quarta-feira, 30 de julho de 2014

Santo Inácio de Loiola, Presbítero

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Nasceu em Loiola na Cantábria (Espanha), em 1491; viveu primeiramente na corte e seguiu a carreira militar. Depois, consagrando-se totalmente ao Senhor, estudou teologia em Paris, onde reuniu os primeiros companheiros com quem mais tarde fundou, em Roma, a Companhia de Jesus. Exerceu intensa atividade apostólica não apenas com seus escritos, mas formando discípulos que muito contribuíram para a reforma da Igreja. Morreu em Roma no ano de 1556.


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de Santo Inácio de Loiola,
Presbítero :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Da Narrativa autobiográfica de Santo Inácio, recolhida de
viva voz pelo Padre Luís Gonçalves da Câmara
(Cap.1,5-9:Acta Sanctorum Iulii,7 [1868],647)  (Séc.XVI)

Provai os espíritos a ver se são de Deus
Inácio gostava muito de ler livros mundanos e romances que narravam supostos feitos heróicos de homens ilustres. Assim que se sentiu melhor, pediu que lhe dessem alguns deles, para passar o tempo. Mas não se tendo encontrado naquela casa nenhum livro deste gênero, deram-lhe um que tinha por título A vida de Cristo e outro chamado Florilégio dos Santos, ambos escritos na língua pátria.

Com a leitura freqüente desses livros, nasceu-lhe um certo gosto pelos fatos que eles narravam. Mas, quando deixava de lado essas leituras, entregava seu espírito a lembranças do que lera outrora; por vezes ficava absorto nas coisas do mundo, em que antes costumava pensar.

Em meio a tudo isto, estava a divina providência que, através dessas novas leituras, ia dissipando os outros pensamentos. Assim, ao ler A vida de Cristo Nosso Senhor e dos santos, punha-se a pensar e a dizer consigo próprio : ‘E se eu fizesse o mesmo que fez São Francisco e o que fez São Domingos?’ E refletia longamente em coisas como estas. Mas sobrevinham-lhe depois outros pensamentos vazios e mundanos, como acima se falou, que também se prolongavam por muito tempo. Permaneceu nesta alternância de pensamentos durante um tempo bastante longo.

Contudo, nestas considerações, havia uma diferença: quando se entretinha nos pensamentos mundanos, sentia imenso prazer; mas, ao deixá-los por cansaço, ficava triste e árido de espírito. Ao contrário, quando pensava em seguir os rigores praticados pelos santos, não apenas se enchia de satisfação, enquanto os revolvia no pensamento, mas também ficava alegre depois de os deixar.

No entanto, ele não percebia nem avaliava esta diferença, até o dia em que se lhe abriram os olhos da alma, e começou a admirar-se desta referida diferença. Compreendeu por experiência própria que um gênero de pensamentos lhe trazia tristeza, e o outro, alegria. Foi esta a primeira conclusão que tirou das coisas divinas. Mais tarde, quando fez os Exercícios Espirituais, começou tomando por base esta experiência, para compreender o que ensinou sobre o discernimento dos espíritos.


Fonte :
‘In Liturgia das Horas III’, 1460, 1461

              

terça-feira, 29 de julho de 2014

São Pedro Crisólogo, Bispo e Doutor da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Nasceu por volta do ano 380, em Forum de Cornélio (Ímola), na Emília, e ali fez parte de seu clero. Em 424, eleito bispo de Ravena, instruiu por sermões e atos seu rebanho, ao qual se dedicou sem medida. Morreu pelo ano de 450.


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de São Pedro Crisólogo,
Bispo e Doutor da Igreja  :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Dos sermões de São Pedro Crisólogo, bispo
(Sermo 147: PL, 52,594-595)     (Séc.V)

O mistério da encarnação
Se uma virgem concebe, virgem dá à luz e permanece virgem; isto não é costume, mas um sinal; não é normal, mas é virtude, é o Criador,  não a natureza; não é comum, mas único; é divino, não humano. Que Cristo nascesse não veio de uma necessidade, mas de seu poder; foi o mistério da piedade, a reparação da salvação humana. Quem, sem nascimento, fez o homem da argila intacta, nascendo, fez um homem, de um corpo intacto. As mãos que se dignaram pegar no barro para nos plasmar, também se dignaram assumir a carne para nossa recriação. Por conseguinte, se o Criador se encontra em sua criatura, se Deus está na carne, é honra para a criatura, não é injúria para o Criador.

Homem, por que estão vil a teus olhos, tu eu és tão precioso para Deus? Por que, tão honrado por Deus, te desonras a ti mesmo deste modo? Por que indagas doente foste feito e não te preocupas para o que foste feito? Esta casa do mundo que vês, não foi toda ela feita para ti? A luz que te foi dada afasta as trevas que te cercam; por tua causa, foi regulada a noite, medido o dia; para ti o céu, com os vários fulgores do sol, da lua, das estrelas, se irradia, para ti a terra se embeleza de flores, de bosques, de frutos; para ti foi criada no ar, nos campos, na água, linda multidão formada de animais estupendos, para que a triste solidão não perturbasse a alegria do novo mundo.

