sábado, 21 de março de 2015

'Oriente e Ocidente perante o mistério da pessoa do Espírito Santo' - Quarta pregação da Quaresma de 2015

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 * Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

‘Meditaremos sobre a fé comum do Oriente e do Ocidente no Espírito Santo e procuraremos fazê-lo ‘no Espírito’, em sua presença, sabendo que, como diz a Escritura, ‘antes mesmo de a nossa palavra chegar à língua, ele já a conhece’ (cf. Salmo 139, 4).

1. Rumo ao acordo sobre o Filioque

Durante séculos, a doutrina sobre a origem do Espírito Santo no seio da Trindade foi o ponto de maior atrito e tema de acusações mútuas entre o Oriente e o Ocidente, por causa do famoso ‘Filioque’. Tentarei reconstruir o estado da questão para avaliar melhor a graça que Deus está nos dando de chegar ao entendimento também neste problema espinhoso.

A fé da Igreja no Espírito Santo foi definida, como se sabe, no concílio ecumênico de Constantinopla, em 381, com as seguintes palavras : ‘... e (cremos) no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, que procede do Pai e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, Ele que falou pelos profetas(1). Esta fórmula contém a resposta para as duas perguntas fundamentais sobre o Espírito Santo. À pergunta ‘Quem é o Espírito Santo’, responde-se que é ‘Senhor’ (isto é, pertence à esfera do Criador, não das criaturas), que procede do Pai e, na adoração, é igual ao Pai e ao Filho; à pergunta ‘o que o Espírito Santo faz?’, responde-se que Ele ‘dá a vida’ (o que resume toda a obra santificadora, interior e renovadora do Espírito) e que ‘falou pelos profetas’ (o que resume a ação carismática do Espírito Santo).

Apesar destes elementos de grande valor, deve-se dizer, no entanto, que o artigo reflete um estágio ainda provisório, se não da fé, pelo menos da terminologia sobre o Espírito Santo. A lacuna mais óbvia é que ainda não se atribui explicitamente ao Espírito Santo o título de ‘Deus’. O primeiro a lamentar esta reticência foi São Gregório Nazianzeno, que, por conta própria, tinha escrito : ‘O Espírito é Deus? Certamente! Então é consubstancial (homousion)? É claro que sim, se é verdade que Ele é Deus(2). Esta lacuna foi preenchida na prática da Igreja, que, superados os motivos contingentes que até então a tinham contido, não hesitou em atribuir ao Espírito o título de ‘Deus’ e em defini-lo como ‘consubstancial’ ao Pai e ao Filho.

Mas esta não era a única ‘lacuna’. Do ponto de vista da história da salvação, não deveria tardar em parecer estranho que a única obra atribuída ao Espírito fosse a de ter ‘falado pelos profetas’, silenciando-se todas as suas outras obras e, especialmente, a sua atividade no Novo Testamento, na vida de Jesus. Mais uma vez, o complemento da fórmula dogmática ocorreu espontaneamente na vida da Igreja, como fica evidente nesta epiclese da liturgia dita de São Tiago, em que se atribui ao Espírito o título de consubstancial :

Enviai... o vosso Santíssimo Espírito, Senhor que dá a vida, que está sentado convosco, Deus e Pai, e com o vosso Filho unigênito; que reina, consubstancial e coeterno. Ele falou na Lei, nos Profetas e no Novo Testamento; desceu em forma de pomba sobre nosso Senhor Jesus Cristo no rio Jordão, repousando sobre Ele, e desceu sobre os santos apóstolos... no dia do Santo Pentecostes(3).

Outro ponto, o mais importante, sobre o qual a fórmula conciliar nada dizia, era a relação entre o Espírito Santo e o Filho, e, consequentemente, entre cristologia e pneumatologia. A única menção a respeito era a frase ‘encarnado por obra do Espírito Santo em Maria Virgem’, que, provavelmente, já fazia parte do símbolo de fé que o Concílio de Constantinopla tinha adotado como base do seu credo.

