* Artigo
de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador
oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
‘1. Paulo e João : o
Cristo visto de dois ângulos
Em nosso
esforço de compartilhar os tesouros espirituais do Oriente e do Ocidente, vamos
hoje refletir sobre a fé comum em Jesus Cristo. Tentemos fazê-lo como quem fala
de alguém presente, não de um ausente. Se não fosse pela nossa pesadez humana,
que nos atrapalha, deveríamos pensar que, toda vez que pronunciamos o nome de
Jesus, Ele se sente chamado pelo nome e se volta para nos olhar. Hoje também
Ele está aqui conosco e escuta o que diremos dele (esperemos que com
indulgência).
Comecemos
pelas raízes bíblicas da ‘questão Jesus’.
No Novo Testamento, vemos delinear-se duas vias de expressão do mistério de
Cristo. A primeira delas é a de São Paulo. Resumamos os traços peculiares dessa
linha, os traços que a tornarão modelo e arquétipo cristológico no desenvolvimento
do pensamento cristão. Esta linha :
- Primeiro,
parte da humanidade para alcançar a divindade de Cristo; parte da história para
atingir a pré-existência; é, portanto, um caminho ascendente; segue a ordem do
manifestar-se de Cristo, a ordem em que os homens o conheceram, não a ordem do
ser;
- Segundo,
parte da dualidade de Cristo (carne e Espírito) para chegar à unidade do
sujeito ‘Jesus Cristo, nosso Senhor’;
- Terceiro,
tem no centro o mistério pascal, o operatum, mais do que a pessoa de Cristo. O
grande marco entre as duas fases da existência de Cristo é a ressurreição dos
mortos.
Para nos
convencermos de que esta consideração é acertada, basta reler a densíssima
passagem, uma espécie de credo embrionário, com que o Apóstolo começa a Carta
aos Romanos. O mistério de Cristo é assim resumido :
‘Nascido da estirpe de Davi segundo a carne,
constituído Filho de Deus com poder segundo o Espírito de santificação mediante
a ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor’ (Rm 1,3-4).
No hino cristológico
de Filipenses 2, também se fala antes
de Cristo na condição de servo e, depois, a partir da ressurreição, de Cristo
exaltado como Senhor. O sujeito concreto, mesmo quando se define Cristo como ‘imagem do Deus invisível’ (Cl 1, 15), é
para Paulo sempre o Cristo da história, ainda que a ideia da pré-existência
esteja longe de lhe passar despercebida.
Um rápido
olhar para os tempos seguintes nos permite ver como serão recolhidos e
desenvolvidos esses traços paulinos de Jesus na geração sub-apostólica. Carne e
Espírito, que indicavam originalmente duas fases da vida de Cristo, o antes e o
depois da ressurreição, passarão a indicar, já em Santo Inácio de Antioquia, os
dois nascimentos de Jesus (seu nascimento de Maria e seu nascimento de Deus) e,
finalmente, as duas naturezas de Cristo.
Tertuliano
escreve :
‘O apóstolo ensina aqui as duas naturezas de
Cristo. Com as palavras ‘nascido da estirpe de Davi segundo a carne’, ele
designa a humanidade; com as palavras ‘constituído Filho de Deus segundo o Espírito’,
ele indica a divindade’(1).
A esta via
ascendente do mistério de Cristo, João expõe, em paralelo, uma via descendente.
Podemos resumir assim as características desta segunda via :
- Primeiro,
ela parte da divindade para chegar à humanidade; o esquema se inverte : não
mais ‘carne - Espírito’, mas ‘Logos - carne’; não antes o humano, o
visível, e depois o divino e o invisível, mas o contrário; João adota o ponto
de vista do ser, não do manifestar-se de Cristo a nós, e, segundo o ser, é
claro que a divindade precede nele a humanidade;
- Segundo, é
uma via que parte da unidade e chega à dualidade de elementos : Logos e carne,
divindade e humanidade; na linguagem posterior : parte da pessoa para chegar às
naturezas.
- Terceiro,
o grande divisor de águas, o eixo em torno ao qual toda a história gira, é a
encarnação, não a ressurreição ou o mistério pascal.
De Cristo,
interessa mais a pessoa do que o operatum, o ser mais que o agir, que inclui
até mesmo o mistério pascal de morte e ressurreição. Este último serve
essencialmente para revelar quem é Jesus : ‘Quando
tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que Eu Sou’ (Jo 8, 28).