O Criador ainda imagina algo mais para tua honra : põe em ti sua imagem, para que a imagem visível torne presente na terra o invisível Criador; e te colocou no mundo como seu representante, para que tão vasto domínio do universo não fosse lesado por esse representante do Senhor. Aquilo que por si mesmo fez em ti, Deus, com clemência assumiu em si; e quis ser verdadeiramente visto no homem, em quem antes apenas aparecia em imagem. Concedeu que fosse a realidade quem antes recebera ser a semelhança.

Nasce, portanto, Cristo, a fim de por seu nascimento tornar de novo íntegra a natureza; aceita a infância, sujeita-se a ser nutrido, cresce pelo passar dos anos para renovar a idade uma, perfeita e eterna, que ele mesmo fizera; traz em si o homem, de forma a não mais poder cair; a quem fizera terreno, fá-lo celeste; ao animado apenas pelo espírito humano, vivifica pelo espírito divino; e assim leva-o todo para Deus, de modo que nada de pecado, de morte, de sofrimento, de dores, tudo de terreno, nada reste, pelo dom  de nosso Senhor Jesus Cristo, que com o Pai vive e reina na unidade do Espírito Santo, Deus, agora e sempre pelos séculos infinitos. Amém.


Fonte :

‘In Liturgia das Horas III’, 1458, 1459


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Santa Marta

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Marta guiando o tarasca 
(miniatura medieval francesa)

Era irmã de Maria e de Lázaro. Quando recebia o Senhor em sua casa de Betânia, servia-o com muita solicitude. Com suas preces, obteve a ressurreição do irmão.


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de Santa Marta  :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo
(Sermo 103, 1-2. 6 : PL 38, 613.615)     (Séc.V)

Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa
As palavras de nosso Senhor Jesus Cristo nos advertem que, em meio à multiplicidade das ocupações deste mundo, devemos aspirar a um único fim. Aspiramos porque estamos a caminho e não em morada permanente; ainda em viagem e não na pátria definitiva; ainda no tempo do desejo e não na posse plena. Mas devemos aspirar, sem preguiça e sem desânimo, a fim de podermos um dia chegar ao fim.

Marta e Maria eram irmãs, não apenas irmãs de sangue, mas também pelos sentimentos religiosos. Ambas estavam unidas ao Senhor; ambas, em perfeita harmonia, serviam ao Senhor corporalmente presente. Marta o recebeu como costumam ser recebidos os peregrinos. No entanto, era a serva que recebia o seu Senhor; uma doente que acolhia o Salvador; uma criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento corporal, ela que precisava do alimento espiritual. O Senhor quis tomar a forma de servo e, nesta condição, ser alimentado pelos servos, por condescendência, não por necessidade. Também foi por condescendência que se apresentou para ser alimentado. Pois tinha assumido um corpo que lhe fazia sentir fome e sede.

Portanto, o Senhor foi recebido como hóspede, ele que veio para o que era seu, e os seus não o acolheram. Mas, a todos que o receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,11-12). Adotou os servos e os fez irmãos; remiu os cativos e os fez co-herdeiros. Que ninguém dentre vós ouse dizer : Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa! Não te entristeças, não te lamentes por teres nascido num tempo em que já não podes ver o Senhor corporalmente. Ele não te privou desta honra, pois afirmou : Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).

Aliás, Marta, permite-me dizer-te : Bendita sejas pelo teu bom serviço! Buscas o descanso como recompensa pelo teu trabalho. Agora estás ocupada com muitos serviços, queres alimentar os corpos que são mortais, embora sejam de pessoas santas. Mas, quando chegares à outra pátria, acaso encontrarás peregrinos para hospedar? encontrarás um faminto para repartires com ele o pão? um sedento para dares de beber? um doente para visitar? um desunido para reconciliar? um morto para sepultar?

Lá não haverá nada disso. Então o que haverá? O que Maria escolheu : lá seremos alimentados, não alimentaremos. Lá se cumprirá com perfeição e em plenitude o que Maria escolheu aqui : daquela mesa farta, ela recolhia as migalhas da palavra do Senhor. Queres realmente saber o que há de acontecer lá? É o próprio Senhor quem diz a respeito de seus servos : Em verdade eu vos digo : ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá (Lc 12,37).


Fonte :
‘In Liturgia das Horas III’, 1453, 1455 


domingo, 27 de julho de 2014

Fomos criados pelo Senhor para edificar o mundo olhando para o alto

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará


‘Quanto vale um avião derrubado? Quanto valem as armas utilizadas nos inúmeros conflitos em andamento? Quanto valem as tantas vítimas da violência ceifadas a cada minuto pelo mundo afora? A vida é vilipendiada, transformada em mercadoria, transformada em espetáculo. Multiplicam-se as imagens que correm o mundo, nas quais os modernos equipamentos eletrônicos registram e divulgam os assaltos, assassinatos, uso e abuso de drogas e outras cenas diante das quais corremos o grave risco de ficar acostumados e acomodados. Muitas pessoas ficaram estarrecidas com cenas recentemente divulgadas, nas quais se via o tráfico de drogas aberto e sem qualquer controle das autoridades. Mais ainda nos assustamos quando esta gravíssima chaga social pode vir a ser legalizada! Estamos vivendo no olho do furacão de uma mudança de época, na qual os valores são postos em cheque e todos são conduzidos, na boa vontade ou na força, a rever seus critérios e tomar novas decisões. Sem alarmismos, é bom saber que o tempo da decisão agora é nosso.

