Mostrando postagens com marcador alma. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador alma. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 11 de abril de 2025

O Espírito Santo é a Alma da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Rosa Maria Dilelli Cruvinel


‘Nos dias atuais, em que estão presentes ideologias profundamente materialistas e ateias, mostra-se urgente e necessário levar a luz do conhecimento do Espírito Santo a fim de que, como Mestre e Senhor, renove a fé e a esperança dos cristãos que sofrem angustiados com as dores do tempo presente e não fazem a experiência com o Espírito Consolador. 

O Espírito Santo é a alma da Igreja, corpo místico de Cristo, pois Ele age nela assim como a alma age no corpo. Com efeito, ‘O Espírito edifica, anima e santifica a Igreja. Espírito de amor, ele dá aos batizados a semelhança divina perdida por causa do pecado e os faz viver em Cristo a vida mesma da Trindade Santa’, ensina a Santa Igreja (Compêndio, 145). Como Mestre interior, Ele guia para a verdade e com sua unção fala por dentro dos corações instruindo sobre os mistérios de Deus, ensinou Santo Agostinho à Santa Igreja, disse Congar (cf. Agostinho, 2005 apud Congar, 2005, p. 144b). 

Como acontece esse ‘toque’ do Espírito de Deus, capaz de vivificarmos, de fato? A fé em Jesus, a oração, especialmente a litúrgica, a Palavra de Deus e os sacramentos são os meios essenciais para sermos vivificados pelo Espírito Santo. Para recebê-lo, as Sagradas Escrituras deixam entrever alguns passos para chegar ao novo nascimento no Espírito, a partir do que disse Jesus. São eles : querer, crer em Jesus e pedir. Assim disse o Senhor : ‘Quem tem sede, venha a mim; e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu seio fluirão rios de água viva’ (Jo 7,39). O Evangelista esclarece o que disse o Senhor: Jesus dizia isso se referindo ao Espírito, que haveriam de receber os que nele acreditassem. Jesus também prometeu o dom do Espírito mediante a oração : ‘O pai dará o Espírito Santo aos que o pedirem’ (Lc 11,13). Foi assim que Ele mesmo recebeu o dom do Espírito Santo (cf. Lc 3,21-22).

O saudoso Papa João Paulo II, em sua Encíclica Dominum et Vivificantem, fez uma profunda reflexão sobre o Espírito Santo, na qual revelou com maestria como acontece esse toque vivificador do Espírito na vida da Igreja e no homem. O ponto principal presente nela é entender que o Espírito Santo é um dom. Ele é uma pessoa-dom : é dom do Pai e é dom do Filho que nos foi dado por meio de sua obra redentora na cruz. O Espírito é, portanto, dom, e ao mesmo tempo é ‘Senhor que dá a vida’, assim a Igreja professa sua fé nele (Encíclica Dominum et Vivificantem, 2; 10). 

A obra do Espírito Santo que de fato vivifica nossas vidas só se realiza por causa e mediante o evento pascal, cruz e ressurreição de Jesus, conforme se atesta na encíclica, a seguir : ‘Cristo ressuscitado, como que dando início a uma nova criação, ‘traz’ aos apóstolos o Espírito Santo. Trá-lo à custa da sua ‘partida’; dá-lhes o Espírito como que através das feridas da sua crucifixão : ‘Mostrou-lhes as mãos e o lado’. É em virtude da mesma crucifixão que Ele lhes diz : ‘Recebei o Espírito Santo’’ (Encíclica Dominum et Vivificantem, 24).

Após Pentecostes, o Espírito Santo assume de Cristo a missão como ‘o outro consolador’ de perpetuar a obra da redenção do mundo. Para isso, há de ‘convencer o mundo a respeito do pecado, da justiça e do juízo’ (Jo 16,8), em vistas à salvação de todos. Esse novo princípio da redenção em Cristo realizado pelo Espírito acontece de forma dupla, explica o Papa João Paulo II (cf. Encíclica Dominum et Vivificantem, 31). Frei Raniero explica que esse duplo dom está presente na Escritura quando Pedro fala da necessidade do arrependimento e do Batismo e logo em seguida diz ‘e recebereis, então, o Espírito Santo’ (At 2,38); isso não significa que as ações acontecem uma após a outra, mas que no interior do homem o Espírito Santo realiza as duas ações simultaneamente : o Espírito da verdade ilumina e assim revela o pecado e, ao mesmo tempo, como Espírito Consolador realiza a obra da justificação; concedendo a graça do perdão e da vida nova (Cantalamessa, 2014, p.188).

Que obra extraordinária realiza o Espírito Santo em nosso interior que com sua unção penetra o sacrário da nossa consciência, revelando nossas misérias e, ao mesmo tempo, atrai-nos para si, oferecendo vida nova e felicidade eterna. Pessoalmente posso testemunhar como é reconfortante ouvir no interior do coração, a doce e amorosa voz do Mestre que nos guia para a verdade. Nós nos sentimos profundamente julgados como réus confessos, mas ao mesmo tempo escandalosamente antecipados com o perdão, envolvidos pelo amor misericordioso que nos vivifica e nos anima a viver o dom da vida nova que Ele mesmo nos deu. 

Caro leitor, que beleza é nossa fé no Espírito Santo! Desejo que neste ano jubilar você faça uma experiência renovada com esse Espírito de amor que como bom Mestre pode guiá-lo no caminho que conduz a vida, afinal, Ele é verdadeiramente o Senhor que dá a vida. Jamais esqueça que Ele já nos foi dado e é tempo de beber dessa graça!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/o-espirito-santo-e-a-alma-da-igreja.html

domingo, 19 de novembro de 2023

E os silêncios de Deus?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


*Artigo de Felipe Aquino,

professor


Muitas pessoas ficam desconcertadas ao verem o mal campear no mundo, sem que Deus pareça tomar parte na angústia dos que são vítimas da violência e da injustiça. Às vezes parece que Deus se torna mudo diante do nosso sofrimento; mas não é assim.

Alguém já disse que ‘Deus não fala, mas tudo fala de Deus’. Isto é, Deus fala pela Revelação e pela vida, mas esta linguagem tem de ser decifrada. Seus silêncios aparentes são sábios e nos obrigam a exercitar o ouvido da alma, e criar novas antenas e ouvidos interiores, para ouvir a sua voz. Não é que Deus não fale, somos nós que não captamos sua palavra.

Deus não é indiferente diante dos acontecimentos deste mundo. Sempre pesou sobre a mente dos homens a aparente indiferença de Deus diante do desenrolar dos acontecimentos neste mundo. O povo sente-se, por vezes, desanimado e propenso a ‘fazer como todo o mundo faz’, visto que ser reto e digno parece custar muito caro e não trazer proveito. Até o salmista tem a tentação de agir como os maus (…), mas depois entende a sua triste sorte :

‘Por pouco meus pés tropeçavam; um nada, e meus passos deslizavam. Porque invejei os arrogantes, vendo a prosperidade dos ímpios. Para eles não existem tormentos, sua aparência é sadia e robusta; a fadiga dos mortais não os atinge, não são molestados como os outros (…).

Refleti para compreender, e que fadiga era isto aos meus olhos! Até que entrei nos santuários divinos : entendi o destino deles! De fato, tu os pões em ladeiras, tu os fazes cair em ruínas. Ei-los num instante reduzidos ao terror, deixam de existir, perecem por causa do pavor! (…), Sim, os que se afastam de Ti se perdem (…). Quanto a mim, estar junto de Deus é o meu bem!’ (Sl 72, 2-5. 16-19. 27s)

A Bíblia nos mostra que é exatamente nos momentos de maior luta, conflito, desespero e perplexidade que Deus prepara as suas ações mais belas.

A Páscoa cristã e a glória da Ressurreição de Jesus foram precedidas da cruel e dolorosa Paixão do Senhor, que deixou os apóstolos atônitos e perdidos. Mas, na manhã do domingo, ficou claro que o ‘fracasso’ do Mestre se transformara em inacreditável vitória sobre a morte. Então, tudo se fez novo (…). Ele ressuscitou como o Kýrios, o Senhor da vida e da morte; a vida venceu a morte, as trevas foram dissipadas pela luz.

É no silêncio de Deus que o cristão aprende a crescer na fé e na confiança no Senhor. Não sejamos crianças na fé.

Nesse silêncio sagrado somos obrigados a apurar os ouvidos interiores e a criar novas antenas para tentar compreender a vontade de Deus.

É preciso, então, não se deixar afundar na hora da tormenta, mas esperar com fé na Providência divina que não falha. No meio do fogo das tribulações, é preciso continuar a caminhar, ainda que gemendo e chorando, ‘como se visse o invisível’ (Hb 11,27).

