* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
‘1. Compartilhar o
que nos une
A recente
visita do papa Francisco à Turquia, que terminou com o encontro entre ele o
patriarca ortodoxo Bartolomeu, e, especialmente, a sua exortação a compartilhar
plenamente a fé comum do Oriente cristão e do Ocidente latino, me convenceram
da utilidade de usar as meditações quaresmais deste ano para atender esse
desejo do papa, que é desejo, também, de toda a cristandade.
Este desejo
de compartilhar não é novo. O Concílio Vaticano II, na Unitatis Redintegratio, já exortava a uma especial atenção às Igrejas
orientais e às suas riquezas (UR, 14). São João Paulo II, na carta apostólica Orientale Lumen, de 1995, escreveu :
‘Porque acreditamos que a venerável e antiga
tradição das Igrejas orientais é parte integrante do patrimônio da Igreja de
Cristo, a primeira necessidade para os católicos é conhecê-la, a fim de poderem
nutrir-se dela e favorecer, do modo possível a cada um, o processo da unidade’
(1).
O mesmo
santo pontífice formulou um princípio que eu considero fundamental para o
caminho da unidade : ‘compartilhar as
muitas coisas que nos unem e que certamente são mais numerosas do que as coisas
que nos dividem’ (2). A
ortodoxia e a Igreja católica compartilham a mesma fé na Trindade, na
encarnação do Verbo, em Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem numa só
pessoa, que morreu e ressuscitou para a nossa salvação, que nos deu o Espírito
Santo; acreditamos que a Igreja é o seu corpo animado pelo Espírito Santo, que
a Eucaristia é ‘fonte e ápice da vida
cristã’, que Maria é a Theotokos,
a Mãe de Deus, que temos como destino a vida eterna. O que pode haver de mais
importante do que isto? As diferenças se manifestam na maneira de entender e de
explicar alguns desses mistérios e, portanto, são secundárias, não primárias.
No passado,
as relações entre a teologia oriental e a teologia latina se caracterizavam por
um notável matiz apologético e polêmico. Insistia-se especialmente (talvez com
um tom mais conciliador nos tempos mais recentes) naquilo que distingue e que
cada lado acreditava ter de diferente e de mais correto do que o outro. É hora
de inverter essa tendência, deixando de insistir obsessivamente nas diferenças
(baseadas muitas vezes em uma leitura forçada, quando não deformada, do
pensamento do outro) e juntar o que temos em comum e o que nos une em uma única
fé. É uma exigência peremptória do dever comum de anunciar a fé em um mundo
profundamente mudado, com perguntas e interesses diferentes dos que havia no
tempo em que nasceram as divergências, e que, em sua grande maioria, já não
incluem sequer o sentimento de tantas das nossas sutis distinções, estando a
anos-luz de distância delas.
Até agora,
no esforço de promover a unidade entre os cristãos, prevaleceu uma linha que
pode ser formulada assim : ‘resolver
primeiro as diferenças para depois compartilhar o que temos em comum’. Já a
linha que se reforça cada vez mais nos círculos ecumênicos é : ‘compartilhar o que temos em comum para
depois resolver as diferenças, com paciência e respeito mútuo’.
O resultado
mais surpreendente desta mudança de perspectiva é que as próprias diferenças
doutrinárias reais, em vez de aparecerem como um ‘erro’ ou ‘heresia’ do
outro, começam a se mostrar cada vez mais como compatíveis com a própria
posição e, muitas vezes, até como um necessário corretivo e um enriquecimento.
Um exemplo concreto, em outra frente, veio do acordo de 1999 entre a Igreja
Católica e a Federação Mundial das Igrejas Luteranas sobre a justificação pela
fé.
Um sábio
pensador pagão do século IV, Quinto Aurélio Símaco, recordava uma verdade que
assume todo o seu valor quando aplicada às relações entre as diferentes
teologias do Oriente e do Ocidente : ‘Uno
itinere non potest perveniri ad tam grande secretum’ (3) : ‘A um mistério assim
tão grande não se pode chegar por uma única estrada’. Nestas nossas meditações,
tentaremos mostrar não só a necessidade, mas também a beleza e a alegria de nos
encontrarmos no topo, contemplando a mesma vista maravilhosa da fé cristã,
mesmo se chegados de lados diferentes.