Há alguns anos difundiu-se uma inspirada canção do Padre Zezinho, chamada ‘Vocação’. Se a seu tempo foi uma voz profética, continua a ressoar hoje com mais força ainda, provocando decisões e escolhas de valores : ‘Se ouvires a voz do vento chamando sem cessar, se ouvires a voz do tempo mandando esperar, a decisão é tua, a decisão é tua. São muitos os convidados, quase ninguém tem tempo. Se ouvires a voz de Deus chamando sem cessar, se ouvires a voz do mundo querendo te enganar, a decisão é tua, a decisão é tua. São muitos os convidados, quase ninguém tem tempo. O trigo já se perdeu, cresceu, ninguém colheu, e o mundo passando fome, passando fome de Deus. A decisão é tua, a decisão é tua. São muitos os convidados, quase ninguém tem tempo!

Consideradas as devidas proporções, todas as diversas eras na história da humanidade se envolveram em grandes crises. Muitos regimes caíram, não apenas pelas circunstâncias políticas ou econômicas, mas corroídos por dentro em suas escolhas humanas, com as quais se desgastaram, na corrupção dos costumes. A busca desenfreada das posses e riquezas a qualquer custo, a sede do prazer e a ânsia do poder foram e ainda são os grandes e destruidores ídolos. Do grande e definitivo evento da salvação operada pelo Mistério Pascal da Morte e Ressurreição de Jesus Cristo para cá, a Igreja tem anunciado o Reino de Deus, que corresponde à grande paixão da pregação do Senhor. Surgem, crescem, consolidam-se e entram em decadência os muitos reinos do mundo e todos eles, sem exceção, confrontados com os valores do Reino de Deus podem ser revistos ou superados.

Onde está o Reino de Deus? Como se manifesta a sua força? O que muitas pessoas chamaram de minorias abraâmicas está presente no meio do mundo. Há muitas pessoas e grupos que acolhem de bom grado a Palavra de Deus. Alguns, no escondimento e no anonimato, usam critérios diferentes, plantam sementes de uma vida familiar sólida, acolhem de bom grado o dom da vida, sem se desfazerem da prole, outros tantos mantêm as mãos limpas e o coração puro (Cf. Sl 14), porque decidiram entrar na Casa do Senhor. Diante da mudança de época, diante das crises e fragilidade das instituições, cada pessoa deverá fazer suas escolhas : ‘Buscai, pois, o seu Reino, e essas coisas vos serão dadas por acréscimo. Não tenhas medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar a vós o Reino. Vendei vossos bens e dai esmola. Fazei para vós bolsas que não se estraguem, um tesouro no céu que não se acabe; ali o ladrão não chega nem a traça corrói. Pois onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração’ (Lc 12, 32-34).

Jesus compara o Reino a um tesouro escondido num campo (Cf. Mt 13, 44-52). Encontrá-lo é a alegria da vida de um homem. A beleza do encontro e a alegria de ter descoberto o sentido para a existência fazem com que a pessoa abandone tudo o que foi sustento para a sua vida em vista do tesouro maior. Acontece, simplesmente! É presente de Deus, que vem ao encontro da pessoa. Vender tudo o que se possui é atitude corajosa de quem, no meio de tantas possibilidades, escolhe os valores do Reino de Deus, reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de Justiça, de amor e de paz. Ficam para trás todas as mesquinharias que atraíram seu coração e seu olhar, invertem-se suas prioridades, torna-se livre para olhar para frente e para o alto.

Mas o Reino de Deus é também comparado a um comerciante que procura pérolas preciosas. Também este vende tudo para adquirir o que corresponde à sua busca. Numa época em que o ‘sonho de consumo’ é usado e abusado, para que pessoas de todas as idades gastem até o que não têm para realizá-lo, o Evangelho fala de outras riquezas. Dependendo de quanto o discípulo de Cristo foi tocado pelo Reino de Deus, mais se sente seguro e tomará decisões que mudarão o rumo de sua vida.

Encontrar e procurar! Duas atitudes plenamente humanas, correspondentes à riqueza do dom de Deus, que não nos fez para a mediocridade nem para o acomodamento. Fomos criados pelo Senhor para edificar o mundo olhando para o alto, no modelo de vida de Deus, que é Pai e Filho e Espírito Santo. Mirando em Deus, encontraremos também aqui na terra a plenitude da realização e da alegria. Ninguém entende tanto de humanidade quanto o Senhor, pois por Ele fomos criados e nem nos realizaremos, andando inquietos enquanto nosso coração não repousar em seu regaço.

No Evangelho de São Mateus, o magnífico Sermão das Parábolas se encerra com uma consoladora e provocante palavra, precedida da lição sobre a rede lançada no mar da existência, enquanto durar o tempo desse mundo. Até lá, quem se deixa instruir ‘nas coisas do Reino’, tirará dos tesouros da vida o que existe de melhor, do novo e do velho, exercendo a sabedoria que é dom do próprio Deus. Não terá medo das mudanças e nem se abalará com todas as eventuais convulsões de seu tempo, pois terá escolhido o que existe de melhor, para oferecer à humanidade sua contribuição, seu inigualável tesouro.