Este ‘avançar na fé’ pode ser comparado a um complicado jogo de ‘quebra-cabeça’; no seu início não temos a menor ideia do quadro a compor, parece que o ‘quebra-cabeça’ não tem solução, a charada é desafiadora; mas, devagar, com paciência, vamos juntando as peças (…) começa a surgir alguma coisa. Ao se combinar as peças começa a surgir o quadro, e então, vai ficando cada vez mais fácil, até o fim.

A vontade de Deus para nós é assim; os fatos da vida, isolados, parecem não ter sentido, mas, quando os vamos juntando na fé e analisando-os na esperança, vemos a sua mensagem. Às vezes é preciso olhar peça por peça, sem saber qual é a próxima que virá. Mas é preciso ir em frente, caminhar com perseverança.

A grande Edith Stein disse uma bela verdade : ‘Não sei para onde Deus me leva, mas sei que é Ele me conduz’. Isto basta.

Não podemos esperar que a mensagem esteja decifrada para começar a caminhar; assim não começaríamos nunca a viagem. Nunca encontraremos um discurso de Deus para nós, pronto e claro, e nem um caminho nitidamente traçado; não, Deus nos conduz no escuro da fé, onde Ele vai nos falando durante o caminho, como fez com os discípulos de Emaús. E, se não caminharmos, não ouviremos a Sua voz.

Por que Ele age assim? Na sua sabedoria infinita Ele tem motivos para agir assim conosco; logo, cabe a nós não nos calarmos diante Dele, mas responder na fé e na oração incessante.

‘O justo vive da fé’ (Rm 1,17; Gl 3,11; Hb 10,38). Mais do que a nossa vitória, Deus espera a nossa luta determinada, com fé e perseverança.

Ninguém conhece os caminhos da Providência divina, por onde Ele passa, o que quer com este golpe, o que está fazendo com esta aflição, morte, fracasso, desemprego (…).

Muitas Ordens religiosas foram provadas terrivelmente até se firmarem. Mas, porque os seus fundadores não desanimaram e não desistiram, a Igreja se tornou rica e santa por causa delas.

Deus não é um ser mudo; Ele se revelou e revelará; se Ele, por vezes, parece calar-se, Ele o faz sábia e providencialmente.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2015/08/10/e-os-silencios-de-deus/

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A noite escura da alma no mundo atual

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
 *Artigo de Talita Rodrigues


‘Ouvi a seguinte frase de um paciente : ‘Parece-me injusto que quem me feriu profundamente seja feliz antes que eu’. O fato é que, quando somos feridos profundamente, sentimos um vazio enorme no peito. Sentimos uma pequena mostra da solidão. E arrisco dizer aqui que até experienciamos por algum motivo, um pedacinho da noite escura da alma.

Parece que, independentemente do que estejamos sentindo, não vai passar. Vemos alguém que nos fez tanto mal e que deixou o nosso coração quebrado sendo feliz antes de nós. E quando nos deparamos com isso, temos a tendência de começar a questionar Deus.

Questionamos a Deus o porquê da demora do nosso milagre, e ainda temos a ousadia de questioná-lo sobre o porquê o outro alcançou a felicidade que tanto queríamos antes de nós.

Santa Faustina e a noite escura da alma 

Oramos, suplicamos a Deus pelo nosso pequeno ou grande milagre, e nada. Nada acontece. Deus permanece em silêncio e faz com que provemos a noite escura de alma, assim como Santa Faustina relatou em seu Diário :

‘Era estranho como a minha mente estava assim obscurecida; nenhuma verdade me parecia clara : quando me falavam de Deus, o meu coração era como pedra. Não conseguia extrair de mim um só sentimento que fosse, de amor para com Ele. Sempre que procurava, por um ato de vontade, permanecer em Deus, experimentava tormentos enormes e parecia-me que, deste modo, aí estava a Sua maior ira. Não era capaz de meditar, como antigamente. sentia um grande vazio na minha alma e nada havia que o pudesse preencher. Comecei a sofrer uma grande fome e ânsia de Deus; mas reconhecia a minha total incapacidade’ (D.77)

E quantas vezes, o nosso coração está como uma pedra e você não consegue sentir um sentimento de amor com Ele em noites escuras? Quantas vezes você O buscou com toda a força que restava em seu coração e experimentou noites de tormentos incessantes?

Quantas vezes você tentou orar e sentiu que sua oração não chegou até o coração de Jesus Cristo? Se pensarmos bem, Jesus guiou a Irmã Faustina pela escuridão da fé, revelando-se desde o principio da sua vida religiosa. Chamava-a à vida mística, e ela, sendo uma Irmã simples, não sabia bem como tornar-se Esposa de Cristo.

Na escuridão da fé a Apóstola da Misericórdia descobria a grandeza de Deus e, ao mesmo tempo, a sua tendência para pecar. E isso é importante lembrar, porque nós somos pecadores.

Oração 

Para a Irmã Faustina, já não bastava uma oração simples. Quando, numa das visões, Jesus lhe disse que, sendo Sua esposa, ia partilhar com Ele o seu destino (cf. D 268), começou a pensar como ela poderia participar na vida do Amado – e então, o sol começou a brilhar novamente.

Para concluir, podemos refletir sobre o mistério da oração feita por Cristo no Horto das Oliveiras, onde Santa Faustina compreendeu que, sofrendo, tinha a oportunidade de se aproximar de Deus, Nosso Salvador. Vendo o Seu suor de sangue, descobriu que, através do seu próprio sofrimento – primeiro a doença, depois passando pelo sofrimento espiritual da noite escura de alma que a destruía interiormente – poderia sim, estar e se sentir perto de Jesus. Afinal, Jesus Cristo era seu único refúgio.

Noites escuras da alma no mundo atual 

Noites escuras da alma no mundo atual estão muito presentes em casos de depressão, ansiedade e outros transtornos psicológicos. E é por isso que sempre salientarei aqui a importância de acreditar em Deus. De acreditar que mesmo quando passamos por noites escuras, Ele sempre estará ao nosso lado – mesmo permitindo a noite escura de alma.

Se você se sente assim, busque ajuda. Busque a Deus acima de todas as coisas. E se isso não for suficiente, busque ajuda com um bom profissional cristão, que te aproxime de Deus e que te ajude a enxergar luz na sua alma.

Quando a noite escura passar, e a luz aparecer novamente, você estará curado(a).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2021/08/09/a-noite-escura-da-alma-no-mundo-atual/

domingo, 8 de março de 2020

Luxúria: este pecado capital não se refere a sexo apenas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


 TEMPTATION BY LECHERY
*Artigo do Padre Robert McTeigue, SJ


‘A luxúria é listada como um dos sete pecados capitais. Aristóteles identifica a pessoa caracterizada pelo vício como ‘cruel’, alguém que é governado principalmente por paixões. As paixões não são puramente físicas, mas isso é outra história para outra época. Uma pessoa cruel pode querer ficar bêbada; uma pessoa astuta pode querer te embebedar. Se entendermos a luxúria como uma forma de desejo incessante, e o tipo mais perigoso de luxúria como conivente, podemos notar que a luxúria não é apenas uma dinâmica corporal.

Vamos colocar desta forma : luxúria = mente sobre a matéria.

O provérbio ‘A corrupção dos melhores é o pior’ é uma maneira útil de entender a desordem da alma, que pode sucumbir à luxúria. Nossas paixões básicas, deixadas sem controle, podem nos levar a um comportamento abaixo da dignidade humana e prejudicial à saúde. E se o que é mais alto em nós for deixado sem orientação, permitido a ser estimulado por desejos de novidade e autobusca que normalmente se associa a desejos mais simples e básicos?

No pecado sexual, a pessoa humana permite que seu desejo seja afixado ao que a natureza e Deus não permitiram. A luxúria sexual é a birra de uma pessoa egoísta, enfurecida, porque a lei moral diz : ‘Não ultrapasse essas fronteiras – ou mais!’. E se encararmos a luxúria como uma birra da alma em resposta às linhas traçadas pela Revelação Sagrada? Por exemplo : ‘Foi assim que Deus definiu o casamento’; ‘Este é o propósito do sexo’; ‘É assim que Deus deve ser adorado.’

A novidade é um desejo desordenado, que pode tornar-se imperioso por uma pessoa que deveria conhecer melhor Deus. Uma pessoa assim não está satisfeita nem completa com a Revelação Sagrada. Como uma pessoa promíscua quer sexo nos seus próprios termos, também a alma entregue à luxúria da novidade quer Deus nos seus próprios termos.