A existência junto ao Pai é constantemente anteposta à sua vinda ao mundo.
Basta lembrar as duas grandes afirmações do início do quarto Evangelho para
mostrar a validade desta sumária reconstrução :
‘No princípio era o Verbo,
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus (...).
E o Verbo se fez carne
e habitou entre nós’.
São assim
traçadas as duas linhas sobre as quais caminhará toda a reflexão posterior da
Igreja sobre Cristo. Apesar das diferenças, há uma profunda afinidade e uma
comunicabilidade recíproca entre essas duas vias, o que permite que elas sejam
percorridas em um sentido ou no outro. Para os dois, Paulo e João, há em Jesus
Cristo um elemento divino e um elemento humano, mesmo sendo Ele um único
sujeito. Para ambos, Ele é o revelador e o redentor universal, embora João
insista mais no revelador e Paulo mais no redentor. Para ambos, a nossa relação
com Cristo é mediata e possibilitada pelo Espírito Santo. É crendo em Cristo,
dizem ambos, que recebemos o Espírito (Gl 3,2; Jo 7, 39) e é recebendo o
Espírito que podemos crer em Cristo (1 Cor 12,3; Jo 6, 63).
Ao se passar
à época seguinte, essas duas vias tendem a se consolidar, dando espaço a dois
modelos ou arquétipos, e, finalmente, nos séculos IV e V, a duas escolas
cristológicas. As escolas a que me refiro são a alexandrina, por ter seu maior
centro em Alexandria do Egito, e a antioquina, irradiada de Antioquia da Síria.
A principal razão da sua diferença não é, como chegou-se a pensar, que os
alexandrinos se inspirassem em Platão e os antioquinos em Aristóteles, e sim
que os primeiros se inspiravam mais em João e os segundos em Paulo.
Nenhum dos
seguidores de qualquer das duas vias é consciente de escolher entre Paulo e
João. Cada um tem a certeza de estar com os dois, o que é certamente
verdadeiro. O fato, porém, é que as duas influências são bem visíveis e distinguíveis,
como dois rios que, mesmo fluindo juntos, continuam se distinguindo pela cor
diferente das águas. A diferença entre as duas escolas não é tanto que alguns
sigam Paulo e outros João, mas que alguns interpretem João à luz de Paulo e
outros interpretem Paulo à luz de João. A diferença está no esquema, ou na
perspectiva de fundo, adotada para ilustrar o mistério de Cristo.
Pode-se
dizer que essas duas escolas formaram as linhas principais do dogma
cristológico. A síntese entre as duas instâncias ocorreu, como é bem sabido, no
Concílio Ecumênico de Calcedônia, em 451, com a contribuição decisiva do
Ocidente, representado por São Leão Magno. Aqui, a verdade subjacente, levada
adiante em Alexandria e reconhecida no Concílio de Éfeso sobre a unidade da pessoa
de Cristo, se conjuga com a instância fundamental dos antioquinos quanto à
íntegra natureza humana de Cristo. As duas vias tradicionais são reconhecidas,
desde que abertas uma à outra e em comunicação entre si.
O próprio
modo de formulação da definição de Calcedônia aplica este princípio. Nela, o
mistério de Cristo é formulado duas vezes e de duas maneiras diferentes :
primeiro, de maneira joanina e alexandrina, partindo da afirmação da unidade e
chegando à afirmação da distinção (‘um só
e mesmo Cristo, Senhor e Filho unigênito, em duas naturezas’); depois, de
maneira paulina e antioquina, partindo da distinção das naturezas para chegar à
afirmação da unidade (‘salvas as
propriedades de cada uma, as duas naturezas concorrem para formar uma só pessoa
e hipóstase’). A mesma via é percorrida a partir de então nos dois
sentidos.
2. O rosto de Cristo no Oriente e no Ocidente
Podemos
perguntar-nos : o que aconteceu, depois de Calcedônia, com as duas vias ou
modelos cristológicos fundamentais elaborados pela Tradição? Desapareceram,
nivelados, da definição dogmática? No âmbito teológico, desde então, houve
certamente uma única fé em Cristo, comum ao Oriente e ao Ocidente. São João
Damasceno, para o Oriente (2), e
Santo Tomás de Aquino, para o Ocidente, construíram ambos a sua síntese
cristológica com base em Calcedônia. Não houve, ao contrário do que aconteceu
no tocante à Trindade e ao Espírito Santo, divergências doutrinais
significativas entre a Ortodoxia e a Igreja Latina quanto à doutrina de Cristo.