Os grandes
mistérios da fé, em que procuraremos verificar as concordâncias de fundo apesar
da diversidade das duas tradições, são o mistério da Santíssima Trindade, a
pessoa de Cristo, a do Espírito Santo, a doutrina da salvação. Dois pulmões, um
só fôlego : esta será a convicção que nos guiará nesta jornada de
reconhecimento. O papa Francisco fala, neste sentido, de ‘diferenças reconciliadas’ : não silenciadas ou banalizadas, mas
reconciliadas. Tratando-se de simples prédicas quaresmais, é claro que
abordarei estes problemas tão complexos sem nenhuma pretensão de exaustividade,
com uma intenção mais prática e de orientação do que especulativa.
Empreendo
este propósito com muita humildade e quase na ponta dos pés, sabendo o quanto é
difícil abrir mão das próprias categorias para assumir as dos outros. Um fato
que me conforta é que os Padres gregos, juntamente com os latinos, foram
durante anos o meu pão de cada dia nos estudos e muitos autores ortodoxos
posteriores (Simeão, o Novo Teólogo;
Cabasilas; a Filocalia; Serafim de Sarov) me inspiraram constantemente no
ministério da pregação, para não falar dos ícones, que são as únicas imagens
diante das quais eu consigo rezar.
2. Unidade e
trindade de Deus
Começamos a
nossa escalada olhando para o mistério da Trindade, a montanha mais alta, o
Monte Everest da fé (4). Nos três
primeiros séculos da vida da Igreja, à medida que se explicitava a doutrina da
Trindade, os cristãos se viram expostos à mesma acusação que eles mesmos tinham
sempre dirigido aos pagãos : a de acreditar em mais do que uma divindade; a de
serem, também eles, politeístas. É por isso que o credo cristão, que, em todas
as suas várias redações, começou durante três séculos com as palavras ‘Creio em Deus’ (Credo in Deum), registrou a partir do século IV um pequeno, mas
significativo acréscimo, que jamais seria omitido desde então : ‘Creio em um só Deus’ (Credo in unum Deum).
Não é
preciso refazermos o percurso que desembocou neste resultado; podemos partir do
seu término. No final do século IV, terminou a transformação do monoteísmo do
Antigo Testamento no monoteísmo trinitário dos cristãos. Os latinos expressavam
os dois aspectos do mistério com a fórmula ‘uma
substância e três pessoas’; os gregos, com a fórmula ‘três hipóstases, uma só ousia’. Depois de um debate acalorado, o
processo terminou, aparentemente, com o pleno acordo entre as duas teologias. ‘Pode-se
acaso conceber’, perguntava São Gregório Nazianzeno, ‘um acordo mais completo e dizer-se mais absolutamente a mesma coisa,
ainda que com palavras diferentes?’ (5).
Uma
diferença, no entanto, se mantinha entre os dois modos de exprimir o mistério.
Hoje é comum expressá-la assim : os gregos e os latinos, na consideração da
Trindade, partem de pontos opostos; os gregos partem das Pessoas divinas, ou
seja, da pluralidade, para chegar à unidade de natureza; já os latinos partem
da unidade da natureza divina para chegar às três Pessoas. ‘O latino’, escreveu um historiador
francês do dogma, ‘considera a
pessoalidade como um modo da natureza; o grego considera a natureza como o
conteúdo da pessoa’ (6).
Eu acredito
que a diferença pode ser expressa também de outra forma. Ambos, latinos e
gregos, partem da unidade de Deus; tanto o símbolo grego quanto o latino começa
dizendo : ‘Creio em um só Deus’. Mas
esta unidade, para os latinos, ainda é concebida como impessoal ou pré-pessoal;
é a essência de Deus que depois se especifica em Pai, Filho e Espírito Santo,
sem, é claro, ser pensada como pré-existente às Pessoas. Na teologia latina, o
tratado ‘De Deo uno’, sobre o único
Deus, sempre precedeu o tratado ‘De Deo
trino’, sobre a Trindade.
Para os
gregos, no entanto, trata-se de uma unidade já personalizada, porque, para
eles, ‘a unidade é o Pai, de quem e para
quem se contam as outras Pessoas’ (7).