A alma indisciplinada, recusando-se a aprender a se satisfazer com a revelação de Deus, cede a um desejo infinito. Isso não deveria nos surpreender. Somos feitos para o infinito; se não somos preenchidos com um bem infinito, ficaremos com um vazio infinito. A alma ilustra a fórmula : LUXÚRIA = MENTE SOBRE A MATÉRIA. Ou seja, a luxúria recusa limites. A alma indisciplinada, recusando-se a se satisfazer com Deus, começa a ecoar a serpente : ‘Você não morrerá; pois Deus sabe que quando você comer, seus olhos serão abertos e você será como Deus, conhecendo o bem e o mal.’ (Gênesis 3, 4-5)

A alma indisciplinada pode embebedar-se com o poder (aparente, mas fugaz) de reescrever a revelação, redefinindo Deus – procurando maneiras sempre novas de decidir por nós mesmos o que é verdadeiro, bom, bonito, santo, divino, diabólico. Mas qualquer viciado lhe dirá que nunca é suficiente. Você sempre cai após a alta; a emoção diminui – e diminui muito rapidamente. São necessárias doses cada vez maiores, que alcançam cada vez menos. Eventualmente, alguém pára (ou morre).

Deus é o autor da Revelação Sagrada. Ou somos alimentados e nutridos por ela, ou cedemos às demandas de desejos que nunca podem descansar. Vamos trabalhar e orar juntos para que rendamos à verdade, em vez de nos esforçarmos para ser seu mestre.’


Fonte :

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Onde está o teu tesouro aí está o teu coração


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Se queremos encontrar onde está nosso coração basta perceber onde ou em que colocamos a maioria das nossas forças e nossa maior porção de tempo.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante
  
‘‘Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas acumulem para vocês tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração. Mateus 6:19-21

Esses versículos, inseridos no chamado Sermão do Monte que segue de Mateus 5 e vai até o capítulo 7 são muito conhecidos. Mesmo sendo comumente ouvidos, na maioria das vezes, são associados somente às questões de cunho espiritual e usados para fazer uma total dicotomia entre coisas do céu e coisas da terra, termos esses entendidos não no sentido bíblico, mas no sentido literal.

A princípio, podemos pensar que Jesus está fazendo uma mera contraposição entre céu e terra e que, assim, devemos pensar somente nas coisas que são do alto e ignorar as coisas que estão na parte de baixo, numa espécie de pensamento de que nada aqui vale a pena e, ainda pior, que tudo que é terreno recebe a reprovação de Deus.

Porém, ao se ter em mente que céu na Bíblia é simplesmente um nome para Deus é possível reler esse versículo como sendo um conselho para que guardemos nossos tesouros em Deus.  Qual seria o motivo para isso? O texto nos mostra dois: porque ali a ferrugem e a traça não o destroem e, o mais importante de todos, porque ali onde está nosso tesouro ali estará o nosso coração, o que, de maneira inversa pode ser dito que, onde está o nosso coração, ali está o nosso tesouro.

Dizer que nosso coração está em algo quer dizer que esse algo é o que define nossas prioridades e nosso comportamento diante das situações do cotidiano. Dessa forma, se queremos encontrar onde está nosso coração basta perceber onde ou em que colocamos a maioria das nossas forças e nossa maior porção de tempo.

A chamada de Jesus, desse modo, nos confronta para uma tomada de decisão que é justamente onde guardaremos nosso tesouro, se nas coisas de Deus, ou se nas coisas terrenas. Se atentarmos ao Evangelho pregado por Jesus é possível identificar quais são as coisas dos céus e quais são as coisas da terra. As coisas dos céus, que é o mesmo que dizer a respeito das coisas de Deus, são aquelas que têm a ver com o se importar com pobres, marginalizados e esquecidos da sociedade, o que o texto de Mateus 25 deixa muito claro quando afirma que fazer algo aos pequeninos é fazer ao próprio Deus. Nesse sentido, empatia e misericórdia é o modo de viver de todo/a aquele/a que decide por guardar seus tesouros nas coisas de Deus.

Por outro lado, com relação às coisas terrenas, é sempre importante lembrar que terra aqui não tem a ver com o planeta, antes com um sistema e uma forma de vida. Ser terreno, nesse sentido, é viver uma vida que é voltada somente para si, movida pelo individualismo e sem se importar com outros. Dessa forma, individualismo e egoísmo são marcas de todos/as que decidem guardar o seu tesouro nas coisas terrenas.

Por sua vez, esse lugar onde nosso tesouro está não fica em secreto de maneira que os outros não têm como saber onde o guardamos. Lao Tsé já dizia que ‘A alma não tem segredos que o comportamento não revele’. Esse ensinamento, então, serve de critério para avaliação de toda coadunação entre discurso e prática. Em outras palavras, muito além do discurso, é o comportamento que nos indica onde está o nosso tesouro e, ao mesmo tempo, torna-o visível para todos/as que os observam e estão atentos ao nosso modo de viver. Nesse sentido, é importante lembrar que o grito de nosso comportamento é sempre maior que a ênfase de nossas palavras e que nosso esforço deve ser sempre de, assim como Jesus, viver uma vida na qual a nossa prática manifeste nosso discurso e nosso discurso seja reflexo de nossa prática.’


Fonte :

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A minha alma tem sede de Deus


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Resultado de imagem para thirst of god
*Artigo de Tânia da Silva Mayer,
mestra e bacharela em Teologia


‘O ser humano contemporâneo parece caminhar sem rumo e por estradas que conduzem a lugar nenhum. E essa nossa caminhada errante é sintoma da enfermidade de sentido que vivemos. Na tentativa de preencher o vazio que a perda do sentido provoca, tornamo-nos itinerantes em busca do que possa fomentar em nós sensações de completude. Nessa esteira de ver satisfeito nosso desejo, tornamo-nos consumidores materiais e espirituais à espera que o cartão de crédito ou um frasco de água benta nos faça saturar definitivamente a incompletude que somos. Isso é um grande engano. Sentir falta, não nos sentirmos preenchidos define também nossa existência, permitindo também que desejemos e nos mobilizemos para estancar a sede que sentimos.
E por falar em sede, o salmo 42-43 serve bem para ilustrar a sede e o desejo humano de Deus, bem como a abertura para acolher o Deus que se revela em Jesus Cristo e se dá a conhecer ao mundo. Tal salmo é fiel representação da existência humana (pessoal e/ou comunitária), que no âmago de sua alma sente desejo de Deus. O salmista é reflexo do desejo antropológico por Deus, aqui representado pela alma do orante que está angustiado. Sua situação é a de alguém que está longe do seu espaço familiar, distante de sua terra, exilado. Provavelmente está fora de Jerusalém, do Templo, na região montanhosa do sul do Hermon. O salmista vive nostalgicamente, uma vez que já não contempla mais a ‘face de Deus’ em seu Santuário. E é em meio à opressão que ele o busca para não perdê-lo.
O salmo 42 compõe seu cenário no contexto da natureza: uma corça sedenta está em busca de um poço para matar sua sede (v. 2). A figura da corça, (também podemos chamar de cervo) é muito apreciada dentro da literatura bíblica. Muitas vezes é relacionada com o mundo da divindade, tomada como a mediadora do céu e da terra; quando associada ao ser humano, diz respeito à imortalidade, ao sucesso. A crítica textual ressaltará que o v. 2 ao descrever tal animal o apresenta na qualidade de um animal macho, sobrepondo-se a sua figura feminina. No entanto, esta está mais próxima das questões vitais, tal como o parto e do nascimento. De modo geral, a figura do animal é representação da força humana em sentido físico e espiritual. No salmo em questão, o desejo vital pela água que a corça sente é metáfora da ansiedade que o salmista tem por Deus. De fato, tal como a água é fundamental para o florescimento da vida na terra dura e seca, assim Deus é fundamental para o ser humano, pois é o único capaz de estancar nossa sede de sentido e de fé.
Ainda no v. 2, há outro termo bastante importante, a alma (nefesh). Na tradição bíblica, a alma é expressão da energia vital do ser. Ela está vinculada a uma parte do corpo responsável por engolir e respirar, a garganta. Podemos, uma vez mais, perceber a profundidade da imagem utilizada pelo salmista ao aproximar a imagem do ser humano de desejos à composição físico-corpórea dos animais.
Em muitos casos, o termo ‘alma’ pode designar o estômago, outras vezes, a respiração e o sopro. No salmo 42, a alma é expressão da fome, do desejo pelo alimento que garante sua sobrevivência. Ampliando a hermenêutica, a alma não está somente referida à sobrevivência físico-biológica, mas à sobrevivência emocional e espiritual da pessoa, ela é o espaço da saudade e do desejo humano. Não se refere a ‘algo imaterial’, como estamos acostumados a cogitar em nossas catequeses, mas designa aquilo que é ‘centro da vida da pessoa, em seu sentir, respirar, reagir e no seu decidir’. Refere-se, em todo caso, ao ser humano como um ser de desejo, capaz de desejo. Assim como a corça estica a garganta para buscar água, o orante do salmo abre a sua alma para beber daquela fonte que é princípio de vida : Deus; sem o qual sua vida já não apresenta nenhuma força, sem o qual nossas vidas continuarão errantes e sem sentido.’

Fonte :

sábado, 11 de novembro de 2017

A terra arada e a alma machucada possuem fertilidade para novas sementes

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Ivonete Rosa


‘Nos meus tempos de infância, assisti, incontáveis vezes, o meu pai preparando a terra para o plantio. Tão logo caía a primeira chuva, lá estava ele, revirando a terra para, deixando-a pronta para as novas sementes.
A terra, antes de ser arada, era submetida à queima para ficar mais fértil e livre das ervas daninhas. Após todo esse processo, vinha a fase do plantio, na qual eu também participava, depositando as sementes nas covas e tampando-as com os pés descalços. Alguns dias depois, os brotos surgiam das covas, a coisa mais linda de se ver, juro que aquilo me deixava encantada.
Ficava claro ali, diante dos meus olhos, a vida nascendo do caos. A terra que teve toda a sua vegetação destruída pelo fogo, estava ali nos presenteando com novas vidas em forma de mudas que, em breve, trariam o alimento para toda a nossa família. O que, meses antes era só o carvão, transformava-se em uma linda paisagem, tudo verdinho, cheio de brotos e naquela atmosfera encantadora de resiliência e fertilidade. A terra parecia gritar: tentaram me destruir, porém, ressurgi mais fértil ainda.
E a ‘vingança’ dela pelo sofrimento oriundos da queima, e dos cortes pelas lâminas de uma enxada era a oferta de alimentos dali a poucos meses. Então, nessa experiência do plantio, é plenamente possível extrair dois ensinamentos que podemos trazer para a nossa condição humana : a) é possível nos tornamos mais fortes e férteis após um grande sofrimento (analogia com a queima da terra); b) podemos optar por devolver, a quem nos feriu, o que temos de melhor, ao invés de nos vingarmos (a terra devolveu alimentos a quem a queimou).
Traçando um paralelo da condição humana com a natureza, é possível, sim, perceber que também somos dotados desse poder de resiliência e superação. Podemos sair mais fortalecidos das circunstâncias que agem como um arado em nossa alma. Podemos, sim, florescer após grandes dores, decepções e golpes dolorosos da vida.
Tudo é uma questão de escolha, cabe a cada um de nós decidir o que fazer com aquilo que chega em nossas mãos e em nossas vidas. Em muitas situações, experimentamos a sensação de ter a alma incendiada e transformada em cinzas, então, caberá a nós, a decisão de transformar essas cinzas em adubo nutritivo para germinar novas sementes, ou simplesmente permitir que a esterilidade venha assumir o lugar da vida. Podemos ser um manancial ou um deserto, a escolha está em nossas mãos.
A natureza é uma grande e sagrada escola, as lições estão em todos os lugares possíveis, basta a sensibilidade para enxergar, aprender e praticar. Cada um de nós carrega uma infinidade de sementes ávidas por germinar em forma de amor, solidariedade, perdão, superação, amizade, compaixão, caridade etc. Entretanto, por vezes, falta a disposição do dono das sementes para plantá-las num terreno devidamente preparado, bem como faltam a coragem e a paciência para cuidar delas após o plantio.
A nossa alma, ainda que machucada, não perde as condições de fertilidade e renovação. As sementes da resiliência são preservadas num recôndito intocável, prontas para germinar, brotar, crescer, florescer e frutificar no tempo certo. É possível, sim, sairmos mais fortes, inteiros e férteis após uma grande dor, eu aprendi isso percebendo que uma terra queimada transforma cinzas em verde, alimento e vida.’

Fonte :


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Olhar na alma

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Curti o programa ‘Olhar na alma’!
*Artigo de Lev Chaim, 
jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil radicado na Holanda 


‘Há tempos que não me emocionava tanto com um programa de um dos canais da televisão holandesa : ‘Olhar na alma’. O apresentador Coen Verbraak é quase invisível, mas efetivamente presente com a voz e suas perguntas intrigantes a um determinado grupo de pessoas, com a mesma profissão, e com bastante experiência em missões no exterior, bem longe de casa. 

Ele faz a entrevista inteira com um personagem, depois com o outro e aí por diante, mas todos separados entre si. Só aparece o rosto do entrevistado em 90% do tempo e, como eu disse, o rosto do apresentador só vem à telinha muito rápido,  quando ele tem que fazer uma pergunta chave, para o desfecho da história.

Na montagem do programa, estas entrevistas inteiras são cortadas e remontadas na cena em que ele faz a mesma pergunta a todos. Desta vez, os entrevistados foram os militares de alta patente das três forças, com histórias que a primeira vista você não contaria em um programa de televisão qualquer.

O que faz desta sua profissão interessante para você?’ Muitos responderam : a camaradagem dos colegas, a confiança que você adquire na vida exercendo esta profissão de general ou comandante de esquadrão de aviões caças. ‘É claro que vocês estão em muitos momentos importantes fora de casa, longe da família. Como se acostumar a isto’ : um dos militares, olhando na câmara, pensativo, disse que não viu nascer o seu primeiro neto, aliás, uma criança deficiente. ‘O que isto fez com você?’, perguntou o apresentador :  Uma dor profunda, inigualável, que faz com que eu admire ainda mais a minha querida esposa.

Um chefe do esquadrão de pilotos disse que uma vez ele ficou doente em casa por alguns meses e tudo deu errado. Brigou com a esposa, pensou em suicidar-se, mas finalmente, com um bom tratamento, voltou a ativa e com tudo. A maneira calma com que ele contou isto, sabendo que tudo isto foi visto pelo país inteiro é o que impressionou ainda mais. É como se eles estivessem fazendo um seminário para o colegas mais jovens, como se os preparassem para enfrentar tudo que viesse pela frente.

Um oficial da marinha, que trabalha num submarino na costa do Mediterrâneo, por exemplo, com poucas palavras passou emoções intensas que o fazem mais próximo da realidade cruel deste mundo de hoje. Contou que uma vez, ele e sua tripulação se depararam com um lixo boiando no mar. O submarino subiu e constataram que eram corpos de homens, mulheres e crianças, todos náufragos, provavelmente na tentativa de atravessar o Mediterrâneo rumo à Europa. Contando que ao ver tão de perto aqueles corpos, ele engoliu em seco várias vezes. Não era mais uma coisa irreal, que se fala nos jornais, nas TVs e nos rádios, mas estava ali, a sua frente, sem qualquer disfarce. Ele deu ordens para que recolhessem os corpos para serem entregues à marinha costeira.

Ao contar tudo isto, você nota emoção embutida em cada palavra, cada gesto, em cada olhar do entrevistado. E tudo dito pausadamente, pensando bem na escolha da palavra certa para descrever todo aquele horror, como se tivéssemos o privilégio de mirar bem fundo, mais bem fundo mesmo, a própria alma combalida daquele militar. É claro que tem uns que nos emocionam mais que os outros, mas no conjunto, uma coisa ficou clara : esses militares, que um dia pensaram ser heróis, sem dúvida, tornaram-se mais humanos. Emocionante. 

Tal qual contou uma senhora, psicóloga da marinha, quando estava no Afeganistão em missão. Através do seu IPad, ela conseguiu ver pedaços da primeira dança de sua netinha no teatrinho da escola. Os sacrifícios de uma profissão tão discutida, as vezes tão mal entendida, pegaram-me de surpresa e deixaram-me emocionado. Para tudo se paga um preço, principalmente para esses militares que vão tão longe defender os ideais democráticos de seus países e organizações internacionais. Curti o programa ‘Olhar na alma’!’


Fonte :

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O pecado reprime o homem : Introdução à Teologia do Corpo – Parte 1

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Rômulo Cyríaco


‘Recomendamos, para melhor aproveitamento desta série, a leitura prévia do seu Prólogo :


_________________________

Nestes primeiros artigos, serão desenvolvidas as questões referentes à unidade e à inocência originais na vida humana logo após a Criação; o Pecado Original; e as consequências deste, antevendo o chamado redentor de Cristo a todos nós.


Pecar é perder a si mesmo

O Pecado Original reprimiu o ser humano verdadeiro – represou, no ser humano, a sua verdade. Isto quer dizer que, pela hereditariedade do Pecado, nós ganhamos uma estrutura pessoal em que nossa verdade está distante de nosso ser, afastada de nossas consciências. No entanto, esta, precisamente por ser a verdade, não se perde nunca, e permanece pedindo para irromper em nossas vidas, no seio da histórica artificialidade da humanidade.

Os pecados atuais, mortais ou veniais, mantêm-nos reprimidos, isto é, desintegrados, distantes de Deus e de nós mesmos. Motivo este pelo qual vive-se, com tamanha frequência, com um enorme senso de vazio e de frustração, enquanto, estranhamente, vive-se todas as promessas de felicidade do mundo. A pessoa se pergunta : mas o que há de errado comigo? A resposta é : você está depositando sua esperança em um mundo cuja substância própria é a perda da esperança. É como querer curar uma ferida num espinho – o mesmo que a gerou. A incredulidade e a desesperança são a própria matéria da qual é feita o mundo, e é neste que você, pela insensatez e desorientação geradas pelo Pecado, está depositando as suas expectativas de alegria e de paz. Sem perceber, você está apostando no pecado como projeto de vida, como se aí fosse encontrá-la. Mas, como poderia ser projeto de vida aquilo que, precisamente, retira a mesma de nós?

Está aí a tragédia do mundo humano pós-Pecado Original : o sentido é buscado comumente naquilo que o elimina; investe-se a vida, logo, naquilo que a transforma em morte. E depois, ainda, não se consegue entender o que está se passando! Não poderia ser diferente, pois : o cego não pode enxergar. Como cobrar do cego que não se dirija novamente ao precipício? É preciso que, antes, o Evangelho e o encontro com a pessoa de Cristo lhe restitua a visão.

Por quê, aqui, relaciona-se ‘repressão’ com ‘desintegração’? É que, se estamos inteiros, de fato, então estamos com Deus, que inteiros nos criou. Mas, após o Pecado, Adão esconde-se e foge de Deus, temendo-O : por hereditariedade, assim também nós temos a tendência de fazer. Para escondermo-nos de Deus, desintegramo-nos, dividindo a nossa essência em pedaços, e pressionando a boa parte destes para a inconsciência, de modo a deixarmos de ver, interiormente, a imagem e semelhança de Deus em nós mesmos. O que tentamos fazer é escondê-Lo em nós, com a trágica esperança de que assim Ele também não nos veja. É assim que nós, em plena luz do dia, estamos como Adão, escondendo-nos de Deus em um arbusto – como se qualquer arbusto ou montanha, por maior que fosse, pudesse esconder algo ou alguém de Deus. Culpados do Pecado, feridos por esta culpa, nós não queremos olhar para a integridade de nós mesmos e reconhecer a nossa miséria. A culpa pelo pecado e o orgulho estão lado a lado : numa mão, a repressão (da culpa), noutra, a resistência que a sustenta. O homem se entristece e se enfraquece com o pecado, mas luta para não deixá-lo, temendo as consequências de um retorno humilde ao Criador. Adão ouve a voz de Deus no jardim e tem medo. Afinal, não é este o medo que tantos têm, quando a voz de Deus começa a ressoar forte demais no interior? Esse é o medo comum de todos que ainda não se desmontaram diante de Deus, para que Ele possa, com sua graça, devolver a sua integridade e a sua dignidade.

A vida humana que resiste à graça de Deus, assemelha-se a de crianças de colo, em tudo dependentes dos seus pais, que – após fazerem uma primeira besteira – resolvessem fingir que são adultas e que vivem sozinhas em suas casas, ignorando a existência dos seus genitores e responsáveis, e fugindo deles de um cômodo a outro. Ainda obteriam da parte deles o seu sustento básico, pois os pais não deixariam seus filhos morrerem : mas não poderiam desenvolver as suas vidas até a sua plenitude, na medida em que negariam a educação, a orientação e o apoio dos pais, todo o sustento espiritual da filiação que poderia lhes dar vida plena e a liberdade. Após o Pecado Original, e cada pecado atual, o ser humano perde a si mesmo porque perde a comunhão com Deus, seu Criador e Sustentador. Mas, em vez de se reconhecer criança de colo, e olhar para o Pai que está de braços abertos e estendidos, pedindo ajuda a Ele para superar sua fraqueza, vira a cara, fingindo-se adulto, por medo de ser punido, e pela rigidez do orgulho.

Com a encarnação de Cristo, iniciou-se na História o chamado definitivo, que havia sido antecipado desde o início dos tempos, e desde a Antiga Aliança com Abraão, para que todos (os que quiserem) possam reencontrar o Pastor e retornar à Casa, retomando, pela Cruz, o acesso à árvore do centro do jardim, com o batismo, a absolvição dos pecados, e o Pão da Vida.


A unidade e a inocência originais

Deus, quando criou o ser humano, deu-nos este mandamento : ‘Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer’ (Gn, 2,16-17). O Pecado Original nada mais foi do que o momento em que o ser humano, em sua liberdade, transgrediu esse mandamento divino, e, portanto, teve de morrer – perdendo o acesso integral que tinha à Árvore da Vida. Era uma condição, a nós dada por Deus : respeitar livremente um precioso limite, dentro do qual gozaríamos para sempre da vida no Paraíso. Um limite, apenas, do qual dependia toda a estrutura da nossa inspiração pela Santíssima Trindade em nossa vida corporal.

Deus criou o ser humano à Sua imagem e semelhança. Isto imprime em nós uma dignidade maior que a do restante das espécies, as quais, por isso, Deus a nós submeteu, para sermos, com Ele, corresponsáveis diretos pelo cuidado da Criação. No princípio, vivendo em comunhão com o Criador, estávamos em íntegro contato com os Seus desígnios para conosco. Nossas almas, integradas aos nossos corpos, participavam docemente no Ser de Deus, como ovelhas dóceis, inteiramente atentas e obedientes aos sinais do Pastor.

Fazíamos o bem e evitávamos o mal, não por sabermos o que era bom e mau por nosso próprio juízo, mas espontaneamente. Deixávamos tal conhecimento reservado a Quem ele pertence, ao Deus Criador, e pela comunhão íntima com nossas almas, Ele nos transmitia naturalmente a Sua Sabedoria, da qual compartilhávamos, Nele depositando toda a nossa confiança. Somente Deus pode nos orientar para o verdadeiro bem, e nos livrar do mal. De nada adianta tentar avaliar bem e mal por juízo próprio, como se pudéssemos chegar a uma conclusão diferente – e, ainda assim, válida e verdadeira – daquela já conhecida por Deus. Há somente uma verdade, absoluta e imutável, sobre a bondade ou a maldade de nossas ações, e esta advém de Deus.

Aquela unidade primeira do ser humano com Deus, refletia-se na unidade original do homem com a mulher. Quando Deus fez Eva para ser a companheira de Adão, este exclamou, ao vê-la : ‘Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!’ (Gn 2,23). O homem olha para sua mulher, e sente que ela é parte dele mesmo : há, entre o casal, perfeita complementaridade, visível até mesmo pela forma anatômica de seus corpos. Deus fez um para o outro, e somente vivendo com e para o outro, é que homem e mulher se completam, tornando-se um só, e se realizam. Da complementaridade à inseparabilidade. ‘Não é bom que o homem esteja só’ (Gn 2,18).

Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne. Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam’ (Gn 2,24-25).

Adão e Eva, um diante do outro, não sentiam vergonha pela exposição de seus corpos nus, precisamente pela sua unidade e inocência originais. Não estavam realmente expostos, porque não havia, então, nenhuma constrição de seus corpos, mas integração completa entre corpo e alma, e entre eles mesmos. Eram uma só carne, e ‘ninguém jamais quis mal à sua própria carne’ (Ef 5,29). Sua sexualidade, masculina e feminina, era sinal da complementaridade que causava o movimento recíproco, entre eles, de integral doação e acolhimento, espiritual e corporal. Tal movimento, nos primeiros seres humanos – o matrimônio original – foi perfeito, pela sua concomitante comunhão com o Criador, que tornava ausente todo medo e toda desconfiança. Não havia nenhum desejo, em Adão ou em Eva, de usar, ou de dominar o outro. Não haviam ainda comido da árvore do conhecimento do bem e do mal, e, por isso, escolhendo dela não comer, apenas obedeciam às doces e paradisíacas instruções de Seu Criador, vivendo em casal como uma só carne.


A liberdade da alma humana

Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança, e dotou-o, por isso mesmo, de liberdade. O ser humano, dotado de alma e intelecto, era livre para escolher a vida em comunhão perfeita com seu Criador, ou escolher perdê-la, ao comer da árvore do conhecimento de bem e do mal. A serpente realmente tentou Eva, mas não retirou a sua liberdade de dizer não – assim como o diabo não nos pode forçar a pecar, mas apenas nos tentar, aproveitando-se de nossa milenar fraqueza. Deus quer a Sua criatura perto Dele, vivendo em comunhão com Ele, mas não quer forçá-la a fazer isso. O Amor de Deus por nós é gratuito e livre, e assim também Ele quer que seja o nosso amor por Ele. Qual é o mérito de um amor forçado? Deixa de ser amor no mesmo instante em que se força. Deus nos chama para perto Dele, nos ajuda a amá-Lo, e, mais ainda, quando queremos amá-Lo, Ele nos dá as condições como graça. Mas nunca nos força.

O ser humano, tentado a conhecer algo da existência que dele estava oculto – a ciência do bem e do mal – comeu daquele fruto proibido, e teve de morrer. Perder o amor a Deus é o mesmo que morrer, pois, ao esconderem-se nossas almas da percepção viva do seu Criador, ao qual desobedeceram, começam a resistir às Suas graças, à Sua unção vital. Almas que se encolhem, retraem-se e escondem-se, logo, sujeitam-se mais facilmente a quaisquer impulsos do corpo e mesmo aos mais baixos impulsos do seu estado decaído, incapazes de avaliar se estes favorecem ou jogam no lixo a sua original vocação. Avaliar, discernir em profundidade, seria retomar o contato íntimo com a alma e sua expansão : isso seria, também, retomar o contato com Deus, percebê-Lo, aceitá-Lo e, logo, curvar-se a Ele em docilidade e obediência. Mas o ser humano resistente, com medo ou orgulhoso, prefere, para poupar-se dos incômodos que convidam à transformação profunda, ceder à sua carne, ou aos impulsos decaídos de suas almas. Ceder ao pecado passa a ser a triste condição que ‘protege’ o ser humano, resistente, contra a percepção e a ação de seu Deus.

O amor por Deus não pode se separar da obediência a Ele. No instante em que Eva aceitou comer daquela árvore, seu amor por Deus estava comprometido, pois transgredia o Seu mandamento. Por isso o diabo, a velha serpente, estabelece em sua vida intelectual um culto à desobediência, como movimento de ‘liberdade’ : esta ideia demoníaca ganha ampla ressonância na cultura e no pensamento humanos. É o que os demônios sopram em nossos ouvidos sempre que podem – e o que já lemos nas páginas de tantos filósofos modernos : não deixar-se jamais determinar pela obediência a uma autoridade Absoluta, viver a potência do enxame demoníaco, que não se reduz à Unidade de nenhum ‘tirano’ centralizador, que escapa do domínio tradicional do Ser com um ‘puro devir’, com a indeterminação ‘molecular’ de sua ‘multiplicidade’, com o caos ‘rizomático’ de sua fragmentação, com a confusão de sua ‘horizontalidade’.

Alguns filósofos (refiro-me, mais especificamente, a Gilles Deleuze e Félix Guattari em ‘Mil Platôs’, de 1980) chegam mesmo a enaltecer Satanás como líder contestador, quando este diz : ‘eu sou Legião’ (Mc 5,9), tratando a tal frase como revelação e expressão da potência revolucionária do anonimato da multidão, contra a ‘verticalidade falocêntrica’, ‘individualista’ e ‘identitária’, do ‘homem patriarcal’, ‘burguês’, ‘branco’, ‘Europeu’, ‘heteronormativo’. Sabemos que o diabo quis destruir a civilização ocidental e seus pilares fundacionais muito antes de sugerir esta ideia nos ouvidos de Karl Marx e de Antonio Gramsci, de Gilles Deleuze e Michel Foucault, entre outros. Pobre ser humano, que vê mais valor em Satanás do que em seu Redentor, e cai na armadilha da serpente, que pinta o fruto e as correntes da morte com as falsas cores de uma pretensa liberdade. Palavras como ‘docilidade’ e ‘obediência’ ligam imediatamente o alerta da paranoia daqueles homens modernos, ativistas contestadores, ‘desconfiadores’ profissionais, escravos de sua incredulidade. Muitos não podem mais perceber como sermos dóceis justamente Àquele que nos dá a Vida, significa reconquistarmos a liberdade, o vigor, e a própria realização de nós mesmos no Outro. Muitos começam a preferir o inferno, a serem dóceis e humildes no paraíso. Significativamente, os mesmos filósofos que enaltecem a Legião de Lúcifer, esquecem-se de citar o que vem antes e depois da autoapresentação do demônio como Legião, no Evangelho de Marcos. Antes de dizê-lo, o demônio fala a Jesus, através do homem que possuiu : ‘Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? conjuro-te por Deus que não me atormentes’ (Mc 5,7). Satanás, diante do poder divino de Cristo, é obrigado a dizer a verdade, e afirmar a autoridade do Verbo. Depois, Jesus permitiu que a Legião de demônios entrasse nos corpos de uma manada de porcos, que se precipitaram no mar e afogaram-se (Mc 5,10-13). Tal é o destino de quem, filosoficamente, valoriza a falsa ‘força’ do demônio contra Deus.

Essas filosofias revolucionárias, contrárias a qualquer senso de autoridade, não aceitam que é a resistência obstinada à Autoridade de Deus Criador, o que mais expõe os homens como presas fáceis da autoridade do homem do mundo, e, logo, do diabo. As autoridades malignas do mundo – material e espiritual – protegem o homem resistente ao Espírito Santo contra a temida entrega a Deus, e assim conquistam a sua servidão. O Pecado Original tornou os seres humanos presas mais fáceis da falsa autoridade do diabo, que a muitos convence de que, servindo a ele, encontram-se ‘livres’ de Deus e de suas exigências para com eles, exigências que faz parecer terríveis. O ser humano passa, tantas vezes, a preferir a mais baixa e vil escravidão, com tons de contestação e ‘total autonomia’, e gozos mundanos, do que a verdadeira liberdade no serviço ao Deus Amor, cujas exigências são as de que retomemos a nossa liberdade e nossa capacidade de amar e viver na liberdade. De que recuperemos o brilho que somente a Vida, que vem concretamente da fonte divina, pode dar à nossa realidade, abandonando a palidez do pecado, e as maquiagens do demônio, que sempre saem no dia seguinte e revelam a falsidade e o vazio do seu projeto.

Quando nos encontramos com Deus, mais Ele Se torna presente e age em nossas vidas, cumulando-nos de graças e transformando-nos sobrenaturalmente, permitindo que O conheçamos pessoalmente, como Deus Pessoal que É. Por outro lado, para aqueles que servem ao diabo, mais o mesmo se faz parecer ausente, fazendo o seu escravo achar que realmente é ‘autônomo’, e que não faz o que faz em serviço às forças do mal, ao exército da resistência a Deus, mas por sua própria conta e nobre ‘independência’.

Nós, que buscamos servir a Deus, sabemos a Quem servimos, e este serviço se torna então consciente e livre, sempre recompensador, ainda que tantas vezes difícil, árduo e desafiador – pois o discípulo não está acima do seu mestre, e se nosso Mestre foi perseguido, também nós o seremos. Já o serviço mundano ao diabo, pelas próprias estratégias dos demônios, é na maioria das vezes inconsciente, e sem nenhuma verdade como recompensa. Deus Se apresenta ao homem e revela o Seu nome : EU SOU AQUELE QUE SOU (IAHWEH). O diabo, por sua vez, depende de que seu nome permaneça velado, e diz : não sou ninguém, sou muitos, ‘sou Legião’. Deus é Aquele que ilumina, esclarece, revela e diferencia. O diabo só se sustenta na confusão, nas trevas e na língua dupla – enquanto Deus, Glorioso e Todo-Poderoso, ainda permite que ele o faça, antes de precipitá-lo no mar dentro de uma manada de porcos.

Deus é a única Autoridade incontornável em todo lugar, Criador e Fonte da Vida, da qual o homem pode tentar se esconder, e contra a qual pode se revoltar, mas da qual não pode escapar. Deus é Onisciente, Onipotente, Onipresente, e o Seu Verbo virá nos julgar no fim dos tempos. Ainda assim, a humanidade vem ao longo dos séculos sofisticando-se em suas estratégias para manter-se escondida de Deus – para crescer na ilusão de que se esconde de Deus – seguindo o teatro demoníaco de suas mais disseminadas tendências pecaminosas. Os demônios, há muito, declararam guerra contra Deus, e uma quantidade imensa de seres humanos está alistando-se e militando de bom grado nesse exército. O problema é que, quando se desobedece a Deus, o máximo que se pode viver é um simulacro, uma ‘paródia demoníaca’ de liberdade (cf. RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância, página 224), em que, ao se desrespeitar o mais importante dos limites – aquele que nos garante o acesso interior à Vida – muitos outros, internos e externos, começarão a ser desrespeitados, e o ser humano acaba por violar a dignidade dos outros e a sua própria. Não há uma terceira opção : ou temos 1) o reconhecimento de Deus como Criador, a obediência a Ele e a entrada na Vida Eterna; ou 2) a negação de Deus, e a entrada no reino temporário da morte, que, no fim, somente Deus dirá se será eterna ou não.

Quem nunca sentiu que fez, falou, ouviu, viu ou pensou um pouco demais – mais do que teria sido bom fazer, falar, ouvir, ver ou pensar – ultrapassando assim um limite que teria sido melhor respeitar para resguardar-se daquela dor persistente, daquele incômodo profundo, daquela perda de sentido? São estes os limites que estão impressos em nossas almas, desde que Deus nos fez, e que somos livres para respeitar, mantendo-nos próximos Dele e de Sua alegria, ou para ultrapassar, perdendo, a Deus e a nós mesmos, em troca de um pouco mais… de um pouco demais.

Quando ultrapassamos estes limites, sabemos como sentiram-se Adão e Eva, no Éden, ao se tornarem escravos do pecado no instante mesmo em que julgavam ser mais livres.

Ser ‘livre’ das exigências de Deus, é ser escravo da concupiscência e de Satanás : a transgressão gera vício, e tende-se à reincidência. O que se fez, falou ou viu demais, é difícil des-fazer, des-falar, des-ver, a não ser pelo perdão sacramental e pela graça de Deus. O ser pode se embrutecer, e torna-se então mais difícil apreciar a virtude e a pureza. Hoje, a humanidade começa a pensar que a liberdade se define pela normatização da ultrapassagem dos limites, negando a sua própria essência mais original, numa lógica em que o pecado virou virtude, e a virtude pecado. Não tendo a consciência de que, com esse pensamento distorcido, cai na mais servil escravidão, distancia-se da verdadeira liberdade, que é somente obtida no reconhecimento de Deus como Criador, e de si como criatura, recolocando e aceitando cada um no seu devido lugar.


A atualização do pecado

O pecado atual, em nosso cotidiano histórico, é a pressão contrária que fazemos, resistindo à irrupção de nossa vocação profunda afastada no Pecado Original, ou, quando já conseguimos nos reconectar em algum grau com essa vocação, resistindo à manutenção de sua realização. Estando já fluente na língua do mundo, o ser humano teme que, reaprendendo a língua original de sua própria alma, será deportado do tecido social como estrangeiro indesejado – porque o discípulo não é maior que seu mestre (Lc 6,40), e o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça (Mt 8,20). Faz-se concessões ao pecado, perde-se a alma para se ter as falsas consolações do mundo, e o respeito humano. E quanto mais o mundo é desejado em seus próprios termos – o prazer hedonístico, a ganância pelo sucesso, o apego material, o reconhecimento dos outros etc. – mais se desaprende a língua de nossas próprias almas, mais as mensagens da alma tornam-se inaudíveis ou incompreensíveis, ou os ouvidos, resistentes. O ser humano faz-se estrangeiro em sua própria terra, e resiste a obter, de Deus, a sua nacionalidade perdida, o seu direito de primogenitura.

Após o Pecado Original, como consequência, surge na vida humana a concupiscência, e Adão e Eva passam a olhar um para o outro como objetos atraentes, que prometem prazer sensual ou sexual, e não mais como sujeitos de uma comunhão de pessoas, considerados em sua completa dignidade, na indissociabilidade entre seu corpo, sua alma e sua subjetividade. Surge o egoísmo, como maior obstáculo para a experiência do amor. Logo, homem e mulher passam a ter vergonha de seus corpos e sexos, que precisam, então, ser cobertos. Pois agora os olhos se abriram, e vê-se um pouco demais. O germe do desejo pornográfico nasce com a concupiscência dos olhos – e a pornografia, em si, é a exacerbação grotesca e caricatural da mesma : não mais apenas usar o outro, despersonalizando-o na experiência, mas despersonalizá-lo ainda mais além, através de meras imagens-fetiche de seu corpo dessubjetivado, em que o domínio dos olhos sobre o outro-objeto é ainda maior e completo, e elimina-se inteiramente o risco do envolvimento emocional e racional que se tem com a presença viva de uma pessoa.

A percepção interior da concupiscência em nós mesmos faz surgir um medo e uma insegurança de que a mesma, no outro, manifeste neste um desejo de apenas usar-nos, servir-se de uma parte de nós, e descartar-nos, não acolhendo-nos inteiramente em comunhão. Nós temos medo da inocência e da pureza, pois estas, se vencerem em nós nossa própria malícia, podem nos tornar presas da concupiscência do outro. Doar-se, a partir disto, passa a ser risco iminente de sofrer, de ser abandonado, pelo egoísmo do outro, que, como nós, tem dificuldade de amar. Uns começam a se proteger através de uma atitude hiperdefensiva. Outros, mais ofensivamente, protegem-se através de uma hiperconcupiscência, que, superando a do outro, tenderá a fazê-lo sofrer primeiro, antes que isso aconteça consigo – ‘antes o outro do que eu’. Outros, ainda, defendem-se através de uma combinação desregulada das duas posturas.

A partir do Pecado Original, algumas fraturas ou rupturas ocorreram : entre o ser humano e o seu Criador; entre o homem e a mulher; e entre a alma e o corpo do ser humano. Como já vimos, o ser humano começa a fugir de Deus, com medo Dele. O homem e a mulher não se relacionam mais como uma só carne, ou nisso encontram grande dificuldade; atraem-se, mas fogem um do outro ao mesmo tempo, pois passa a haver um conflito entre o prazer da carne (visto e vivido como um valor em si mesmo) e a comunhão unitiva das pessoas. Da mesma maneira, a alma e o corpo de um só ser humano, atraem-se mas fogem da mútua integração, instaurando um doloroso desequilíbrio no seio mesmo do ser. Os impulsos da carne que são contrários à realização da alma passam a dominar, e, satisfeitos, fazem crescer uma proporcional insatisfação existencial na alma, que o cego, que não pode enxergar, tantas vezes sequer compreende de onde vem.

Podemos compreender, então, que o ser humano verdadeiro é aquele criado por Deus à Sua imagem e semelhança no princípio da Criação, caracterizado por uma plena integração de todas as suas partes e aspectos, que convergiam para a realização da vontade e do original desígnio do seu Criador. Nada no primeiro homem e na primeira mulher era mecânico : profundamente integrados, em si, entre si e com Deus, eram abundantemente irrigados pelas forças da Vida e pela unção do Espírito Santo, que provêm de Deus Pai. Todas as dimensões constitutivas da totalidade do ser humano – as dimensões sexual, emocional e racional – formavam um todo indissolúvel, em que nenhuma destas partes reivindicava uma prioridade em detrimento das outras, e, integradas, obedeciam ao Espírito de Deus, de maneira que todas as ações do ser humano, homem e mulher, sozinhos e juntos, eram movimentos visíveis, no mundo sensível, da presença espiritual, da santidade e da beleza de Deus na Sua Criação. Ver o verdadeiro ser humano agir, no princípio, era ver os movimentos de Deus em toda a profundidade e força dos Seus pensamentos.

A desobediência fez com que a imagem e semelhança de Deus que há em nós se tornasse distante e embaçada, recuperada apenas ao custo de grande esforço, e, claro, da graça do Espírito. O ser humano desde então, enfraquecido e dado ao pecado, constantemente se desintegra em suas experiências. Ora, cede a impulsos sensuais que estão em completo desacordo com suas emoções e pensamentos racionais, e com as aspirações de sua alma, de modo que obtém um prazer efêmero, mas sente-se fragmentado, e posteriormente sofre a ressaca do vazio emocional e da perda do sentido racional. Ora, apega-se a emoções secundárias, patológicas, desconectadas de suas forças vitais motrizes, e também de sua razão, ao ponto de dessensibilizar-se para estas em um emocionalismo inconsistente. Ora, ainda, vive preso em pensamentos e racionalizações fora do contato com suas emoções e sexualidade. São muitos os modos históricos possíveis de desintegração e desestruturação do ser humano, em sua resistência à integração, consigo mesmo, com o outro e com Deus. O que tal desintegração perpetua é a separação entre o corpo e a alma, experiência de morte ou perda de vida. Em cada pecado atual, a dor que sentimos é a dor da nossa irrealização : fica faltando o nosso ser real, afastado, que nos aguarda em Deus.

Assim, sabemos que para estarmos realizados, isto é, para nos tornarmos reais, precisamos buscar ao máximo, nessa vida de exílio, a proximidade com a imagem e semelhança de Deus que está inscrita no fundo de nossas almas, trazê-la à tona e a ela dar corpo, para que, com o resgate dessa semelhança, vivamos mais integrados e em comunhão com nosso Criador e Seus desígnios para conosco. E isto podemos pedir diretamente a Ele, em oração. Todo católico é chamado a buscar a santidade, e isso significa esforçar-se, recorrendo a Deus e aos sacramentos, para não permitir que o pecado atual continue embaçando e distorcendo a imagem e semelhança de Deus em nós.


A repressão da sexualidade

O mundo moderno muito tocou na questão da ‘repressão sexual’, conceito-chave na psicanálise, apropriado pelas falsificações marxistas da realidade. Desse conceito, e de seus desdobramentos, resultou a visão de mundo na qual, para o homem ser enfim livre, bastava-se produzir uma cultura libertária no que diz respeito à sexualidade. Códigos éticos e morais que dessem ainda um molde à sexualidade humana, orientando-nos sobre o que, nesse âmbito, é bom ou mau fazer, passaram a ser vistos como instrumentos de controle burguês no domínio desta classe sobre as outras. A repressão sexual (da ‘moral sexual burguesa’) gerava a neurose, e a neurose impedia a disseminação do espírito revolucionário. Bastava, então, retirar a repressão sexual, e não haveria mais neurose – portanto, ocorreria também a revolução completa. Esse raciocínio farsante, no entanto, possui uma trágica verdade para o homem contemporâneo : quando não dominamos mais a nossa sexualidade, passamos a aceitar mais automaticamente que os detentores do poder cultural e político revolucionem até a última camada do nosso ser ao seu bel-prazer.

Passamos, ao longo das décadas, não apenas a uma sociedade liberal e permissiva no que diz respeito à vida sexual das pessoas, mas a uma que reprime, mesmo, qualquer tentativa de resgatar uma orientação ética e moral fundamental para dar contorno e sentido à sexualidade e ao ato sexual. Com isso, no entanto, a angústia e a miséria humana só aumentaram. A falsidade dessa tendência está justamente em perpetuar a visão desintegrada sobre o ser humano. A sexualidade é hoje, amplamente, liberada de uma maneira exclusivamente mecânica, evitando-se uma ligação íntima da mesma com a vida emocional e racional das pessoas, sejam crianças, adolescentes ou adultos. Dando prioridade à sexualidade (casual, quando não banalizada) frente a todas as outras dimensões do ser humano e em detrimento das mesmas, a visão moderna da pessoa humana apenas se afastou ainda mais de sua realização, e mais se vive, hoje, de uma maneira contrária à satisfação de nossas mais profundas e verdadeiras necessidades, de amarmos e sermos amados.

As visões de mundo psicanalítica e marxista consideram o ‘pecado’ como sendo nada mais que uma ideia criada pela civilização ocidental patriarcal, espécie de instrumento de controle comportamental, para incutir culpa nas consciência humanas e assim dominar o comportamento dos seres em sociedade. Pobre homem que acreditou nessa visão de mundo, nessa fantasia ideológica, e liberou indiscriminadamente sua sexualidade, desintegrando-a da completude do seu ser. Entra-se, assim, no império do desejo, em que toda culpa e hesitação são considerados como inimigos a serem removidos, para que o indivíduo vá, em expansão, ao encontro do mundo, ainda que, depois, retorne miserável do mesmo encontro, porque não soube enxergar o quanto a hesitação e a culpa eram, ainda, uma mensagem distante da sua alma, tentando avisar à consciência que aquele desejo era falso, que não provinha do âmago do seu ser. O ser humano desintegrado e desenraizado, vivendo fora de si mesmo, é muito mais facilmente manipulado, e pode, a qualquer momento, incorporar um novo e mais falso desejo, afogando mais e mais a sua verdade. A mentalidade moderna privilegia a realização dos desejos das pessoas, mais que a realização das pessoas elas mesmas. Seu desejo acima de você mesmo.

O pecado não é uma ideia que reprime o homem artificialmente. O Pecado Original e o pecado atual são acontecimentos que efetivamente desintegram e reprimem a sexualidade humana natural, entendida como força motriz original da complementaridade total do homem e da mulher, convidados pela mesma força ao movimento recíproco de livre doação de si e acolhimento do outro em um vínculo relacional sólido e definitivo, do qual não participa apenas a sexualidade, mas a totalidade do ser, em corpo, emoção, razão, subjetividade e espírito.

No que se refere à sexualidade, a experiência que se torna mais difícil ao ser humano após o Pecado Original é, precisamente, o tornar-se uma só carne com uma pessoa do outro sexo, em definitiva doação e completo acolhimento – vínculo pleno afirmado no prazer e no sofrimento, na satisfação e na frustração. No entanto, nossas almas, ainda que decaídas e desorientadas, dessensibilizadas para a percepção de sua própria vocação original, não perdem esta mesma vocação, de modo que todos nós continuamos a aspirar pela comunhão das pessoas, e com Deus. Convivem e batalham, no homem, vontade original de comunhão e resistência pecaminosa à mesma. Desejo e incapacidade de amar. Os seres humanos, em suas diversas relações sociais, encontram-se e vinculam-se, e desejam isto, mas, simultaneamente, utilizam de todas as estratégias que possuem, conscientemente ou não, para protegerem-se do caráter definitivo destas relações e vínculos, em especial os amorosos e conjugais, sofrendo por antecipação o peso do compromisso e a possível exigência de sacrifício pelo outro, e também o abandono que pode derivar da fraqueza do outro.

A intimidade sexual faz de um homem e de uma mulher uma só carne, e, não importa qual seja a intenção do casal no ato, e seu comportamento antes ou depois, é assim que a alma sente a união que se deu. No entanto, esta experiência, de intimidade inigualável, torna-se cada vez mais banalizada e estimulada a adolescentes e jovens imaturos, que não estão aptos a responderem à intensidade existencial, vinculativa e unitiva de tal experiência, e com isso fragmentam-se e ferem seus corações, consciências e almas, e os dos outros. Sentem-se vazios e usados, o corpo foi dado, a alma foi dada, sem que nenhuma pessoa tenha sido doada, ou, por outro lado, acolhida. Todo o senso de preservação de si e de sua intimidade está sendo retirado das novas gerações, que cada vez mais violam a sua própria dignidade, de bom grado, ao dar acesso ao seu corpo – através de imagens e experiências – a desconhecidos ou recém-conhecidos que queiram usá-lo, consumi-lo. E isso, hoje, começa a ser visto como um valor. É, pelo contrário, a disposição emocional para a doação de si e o acolhimento do outro, que passa a ser vista com desconfiança. Pensa-se haver algo de errado com a pessoa que, após haver transado, deseja logo se aproximar e se envolver emocionalmente.

Pobre humanidade, pensando que, com esse comportamento, está libertando a sua sexualidade – dos supostos imperativos (‘burgueses, patriarcais’) do amor romântico e do compromisso, que os revolucionários associam à propriedade privada, sendo os seus ideais ‘nada é de ninguém’, ‘ninguém é de ninguém’ – quando, na realidade, assim fazendo, agrava mais e mais a histórica repressão da sexualidade natural do ser humano, que, quando saudável, é sempre integrada com a totalidade do ser, sendo a força que move a totalidade do ser a ser-para um outro, a doar-se como pessoa inteira, para uma outra pessoa inteira, que se doará também e será acolhida, preenchendo assim a vida humana de sentido, densidade e consolidação.

Nos próximos artigos, veremos como Nosso Senhor Jesus Cristo, em Si mesmo, revelou-nos o Caminho que devemos buscar e viver, na terra, para superarmos o reino da morte e do pecado, recuperarmos a vida eterna, e a vocação original de nossas almas e corpos, que se realizam no dom de si. Cristo nos ensina a devolver aos nossos corpos e à nossa sexualidade o seu devido valor, e faz-nos saber, novamente, que não se pode doar o que não se possui.

São João Paulo II, rogai por nós.’


Fonte :