No entanto,
se da teologia e da dogmática passarmos a olhar para outros aspectos da vida da
Igreja, notaremos que os dois modelos ou arquétipos cristológicos não se
perderam. Eles se conservaram e deixaram a sua marca, o primeiro na
espiritualidade ortodoxa e o segundo na latina. Em outras palavras, a Igreja
oriental privilegiou o Cristo joanino e alexandrino, e, com isto, a
centralidade da encarnação, da divindade de Cristo e da ideia de divinização; a
Igreja ocidental privilegiou o Cristo paulino e antioquino e, com isto, a
humanidade de Cristo e o mistério pascal.
Não se
trata, obviamente, de uma divisão rígida. As influências se entrelaçaram e
variam de autor para autor, de época para época e de ambiente para ambiente.
Ambas as Igrejas acreditaram, e com razão, que valorizavam conjuntamente João e
Paulo, mas é por todos admitido que o Cristo da tradição bizantina apresenta
traços diferentes do Cristo da tradição latina.
Consideremos
alguns fatos que destacam essa diversidade olhando para o Cristo oriental. Na
arte, a imagem mais característica do Cristo ortodoxo é o Pantocrátor, o Cristo
glorioso. É Ele a quem a assembleia contempla na abside das grandes
basílicas. É claro que a arte bizantina também conhece o crucifixo, mas mesmo o
crucifixo tem traços gloriosos e de realeza, com o realismo da paixão já
transfigurado pela luz da ressurreição. Ele é, em suma, o Cristo joanino, para
o qual a cruz representa o momento de ‘exaltação’
(Jo 12, 32).
Do mistério
de Cristo, continua a ser colocado em primeiro plano o momento da encarnação.
Coerentemente, a salvação é concebida como uma divinização do homem graças ao
contato com a carne vivificante do Verbo. São Simeão, o Novo Teólogo, por
exemplo, diz em uma oração a Cristo :
‘Descendo do teu santuário excelso, sem deixares
o seio do Pai, encarnado e nascido da santa Virgem Maria, já então me
replasmaste e vivificaste, libertando-me da culpa dos nossos primeiros pais e
preparando para a subida ao céu’ (3).
O essencial
já aconteceu com a encarnação do Verbo. A ideia de divinização retorna em
primeiro plano, por impulso de Gregório Palamas, e caracterizará a ‘cristologia da última Bizâncio’ (4). Acaso é ignorado o mistério
pascal? Pelo contrário : todos sabem da importância excepcional que tem a
celebração da Páscoa para os ortodoxos. Mas eis, de novo, um sinal revelador :
do mistério pascal, o momento mais valorizado não é tanto o abaixar-se quanto a
glória; não a Sexta-Feira Santa, mas o Domingo da Ressurreição. De todos os
pontos de vista, prevalece a atenção ao Cristo glorioso, ao Cristo Deus.
Estas
características são encontradas no ideal de santidade que predomina nesta
espiritualidade. O vértice da santidade é visto, aqui, na transformação do
santo em imagem do Cristo glorioso. Na vida de dois dos santos mais típicos da
ortodoxia, São Simeão, o Novo Teólogo, e São Serafim de Sarov, encontramos o
fenômeno místico da conformação ao Cristo luminoso do Tabor e da ressurreição.
O santo aparece quase transformado em luz.
Voltemos o
olhar, agora, para alguns aspectos da espiritualidade ocidental. Santo
Agostinho escreve que, dos três dias do Tríduo Pascal, ‘realizamos nesta vida o que é simbolizado pela cruz, enquanto mantemos
na fé e na esperança o que é simbolizado pelo sepultamento e pela ressurreição’
(5). Em outras palavras : enquanto
estamos nesta vida, o Cristo crucificado nos é mais próximo e imediato que o
ressuscitado.
De fato, na
arte, a imagem característica de Cristo, para o Ocidente, é o crucifixo. É ele
que está entronado ou pairando sobre o altar nas igrejas. A mesma representação
do crucifixo, em algum momento, se separa do modelo glorioso, régio, e assume
traços realistas de verdadeira dor e até mesmo de espasmo. É o crucifixo
paulino, que, na cruz, se tornou ‘pecado’
e ‘maldição’ para nós (cf. Gal 3,
13).