O primeiro artigo do credo dos gregos também diz ‘Creio em um só Deus Pai Todo-Poderoso’, mas ‘Pai Todo-Poderoso’ não é separado de ‘um só Deus’, como no credo
latino, e sim forma um todo com ele. A vírgula não vem depois da palavra ‘Deus’,
mas depois da palavra ‘Todo-Poderoso’.
O sentido é : ‘Creio em um só Deus que é
o Pai Todo-Poderoso’. A unidade das três Pessoas divinas se dá, para eles,
do fato de que o Filho é perfeitamente (substancialmente) ‘unido’ ao Pai, como também o é o Espírito Santo ao Filho (8).
São
legítimas as duas maneiras de abordar o mistério, mas hoje se tende cada vez
mais a preferir o modelo grego, em que a unidade em Deus não é separável da
trindade, mas forma um único mistério e brota de um único ato. Em pobres
palavras humanas, podemos dizer o seguinte : o Pai é a fonte, a origem absoluta
do movimento de amor; o Filho não pode existir como Filho se, antes de tudo,
não recebe do Pai tudo o que é. ‘É por
causa do Pai, ou seja, pelo fato de que o Pai existe, que também existem o
Filho e o Espírito’, escreve Damasceno (9).
O Pai é o
único, mesmo no âmbito da Trindade, absolutamente o único, a não ter
necessidade de ser amado para poder amar. Somente no Pai se realiza a equação
perfeita : ser é amar; para as outras Pessoas divinas, ser é ser amado.
O Pai é
eterna relação de amor e não existe fora desta relação. Não se pode, portanto,
conceber o Pai acima de tudo como o ser supremo e, posteriormente, reconhecer
nele uma eterna relação de amor. Deve-se falar do Pai como eterno ato de amor.
O Deus único dos cristãos é, assim, o Pai; mas não concebido como fechado em si
mesmo (como poderia ser chamado de ‘pai’
se não fosse porque tem um ‘filho’?),
mas como o Pai sempre em ato de gerar o Filho e doar-se a Ele com um amor
infinito que os une e que é o Espírito Santo. Unidade e trindade de Deus surgem
eternamente de um único ato e são um só mistério.
Eu disse
que, hoje, mesmo no Ocidente, muitos tendem a preferir o modelo grego (e eu
mesmo sou um deles). No entanto, é preciso acrescentar logo que isto não
significa negar a contribuição da teologia latina. Se, de fato, a teologia
grega forneceu, por assim dizer, o esquema e a abordagem adequada para falar da
Trindade, o pensamento latino assegurou a ele, com Agostinho, o conteúdo de
fundo e a alma, que é o amor.
Ele baseia o
seu discurso da Trindade na definição ‘Deus
é amor’ (1 Jo 4,16), vendo no Espírito Santo o amor mútuo entre o Pai e o
Filho, segundo a tríade amante-amado-amor, que os seus seguidores medievais
explicitarão e tornarão quase canônica (10).
Foi nela que o teólogo Heribert Mühlen fundamentou recentemente a sua concepção
do Espírito Santo como o ‘Nós’
divino, a koinonia personificada entre o Pai e o Filho na Trindade, e, de
maneira diferente, entre todos os batizados na Igreja (11).
O primeiro
dos orientais a valorizar este contributo da teologia latina foi São Gregório
Palamas, que, no século XIV, finalmente conheceu o Tratado sobre a Trindade de
Santo Agostinho. Ele escreveu :
‘O Espírito
do altíssimo Verbo é como o amor inefável do Pai pelo Seu Verbo, gerado de modo
inefável; amor que este mesmo Verbo e Filho amado do Pai, por sua vez, tem pelo
Pai, pois possui o Espírito que, junto com ele, provém do Pai e que descansa
nele, por ser-lhe conatural’ (12).
A abertura
de Palamas é hoje retomada, em outro contexto, por um conhecido teólogo
ortodoxo vivo, que escreve : ‘A expressão
‘Deus é amor’ significa que Deus ‘existe’ como Trindade, como ‘pessoa’ e não
como substância. O amor não é uma consequência ou uma ‘propriedade’ da
substância divina (...), mas aquilo que constitui a sua substância’ (13). Parece-me uma explicação
compatível com a definição que Santo Tomás de Aquino, seguindo Agostinho, faz
das pessoas divinas como ‘relações subsistentes’ (14).