Quanto a este ponto, a integração do símbolo aconteceu de maneira menos unívoca e pacífica. Alguns Padres gregos expressaram a eterna relação entre o Filho e o Espírito Santo dizendo que o Espírito Santo procede do Pai ‘através do Filho’, que é ‘a imagem do Filho’ (4), que ‘procede do Pai e recebe do Filho’, que é o ‘raio’ que se difunde do sol (o Pai), através do seu esplendor (o Filho), o fluxo que brota da fonte (o Pai) através do rio (o Filho).

Quando a discussão sobre o Espírito Santo passou para o mundo latino, cunhou-se, para expressar esta relação, a frase segundo a qual o Espírito Santo procede ‘do Pai e do Filho’. ‘E do Filho’, em latim, se diz Filioque : daí o sentido com que se sobrecarregou esta palavra nas disputas entre Oriente e Ocidente e as conclusões manifestamente exageradas a que, às vezes, se chegou.

O primeiro a formular a ideia de que o Espírito Santo procede ‘do Pai e do Filho’ foi Santo Ambrósio (5). Ele não é influenciado por Tertuliano (a quem não conhece e nunca menciona), mas pelas expressões recém-recordadas, que lia nas suas costumeiras fontes gregas : São Basílio e, mais ainda, Santo Atanásio e Dídimo de Alexandria. Todas aquelas formas de expressar-se lançavam luz sobre certa relação, ainda que misteriosas e não esclarecidas, entre o Filho e o Espírito Santo na sua comum origem a partir do Pai. Se a frase ‘por meio do Filho’ quer dizer algo, esse ‘algo’ é aquilo que Ambrósio (desconhecedor, como todos os latinos, da sutil distinção que existe em grego entre ‘provir’, ekporeuesthai, e ‘proceder’, proienai) pretendeu exprimir com ‘e do Filho’.

Santo Agostinho deu à expressão ‘do Pai e do Filho’ (ainda não há nele a expressão literal Filioque) a justificação teológica que caracterizou, a partir de então, toda a pneumatologia latina. Ele usa muitas nuances e, certamente, não coloca Pai e Filho na mesma linha, no tocante ao Espírito Santo, como se percebe na bem conhecida afirmação : ‘O Espírito Santo procede primariamente do Pai (de Patre principaliter) e, pelo dom feito dele ao Filho pelo Pai, sem qualquer intervalo de tempo, de ambos ao mesmo tempo(6).

O que exigia esta doutrina, além de muitas passagens do Novo Testamento (‘Tudo o que o Pai possui é meu’, ‘Ele (o Paráclito) tomará do que é meu’), era a sua concepção das relações trinitárias como relações baseadas no amor. Isto permitia também responder a uma objeção que tinha ficado sempre sem resposta : o que o Pai ainda não tinha manifestado plenamente de si mesmo na geração do Filho, para justificar uma segunda operação trinitária? O que distingue a origem do Espírito Santo da geração do Verbo?

Quem cunhou a expressão literal Filioque para indicar a origem do Espírito Santo a partir ‘do Pai e do Filho’ foi Fulgêncio de Ruspe, que, assim como em outros casos, ‘endureceu’ fórmulas anteriores ainda elásticas da teologia latina (7). Ele se cala quanto à precisação de Agostinho, segundo a qual o Espírito Santo procede ‘principalmente’ do Pai, e insiste em dizer que ‘procede do Filho tal como (sicut) procede do Pai’, ‘inteiramente (totus) do Pai e inteiramente do Filho’, nivelando, assim, as duas relações de origem (8). É nesta versão indiferenciada que a doutrina sobre a origem do Espírito Santo do Pai e do Filho entrará nas definições eclesiais a partir do III Concílio de Toledo, em 589 (9).