É ao Senhor que podemos pedir tantas graças : ‘Ó Deus, sois o amparo dos que em vós esperam e, sem vosso auxílio, ninguém é forte, ninguém é santo; redobrai de amor para conosco, para que, conduzidos por vós, usemos de tal modo os bens que passam, que possamos abraçar os que não passam.’’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://www.zenit.org/pt/articles/fomos-criados-pelo-senhor-para-edificar-o-mundo-olhando-para-o-alto


sábado, 26 de julho de 2014

Um coração e dois ouvidos!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


  * Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano


A escuta vocacional tem de ser estereofónica para ser capaz de captar a polifonia da vida e da realidade. Necessitamos de dois ouvidos. Os céus e a terra estão repletos de palavras e de vozes, de apelos e de gritos. Como discernir os que se dirigem a mim? Só a sincronização dos dois ouvidos nos torna capazes de descobrir a chamada de Deus. Só tal escuta estereofónica consente em captar a especial sinfonia que Deus nos destinou. Tal música fará vibrar as fibras íntimas do nosso coração.


‘...O olhar de Cristo que nos seduz torna-se ‘visível’ e incarna-se na palavra, pronunciada pela boca e acolhida pelo ouvido. Por isso a vocação, dizíamos, parece privilegiar antes de mais o sentido da ‘audição’.


Uma escuta estereofónica

Hoje desejaria sublinhar que tal escuta vocacional tem de ser estereofónica para ser capaz de captar a polifonia da vida e da realidade. Necessitamos de ‘dois ouvidos’!

O primeiro permanece sintonizado com a voz do Pastor : ‘as ovelhas ouvem a sua voz; e ele chama pelo nome as suas ovelhas, e as conduz para fora… as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz; mas de modo algum seguirão o estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos’ (João 10).

Tal ouvido deve manter-se sempre alerta, de dia e de noite, como o do profeta Samuel, pronto a responder à voz de Deus com um resoluto ‘Eis-me aqui!... Fala, Senhor, porque o teu servo escuta…’. Sem deixar cair em terra nenhuma de todas as suas palavras. Embora elas, por vezes, possam ferir o ouvido humano : ‘Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos’ (1 Samuel 3).

Se o primeiro ouvido é uma antena parabólica que perscruta continuamente os céus, o segundo é uma outra antena que capta as ondas terrestres. Tal é o ouvido missionário de São Paulo que, numa visão na noite, viu e ouviu um homem grego que lhe pedia : ‘Passa à Macedónia e ajuda-nos. Assim que teve a visão, imediatamente, [Paulo e seus companheiros] procuraram partir para aquele destino, concluindo que Deus os havia chamado para lhes anunciar o evangelho’ (Actos 16).


Sincronização dos dois ouvidos

Os céus e a terra estão repletos de palavras e de vozes, de convites e de pedidos, de apelos e de gritos. Como discernir os que se dirigem a mim? Só a sincronização dos dois ouvidos nos torna capazes de descobrir a chamada de Deus. Só tal escuta estereofónica consente em captar a especial sinfonia que Deus nos destinou. Tal música fará vibrar as fibras íntimas do coração, como o canto irresistível de uma sereia, que só um obstáculo ou laço muito forte nos impedirá de seguir. ‘Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir; mais forte foste do que eu, e prevaleceste… Se eu disser : Não farei menção dele, e não falarei mais no seu nome, então há no meu coração um fogo ardente, encerrado nos meus ossos, e estou fatigado de contê-lo, e não posso mais’ (Jeremias 20).

É tal sintonia entre os dois ouvidos que explica a existência de uma variedade de vocações e missões : ‘Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum’ (1 Coríntios 12).

Só uma tal sincronização dos dois ouvidos é capaz de apaixonar o coração. De (aparentemente) duas, acabamos por ser devorados por uma única paixão. Um exemplo elucidativo é São Daniel Comboni. Os seus dois ‘amores’, Jesus Cristo e a África, tornaram-se um só. Na figura de Cristo ele via os africanos, e na ‘infeliz Nigrícia’ o rosto do Crucificado. ‘O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia e, deixando tudo o que me era mais querido no mundo, vim […] a estas terras para oferecer o meu trabalho como alívio para as suas seculares desgraças… Hoje, finalmente, recupero o meu coração voltando para junto de vós para o abrir na vossa presença ao sublime e religioso sentimento da paternidade espiritual, da qual quis Deus que fosse investido. Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós’ (Homilia de Cartum, 1873).


HINENI, Eis-me aqui!

Dir-se-ia, pois, que a resposta à vocação é dupla. Trata-se de um SIM a Deus mas também um SIM a um grupo humano a quem Deus nos envia e cuja voz encontrou um eco especial no nosso coração. Por isso o chamado, a vocacionada, vê-se continuamente e contemporaneamente solicitado/a a dar o seu HINENI (‘eis-me aqui!’) a Deus e ao povo a quem pertence por missão. A intensidade do seu Hineni à missão não pode ser menor que a do seu Hineni a Deus. Eis-me aqui, Senhor, partilhando a sorte deste povo! É o Hineni de todo o missionário que na hora do testemunho e do martírio não abandona o seu rebanho. É o exemplo dos missionários tanto no Sudão como na República Centro-Africana, na Síria ou em tantos outros lugares onde a violência e o ódio se confrontam com a força do amor. Tal Hineni não conhece medidas. Tem a medida grande do Amor que dá a vida para que os demais possam tê-la em abundância. Tal foi o exemplo extraordinário dos sete monges trapistas de Tibhirine, assassinados na Argélia em 1996. O testamento espiritual de Dom Christian de Chergé, prior da comunidade de Tibhirine, redigido há vinte anos, é um testemunho eloquente.


