* Artigo
de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador
oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
‘Meditaremos
sobre a fé comum do Oriente e do Ocidente no Espírito Santo e procuraremos
fazê-lo ‘no Espírito’, em sua
presença, sabendo que, como diz a Escritura, ‘antes mesmo de a nossa palavra chegar à língua, ele já a conhece’
(cf. Salmo 139, 4).
1. Rumo ao acordo sobre o Filioque
Durante
séculos, a doutrina sobre a origem do Espírito Santo no seio da Trindade foi o
ponto de maior atrito e tema de acusações mútuas entre o Oriente e o Ocidente,
por causa do famoso ‘Filioque’.
Tentarei reconstruir o estado da questão para avaliar melhor a graça que Deus
está nos dando de chegar ao entendimento também neste problema espinhoso.
A fé da
Igreja no Espírito Santo foi definida, como se sabe, no concílio ecumênico de
Constantinopla, em 381, com as seguintes palavras : ‘... e (cremos) no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, que procede do
Pai e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, Ele que falou pelos profetas’
(1). Esta fórmula contém a resposta
para as duas perguntas fundamentais sobre o Espírito Santo. À pergunta ‘Quem é o Espírito Santo’, responde-se
que é ‘Senhor’ (isto é, pertence à
esfera do Criador, não das criaturas), que procede do Pai e, na adoração, é
igual ao Pai e ao Filho; à pergunta ‘o
que o Espírito Santo faz?’, responde-se que Ele ‘dá a vida’ (o que resume toda a obra santificadora, interior e
renovadora do Espírito) e que ‘falou
pelos profetas’ (o que resume a ação carismática do Espírito Santo).
Apesar
destes elementos de grande valor, deve-se dizer, no entanto, que o artigo
reflete um estágio ainda provisório, se não da fé, pelo menos da terminologia
sobre o Espírito Santo. A lacuna mais óbvia é que ainda não se atribui
explicitamente ao Espírito Santo o título de ‘Deus’. O primeiro a lamentar esta reticência foi São Gregório Nazianzeno,
que, por conta própria, tinha escrito : ‘O
Espírito é Deus? Certamente! Então é consubstancial (homousion)? É claro que
sim, se é verdade que Ele é Deus’ (2).
Esta lacuna foi preenchida na prática da Igreja, que, superados os motivos
contingentes que até então a tinham contido, não hesitou em atribuir ao
Espírito o título de ‘Deus’ e em defini-lo como ‘consubstancial’ ao Pai e ao Filho.
Mas esta não
era a única ‘lacuna’. Do ponto de vista da história da salvação, não deveria
tardar em parecer estranho que a única obra atribuída ao Espírito fosse a de
ter ‘falado pelos profetas’,
silenciando-se todas as suas outras obras e, especialmente, a sua atividade no
Novo Testamento, na vida de Jesus. Mais uma vez, o complemento da fórmula
dogmática ocorreu espontaneamente na vida da Igreja, como fica evidente nesta
epiclese da liturgia dita de São Tiago, em que se atribui ao Espírito o título
de consubstancial :
‘Enviai... o vosso Santíssimo Espírito,
Senhor que dá a vida, que está sentado convosco, Deus e Pai, e com o vosso
Filho unigênito; que reina, consubstancial e coeterno. Ele falou na Lei, nos
Profetas e no Novo Testamento; desceu em forma de pomba sobre nosso Senhor
Jesus Cristo no rio Jordão, repousando sobre Ele, e desceu sobre os santos
apóstolos... no dia do Santo Pentecostes’ (3).
Outro ponto,
o mais importante, sobre o qual a fórmula conciliar nada dizia, era a relação
entre o Espírito Santo e o Filho, e, consequentemente, entre cristologia e
pneumatologia. A única menção a respeito era a frase ‘encarnado por obra do Espírito Santo em Maria Virgem’, que,
provavelmente, já fazia parte do símbolo de fé que o Concílio de Constantinopla
tinha adotado como base do seu credo.