Enquanto permaneceu neste nível, a questão não despertou protestos do Oriente. No ano de 809, porém, foi realizado em Aquisgrão, por vontade de Carlos Magno, um sínodo para patrocinar a introdução do Filioque no símbolo niceno-constantinopolitano, que começava, em algumas igrejas, a ser cantado na missa. O imperador, mais que por convicções teológicas pessoais, era motivado pelo desejo de dar uma justificativa também doutrinal à sua política de emancipar-se do império do Oriente.

No final do concílio, uma delegação do imperador foi a Roma a fim de ganhar o papa Leão III para a causa do imperador. Embora partilhasse plenamente da doutrina do Filioque, no entanto, o papa considerava inoportuna a sua inserção no símbolo e manteve com firmeza a sua decisão (10). Nisto ele seguia a mesma linha de ação da Igreja grega, onde tinha havido, como já vimos, importantes integrações e aprofundamentos do artigo sobre o Espírito Santo, sem que se devesse, por isso, mudar o texto do símbolo. Mas diante de uma nova pressão do imperador Henrique II da Alemanha, em 1014, o papa Bento VIII aceitou que a palavra Filioque fosse inserida na recitação também litúrgica do credo, suscitando, em decorrência, as justas recriminações do Oriente ortodoxo.

Hoje, no clima de diálogo e de estima recíproca que tenta estabelecer-se entre o mundo ortodoxo e a Igreja católica, este problema não parece mais um obstáculo intransponível para a plena comunhão. Representantes qualificados da teologia ortodoxa estão dispostos a reconhecer, sob certas condições, a legitimidade da doutrina latina. O teólogo Johannes Zizioulas expõe assim estas condições :

A regra de ouro deve ser a interpretação da pneumatologia latina que era feita por São Máximo, o Confessor : professando a doutrina do Filioque, os irmãos ocidentais não têm a intenção de introduzir uma segunda causa (aition) em Deus fora do Pai; por outra parte, o papel intermediário do Filho na origem do Espírito não deve ser limitado à divina economia, mas se refere também à natureza divina. Se o Oriente e o Ocidente estiverem dispostos, em nosso tempo, a tornar próprios estes dois pontos de São Máximo, haveria uma base suficiente para a reaproximação das duas tradições(11).

Com estas palavras, mantém-se a posição ortodoxa de que o Pai é a única causa ‘não causada’ da origem do Espírito Santo, o que não é incompatível com a posição acima exposta de Agostinho; além disto, fica reconhecida a validade do ponto de vista dos latinos de atribuir ao Filho um papel ativo na origem eterna do Espírito Santo a partir do Pai, mesmo que não se compartilhe com eles a precisação ‘como de um só princípio’ (tamquam ex uno principio).

A este respeito, o Catecismo da Igreja Católica fala de uma ‘legítima complementaridade que, se não for enrijecida, não impede a identidade de fé na realidade do mistério(12). Na mesma linha, manifesta-se um documento de 1995 do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, solicitado pelo papa João Paulo II e positivamente acolhido por expoentes da teologia ortodoxa (13). Como sinal desta vontade de reconciliação, o mesmo João Paulo II começou a prática de omitir a adição Filioque, ‘e do Filho’, em certas celebrações ecumênicas em São Pedro e em outros lugares, nas quais se proclamava o credo em latim.


2. Rumo a uma nova síntese

Como sempre, quando feito realmente ‘no Espírito’, o diálogo não se limita a resolver as dificuldades do passado, mas abre novas perspectivas. A maior novidade na pneumatologia atual não consiste apenas em finalmente se encontrar um acordo sobre o Filioque, mas em partir das Escrituras rumo a uma síntese mais ampla, com uma gama de questões mais ampla e menos condicionada pela história passada.

Com esta releitura, iniciada já faz tempo, emergiu um dado preciso : o Espírito Santo, na história da salvação, não é só enviado pelo Filho, mas também para o Filho; o Filho não é somente aquele que dá o Espírito, mas também aquele que o recebe. O momento da passagem de uma para a outra fase da história da salvação, do Jesus que recebe o Espírito ao Jesus que envia o Espírito, é constituído pelo evento da cruz (14).

