XVII (FF, 166).