Assume
grande relevância, a partir de São Bernardo e, depois, com o franciscanismo, a
devoção e a atenção à humanidade de Cristo e aos diversos ‘mistérios’ da sua vida. A kenosis, ou o abaixar-se de Cristo, ocupa
um lugar de destaque, assim como o mistério pascal. Neste contexto, encontra a
sua aplicação prática o princípio da ‘imitação
de Cristo’, que tinha sido o centro da teologia de Antioquia. Não é por
nada que o mais célebre livro de espiritualidade do medievo latino será
justamente A Imitação de Cristo. Contra toda tentativa de saltar a humanidade
de Cristo para tender diretamente à união com Deus, Santa Teresa de Ávila
afirmará que não há nenhuma fase da vida espiritual em que se possa prescindir
da humanidade de Cristo (6).
Os santos
proporcionam, também aqui, uma espécie de desencontro prático. Qual é, no
Ocidente, o sinal da plenitude da santidade? Não é a conformação ao Cristo
glorioso da Transfiguração, mas a conformação ao Crucificado. A ortodoxia não
conhece casos de santos estigmatizados, mas conhece, como vimos, casos de
santos transfigurados.
A Reforma
Protestante, em alguns aspectos, levou ao extremo alguns traços deste Cristo
ocidental, paulino, e do seu mistério pascal. Elevou a ‘teologia da cruz’ a critério de toda teologia, entrando em
polêmica, às vezes, com a ‘teologia da
glória’. Kierkegaard chegará a dizer que, nesta vida, não podemos conhecer
a Cristo a não ser em sua humilhação (7).
É verdade
que Lutero e os protestantes, em oposição aos excessos medievais da imitação de
Cristo, afirmaram que Cristo é, acima de tudo, um dom a ser acolhido com a fé,
muito mais do que um modelo a ser seguido com a imitação. Mas, aqui também,
qual Cristo é visto como o ‘dom’ a
ser acolhido pela fé? Não é o Logos que desce e se faz carne, mas o Cristo
pascal paulino, o Cristo ‘para mim’,
não o Cristo ‘em si’.
Repito :
devemos tomar cuidado com a rigidez nessas distinções; elas se tornariam falsas
e anti-históricas. Por exemplo, a espiritualidade bizantina conhece todo um
filão de santidade conhecido como dos ‘loucos
por Deus’, no qual a assimilação a Cristo na sua kenosis é fortemente
acentuada. Mesmo com estas ressalvas, continua havendo uma diferença de ênfase
inegável. O Oriente caminhou de modo preponderante pela via aberta por João; o
Ocidente, pela via aberta por Paulo. Mas ambos, fiéis a Calcedônia, souberam
abraçar, na sua perspectiva, também o outro polo do mistério, mantendo as duas
vias comunicadas.
A graça do
momento presente é que se começa a perceber a diversidade como uma riqueza e
não mais como uma ameaça. Um teólogo ortodoxo expressou este ponto de vista :
do Cristo latino, considerado isoladamente, pode derivar uma concepção
demasiado histórica, terrena e humana da Igreja, e do Cristo ortodoxo uma
concepção muito escatológica, desencarnada e não atenta o suficiente às suas
tarefas históricas. Por isso, ele conclui que ‘a catolicidade autêntica da
Igreja não pode deixar de compreender tanto o Oriente quanto o Ocidente’ (8).
Não há necessidade,
portanto, de eliminar ou nivelar as diferenças detectadas. Uma vez reconhecida
a legitimidade e o caráter bíblico das duas abordagens, o que é necessário é o
intercâmbio dos dons, o respeito e a estima pela tradição do outro. É como se
Deus tivesse feito duas chaves de acesso à plenitude do mistério cristão e dado
uma ao cristianismo oriental e a outra ao ocidental, de modo que uma não pode
abrir e chegar à plenitude sem a outra.
Na cidade de
Colmar, na Alsácia, existe um famoso retábulo de Matthias Grünewald. Nele,
quando as duas abas do políptico estão fechadas, vemos representada a
crucificação; quando abertas, vemos no lado oposto a ressurreição. A
crucificação é de um realismo impressionante : vemos um Cristo em espasmos, com
os dedos das mãos e dos pés contorcidos e esticados como galhos de uma árvore
seca; o corpo traz sulcos e tem espinhos e pregos cravados em toda parte. É uma
daquelas pinturas de Cristo das quais Dostoiévski dizia que, observando-as
durante longo tempo, ‘pode-se até perder
a fé’ (9).
