*Artigo do Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro,
RJ
‘Uma
das práticas quaresmais marcantes é a penitência, sobretudo no comer e no beber. Tal penitência pode
consistir numa simples abstinência, que é renúncia a algum alimento, ou pode
chegar ao jejum, que consiste no privar-se das refeições de modo total ou
parcial. É muito importante a prática de tal forma de penitência. Aliás, eram o
jejum e a abstinência que, na Igreja Antiga, davam uma fisionomia própria ao
tempo quaresmal.
Mas,
por que jejuar? Por que se abster de alimentos? É necessário compreender o
sentido profundo que o cristianismo dá a essas práticas para não ficarmos numa
atitude superficial, às vezes até folclórica, ou por ignorância pura e simples,
desprezarmos algo tão belo e precioso no caminho espiritual do cristão.
O
jejum nos ensina que somos radicalmente dependentes de Deus. Na tradição
judaica, na Escritura, a palavra nephesh significa, ao mesmo tempo, vida e
garganta. A ideia que isso exprime é que nossa vida não vem de nós mesmos, não
a damos a nós próprios; nós a recebemos continuamente : ela entra pela nossa
garganta com o alimento que comemos, a água que bebemos, o ar que respiramos.
Jamais o homem pode pensar que se basta a si mesmo, que pode se fechar para
Deus. Quando jejuamos, sentimos certa fraqueza e lerdeza, às vezes nos vem
mesmo um pouco de tontura. Isso faz parte da ‘psicologia do jejum’ : recorda-nos o que somos sem esta vida que
vem de fora, que nos é dada por Deus continuamente.
A
prática do jejum impede-nos, então, da ilusão de pensar que a nossa existência,
uma vez recebida, é autônoma, fechada, independente. Nunca poderemos dizer : ‘A vida é minha; faço como eu quero’! A
vida será, sempre e em todas as suas etapas, um dom de Deus, um presente
gratuito, e nós seremos sempre dependentes Dele. Esta dependência nos
amadurece, nos liberta de nossos estreitos e mesquinhos horizontes, nos livra
da autossuficiência e nos faz compreender ‘na
carne’ nossa própria verdade, recordando-nos que a vida é para ser vivida
em diálogo de amor com Aquele que no-la deu.
O
alimento é uma de nossas necessidades básicas, um de nossos instintos mais
fundamentais, juntamente com a sexualidade. A abstenção do alimento nos
exercita na disciplina, fortalecendo nossa força de vontade, aguçando nossa capacidade
de vigilância, dando-nos a capacidade para uma verdadeira disciplina. Nossa
tendência é ir atrás de nossos instintos, de nossas tendências, de nossa
vontade desequilibrada. Aliás, essa é a grande fraqueza e o grande engano do
mundo atual. Dizemos : ‘não vou me
reprimir; não vou me frustrar’, e vamos nos escravizando aos desejos mais
banais e às paixões mais contrárias ao Evangelho e ao amor pelo próximo.
O
próprio Jesus, de modo particular, e a Escritura, de modo geral, nos exortam à
vigilância e à sobriedade. O jejum e a abstinência, portanto, são um treino
para que sejamos senhores de nós mesmos, de nossas paixões, desejos e vontades.
Assim, seremos realmente livres para Cristo, sendo livres para realizar aquilo
que é reto e desejável aos olhos de Deus! Jesus mesmo afirmou que quem comete
pecado é escravo do pecado. É muito importante exercitar-se com a abstinência.
Não basta malhar o corpo; é preciso malhar o coração!
O
jejum tem também a função de nos unir a Cristo no seu período de quarenta dias
no deserto. Quaresma de Cristo, quaresma do cristão. Faz-nos, assim, participantes da paixão
do Senhor, completando em nós o que faltou à cruz de Jesus. O cristão jejua por
amor a Cristo e para unir-se a Ele, trazendo na sua carne as marcas da cruz do
Senhor. É uma união com o Senhor que não envolve somente a alma, com seus
sentimentos e afetos, mas também o corpo. É o homem todo, a pessoa na sua
totalidade que se une ao Cristo. Nunca é demais recordar que a vida cristã
atinge o homem em sua totalidade. Pelo jejum, também o corpo reza, também o
corpo luta para colocar-se no âmbito da vida nova de Cristo Jesus. Também o
corpo necessita, como o coração, ser esvaziado do vinagre dos vícios para ser
preenchido pelo mel, que é o Espírito Santo de Jesus.
Portanto,
o jejum e a abstinência fazem-nos recordar aqueles que passam privações,
sobretudo a fome, abrindo-nos para os irmãos necessitados. Há tantos que, à
força, pela gritante injustiça social em nosso País, jejuam e se abstêm todos
os dias, o ano todo! O jejum nos faz sentir um pouco a sua dor, tão concreta,
tão real, tão dolorosa! Por
isso mesmo, na tradição mística e ascética da Igreja, o jejum e a abstinência
devem ser acompanhados sempre pela esmola : aquele alimento do qual me privo já
não é mais meu, mas deve ser destinado ao pobre. Eis o jejum perfeito : ele me
abre para Deus e para os irmãos. Nesse sentido, é enorme a insistência seja da Sagrada
Escritura, seja dos Padres da Igreja (os santos doutores dos primeiros séculos
do cristianismo).
Temos
necessidade de ser mais assíduos à prática do jejum e da abstinência. Resta-nos
passar da teoria à prática. Seja nossa quaresma uma oportunidade para o jejum e
abstinência, engrandecida com o bem da caridade fraterna, da esmola que se
efetiva na atenção e preocupação ativa e concreta pelos pobres de todas as
pobrezas.’.
Fonte :
* Artigo na íntegra de htt ://www.news.va/pt/news/quaresma-tempo-de-jejuar
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