Enfrentar um A-DEUS...

Se acontecer um dia – e poderia ser hoje – que eu me torne uma vítima do terrorismo, que agora parece pronto a engolir todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja e a minha família se lembrassem que a minha vida foi DADA a Deus e a este país.

Que reconhecessem que o Único Mestre de toda vida não pode estar alheio a esta partida brutal. Que rezassem por mim : pois como poderia ser eu digno de tal oferta?

Que soubessem associar esta morte às muitas outras mortes que são da mesma forma violentas, mas esquecidas pela indiferença e o anonimato. A minha vida não tem mais valor do que qualquer outra. Nem também menos valor. Em qualquer caso, ela não tem a inocência da infância. Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo, mesmo naquele mal que me mataria cegamente.

Quando viesse o tempo, gostaria de ter um momento de lucidez que me permitisse pedir o perdão de Deus e de todos os seres humanos meus amigos, e ao mesmo tempo perdoar com todo o meu coração aquele que me mataria.

Não desejo tal morte. Parece-me importante declarar isto. Não vejo, de facto, como poderia alegrar-me se este povo que amo fosse acusado indiscriminadamente do meu assassínio. Responsabilizar um argelino, quem quer que seja, seria um preço muito alto a pagar por aquilo que talvez seria chamado ‘a graça do martírio’, especialmente se ele diz que agiu em fidelidade com o que acredita que seja o Islão. Estou consciente do desprezo com que se olha todos os argelinos indiscriminadamente.

Também tenho consciência da caricatura do Islão que um certo islamismo encoraja. É fácil salvar a própria consciência identificando esta via religiosa com as ideologias fundamentalistas dos seus extremistas. Para mim, a Argélia e o Islão são algo diferente : são um corpo e uma alma. Disse isto bastante frequentemente, creio eu, de acordo com o que eu recebi – e no qual encontrei muitas vezes o tal fio condutor do Evangelho – dos joelhos da minha mãe, a minha primeira Igreja, na própria Argélia, e já inspirada com respeito pelos crentes muçulmanos.

A minha morte, naturalmente, parecerá justificar aqueles que me julgam apressadamente ingénuo ou idealista : ‘Que diga agora o que pensa disto!’ Mas estas pessoas precisam de compreender que a minha mais ansiosa curiosidade será então satisfeita. Pois será então que, se Deus assim quiser, poderei mergulhar o meu olhar naquele do Pai, para contemplar com Ele os Seus filhos do Islão da mesma forma como Ele os vê, todos radiantes com a glória de Cristo, fruto da sua Paixão, e cheios do Dom do Espírito, cuja alegria secreta será sempre de estabelecer a comunhão e de restabelecer a semelhança divina, jogando com as nossas diferenças.

Por esta vida perdida, totalmente minha e totalmente deles, agradeço a Deus que parece tê-la desejado inteiramente, por esta alegria em tudo e a despeito de tudo. Neste agradecimento, que resume a minha vida inteira a partir de agora, certamente incluo vocês, amigos de ontem e de hoje, e vocês, meus amigos deste lugar, junto com a minha mãe e o meu pai, minhas irmãs e irmãos e suas famílias, o cêntuplo como prometido!

E também tu, amigo do momento final, que não terás consciência do que estarás fazendo. Sim, a ti também vai o meu agradecimento e este ‘A-DEUS’ em face de ti. E possamos os dois encontrarmo-nos, felizes bons ladrões, no Paraíso, se assim aprouver a Deus, Pai de ambos... Amen! In sha’Allah! (Christian+, Algiers, 1 de Dezembro de 1993-Tibhirine, 1 de Janeiro de 1994).

Que o exemplo desta e de tantas outras testemunhas, que encarnam ao longo dos tempos a figura do Bom Pastor, nos encoraje a pronunciar com generosidade o nosso HINENI.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EupEZlAVZytITNqYhe



sexta-feira, 25 de julho de 2014

São Joaquim e Sant´Ana, pais de Nossa Senhora

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Segundo uma antiga tradição, já conhecida no século II, assim eram chamados os pais da Santíssima Virgem Maria. O culto a Sant’Ana, prestado no Oriente desde o século VI, difundiu-se pelo Ocidente no século X. Mais recentemente, São Joaquim passou também a ser venerado.


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de São Joaquim e Sant’Ana :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Dos Sermões de São João Damasceno, bispo
(Orat. 6, in Nativitatem B. Mariae V., 2.4.5.6:PG 96, 663.667.670
(Séc.VIII)

Vós os conhecereis pelos seus frutos
Estava determinado que a Virgem Mãe de Deus iria nascer de Ana. Por isso, a natureza não ousou antecipar o germe da graça, mas permaneceu sem dar o próprio fruto até que a graça produzisse o seu. De fato, convinha que fosse primogênita aquela de quem nasceria o primogênito de toda a criação, no qual todas as coisas têm a sua consistência (cf. Cl 1,17).

Ó casal feliz, Joaquim e Ana! A vós toda a criação se sente devedora. Pois foi por vosso intermédio que a criatura ofereceu ao Criador o mais valioso de todos os dons, isto é, a mãe pura, a única que era digna do Criador.