A diferença
e complementaridade das duas teologias não se limita apenas ao modo de conceber
o ser e as relações internas à Trindade. Mesmo que com algumas exceções (entre
os latinos, a de Agostinho), é evidente que os gregos estão mais interessados
na Trindade imanente, fora do tempo, enquanto os latinos estão mais
interessados na Trindade econômica, ou seja, em como ela se revelou na história
da salvação. Uns, de acordo com seu próprio gênio, estão mais interessados no
ser e na ontologia; os outros, no manifestar-se, isto é, na história. A esta
luz, entendemos o hábito dos latinos de iniciar a conversa sobre Deus com o
tratado ‘Sobre o Deus uno’ em vez de ‘Sobre o Deus trino’, e também
compreendemos os motivos que existem para se manter essa tradição, como riqueza
para todos. Na história da salvação, de fato, e como veremos logo, a revelação
do Deus uno precedeu a do Deus trino.
O sinal mais
evidente dessa diferença de abordagem são os dois modos diferentes de
representar a Trindade na iconologia grega e na arte ocidental. O ícone
canônico da ortodoxia, que tem o seu vértice em Rublev, representa a Trindade com as figuras de três anjos iguais e
distintos, dispostos ao redor de uma mesa. Tudo faz transparecer uma paz e
unidade sobre-humana. A história da salvação não é ignorada, como evidenciado
pela referência ao episódio de Abraão que recebe os três hóspedes e pela mesa
eucarística em torno da qual os três estão sentados; ainda assim, ela fica em
segundo plano.
Na arte
ocidental, da Idade Média em diante, a Trindade é representada de modo
completamente diferente. Vemos o Pai, que, com os braços estendidos, segura as
duas extremidades da cruz e, entre a face do Pai e a do Crucifixo, paira uma
pomba que representa o Espírito Santo. Os exemplos mais conhecidos são a Trindade de Masaccio, em Santa Maria Novella, Florença, e a de Dürer no museu de Viena, mas existem
outros inúmeros exemplos, tanto populares quanto artísticos. É a Trindade tal
como se revelou a nós na história da salvação, que culmina com a cruz de
Cristo.
3. Duas estradas a manter abertas
Vamos agora
dar um passo adiante e tentar ver como a fé cristã precisa manter abertas e
desimpedidas ambas as estradas para o mistério trinitário, delineadas até aqui.
Dito esquematicamente : a Igreja precisa acolher plenamente a abordagem da
ortodoxia à Trindade na sua vida interna, isto é, na oração, na contemplação,
na liturgia, na mística; e precisa manter presente a abordagem latina em sua
missão evangelizadora ad extra.
Não há
necessidade de demonstrar o primeiro ponto. Basta acolher com alegria e
reconhecimento o riquíssimo patrimônio de espiritualidade que vem da tradição
grega e bizantina e que diversos teólogos ortodoxos, em tempos recentes,
defenderam e tornaram acessível ao público ocidental (15). Um texto de São Basílio expressa bem a orientação de fundo da
visão ortodoxa :
‘O caminho do conhecimento de Deus procede do
único Espírito, através do único Filho, até o único Pai; inversamente, a
bondade natural, a santificação segundo a natureza, a dignidade real, se
difundem do Pai, por meio do Unigênito, até o Espírito’ (16).
Em outras
palavras, em termos de ser ou da saída das criaturas de Deus, tudo começa a
partir do Pai, passa pelo Filho e chega a nós no Espírito; na ordem do
conhecimento, ou do retorno das criaturas a Deus, tudo começa com o Espírito
Santo, passa pelo Filho Jesus Cristo e retorna ao Pai. A perspectiva é sempre
trinitária.
Explico
agora por que é necessário hoje, mais do que nunca, tanto ao Oriente quanto ao
Ocidente, conhecer e praticar também a abordagem latina ao mistério de Deus uno
e trino. São Gregório Nazianzeno, em um texto famoso, resume assim o processo
que levou à fé na Trindade :
‘O Antigo Testamento anunciou de modo
explícito a existência do Pai, enquanto a existência do Filho foi anunciada de
modo mais obscuro. O Novo Testamento manifestou a existência do Filho e deu um
vislumbre da natureza divina do Espírito Santo. Agora, o Espírito está presente
no meio de nós e nos concede mais distintamente a própria manifestação. Não
teria sido conveniente, quando ainda não fora confessada a divindade do Pai,
proclamar abertamente a do Filho, nem teria sido seguro tomarmos o peso da
divindade do Espírito quando ainda não era aceita a do Filho’ (17).