Quanto a
este ponto, a integração do símbolo aconteceu de maneira menos unívoca e
pacífica. Alguns Padres gregos expressaram a eterna relação entre o Filho e o
Espírito Santo dizendo que o Espírito Santo procede do Pai ‘através do Filho’, que é ‘a imagem do
Filho’ (4), que ‘procede do Pai e recebe do Filho’, que é
o ‘raio’ que se difunde do sol (o
Pai), através do seu esplendor (o Filho), o fluxo que brota da fonte (o Pai)
através do rio (o Filho).
Quando a
discussão sobre o Espírito Santo passou para o mundo latino, cunhou-se, para
expressar esta relação, a frase segundo a qual o Espírito Santo procede ‘do Pai e do Filho’. ‘E do Filho’, em latim, se diz Filioque : daí o sentido com que se
sobrecarregou esta palavra nas disputas entre Oriente e Ocidente e as
conclusões manifestamente exageradas a que, às vezes, se chegou.
O primeiro a
formular a ideia de que o Espírito Santo procede ‘do Pai e do Filho’ foi Santo Ambrósio (5). Ele não é influenciado por Tertuliano (a quem não conhece e
nunca menciona), mas pelas expressões recém-recordadas, que lia nas suas
costumeiras fontes gregas : São Basílio e, mais ainda, Santo Atanásio e Dídimo
de Alexandria. Todas aquelas formas de expressar-se lançavam luz sobre certa
relação, ainda que misteriosas e não esclarecidas, entre o Filho e o Espírito
Santo na sua comum origem a partir do Pai. Se a frase ‘por meio do Filho’ quer dizer algo, esse ‘algo’ é aquilo que Ambrósio (desconhecedor, como todos os latinos,
da sutil distinção que existe em grego entre ‘provir’, ekporeuesthai, e
‘proceder’, proienai) pretendeu exprimir com ‘e do Filho’.
Santo
Agostinho deu à expressão ‘do Pai e do
Filho’ (ainda não há nele a expressão literal Filioque) a justificação teológica que caracterizou, a partir de
então, toda a pneumatologia latina. Ele usa muitas nuances e, certamente, não
coloca Pai e Filho na mesma linha, no tocante ao Espírito Santo, como se
percebe na bem conhecida afirmação : ‘O
Espírito Santo procede primariamente do Pai (de Patre principaliter) e, pelo
dom feito dele ao Filho pelo Pai, sem qualquer intervalo de tempo, de ambos ao
mesmo tempo’ (6).
O que exigia
esta doutrina, além de muitas passagens do Novo Testamento (‘Tudo o que o Pai possui é meu’, ‘Ele (o Paráclito) tomará do que é meu’),
era a sua concepção das relações trinitárias como relações baseadas no amor.
Isto permitia também responder a uma objeção que tinha ficado sempre sem
resposta : o que o Pai ainda não tinha manifestado plenamente de si mesmo na
geração do Filho, para justificar uma segunda operação trinitária? O que
distingue a origem do Espírito Santo da geração do Verbo?
Quem cunhou
a expressão literal Filioque para
indicar a origem do Espírito Santo a partir ‘do Pai e do Filho’ foi Fulgêncio de Ruspe, que, assim como em
outros casos, ‘endureceu’ fórmulas
anteriores ainda elásticas da teologia latina (7). Ele se cala quanto à precisação de Agostinho, segundo a qual o
Espírito Santo procede ‘principalmente’
do Pai, e insiste em dizer que ‘procede
do Filho tal como (sicut) procede do Pai’, ‘inteiramente (totus) do Pai e inteiramente do Filho’, nivelando,
assim, as duas relações de origem (8).
É nesta versão indiferenciada que a doutrina sobre a origem do Espírito Santo
do Pai e do Filho entrará nas definições eclesiais a partir do III Concílio de
Toledo, em 589 (9).
Enquanto
permaneceu neste nível, a questão não despertou protestos do Oriente. No ano de
809, porém, foi realizado em Aquisgrão, por vontade de Carlos Magno, um sínodo
para patrocinar a introdução do Filioque
no símbolo niceno-constantinopolitano, que começava, em algumas igrejas, a ser
cantado na missa. O imperador, mais que por convicções teológicas pessoais, era
motivado pelo desejo de dar uma justificativa também doutrinal à sua política
de emancipar-se do império do Oriente.
No final do
concílio, uma delegação do imperador foi a Roma a fim de ganhar o papa Leão III
para a causa do imperador. Embora partilhasse plenamente da doutrina do Filioque, no entanto, o papa considerava
inoportuna a sua inserção no símbolo e manteve com firmeza a sua decisão (10). Nisto ele seguia a mesma linha de
ação da Igreja grega, onde tinha havido, como já vimos, importantes integrações
e aprofundamentos do artigo sobre o Espírito Santo, sem que se devesse, por
isso, mudar o texto do símbolo. Mas diante de uma nova pressão do imperador
Henrique II da Alemanha, em 1014, o papa Bento VIII aceitou que a palavra Filioque fosse inserida na recitação
também litúrgica do credo, suscitando, em decorrência, as justas recriminações
do Oriente ortodoxo.
Hoje, no
clima de diálogo e de estima recíproca que tenta estabelecer-se entre o mundo
ortodoxo e a Igreja católica, este problema não parece mais um obstáculo
intransponível para a plena comunhão. Representantes qualificados da teologia
ortodoxa estão dispostos a reconhecer, sob certas condições, a legitimidade da
doutrina latina. O teólogo Johannes Zizioulas expõe assim estas condições :
‘A regra de ouro deve ser a interpretação da
pneumatologia latina que era feita por São Máximo, o Confessor : professando a
doutrina do Filioque, os irmãos ocidentais não têm a intenção de introduzir uma
segunda causa (aition) em Deus fora do Pai; por outra parte, o papel
intermediário do Filho na origem do Espírito não deve ser limitado à divina
economia, mas se refere também à natureza divina. Se o Oriente e o Ocidente
estiverem dispostos, em nosso tempo, a tornar próprios estes dois pontos de São
Máximo, haveria uma base suficiente para a reaproximação das duas tradições’
(11).
Com estas
palavras, mantém-se a posição ortodoxa de que o Pai é a única causa ‘não causada’ da origem do Espírito
Santo, o que não é incompatível com a posição acima exposta de Agostinho; além
disto, fica reconhecida a validade do ponto de vista dos latinos de atribuir ao
Filho um papel ativo na origem eterna do Espírito Santo a partir do Pai, mesmo
que não se compartilhe com eles a precisação ‘como de um só princípio’ (tamquam
ex uno principio).
A este
respeito, o Catecismo da Igreja Católica fala de uma ‘legítima complementaridade que, se não for enrijecida, não impede a
identidade de fé na realidade do mistério’ (12). Na mesma linha, manifesta-se um documento de 1995 do Conselho
Pontifício para a Unidade dos Cristãos, solicitado pelo papa João Paulo II e
positivamente acolhido por expoentes da teologia ortodoxa (13). Como sinal desta vontade de reconciliação, o mesmo João Paulo
II começou a prática de omitir a adição Filioque,
‘e do Filho’, em certas celebrações
ecumênicas em São Pedro e em outros lugares, nas quais se proclamava o credo em
latim.
2. Rumo a uma nova síntese
Como sempre,
quando feito realmente ‘no Espírito’,
o diálogo não se limita a resolver as dificuldades do passado, mas abre novas
perspectivas. A maior novidade na pneumatologia atual não consiste apenas em
finalmente se encontrar um acordo sobre o Filioque,
mas em partir das Escrituras rumo a uma síntese mais ampla, com uma gama de
questões mais ampla e menos condicionada pela história passada.
Com esta
releitura, iniciada já faz tempo, emergiu um dado preciso : o Espírito Santo,
na história da salvação, não é só enviado pelo Filho, mas também para o Filho;
o Filho não é somente aquele que dá o Espírito, mas também aquele que o recebe.
O momento da passagem de uma para a outra fase da história da salvação, do
Jesus que recebe o Espírito ao Jesus que envia o Espírito, é constituído pelo
evento da cruz (14).
No documento
do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, já mencionado, encontramos um
belo texto que resume todas essas intervenções do Espírito ‘sobre’ Jesus : no nascimento, no
batismo, no ato de oferecer-se em sacrifício ao Pai (Heb 9,14), na sua
ressurreição (15). Esta relação de
reciprocidade, encontrada no âmbito da história, não pode deixar de refletir,
de alguma forma, a relação que existe na Trindade. O mesmo documento mencionado
chega por isto à seguinte conclusão :
‘O papel do Espírito no mais íntimo da
existência humana do Filho de Deus surge de uma relação trinitária eterna, pela
qual o Espírito, no seu mistério de dom de amor, caracteriza a relação entre o
Pai fonte do amor e o Filho amado’ (16).
Mas como
conceber essa reciprocidade no âmbito trinitário? Este é o campo que se abre
para a reflexão atual da teologia do Espírito. O fato encorajador é que estão
se movendo juntos nesta direção, em diálogo fraterno e construtivo, todos os
grandes teólogos das Igrejas cristãs : ortodoxa, católica e protestante. Um dos
pontos-chave que despertavam (e condicionavam) a reflexão dos Padres, em
particular a de Agostinho, era a falta de reciprocidade entre o Espírito Santo
e as outras duas pessoas divinas. Podemos chamar, diziam eles, o Espírito Santo
de ‘Espírito do Pai’, mas não podemos chamar o Pai de ‘Pai do Espírito’; podemos chamar o Espírito Santo de ‘Espírito do
Filho’, mas não podemos chamar o Filho de ‘Filho
do Espírito’ (17).
É neste
ponto que hoje se procuram superar as dificuldades. É verdade que não podemos
chamar Deus de ‘Pai do Espírito’, mas
podemos chamá-lo de ‘Pai no Espírito’;
é verdade que não podemos chamar o Filho de ‘Filho do Espírito’, mas podemos chamá-lo de ‘Filho no Espírito’. A preposição usada na Bíblia para falar do
Espírito Santo não é ‘de’, mas ‘em’; é ‘no Espírito’ que Cristo grita Abba na terra (cf. Lc 10, 21). Se
admitimos que o que acontece na história é um reflexo do que acontece na
Trindade, devemos concluir que é ‘no
Espírito’ que o Filho pronuncia o seu Abba eterno na geração a partir do
Pai (18). O teólogo ortodoxo Olivier
Clément antecipou esta conclusão dizendo que ‘o Filho nasce do Pai no Espírito’ (19).
Resulta de
tudo isto um modo novo de conceber as relações trinitárias. O Verbo e o
Espírito procedem simultaneamente do Pai. É preciso renunciar a qualquer ideia
de precedência entre os dois, não só cronológica, mas também lógica. Como é
única a natureza que constitui as três Pessoas divinas, assim é única a
operação que tem a sua fonte no Pai e que constitui o Pai como ‘Pai,’ o Filho como ‘Filho’ e o Espírito como ‘Espírito’.
Filho e Espírito Santo não devem ser vistos um após o outro, ou um ao lado do
outro, mas ‘um no outro’. Geração e
procedência não são ‘dois atos separados’,
mas dois aspectos, ou dois resultados, de um único ato (20).
Como
conceber e expressar esse ato abissal de que brota, toda junta, a rosa mística
da Trindade? Estamos diante do núcleo mais íntimo do mistério trinitário, que
está para além de todos os conceitos e analogias humanas. Muito sugestiva, eu
acho, é a inspiração do teólogo ortodoxo Olivier Clément a este respeito. Ele fala
de uma ‘unção eterna’ do Filho pelo
Pai por meio do Espírito (21). Essa
intuição tem uma sólida base patrística na fórmula ‘ungente, ungido e unção’, usada na mais antiga teologia dos Padres.
Santo Irineu escreveu :
‘No nome 'Cristo' subentende-se aquele que
ungiu, aquele que foi ungido e a própria unção com que foi ungido. De fato, o
Pai ungiu e o Filho foi ungido, no Espírito que é a unção’ (22).
São Basílio
retomou literalmente esta afirmação, repetida depois por Santo Ambrósio (23). Na sua origem, ela se referia
diretamente à unção histórica de Jesus em seu batismo no Jordão. Depois, esta
unção foi vista como já realizada no momento da Encarnação (24). Mesmo na época dos Padres, porém, começou-se a remontar a uma
‘unção cósmica’ do Verbo, mencionada
por Justino, Irineu e Orígenes, ou seja, a uma unção que o Pai confere ao Verbo
em vista da criação do mundo, porque, ‘por
meio dele, o Pai ungiu e dispôs tudo’ (25).
Eusébio de
Cesareia vai ainda mais longe, vendo realizada a unção no próprio momento da geração
: ‘A unção consiste na geração mesma do
Verbo, pela qual o Espírito do Pai passa ao Filho a modo de divina fragrância’
(26). Maior autoridade tem a opinião
de São Gregório de Nissa, que dedica um capítulo inteiro a ilustrar a unção do
Verbo mediante o Espírito Santo, na sua geração eterna pelo Pai. Ele parte do
pressuposto de que o nome ‘Cristo’, o
Ungido, pertence ao Filho desde toda a eternidade :
‘O óleo da exultação apresenta o poder do
Espírito Santo, com que Deus é ungido por Deus, isto é, o Unigênito é ungido
pelo Pai... Como o justo não pode ser ao mesmo tempo injusto, assim o ungido
não pode não ser ungido. Ora, aquele que nunca é não-ungido é certamente o
ungido desde sempre. E todos hão de que admitir que aquele que unge é o Pai e
que o unguento é o Espírito Santo’ (27).
A imagem da
unção (porque se trata sempre de uma imagem) adiciona algo de novo, que não é
manifestado pela imagem mais usual da inspiração ou do sopro. No Ocidente, é
costume dizer que o Espírito é assim chamado porque é inspirado ou soprado e
porque inspira e sopra. Nesta visão, o Espírito Santo exerce um papel ‘ativo’ somente fora da Trindade, por
inspirar as escrituras, os profetas, os santos, etc., enquanto, na Trindade,
ele teria apenas a qualidade passiva de ser soprado pelo Pai e pelo Filho.
Esta
ausência de um papel ativo do Espírito dentro da Trindade, considerada, talvez,
a maior lacuna da pneumatologia tradicional, é assim superada. Afinal, se
reconhecemos ao Filho um papel ativo no tocante ao Espírito, manifestado na
imagem do sopro, também reconhecemos ao Espírito Santo um papel ativo em
relação ao Filho, manifestado na imagem da unção. Não podemos dizer, do Verbo,
que Ele seja ‘o Filho do Espírito Santo’,
mas podemos dizer que Ele é ‘o Ungido do
Espírito’.
3. O Espírito da verdade e o Espírito da caridade
A renovada
escuta das Escrituras nos permite constatar, também de outro ponto de vista, a
complementaridade das duas pneumatologias, a oriental e a ocidental. Notou-se,
no próprio âmbito do Novo Testamento, uma ênfase maior, por parte de João, no ‘Espírito da verdade’ e, por parte de
Paulo, no ‘Espírito da caridade’ (28). ‘Espírito da verdade’, no Quarto Evangelho, é outro nome do
Paráclito (Jo 14, 16-17); os adoradores do Pai devem adorá-lo ‘em Espírito e verdade’; Ele leva ‘a toda a verdade’; a sua unção ‘dá a ciência e ensina todas as coisas’
(1 Jo 2, 20.27). Já para Paulo, o efeito primário do Espírito é a ‘efusão do amor’ nos corações; fruto do
Espírito é ‘o amor, a alegria e a paz’
(Gal 5, 21); o amor constitui ‘a lei do
Espírito’ (Rm 8 : 2), o amor é ‘o melhor caminho’, o maior de todos os dons
do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12,31).
Como no caso
da doutrina sobre Cristo, também estas diversas ênfases sobre o Espírito Santo
permanecem na tradição, e, mais uma vez, o Oriente reflete de modo predominante
a perspectiva de João e o Ocidente a de Paulo. A pneumatologia ortodoxa deu
mais destaque ao Espírito luz; a latina, ao Espírito amor. Esta diversidade é
claríssima, em todo caso, nas duas obras que mais influenciaram o
desenvolvimento das respectivas teologias do Espírito Santo. No tratado Sobre o
Espírito Santo, de São Basílio, não desempenha papel algum o tema do Espírito
amor, sendo central o do Espírito ‘luz
inteligível’ (29); já no Tratado
Sobre a Trindade, de Santo Agostinho, não desempenha papel algum o tema do
Espírito luz, ao passo que, bem sabemos, o papel central é ocupado pelo
Espírito como amor.
A luz, com
os fenômenos que costumam acompanhá-la (a transfiguração da pessoa e a sua
completa imersão interior e exterior na luz) é o elemento mais constante entre
os orientais, na mística do Espírito Santo. ‘Vinde, ó luz verdadeira!’, começa uma oração de São Simeão, o Novo
Teólogo, ao Espírito Santo (30). Até
a famosa ‘luz do Tabor’, tão
importante na espiritualidade e na iconografia oriental, é intimamente ligada
ao Espírito Santo (31). Um texto
ortodoxo diz que, no dia de Pentecostes, ‘graças
ao Espírito Santo, o mundo inteiro recebeu um batismo de luz’ (32).
Encerro com
um pensamento de Santo Agostinho sobre o Espírito amor, que, aplicado às
relações entre as diversas Igrejas, nos faria dar um decisivo passo rumo à
unidade dos cristãos. Comentando a doutrina de São Paulo em I Coríntios 12, sobre os carismas, Santo
Agostinho faz esta reflexão. Ao ouvir nomear todos aqueles maravilhosos
carismas (profecia, sabedoria, discernimento, cura, línguas), alguém poderia
sentir-se triste e excluído, por achar que não possui nada disso. Mas, atenção,
prossegue o santo :
‘Se amas, o que possuis não é pouco. Se amas
a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também possuído por ti! Bane
a inveja e será teu o que é meu, e, se eu banir a inveja, é meu o que tu possuis.
A inveja separa, a caridade une. Somente o olho, no corpo, tem a faculdade de
ver; mas é, acaso, só para si mesmo que o olho vê? Não, ele vê pela mão, pelo
pé e por todos os membros... Só a mão age no corpo; ela, no entanto, não age
apenas para si, mas também para o olho. Se estás prestes a receber um golpe que
tem como alvo não a mão, mas o rosto, acaso a mão diz ‘Não me hei de mexer,
porque o golpe não é contra mim’?’ (33).
Eis o
segredo que faz da caridade o ‘caminho
mais excelente’ (I Cor 12, 31) : ela me faz amar o corpo de Cristo, ou a
comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, não somente alguns,
são ‘meus’. A caridade multiplica
realmente os carismas; faz do carisma de um o carisma de todos. Basta não fazer
de si mesmos, mas de Cristo, o centro de interesse; não querer ‘viver para si mesmos, mas para o Senhor’,
como diz o Apóstolo (Rm 14, 7-8).
Aplicado às
relações entre as duas Igrejas, a do Oriente e a do Ocidente, este princípio
nos leva a olhar para aquilo que cada uma tem de diferente da outra, não como
um erro ou como uma ameaça, mas como uma riqueza para todos e que deve nos
alegrar. Aplicado às nossas relações cotidianas, dentro da Igreja ou da
comunidade em que vivemos, ele ajuda a superar os sentimentos naturais de
frustração, de rivalidade e de inveja. ‘Bem-aventurado
aquele servo’, escreve São Francisco de Assis, ‘que não se orgulha (nem se alegra, acrescento eu) pelo bem que o Senhor
diz e faz por meio dele mais do que pelo bem que Ele diz e faz por meio de
outro’ (34). Que o Espírito
Santo nos ajude a trilhar este caminho exigente, mas no qual estão prometidos
os frutos do Espírito : o amor, a alegria e a paz.’
Fonte :
*Artigo na íntegra http://www.zenit.org/pt/articles/quarta-pregacao-de-quaresma-oriente-e-ocidente-perante-o-misterio-do-espirito-santo
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(1) DS,
150.
(2) Gregório
Nazianzeno, Discursos, XXXI, 10 (PG 36, 144).
(3) In A.
Hänggi - I. Pahl, Prex Eucharistica, Fribourg, Suisse, 1968, pág.
250.
(4) Cf.
Atanásio, Cartas a Serapião I, 24 (PG 26, 585s.); Cirilo de
Alexandria, Comentário a João, XI, 10 (PG 74, 541C); São João
Damasceno, Sobre a fé ortodoxa, I,13 (PG 94, 856B).
(5) Ambrósio, Sobre
o Espírito Santo, I, 120 (‘Spiritus quoque Sanctus, cum procedit a
Patreet a Filio, non separatur’).
(6) Agostinho, A
Trindade, XV, 26,47.
(7) Fulgêncio
de Ruspe, Epístolas, 14, 21 (CC 91, p. 411); De fid, 6.54
(CC 91A, pp.716.747) (‘Spiritus Sanctus essentialiter de Patre Filioque
procedit’); Liber de Trinitate, passim (CC 91A, pp. 633 ss).
(8) Epístolas, 14,
28 (CC 91, p.420).
(9) DS,
470. No símbolo do I Concílio de Toledo de 400 (DS, 188), Filioque é
um acréscimo posterior.
(10) Cf. Monumenta
Germaniae Historica. Concilia, t.II, p.II, 1906, pp. 235-244, e in PL 102,
971-976.
(11) J.
D. Zizioulas, The Teaching of the 2nd Ecumenical Council on the
Holy Spiriti in historical and ecumenical perspective, in ‘Credo in
Spiritum Sanctum’, vol. I, Libreria Editrice Vaticana 1983, pág 54.
(12) CIC,
nº 248.
(13) Cf. Les
traditions Grecque et Latine concernant la procession du Saint-Esprit, in ‘Service
d’Information du Conseil Pontifical pour la promotion de l’unité des Chrétiens’,
n. 89, 1995, pp. 87-91.
(14) Cf.
João Paulo II, Enc. Dominum et vivificantem, 13.24. 41;
Moltmann, Lo Spirito della vita, Queriniana, Brescia 1994, pp. 85
ss.
(15) Les
traditions..., cit., p.90.
(16) Les
traditions..., cit., p. 90-91.
(17)
Agostinho, A Trindade, V,12,13.
(18) Cf.
T. G. Weinandy, The Father’s Spirit of Sonship. Reconceiving the
Trinity, Edinburgh 1995.
(19) O.
Clément, Les mystiques chrétiens des origines, Paris 1982.
(20) Cf.
Moltmann, op. cit., p. 90; Weinandy, op. cit., pp. 53-85.
(21) Cf.
O. Clément, op. cit. p.58.
(22)
Irineu, Contra as heresias, III, 18,3.
(23) Basílio, Sobre
o Espírito Santo, XII, 28 (PG 32, 116C); S. Ambrósio, Sobre o
Espírito Santo, I,3,44.
(24) Gregório
Nazianzeno, Discursos, XXX, 2 (PG 36, 105B).
(25)
Irineu, Demonstração da pregação apostólica, 53 (SCh 62, p.
114); cf. A. Orbe, A Unção do Verbo (Analecta Gregoriana,
vol. 113), Roma 1961, pp. 501-568.
(26) Orbe,
op.cit., p. 578.
(27)
Gregório Nisseno, Contra Apolinário, 52 (PG 45, 1249 s.).
(28) Cf.
E. Cothenet, Saint-Esprit, DBSuppl, fasc. 60, 1986,
col. 377.
(29) Basílio, Sobre
o Espírito Santo, IX,22-23 (PG 32, 108 s.); XVI,38 (PG 32, 137).
(30) Simeão,
o Novo Teólogo, Oração mística (SCh 156, p.150)
(31) Gregório
Palamas, Homilia I sobre a Transfiguração (PG 151, 433B-C).
(32) S. de
Pentecostes, em Pentecostaire, Diaconie apostolique, Parma
1994, p.407.
(33) Agostinho, Tratados
sobre João, 32,8.
(34) Francisco
de Assis, Admonição XVII (FF, 166).
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