Alegra-te, Ana estéril, que nunca foste mãe, exulta e regozija-te, tu que nunca deste à luz (Is 54,1). Rejubila-te, Joaquim, porque de tua filha nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; o nome que lhe foi dado é : Anjo do grande conselho, salvação do mundo inteiro, Deus forte (Cf. Is 9,5). Este menino é Deus.

Ó casal feliz, Joaquim e Ana, sem qualquer mancha! Sereis conhecidos pelo fruto de vossas entranhas, como disse o Senhor certa vez : Vós os conhecereis pelos seus frutos (Mt 7,16). Estabelecestes o vosso modo de viver da maneira mais agradável a Deus e digno daquela que de vós nasceu. Na vossa casta e santa convivência educastes a pérola da virgindade, aquela que havia de ser virgem antes do parto, virgem no parto e continuaria virgem depois do parto; aquela que, de maneira única, conservaria sempre a virgindade, tanto em seu corpo como em seu coração.

Ó castíssimo casal, Joaquim e Ana! Conservando a castidade prescrita pela lei natural, alcançastes de Deus aquilo que supera a natureza: gerastes para o mundo a mãe de Deus, que foi mãe sem a participação de homem algum. Levando, ao longo de vossa existência, uma vida santa e piedosa, gerastes uma filha que é superior aos anjos e agora é rainha dos anjos.

Ó formosíssima e dulcíssima jovem! Ó filha de Adão e Mãe de Deus! Felizes o pai e a mãe que te geraram! Felizes os braços que te carregaram e os lábios que te beijaram castamente, ou seja, unicamente os lábios de teus pais, para que sempre e em tudo conservasses a perfeita virgindade! Aclamai o Senhor Deus, ó terra inteira, alegrai-vos, exultai e cantai salmos (cf. Sl 97,4-5). Levantai vossa voz; clamai e não tenhais medo.


Fonte :
‘In Liturgia das Horas III’, 1449, 1450


quinta-feira, 24 de julho de 2014

São Tiago, Apóstolo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Nasceu em Betsaida; era filho de Zebedeu e irmão do apóstolo João. Esteve presente aos principais milagres realizados por Cristo. Foi morto por Herodes, cerca do ano 42. É venerado com grande devoção em Compostela (Espanha),onde se ergue uma célebre basílica dedicada a seu nome.


A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de São Tiago, Apóstolo :

Ofício das Leituras

Segunda leitura
Das Homilias sobre Mateus, de São João Crisóstomo, bispo
(Hom. 65,2-4:PG58,619-622)      (Séc.IV)

Participantes da paixão de Cristo
Os filhos de Zebedeu pedem a Cristo : Deixa-nos sentar um à tua direita e outro, à tua esquerda (Mc 10,37). Que resposta lhes dá o Senhor? Para mostrar que no seu pedido nada havia de espiritual, e se soubessem o que pediam não teriam ousado fazê-lo, diz : Não sabeis o que estais pedindo (Mt 20,22), isto é, não sabeis como é grande, admirável e superior aos próprios poderes celestes aquilo que pedis. Depois acrescenta : Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber? (Mt 20,22). É como se lhes dissesse : ‘Vós me falais de honras e de coroas; eu, porém, de combates e de suores. Não é este o tempo das recompensas, nem é agora que minha glória há de se manifestar. Mas a vida presente é de morte violenta, de guerra e de perigos’.

Reparai como o Senhor os atrai e exorta, pelo modo de interrogar. Não perguntou : ‘Podeis suportar os suplícios? podeis derramar vosso sangue? Mas indagou: Por acaso podeis beber o cálice? E para os estimular, ainda acrescentou: que eu vou beber? Assim falava para que, em união com ele, se tornassem mais decididos. Chama sua paixão de batismo, para dar a entender que os sofrimentos haviam de trazer uma grande purificação para o mundo inteiro. Então os dois discípulos lhe disseram : Podemos (Mt 20,22). Prometem imediatamente, cheios de fervor, sem perceber o alcance do que dizem, mas com a esperança de obter o que pediam.

Que afirma o Senhor? De fato, vós bebereis do meu cálice (Mt 20,23), e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado (Mc 10,39). Grandes são os bens que lhes anuncia, a saber : ‘Sereis dignos de receber o martírio e sofrereis comigo; terminareis a vida com morte violenta e assim participareis da minha paixão’. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. Meu Pai é quem dará esses lugares àqueles para os quais ele os preparou (Mt 20,23). Somente depois de lhes ter levantado os ânimos e de tê-los tornado capazes de superar a tristeza é que corrigiu o pedido que fizeram.

Então os outros dez discípulos ficaram irritados contra os dois irmãos (Mt 20,24). Vedes como todos eles eram imperfeitos, tanto os que tentavam ficar acima dos outros, como os dez que tinham inveja dos dois? Mas, como já tive ocasião de dizer, observai-os mais tarde e vereis como estão livres de todos esses sentimentos. Prestai atenção como o mesmo apóstolo João, que se adianta agora por este motivo, cederá sempre o primeiro lugar a Pedro, quer para usar da palavra, quer para fazer milagres, conforme se lê nos Atos dos Apóstolos. Tiago, porém, não viveu muito mais tempo. Desde o princípio, pondo de parte toda aspiração humana, elevou-se a tão grande santidade que bem depressa recebeu a coroa do martírio.