Por outro
lado, o Ressuscitado aparece, nessa pintura, imerso em uma luz fulgurante que
mal permite vislumbrar os traços de um rosto humano. Se nos detivéssemos neste
ponto, nos arriscaríamos, se não a ‘perder
a fé’, certamente a perder a confiança, porque esse Cristo parece distante
da nossa experiência de sofrimento. Não podemos dividir esse retábulo ou
observá-lo de um lado só. É um símbolo poderoso daquilo que aconteceria, numa
escala maior, com a separação do Cristo ortodoxo e do Cristo ocidental. Eles
devem sempre ser vistos juntos.
3. Unidos pelo amor a Cristo
Até aqui,
percorremos a estrada dos Padres e das testemunhas do passado. Revimos a
história das suas posições em torno à pessoa de Cristo. Mas não é isso o que
realmente nos fará progredir no caminho da unidade; não é, em outras palavras,
a unidade substancial da doutrina e da fé em Cristo, por mais que ela seja
indispensável; é, sim, a unidade no amor a Cristo! O que une profundamente
ortodoxos e católicos, e que pode deixar em segundo plano toda diferenciação, é
um comum e renovado amor pela pessoa de Jesus de Nazaré. Mas não o Jesus do
dogma, da teologia e das tradições, e sim o Jesus ressuscitado e vivo hoje. O
Jesus que é para nós um ‘Tu’, não um ‘Ele’. Para usar uma distinção muito cara
a um teólogo ortodoxo contemporâneo, não o Jesus personagem, mas o Jesus pessoa
(10).
O corpo
humano tem dois pulmões, dois olhos, dois pés, duas mãos (metáforas muitas
vezes utilizadas para descrever a relação de sinergia entre Oriente e
Ocidente), mas um só coração! O corpo que é a Igreja tem apenas um coração e
esse coração deve ser o amor por Cristo. Nicholas Cabasilas, um dos autores
espirituais mais amados, e não só pela Ortodoxia, escreve :
‘Ao Salvador é preordenado o amor humano
desde o início, como a seu modelo e fim, quase um sacrário tão grande e tão
amplo a ponto de poder acolher a Deus (...). O desejo da alma se volta
unicamente a Cristo. Este é o lugar do seu descanso, porque só Ele é o bem, a
verdade e tudo o que inspira amor (eros)’ (11).
Da mesma
forma, em toda a espiritualidade monástica ocidental, ressoou a máxima de São Bento
: ‘Nada, absolutamente, antepor ao amor
por Cristo’ (12). Isto não
significa restringir o horizonte do amor cristão de Deus a Cristo; significa
amar a Deus da maneira que Ele quer ser amado. Não se trata de um amor mediato,
quase por procuração, por meio do qual quem ama Jesus ‘é como se’ amasse o Pai. Não, Jesus é um mediador imediato; amando
Jesus, amamos ipso facto também o Pai, porque Ele é ‘um só com o Pai’ (Jo 10,30). O cristão pode, com todo direito,
aplicar a Cristo ressuscitado e vivo no Espírito aquilo que Paulo disse de Deus
aos atenienses : ‘Nele vivemos, nos
movemos e existimos’ (Atos 7, 28).
Dado que
estamos no ano da vida consagrada, eu gostaria de dedicar a ela um pensamento
particular. A este respeito, me permito retomar algumas reflexões que fiz, há
certo tempo, neste mesmo local, comentando a encíclica de Bento XVI ‘Deus Caritas est’. Nela, o então sumo
pontífice afirma que o amor de doação e o amor de procura, ágape e eros (este
último entendido em seu sentido nobre, não no vulgar), são dois componentes
inseparáveis no amor de Deus por nós e em nosso
amor por Deus. Neste reconhecimento, o Oriente precedeu o Ocidente (13), que, durante muito tempo, foi
prisioneiro da tese contrária, ou seja, da incompatibilidade entre eros e ágape (14).
O amor ainda
sofre, neste campo, uma nefasta separação, não só na mentalidade do mundo
laico, mas também, no lado oposto, entre os crentes e, particularmente, entre
as almas consagradas. Encontramos no mundo, muitas vezes, um eros sem ágape;
entre os crentes, encontramos muitas vezes um ágape sem eros. O eros sem ágape
é um amor romântico, muitas vezes passional, até violento. Um amor de conquista
que fatalmente reduz o outro a objeto do próprio prazer e ignora toda dimensão
de sacrifício, de fidelidade e de doação; em outras palavras, de ágape.
O ágape sem
eros se apresenta como um ‘amor frio’,
um amar ‘com a ponta dos cabelos’,
mais por imposição da vontade que por impulso íntimo do coração; uma imersão
num molde previamente constituído, em vez da criação de um modo próprio e
irrepetível, como irrepetível é cada ser humano diante de Deus. Os atos de amor
voltados a Deus se parecem, neste caso, aos de alguns amantes incautos, que
escrevem à amada cartas de amor copiadas de um manual.
O amor
verdadeiro e integral é uma pérola dentro de uma concha cujas duas partes são o
eros e o ágape. Não se podem separar estas duas dimensões do amor sem
destruí-lo. É assim que se apresenta o amor de Deus por nós, revelado na
Bíblia. Ele não é só perdão, misericórdia, doação de si; é também paixão,
desejo, ciúme; não é só amor paterno, mas também esponsal. Deus nos deseja,
parecendo quase que não pode viver sem nós. Assim também Cristo quer que seja o
amor dos seus consagrados por Ele.
A beleza e a
plenitude da vida consagrada dependem da qualidade do nosso amor por Cristo. Só
isto é capaz de defendê-la das debandadas do coração. Jesus é o homem perfeito;
nele estão, em grau infinitamente superior, todas as qualidades e atenções que
um homem procura em uma mulher e uma mulher num homem. O voto de castidade não
consiste na renúncia ao casamento, mas em preferir outro tipo de casamento, em
casar-se com ‘o mais belo dos filhos do
homem’. ‘Casto’, escreve São João
Clímaco, ‘é aquele que repele o eros com
o eros’ (15) : aquele que
renuncia ao amor de um homem ou de uma mulher pelo amor a Cristo.
Terminemos
ouvindo o mais antigo hino a Cristo, conhecido fora da Bíblia, ainda hoje em
uso nas vésperas da liturgia ortodoxa, e nas liturgias católica, anglicana e
luterana. É usado no momento de acender as luzes vespertinas e por isso é
chamado de ‘lucernário’ :
Ave, alegre
luz, puro esplendor
da gloriosa
face paternal,
Ave, Jesus,
bendito Salvador,
Cristo
ressuscitado e imortal.
No horizonte
o sol já declinou,
brilham da
noite as luzes cintilantes :
ao Pai, ao
Filho, ao Espírito de amor
cantemos
nossos hinos exultantes.
De santas
vozes sobe a adoração
prestada a
Ti, Jesus, Filho de Deus.
Inteira,
canta glória a criação,
o universo,
a terra, os novos céus.
Fonte :
*Artigo na íntegra http://www.zenit.org/pt/articles/iii-pregacao-de-quaresma-oriente-e-ocidente-perante-o-misterio-da-pessoa-de-cristo
------------------------
(1) Tertuliano, Adv. Praxean, 27,11 (CCL 2, p.1199).
(2) Cf. João Damasceno, De fide Orthodoxa III, (PG
94, 881 ss.).
(3) Simeão, o Novo Teólogo, Inni e preghiere (SCh
196, pág.332).
(4) Cf. J. Meyendorff, Cristologia ortodossa, Roma 1974,
págs. 225.242.
(5) Agostinho, Cartas, 55,14,24 (CSEL 34,1, p.195).
(6) Teresa de Ávila, Autobiografia, 22, 1 ss.
(7) Cf. S. Kierkegaard, O exercício do cristianesimo I-II.
(8) P. B. Vasiliadis, Vedere Dio. Incontro tra Oriente e
Occidente, EDB, Bolonha 1994, pág. 97.
(9) F. Dostoiévski, O Idiota II, 4.
(10) J. D. Zizioulas, Du personnage à la personne, em L’etre
ecclesial, Genebra 1981, págs. 23-56.
(11) N. Cabasilas, Vida em Cristo, II, 9 (PG
88, 560-561).
(12) Regra de São Bento, 4 Prólogo.
(13) P. Evdokimov, L’Ortodossia, Bolonha 1965, pág. 161.
(14) Anders Nygren, Eros e ágape, Güterslho 1937.
(15) S. João Clímaco, A escada do paraíso, XV, 98 (PG 88,880).
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