No documento do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, já mencionado, encontramos um belo texto que resume todas essas intervenções do Espírito ‘sobre’ Jesus : no nascimento, no batismo, no ato de oferecer-se em sacrifício ao Pai (Heb 9,14), na sua ressurreição (15). Esta relação de reciprocidade, encontrada no âmbito da história, não pode deixar de refletir, de alguma forma, a relação que existe na Trindade. O mesmo documento mencionado chega por isto à seguinte conclusão :

O papel do Espírito no mais íntimo da existência humana do Filho de Deus surge de uma relação trinitária eterna, pela qual o Espírito, no seu mistério de dom de amor, caracteriza a relação entre o Pai fonte do amor e o Filho amado(16).

Mas como conceber essa reciprocidade no âmbito trinitário? Este é o campo que se abre para a reflexão atual da teologia do Espírito. O fato encorajador é que estão se movendo juntos nesta direção, em diálogo fraterno e construtivo, todos os grandes teólogos das Igrejas cristãs : ortodoxa, católica e protestante. Um dos pontos-chave que despertavam (e condicionavam) a reflexão dos Padres, em particular a de Agostinho, era a falta de reciprocidade entre o Espírito Santo e as outras duas pessoas divinas. Podemos chamar, diziam eles, o Espírito Santo de ‘Espírito do Pai’, mas não podemos chamar o Pai de ‘Pai do Espírito’; podemos chamar o Espírito Santo de ‘Espírito do Filho’, mas não podemos chamar o Filho de ‘Filho do Espírito(17).

É neste ponto que hoje se procuram superar as dificuldades. É verdade que não podemos chamar Deus de ‘Pai do Espírito’, mas podemos chamá-lo de ‘Pai no Espírito’; é verdade que não podemos chamar o Filho de ‘Filho do Espírito’, mas podemos chamá-lo de ‘Filho no Espírito’. A preposição usada na Bíblia para falar do Espírito Santo não é ‘de’, mas ‘em’; é ‘no Espírito’ que Cristo grita Abba na terra (cf. Lc 10, 21). Se admitimos que o que acontece na história é um reflexo do que acontece na Trindade, devemos concluir que é ‘no Espírito’ que o Filho pronuncia o seu Abba eterno na geração a partir do Pai (18). O teólogo ortodoxo Olivier Clément antecipou esta conclusão dizendo que ‘o Filho nasce do Pai no Espírito(19).

Resulta de tudo isto um modo novo de conceber as relações trinitárias. O Verbo e o Espírito procedem simultaneamente do Pai. É preciso renunciar a qualquer ideia de precedência entre os dois, não só cronológica, mas também lógica. Como é única a natureza que constitui as três Pessoas divinas, assim é única a operação que tem a sua fonte no Pai e que constitui o Pai como ‘Pai,’ o Filho como ‘Filho’ e o Espírito como ‘Espírito’. Filho e Espírito Santo não devem ser vistos um após o outro, ou um ao lado do outro, mas ‘um no outro’. Geração e procedência não são ‘dois atos separados’, mas dois aspectos, ou dois resultados, de um único ato (20).

Como conceber e expressar esse ato abissal de que brota, toda junta, a rosa mística da Trindade? Estamos diante do núcleo mais íntimo do mistério trinitário, que está para além de todos os conceitos e analogias humanas. Muito sugestiva, eu acho, é a inspiração do teólogo ortodoxo Olivier Clément a este respeito. Ele fala de uma ‘unção eterna’ do Filho pelo Pai por meio do Espírito (21). Essa intuição tem uma sólida base patrística na fórmula ‘ungente, ungido e unção’, usada na mais antiga teologia dos Padres. Santo Irineu escreveu :

No nome 'Cristo' subentende-se aquele que ungiu, aquele que foi ungido e a própria unção com que foi ungido. De fato, o Pai ungiu e o Filho foi ungido, no Espírito que é a unção(22).

São Basílio retomou literalmente esta afirmação, repetida depois por Santo Ambrósio (23). Na sua origem, ela se referia diretamente à unção histórica de Jesus em seu batismo no Jordão. Depois, esta unção foi vista como já realizada no momento da Encarnação (24). Mesmo na época dos Padres, porém, começou-se a remontar a uma ‘unção cósmica’ do Verbo, mencionada por Justino, Irineu e Orígenes, ou seja, a uma unção que o Pai confere ao Verbo em vista da criação do mundo, porque, ‘por meio dele, o Pai ungiu e dispôs tudo(25).

Eusébio de Cesareia vai ainda mais longe, vendo realizada a unção no próprio momento da geração : ‘A unção consiste na geração mesma do Verbo, pela qual o Espírito do Pai passa ao Filho a modo de divina fragrância(26). Maior autoridade tem a opinião de São Gregório de Nissa, que dedica um capítulo inteiro a ilustrar a unção do Verbo mediante o Espírito Santo, na sua geração eterna pelo Pai. Ele parte do pressuposto de que o nome ‘Cristo’, o Ungido, pertence ao Filho desde toda a eternidade :

O óleo da exultação apresenta o poder do Espírito Santo, com que Deus é ungido por Deus, isto é, o Unigênito é ungido pelo Pai... Como o justo não pode ser ao mesmo tempo injusto, assim o ungido não pode não ser ungido. Ora, aquele que nunca é não-ungido é certamente o ungido desde sempre. E todos hão de que admitir que aquele que unge é o Pai e que o unguento é o Espírito Santo(27).

A imagem da unção (porque se trata sempre de uma imagem) adiciona algo de novo, que não é manifestado pela imagem mais usual da inspiração ou do sopro. No Ocidente, é costume dizer que o Espírito é assim chamado porque é inspirado ou soprado e porque inspira e sopra. Nesta visão, o Espírito Santo exerce um papel ‘ativo’ somente fora da Trindade, por inspirar as escrituras, os profetas, os santos, etc., enquanto, na Trindade, ele teria apenas a qualidade passiva de ser soprado pelo Pai e pelo Filho.

Esta ausência de um papel ativo do Espírito dentro da Trindade, considerada, talvez, a maior lacuna da pneumatologia tradicional, é assim superada. Afinal, se reconhecemos ao Filho um papel ativo no tocante ao Espírito, manifestado na imagem do sopro, também reconhecemos ao Espírito Santo um papel ativo em relação ao Filho, manifestado na imagem da unção. Não podemos dizer, do Verbo, que Ele seja ‘o Filho do Espírito Santo’, mas podemos dizer que Ele é ‘o Ungido do Espírito’.


3. O Espírito da verdade e o Espírito da caridade

A renovada escuta das Escrituras nos permite constatar, também de outro ponto de vista, a complementaridade das duas pneumatologias, a oriental e a ocidental. Notou-se, no próprio âmbito do Novo Testamento, uma ênfase maior, por parte de João, no ‘Espírito da verdade’ e, por parte de Paulo, no ‘Espírito da caridade(28). ‘Espírito da verdade’, no Quarto Evangelho, é outro nome do Paráclito (Jo 14, 16-17); os adoradores do Pai devem adorá-lo ‘em Espírito e verdade’; Ele leva ‘a toda a verdade’; a sua unção ‘dá a ciência e ensina todas as coisas’ (1 Jo 2, 20.27). Já para Paulo, o efeito primário do Espírito é a ‘efusão do amor’ nos corações; fruto do Espírito é ‘o amor, a alegria e a paz’ (Gal 5, 21); o amor constitui ‘a lei do Espírito’ (Rm 8 : 2), o amor é ‘o melhor caminho’, o maior de todos os dons do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12,31).

Como no caso da doutrina sobre Cristo, também estas diversas ênfases sobre o Espírito Santo permanecem na tradição, e, mais uma vez, o Oriente reflete de modo predominante a perspectiva de João e o Ocidente a de Paulo. A pneumatologia ortodoxa deu mais destaque ao Espírito luz; a latina, ao Espírito amor. Esta diversidade é claríssima, em todo caso, nas duas obras que mais influenciaram o desenvolvimento das respectivas teologias do Espírito Santo. No tratado Sobre o Espírito Santo, de São Basílio, não desempenha papel algum o tema do Espírito amor, sendo central o do Espírito ‘luz inteligível(29); já no Tratado Sobre a Trindade, de Santo Agostinho, não desempenha papel algum o tema do Espírito luz, ao passo que, bem sabemos, o papel central é ocupado pelo Espírito como amor.

A luz, com os fenômenos que costumam acompanhá-la (a transfiguração da pessoa e a sua completa imersão interior e exterior na luz) é o elemento mais constante entre os orientais, na mística do Espírito Santo. ‘Vinde, ó luz verdadeira!’, começa uma oração de São Simeão, o Novo Teólogo, ao Espírito Santo (30). Até a famosa ‘luz do Tabor’, tão importante na espiritualidade e na iconografia oriental, é intimamente ligada ao Espírito Santo (31). Um texto ortodoxo diz que, no dia de Pentecostes, ‘graças ao Espírito Santo, o mundo inteiro recebeu um batismo de luz(32).

Encerro com um pensamento de Santo Agostinho sobre o Espírito amor, que, aplicado às relações entre as diversas Igrejas, nos faria dar um decisivo passo rumo à unidade dos cristãos. Comentando a doutrina de São Paulo em I Coríntios 12, sobre os carismas, Santo Agostinho faz esta reflexão. Ao ouvir nomear todos aqueles maravilhosos carismas (profecia, sabedoria, discernimento, cura, línguas), alguém poderia sentir-se triste e excluído, por achar que não possui nada disso. Mas, atenção, prossegue o santo :

Se amas, o que possuis não é pouco. Se amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também possuído por ti! Bane a inveja e será teu o que é meu, e, se eu banir a inveja, é meu o que tu possuis. A inveja separa, a caridade une. Somente o olho, no corpo, tem a faculdade de ver; mas é, acaso, só para si mesmo que o olho vê? Não, ele vê pela mão, pelo pé e por todos os membros... Só a mão age no corpo; ela, no entanto, não age apenas para si, mas também para o olho. Se estás prestes a receber um golpe que tem como alvo não a mão, mas o rosto, acaso a mão diz ‘Não me hei de mexer, porque o golpe não é contra mim’?(33).

Eis o segredo que faz da caridade o ‘caminho mais excelente’ (I Cor 12, 31) : ela me faz amar o corpo de Cristo, ou a comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, não somente alguns, são ‘meus’. A caridade multiplica realmente os carismas; faz do carisma de um o carisma de todos. Basta não fazer de si mesmos, mas de Cristo, o centro de interesse; não querer ‘viver para si mesmos, mas para o Senhor’, como diz o Apóstolo (Rm 14, 7-8).

Aplicado às relações entre as duas Igrejas, a do Oriente e a do Ocidente, este princípio nos leva a olhar para aquilo que cada uma tem de diferente da outra, não como um erro ou como uma ameaça, mas como uma riqueza para todos e que deve nos alegrar. Aplicado às nossas relações cotidianas, dentro da Igreja ou da comunidade em que vivemos, ele ajuda a superar os sentimentos naturais de frustração, de rivalidade e de inveja. ‘Bem-aventurado aquele servo’, escreve São Francisco de Assis, ‘que não se orgulha (nem se alegra, acrescento eu) pelo bem que o Senhor diz e faz por meio dele mais do que pelo bem que Ele diz e faz por meio de outro(34). Que o Espírito Santo nos ajude a trilhar este caminho exigente, mas no qual estão prometidos os frutos do Espírito : o amor, a alegria e a paz.’


Fonte :
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(1) DS, 150.
(2) Gregório Nazianzeno, Discursos, XXXI, 10 (PG 36, 144).
(3) In A. Hänggi - I. Pahl, Prex Eucharistica, Fribourg, Suisse, 1968, pág. 250.
(4) Cf. Atanásio, Cartas a Serapião I, 24 (PG 26, 585s.); Cirilo de Alexandria, Comentário a João, XI, 10 (PG 74, 541C); São João Damasceno, Sobre a fé ortodoxa, I,13 (PG 94, 856B). 
(5) Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, I, 120 (‘Spiritus quoque Sanctus, cum procedit a Patreet a Filio, non separatur’).
(6) Agostinho, A Trindade, XV, 26,47.
(7) Fulgêncio de Ruspe, Epístolas, 14, 21 (CC 91, p. 411); De fid, 6.54 (CC 91A, pp.716.747) (‘Spiritus Sanctus essentialiter de Patre Filioque procedit’); Liber de Trinitate, passim (CC  91A, pp. 633 ss).
(8) Epístolas, 14, 28 (CC 91, p.420).
(9) DS, 470. No símbolo do I Concílio de Toledo de 400 (DS, 188), Filioque é um acréscimo posterior.
(10) Cf. Monumenta Germaniae Historica. Concilia, t.II, p.II, 1906, pp. 235-244, e in PL 102, 971-976.
(11) J. D.  Zizioulas, The Teaching of the 2nd Ecumenical Council on the Holy Spiriti in historical and ecumenical perspective, in ‘Credo in Spiritum Sanctum’, vol. I, Libreria Editrice Vaticana 1983, pág 54.
(12) CIC, nº 248.
(13) Cf. Les traditions Grecque et Latine concernant la procession du Saint-Esprit, in ‘Service d’Information du Conseil Pontifical pour la promotion de l’unité des Chrétiens’, n. 89, 1995, pp. 87-91.
(14) Cf. João Paulo II, Enc. Dominum et vivificantem, 13.24. 41;  Moltmann, Lo Spirito della vita, Queriniana, Brescia 1994, pp. 85 ss.
(15) Les traditions..., cit., p.90.
(16) Les traditions..., cit., p. 90-91.
(17)  Agostinho, A Trindade, V,12,13.
(18) Cf. T. G. Weinandy, The Father’s Spirit of Sonship. Reconceiving the Trinity, Edinburgh 1995.
(19) O. Clément, Les mystiques chrétiens des origines, Paris 1982.
(20) Cf. Moltmann, op. cit., p. 90; Weinandy, op. cit., pp. 53-85.
(21) Cf. O. Clément, op. cit. p.58.
(22)  Irineu, Contra as heresias, III, 18,3.
(23) Basílio, Sobre o Espírito Santo, XII, 28 (PG 32, 116C); S. Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, I,3,44.
(24)  Gregório Nazianzeno, Discursos,  XXX, 2 (PG 36, 105B).
(25)  Irineu, Demonstração da pregação apostólica, 53 (SCh 62, p. 114); cf. A. Orbe, A Unção do Verbo  (Analecta Gregoriana, vol. 113), Roma 1961, pp. 501-568.
(26) Orbe, op.cit., p. 578.
(27)  Gregório Nisseno, Contra Apolinário, 52 (PG 45, 1249 s.).
(28) Cf. E. Cothenet, Saint-Esprit, DBSuppl, fasc. 60, 1986, col. 377.
(29) Basílio, Sobre o Espírito Santo, IX,22-23 (PG 32, 108 s.); XVI,38 (PG 32, 137).
(30) Simeão, o Novo Teólogo, Oração mística (SCh 156, p.150)
(31) Gregório Palamas, Homilia I sobre a Transfiguração (PG 151, 433B-C).
(32) S. de Pentecostes,  em Pentecostaire, Diaconie apostolique, Parma 1994, p.407.
(33) Agostinho, Tratados sobre João, 32,8.
(34) Francisco de Assis, Admonição XVII (FF, 166).


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