Fonte :
‘In Liturgia das Horas III’, 1444, 1445


quarta-feira, 23 de julho de 2014

A vocação nasce do olhar!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 * Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano

Quando nasce uma vocação? Onde situar a sua origem? Qual é o seu primeiríssimo instante? À pergunta poderíamos dar uma resposta de certo modo óbvia: a vocação nasce no coração de Deus! Como e quando, porém, se manifesta ela no coração da pessoa?


‘Viria espontâneo pensar que, dado tratar-se de um ‘chamamento’ (vocação provém do verbo latino vocare, ‘chamar’), ela é semeada pela ‘boca’ de quem chama e brota no ‘ouvido’ de quem escuta. Na origem da vocação estaria pois a ‘palavra’.

Eu acho, porém, que antes da palavra (pronunciada e escutada) está o... olhar! Ou melhor, dois olhares que se cruzam, que comunicam e estabelecem uma relação particular.


A vocação nasce de um olhar

Encontramos no Evangelho numerosos exemplos. Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu Simão Pedro e seu irmão André e chamou-os; mais adiante viu os filhos de Zebedeu, Tiago e João, e chamou-os também (Marcos 1). Passando por ali de novo, no dia seguinte, viu Levi, filho de Alfeu, sentado ao posto da cobrança e disse-lhe : ‘Segue-me’; e este levantou-se e seguiu-o (Marcos 2).

Não sempre este olhar conseguiu o seu intento, como quando Jesus fitou com amor o jovem rico e o convidou a segui-lo. O jovem abaixou os olhos e afastou-se triste, cabisbaixo (Marcos 10). Mas já assim não foi com outro rico, Zaqueu, alcançado também ele pelo olhar de Jesus : ‘Chegando Jesus àquele lugar e levantando os olhos, viu-o e disse-lhe : Zaqueu, desce depressa, porque é preciso que eu fique hoje em tua casa. Ele desceu a toda a pressa e recebeu-o alegremente’ (Lucas 19).

Esta relação entre vocação e visão não aparece só com Jesus que chama, Ele que é a Palavra que se tornou visível (1 João 1). Podemos comprovar que tal sucede também em algumas vocações do Antigo Testamento. Recordemos Moisés, por exemplo : vendo a sarça ardendo, aproximou-se para ver de perto; o Senhor viu Moisés que se aproximava para observar e, do meio da sarça, o chamou : ‘Moisés, Moisés’ (Êxodo 3).

Embora o antigo testamento privilegie a escuta, é dito que no Sinai ‘todo o povo viu as vozes’ (Êxodo 20,18, segundo o texto hebraico). A palavra não se opõe à visão, ela habita também no olhar!


O olhar de Jesus

O Evangelho nada diz sobre o rosto de Jesus, as suas feições, a cor dos seus cabelos ou dos seus olhos, mas fala frequentemente do seu olhar. A sua intimidade passa através do seu modo de olhar. Com efeito, nós falamos e comunicamos com os olhos; até sentimentos e emoções íntimas que, por vezes, a palavra não consegue transmitir. Este olhar de Jesus tinha um efeito singular. Um simples trocar de olhares e tudo muda. Quando Jesus chamou os seus apóstolos, não se diz que tenha dialogado com eles ou tentado persuadi-los. O seu olhar tinha um tal poder de convicção ou de atracção que dispensava palavras ou discursos retóricos. Jesus chamou-os, e eles abandonaram tudo e seguiram-no imediatamente. O seu olhar tocara-lhes o coração e a vida deles mudou para sempre.

O Papa Francisco comentava, há tempos, o impacto deste olhar sobre Mateus. Jesus olha Mateus nos olhos, um cobrador de impostos, um pecador público. O dinheiro é a sua vida, o seu ídolo. Mas agora, afirma o papa, sente ‘no seu coração o olhar de Jesus dirigido a ele’. ‘E aquele olhar envolve-o totalmente, transformou a sua vida. Nós dizemos : converteu-o. Assim que viu aquele olhar, levantou-se e seguiu-o. E isso é verdadeiro : o olhar de Jesus sempre nos levanta. Um olhar que nos leva para cima, que jamais nos abandona. Jamais humilha. Convida a levantar-se. Um olhar que leva a crescer, a ir em frente, que encoraja, porque nos quer bem’ (Santa Marta, 21.9.2013).


Um olhar que interpela

Dir-se-ia que a palavra não basta para suscitar uma vocação. É necessário um olhar que nos ‘interpele’ e dê consistência e força à palavra. Isto tem a sua base antropológica. Nós comunicamos, antes de mais, com o olhar. Uma verdadeira comunicação requer um encontro face a face, um olhar-se nos olhos. Não basta uma simples troca de palavras através do ecrã do iPhone!...

O homem Adão precisa de ter diante de si um interlocutor, alguém que lhe ‘corresponda’ (um ‘face-a-face’, parece indicar o texto de Génesis 2,20) para poder compreender-se a si próprio. O olhar do outro torna-se o espelho em que nos contemplamos. Quando negamos ou suprimimos esse olhar, como no caso de Caim com o seu irmão Abel, o nosso olhar obscurece-se e caminhamos nas trevas.

O nosso olhar é interpelado mas também interpela o mundo e os outros que nos rodeiam. Recebe e exerce uma influência, positiva ou negativa. Um olhar pode fazer desabrochar quanto de melhor existe no coração de quem se olha. Tem o poder de fazer renascer a vida e a esperança, de suscitar potencialidades inimagináveis. Como pode amarfanhar, abater, semear a morte.