A mesma
pedagogia divina é posta em prática por Jesus. Ele diz que não pode revelar aos
apóstolos tudo o que sabe sobre si mesmo e sobre o seu Pai, pois eles ainda não
seriam ‘capazes de assumir seu peso’
(Jo 16,12).
É verdade
que vivemos no tempo em que a Trindade se revelou plenamente e, por isso, temos
de viver constantemente sob esta ‘luz
trissolar’, como a chamam certos Padres antigos, sem nos perdermos na contemplação
de um Deus ‘ser supremo’, mais
próximo do Deus dos filósofos do que do Deus revelado por Jesus. Mas, o que
dizer do mundo que nos rodeia, não crente, secularizado e que deve ser
reevangelizado? Ele não está nas mesmas condições do mundo antes da vinda de
Cristo? Não devemos, no tocante a ele, usar da mesma pedagogia que Deus usou
para com toda a humanidade ao revelar-se?
Precisamos,
portanto, nós também ajudar os nossos contemporâneos a descobrir, em primeiro
lugar, que Deus existe, que Ele nos criou por amor, que é um Pai bom e se
revelou a nós na pessoa de Jesus. Será que podemos, honestamente, começar a
nossa evangelização falando das três pessoas divinas? Não seria isso, para usar
a imagem de São Gregório, colocar nos ombros das pessoas um peso que elas não
são capazes de carregar?
Deve
notar-se uma coisa importante. O Pai, que, de acordo com Gregório Nazianzeno,
se revelou primeiro no Antigo Testamento, não é ainda ‘o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo’, isto é, um pai verdadeiro de
um filho verdadeiro; não é o Deus Pai da Trindade; esta revelação ocorre apenas
com Jesus. Ele ainda é pai em sentido metafórico, ‘pai do seu povo Israel’ e, para os pagãos, ‘pai do cosmos’, ‘pai celeste’.
Também para São Gregório, portanto, a revelação sobre Deus começou com o ‘Deus uno’.
Há um
sentido em que a palavra ‘Deus’ pode
e deve ser usada para descrever o que as três Pessoas divinas têm em comum, ou
seja, toda a Trindade (18), tanto se
com a Escritura e com os Padres antigos entendermos este elemento comum como ‘natureza’, substância ou essência (2 Pd
1,4 : ‘participantes da natureza divina’,
theia physis), quanto se, como propõe
Johannes Zizioulas, o entendermos como ‘estar
em comunhão’ (19).
A Igreja
deve encontrar o modo de anunciar o mistério de Deus Uno e Trino com categorias
apropriadas e compreensíveis para os homens de cada tempo. Assim fizeram os
Padres da Igreja e os concílios antigos, e é nisto, acima de tudo, que consiste
a fidelidade a eles. É difícil pensar em apresentar às pessoas de hoje o
mistério trinitário em seus mesmos termos de substância, hipóstase, propriedade
e relações subsistentes, ainda que a Igreja nunca possa renunciar a usá-los no
âmbito da sua teologia e nos locais de aprofundamento da fé.
Se há algo
da antiga linguagem dos Padres que a experiência do anúncio demonstra ser capaz
ainda hoje de ajudar as pessoas, se não a explicar, pelo menos a ter uma ideia
da Trindade, esse algo é justamente o escrito de Agostinho que se concentra no
amor. O amor é, por si mesmo, comunhão e relação; não existe amor a não ser
entre duas ou mais pessoas. Todo amor é o movimento de um ser rumo a outro ser,
acompanhado pelo desejo de união. Entre as criaturas humanas, essa união é
sempre incompleta e transitória, mesmo nos amores mais ardentes; só entre as
Pessoas divinas é que a união se realiza tão completamente a ponto de fazer das
três, eternamente, um só Deus. Esta é uma linguagem que também o homem de hoje
é capaz de entender.
4. Unidos em adoração da Trindade
Santo
Agostinho nos sugere a melhor maneira de concluir esta reconstrução das duas
vias de abordagem ao mistério da Santíssima Trindade. Quando se quer atravessar
um braço do mar, diz ele, o mais importante não é ficar na praia aguçando a
vista para ver o que há do outro lado, mas entrar no barco que leva até lá. Para
nós, portanto, o mais importante não é especular sobre a Trindade, mas
permanecer na fé da Igreja, que é a barca que nos leva a ela (20). Não podemos abraçar o oceano, mas
podemos entrar nele; por maiores que sejam os nossos esforços, não podemos
abraçar o mistério da Trindade com a nossa mente, mas podemos fazer algo ainda
mais belo : entrar nela!
Há um ponto
em que estamos unidos e concordes, sem qualquer diferenciação entre Oriente e
Ocidente, e é o dever e a necessidade de adorar a Trindade. Somente na adoração
é que realmente praticamos, não apenas em palavras, mas em atos, o apofatismo,
ou seja, aquela regra de humilde restrição ao falar de Deus, de dizer não
dizendo. Adorar a Trindade, segundo um estupendo oxímoro de São Gregório
Nazianzeno, é elevar a ela ‘um hino de
silêncio’ (21). Adorar é
reconhecer Deus como Deus e nós mesmos como criaturas de Deus. É ‘reconhecer a infinita diferença qualitativa
entre o Criador e a criatura’ (22);
reconhecê-la, entretanto, livremente, alegremente, como filhos, não como
escravos. Adorar, diz o Apóstolo, é ‘libertar
a verdade prisioneira da injustiça do mundo’ (cf. Rm 1, 18).
Encerremos
recitando juntos a doxologia que, desde a mais remota antiguidade, sobe
idêntica à Trindade do Oriente e do Ocidente : ‘Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio,
agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém’’.
Fonte :
*Artigo na íntegra http://www.zenit.org/pt/articles/segunda-pregacao-de-quaresma-oriente-e-ocidente-perante-o-misterio-da-trindade
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(1) Orientale lumen, nº 1.
(2) Tertio millennio adveniente, nº 16.
(3) Q. A. Symmacus, Relatio de arae Victoriae, III,10,
in ‘Monumenta Germaniae
Historica’, Auctores antiquissimi Bd.6/1, rest. 1984.
(4) Para uma resenha crítica das várias teologias atuais da Trindade
nas Igrejas cristãs, cf. Veli-Matti Kärkkäinen, The Trinity: Global
Perspectives, Louisville, Kentucky, 2007.
(5) Gregório Nazianzeno, Oratio 42, 15 (PG 36, 476).
(6) Th. De Régnon, Études de théologie positive sur la Sainte
Trinité, I, Paris 1892, 433.
(7) Gregório Naz., Oratio 42, 16 (PG 36, 477).
(8) Cf. Gregório Nisseno, Contra Eunomium 1,42 (PG
45, 464).
(9) João Damasceno, De fide orthodoxa, I, 8 (PG 94,
824).
(10) Agostinho, De Trinitate, VIII, 9,14; IX, 2,2;
XV,17,31; cf. Riccardo di S. Vittore, De Trin. III,2.18; S:
Boaventura, I Sent. d. 13, q.1.
(11) Cf. H.
Mühlen, Der Heilige Geist als Person. Ich - Du - Wir, Münster in
W., 1963.
(12) Gregório Palamas, Capita physica, 36 (PG 150,
1145).
(13) J. D. Zizioulas, Du personnage à la personne, in L’être
ecclésial, Genebra 1981, p. 38.
(14) Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q.29, a. 4.
(15) Cf. V Lossky, Théologie mystique de l’Eglise d’Orient,
Paris 1944; P. Evdokimov,L’Orthodoxie, Paris 1959; J. Meyendorff, Byzantine
Theology, Nova Iorque 1974.
(16) Basílio de Cesareia, De Spiritu Sancto XVIII, 47 (PG
32 , 153).
(17) Cf. Gregório Nazianzeno, Oratio 31 (Teologica
II), 26; cf. também Oratio 32 (Teologica III).
(18) Agostinho, A Trindade, I,6,10: ‘O nome ‘Deus’ indica toda a Trindade, não só o Pai’.
(19) J.
Zizioulas, Being as Communion. Studies on Personhood and the Church,
Londres, 1985.
(20) Agostinho, A Trindade IV,15, 20; Confissões,
VII, 21.
(21) Gregório Nazianzeno, Carmina, 29 (PG 37, 507) (sigomenon
hymnon).
(22) Søren Kierkegaard, A doença mortal.
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