Pensemos no olhar enamorado que faz com que a amada ou o amado se sinta uma ‘fada’ ou um ‘príncipe’. Naquele olhar, crescendo, nasce a vocação ao matrimónio. Mas quando aquele olhar começa a redimensionar o outro, vendo-o com olhos que o diminuem até o anular, aí começa a tragédia. Basta que apareça um outro olhar em que uma pessoa se sinta valorizada e estimada para pôr em perigo tal matrimónio.


Um olhar que ama

Ver não é uma tarefa fácil. Hoje vivemos na época do show planetário, com um dilúvio contínuo de imagens que nos submergem com o seu poder de sedução. É preciso aprender a ver, pois podemos ‘ter olhos e não ver’ (como diz Jesus dos seus discípulos, a certa altura). Isto implica uma caminhada espiritual de purificação do nosso olhar para evitar uma visão superficial, utilitária, manipuladora...

A pureza do olhar está ligada à do coração. ‘Os puros de coração verão a Deus’, diz Jesus. Esta pureza é a do Amor. O ‘bem ver’ é uma questão de ‘bom coração’. Citando O Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry, ‘Só se vê bem com o coração’. É o coração que dá profundidade ao olhar, porque ‘o essencial é invisível aos olhos’.

Para purificar o nosso coração precisamos de nos ver na pupila dos olhos de Deus. Só eles reflectem a imagem do que somos realmente : ‘Tu és precioso a meus olhos, porque eu te aprecio e te amo’ (Isaías 43,4). Só assim descobrimos a nossa verdadeira identidade e a nossa vocação, no olhar apaixonado do coração de Deus. Por isso os pequenos e os humildes, os pecadores e as prostitutas se sentiam acolhidos e estimados pelo olhar de Cristo. Fora de tal olhar o homem desce à fossa : ‘Não me oculteis a vossa face, para que não me torne como os que descem à sepultura’ (Salmo 142,7).

A vocação nasce e cresce na contemplação. Aliás São Paulo diz que através do olhar nos transformamos em espelho de Cristo. A sua imagem impregna o nosso coração e transforma-nos n’Ele. Grande é o poder desta Imagem! ‘Todos nós, a rosto descoberto, reflectimos como num espelho a glória do Senhor e nos vemos transformados nesta mesma imagem, sempre mais resplandecentes, pela acção do Espírito do Senhor’ (2 Coríntios 3,18).

Olhar e deixar-se olhar por Cristo, é o segredo de uma vocação cristã vivida com paixão. O Papa Francisco, na tal homilia a que acenámos antes, concluía dizendo : ‘Todos nós nos encontraremos diante daquele olhar, aquele olhar maravilhoso. E vamos em frente na vida, na certeza de que Ele nos olha. Mas também Ele nos espera para nos olhar definitivamente. E aquele último olhar de Jesus sobre a nossa vida será para sempre, será eterno. Eu peço a todos esses santos que foram olhados por Jesus, que nos preparemos a deixar-nos olhar na vida, e que nos preparemos também para aquele último... e primeiro olhar de Jesus’.


Um olhar que vê

Um olhar purificado pelo amor, o olhar do coração, vê o mundo e os outros com outros olhos! Não com um olhar indiferente ou concupiscente mas... com olhos de ver!

Eis um bonito exemplo, que tem algo de fantástico e incrível. Trata-se de uma criança, Vivienne Harr, uma menina californiana de apenas 8 anos, que deu início a um projecto com o objectivo de acabar com a exploração infantil.

Um dia a sua mãe fez-lhe ver, com comoção, uma foto de duas crianças nepalesas, de mãos dadas, transportando nas costas enormes pedras. Vivienne ficou profundamente chocada. E decidiu ‘fazer alguma coisa’ para mudar tal situação. A única coisa que sabia e podia fazer era… vender limonada! Com a ajuda da família, Vivienne construiu a sua barraquinha de limonada, com a finalidade de amealhar... 100 000 dólares para financiar a libertação de meninos escravos.

Durante semanas, meses, um ano inteiro... levou adiante o seu propósito. O seu olhar de um coração de criança e a sua tenacidade fizeram o milagre.

O seu projecto tornou-se famoso quando um cronista do The New York Times, tendo recebido uma mensagem de Vivienne, a publicou no Twitter : ‘Olá, sou uma criança de 8 anos e vendo limonada contra a escravidão, todos os dias, até quando alcançar 100 mil dólares.’ Em pouco tempo tão insólita notícia ganhou destaque em várias emissoras e jornais. Viajando com a sua barraquinha, convidada a espectáculos e actividades de beneficência…, o sucesso da iniciativa foi tal que em breve alcançou o objectivo que se propusera.

Quando os pais lhe fizeram notar que agora podia dar-se por satisfeita, ela perguntou : ‘Mas será que acabou a escravidão das crianças?’ ‘É claro que não’, lhe responderam eles. ‘Então também eu não terminei!’ Continuou a sua campanha, e chegou a um milhão de dólares. Hoje a sua limonada artesanal é vendida em muitos lugares do país.

Da venda da limonada Vivienne aprendeu uma coisa : ‘Pensava que o máximo da vida fosse outra coisa, e ao invés sou tão feliz servindo e ajudando : é a coisa mais bela do mundo!’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAupkkpykZcEZjFgJ