domingo, 31 de julho de 2016

Polônia, a viagem mais difícil de Francisco

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Nações como a Polônia opõem à

*Artigo de Alberto Melloni, 
historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia 
e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha.


‘Francisco começou a viagem mais difícil do seu pontificado. A que leva ele e milhões de jovens reunidos em torno do coração doente da Europa doente. Na pasta, o papa carregou os discursos que estamos ouvindo, o breviário, o rosário; e também a memória do abbé Hamel, o padre que se tornou mártir em um gesto nada cego, pesando por mentes muitos refinadas que encontraram em uma pequena paróquia da Normandia o antípoda da grande festa de Cracóvia : mentes às quais podem ser dadas duas respostas : ou aquela que diz ‘the show must go on’, ou aquela que faz os milhões de jovens se ajoelharem em um gesto de adoração do mistério do Cordeiro.

Francisco chega em um país que modifica as suas prioridades de viagem. Ele também, assim como seus antecessores, fez da peregrinação um púlpito (e não só por causa da esperadíssima ‘avião-encíclica’, que também ontem ele concedeu).

No mundo, ele preferiu países esquecidos pelas superpotências (e, nos Estados Unidos, ele, que, como se sabe, ‘não se mete’ na política, atacou Trump em nome dos direitos dos migrantes, jogando na primeira mão o seu curinga na corrida à Casa Branca).

Na Europa, com exceção da visita ao Parlamento, ele tocou os lugares da dor dos refugiados. Em Lampedusa, Tirana, Saraievo, Lesbos, ele repetiu aos cristãos que, se a Igreja não ouvir a voz do Cristo no pobre, corre o risco de se tornar uma medíocre agência de boas obras às expensas do Estado. E lembrou ao mundo que poder viver em alegre paz a um passo da tragédia da guerra é uma ilusão.

A viagem à Polônia é difícil porque essas mensagens do papa são ou inadmissíveis ou indesejáveis nesta parte do continente, onde antieuropeísmo e xenofobia escrevem a agenda política e religiosa. As nações como a Polônia, que estão pagando a última parcela da mentira do socialismo real, opõem à ‘Europa dos direitos e das liberdades’, das quais Bergoglio fala, uma Europa dos muros e das rejeições; sentem falta de identidades étnico-religiosas, com o resultado de fazer crescer forças ora populistas, ora neonazistas, sempre sectárias, muitas vezes antissemitas; que, como também já acontece na Itália, limpam o campo das grandes coalizões e ridicularizam a esquerda que se despedaça cada vez mais.

Esse coração doente da Europa espera ser curado : não por um homem santo ou pela experiência de massa, mas por um ‘exorcismo consolador’ que liberte a Igreja e a Europa do demônio que lhe faz ver os refugiados que fogem da guerra, e não a guerra, como um problema; que lhe impede de lutar contra a guerra como inimigo com a mesma dureza com que o terrorismo islamista ataca a paz e a socialidade simples da paz (uma danceteria, uma missa, um restaurante, um check-in, um metrô).

De fato, é evidente que hoje existe um Islã endemoninhado. Mas o cristianismo não é imune a nada. Auschwitz está aí para lembrar o silêncio dos homens com o seu silêncio ensurdecedor. Rumores de guerra ucranianas e cemitérios de guerra chechenos e balcânicos estão perto no tempo e no espaço para lembrar que esta não é uma guerra religiosa, somente até alguém não entre em guerra em nome da religião.

O mundo está em guerra porque perdeu a paz’, disse o papa nessa quarta-feira : para lembrar a todos que os refugiados não são um ‘brinquedo’ seu, mas o resultado de uma catástrofe política na qual todos deram o pior : a superficialidade europeia, a volubilidade estadunidense, as extemporaneidades russas, o cinismo árabe, a ambiguidade wahhabita.

O pior também foi dado por um catolicismo fraco no plano intelectual e espiritual, satisfeito com conservadorismos de antiquário e com conformismos ideológicos de direita.

Adenauer, De Gasperi e Schuman, falando em alemão e pensando em católico, lançaram as bases de uma Europa que viveu em paz e democracia : se seu fruto foi a cultura do projeto, da providência ou da serendipidade, isso não muda. Para que essa Europa ainda possa desfrutar a democracia e a paz, enquanto vive em uma situação econômica, cultural, demográfica devastadora, é preciso que ela aprenda a derrubar os muros do medo.

Não só a Europa que ele visita nestes dias, mas toda a Europa ampla, que vai e Moscou a Casablanca e de Jerusalém a Edimburgo, deve esperar que, na mala para esta viagem difícil, o papa tenha colocado também as trombetas de Jericó.’


Fonte :
* Artigo na íntegra

sábado, 30 de julho de 2016

'Onde está Deus?'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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‘O Papa disse na Polónia que a resposta à pergunta ‘Onde está Deus?’ diante do sofrimento da humanidade se encontra precisamente naqueles que sofrem.

Há perguntas para as quais não existem respostas humanas. Podemos apenas olhar para Jesus, e pergunta-lhe a Ele. E a sua resposta é esta : ‘Deus está neles’, Jesus está neles, sofre neles, profundamente identificado com cada um’, sublinhou, durante a celebração da Via-Sacra que reuniu os participantes da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), no Parque de Blonia, espaço verde da cidade de Cracóvia.

Perante dezenas de milhares de jovens dos cinco continentes, Francisco apresentou questões que muitos se colocam diante do mal e das tragédias.

Onde está Deus, se no mundo existe o mal, se há pessoas famintas, sedentas, sem abrigo, deslocadas, refugiadas? Onde está Deus, quando morrem pessoas inocentes por causa da violência, do terrorismo, das guerras?’, questionou.

Onde está Deus, quando doenças cruéis rompem laços de vida e de afeto? Ou quando as crianças são exploradas, humilhadas, e sofrem – elas também – por causa de graves patologias?’, acrescentou.

O Papa sustentou que a resposta a estas questões, na fé católica, é dada por Jesus Cristo, que ao morrer na cruz ‘abraça a nudez e a fome, a sede e a solidão, a dor e a morte dos homens e mulheres de todos os tempos’.

Francisco saudou depois, em particular, os peregrinos sírios, ‘que fugiram da guerra’.

A Via-Sacra, que apresenta em 14 estações os momentos do julgamento e execução de Jesus Cristo, teve meditações dedicadas às 14 Obras de Misericórdia que a Igreja Católica propõe aos seus fiéis.

Ao longo da cerimónia foram projetados pequenos filmes sobre instituições de solidariedade católicos de Cracóvia; uma cruz foi transportada por jovens pertencentes a associações de diversos países.

O Papa quis elencar todas as obras de misericórdia, a começar pelas sete corporais : dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, visitar os enfermos; visitar os presos; enterrar os mortos.

Somos chamados a servir Jesus crucificado em cada pessoa marginalizada, a tocar a sua carne bendita em quem é excluído, tem fome, tem sede, está nu, preso, doente, desempregado, é perseguido, refugiado, migrante’, explicou.

Francisco recordou depois as obras de misericórdia espirituais : dar bons conselhos, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, suportar com paciência as fraquezas do nosso próximo, rezar a Deus por vivos e defuntos.

A nossa credibilidade de cristãos é posta em jogo na acolhida da pessoa marginalizada, que está ferida no corpo, e no acolhimento do pecador, que está ferido na alma’, precisou.

O pontífice argentino convidou os jovens católicos a ser ‘protagonistas no serviço’ ao serviço de quem mais precisa, para transformar uma sociedade ‘por vezes dividida, injusta e corrupta’.

Após a Via-Sacra, Francisco regressa à sede da Arquidiocese de Cracóvia, onde está alojado durante a sua visita de cinco dias à Polónia, até domingo.

O Papa voltou à janela do prédio, como fez nas últimas duas noites, para saudar a multidão, que desta feita terá um lugar especial para doentes, sem-abrigo e pessoas com deficiência.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


quarta-feira, 27 de julho de 2016

A fé nos que têm pés de barro

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


*Artigo de Felipe Magalhães Francisco,
Mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações,
da Arquidiocese de Belo Horizonte.


‘A idolatria é um assunto muito delicado. Católicos são considerados idólatras pelos evangélicos, por causa das imagens de santos e santas e da devoção à Nossa Senhora. Os católicos, prontamente, teologizam, mesmo que com argumentação frágil, não serem idólatras. A grande percepção que falta para os fiéis dos dois lados, no entanto, é a presença da idolatria nas duas tradições religiosas.

Certamente, a doutrina católica cuida, com diligência, para que a teologia subjacente às devoções não ultrapasse o limiar do específico da fé cristã. Esse cuidado, contudo, não significa que, nas práticas religiosas, tanto dos clérigos quanto dos leigos e leigas, não haja sinais idolátricos. Por muito tempo, o catecismo católico difundiu uma imagem de Deus distante, controlador, que conquistava respeito a partir do medo. Nossa Senhora e os santos e santas ocuparam o lugar afetivo da fé, nos fiéis. A linha da afetividade, bem sabemos, é muito tênue.

Igualmente, nos meios evangélicos, tem crescido uma religiosidade de cunho mais personalista. As fachadas dos templos sustentam banners e placas com grandes imagens de seus líderes. Fiéis se alvoroçam para adquirir toalhas com o suor sagrado de seu líder religioso, capaz de inúmeros e estupendos milagres. A força de uma ação sagrada está não na fé, que move montanhas, mas nas mãos e vozes dos pastores e pastoras, bispos e bispas e, até mesmo, de apóstolos.

Entre os jovens católicos, cresce uma religiosidade de cunho visual, na qual a adoração ao Santíssimo Sacramento, legitimamente aceita pela Tradição, ganha ares idolátricos, quando não há verdadeira compreensão do que significa a presença real de Jesus na eucaristia. Também entre os adultos tal tipo de religiosidade idolátrica ganha expressão. O culto eucarístico fora da missa não tem mais seu caráter comunitário e espiritual : mas é ocasião de psicologismos e surtos psicossomáticos religiosos.

O que significa, então, idolatria, já que mesmo as religiosidades legitimamente aceitas pela Tradição, podem se tornar idolátricas? Idolátrica é a situação na qual aquilo que é relativo, torna-se absolutizado. Para a fé judaico-cristã isso significa : todas as coisas são relativas, isto é, estão em relação à alguma outra coisa; só Deus é absoluto. O absoluto é aquilo que, para existir, não depende da existência de nada mais. ‘Eu sou aquele que sou’ (Ex 3,14).

Um exemplo a respeito da eucaristia. Jesus se deu no pão e no vinho, sob os quais deu graça, para que seus discípulos e discípulas fizessem parte de sua vida. Isso significa que Jesus nos deu a si mesmo na eucaristia para que comamos e bebamos de seu corpo e sangue eucaristizados. É próprio da eucaristia a manducação e a finalidade disso é que tenhamos parte em Jesus, para que o Espírito nos configure sempre à sua vida. O culto eucarístico fora da missa, popularmente conhecido como adoração ao Santíssimo Sacramento, precisa se inserir nessa dinâmica : levar-nos à participação na eucaristia, a fim de que estreitemos nossos laços com aquele que se dá para nosso alimento. Fora disso, torne-se religiosidade com fim em si mesma, ou seja, idolatria. Aproximarmo-nos do Corpo e Sangue do Senhor precisa, necessariamente, desdobrar-se em consequências éticas, caso contrário, a eucaristia serve apenas para nossa própria condenação, como afirma Paulo (cf. 1Cor 11,29).

A mesma teo-lógica pode ser aplicada às outras questões relacionadas às nossas religiosidades. Se nossas práticas religiosas têm fim em si mesmas, tornando-se absolutas, são idolátricas. Isso significa que cultuamos um deus criado à nossa própria imagem e não o Deus de Jesus. Esse Deus, plenamente revelado a nós pelo rosto de Jesus, é absoluto. E o que caracteriza esse ser absoluto é o amor : a relação plenamente realizada entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, desde toda a eternidade, basta para que esse Deus uno e trino exista. Nós, criaturas, somos realização de um amor que é sempre desdobrar-se de excesso amoroso desse Deus. É nele que somos chamados a depositar nossa confiança. Tudo o mais são absolutização de coisas, situações e pessoas relativas, dependentes de relação para subsistirem : todos têm pés de barro.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


segunda-feira, 25 de julho de 2016

Religião e violência : a face terrível da fé

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Mesmo que o específico do cristianismo seja o amor, ele ainda transparece seu rosto da violência.

*Artigo de Felipe Magalhães Francisco,
Mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações,
da Arquidiocese de Belo Horizonte.


Como tudo o que é edificado na história, as religiões podem se desvirtuar.


Religare. O princípio de toda religião é reestabelecer a relação entre os seres humanos e seu/s deus/s. Reestabelecer porque todo ser humano carrega, em si, a abertura radical ao outro. Esse outro tanto como a um igual a si, mesmo na diferença, e a deus. A religião é, então, a institucionalização da mediação entre o ser humano e deus. Ela faz a mediação entre o que é profano e o que é sagrado, tendo em vistas que essas são duas realidades heterogêneas, ainda que nada impeça que, em meio ao profano, haja irrupções do sagrado.

Como tudo o que é edificado na história, as religiões podem se desvirtuar. A respeito disso, propomos o artigo Violência em nome de Deus : a negação da negação, do padre Rodrigo Ferreira da Costa, Sacramentino de Nossa Senhora, que nos ajuda a refletir sobre a realidade da violência religiosa, oferecendo-nos uma verdadeira genealogia dessa violência, bem como a importância do resgate da cultura da paz, que tem em Jesus uma figura importante.

Partindo da abertura radical à transcendência de todo ser humano, o artigo Guarda tua espada na bainha, da mestra em teologia Tânia da Silva Mayer, aponta para o específico da religião cristã, que tem por novidade a ideia de um Deus que se revela. Em Jesus, essa revelação ganha sua máxima expressão e é condição de possibilidade de nossa relação com o Deus revelado, de modo pleno. Da vida mesma de Jesus, o pleno revelador de Deus, vem-nos o imperativo do amor, que se desdobra na justiça e na paz do Reino.

Mesmo que o específico do cristianismo seja o amor a todos quantos estão no mundo, como verdadeira prática oriunda da assimilação profunda da mensagem de Jesus, a religião cristã ainda dá sinais de ambiguidade, e transparece seu rosto terrível, o da violência. Uma das formas de violência, que tem ganhado cada vez mais expressão em nossa sociedade, é a da intolerância. Refletindo nesse trágico horizonte, propomos o artigo A intolerância como violência, no qual relacionamos o crescimento do conservadorismo com a ampla manifestação da intolerância, tão própria de nosso tempo.

Este é apenas o começo da conversa. Há muito o que se dizer a respeito dessa face terrível das religiões, para que, refletindo e tomando consciência, rompamos com essa ambiguidade que mata, que tira do outro a dignidade e a liberdade, e que desvirtua o específico das religiões. Que nossa conversa prossiga!’


Fonte :
* Artigo na íntegra


sexta-feira, 22 de julho de 2016

A hora do Ângelus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


*Artigo de José Batista Libânio (1932 - 2014),
padre jesuíta, escritor e teólogo brasileiro.


Paulo VI, numa encíclica mariana, incentiva a que se conserve o piedoso exercício do ângelus. O caráter simples, bíblico e de longa tradição histórica reforçam o valor dessa oração.


‘A piedade católica tradicional acostumou-se à hora do ângelus. Essa devoção qe lança raízes na Idade Média e tem origem na tradição franciscana. Ao toque do sino, quando do romper da manhã, os cristãos veneravam a Virgem Maria, recitando três ave-marias, intercaladas por três versículos bíblicos. O primeiro reza : O Anjo do Senhor anunciou a Maria e ela concebeu do Espírito Santo. Em seguida, se diz : Eis aqui a serva do Senhor, faça em mim segundo a tua Palavra. E termina com um último versículo : E o Verbo de Deus se fez carne, e habitou entre nós.

Recitam-se os versículos bíblicos, comumente, em forma dialogal. A primeira metade reza quem dirige a oração e a comunidade responde a outra metade. Após cada versículo, diz-se uma ave-maria. Durante a Páscoa, modificam-se os versículos e omitem-se as ave-marias.

Mais tarde, começou-se a rezá-lo mais uma vez, ao meio-dia. E mais tarde ainda, pelo século XIV, recitava-se o ângelus também ao entardecer. Daí em diante ficaram consagrados os três momentos : às 6 horas da manhã e da tarde, e às 12 horas. No século XV, percebeu o Papa Calisto III a semelhança da maneira de chamar à oração do ângelus pelo toque do sino com o costume dos muçulmanos que ouvem idêntico chamado à oração desde o alto dos minaretes. E então, em tempos de guerra com os turcos, ele relacionou as duas orações – cristã e islâmica - e prescreveu o ângelus em Roma a fim de obter a proteção da Virgem no combate contra esses inimigos da fé católica.

S. Pedro Canísio, com seu manual dos católicos, universalizou tal prática na cristandade. Os últimos papas, sobretudo a partir de Pio XII, têm valorizado muito essa oração de tal modo que à hora do ângelus, especialmente ao meio-dia, há sempre multidões na praça de São Pedro. E quando o papa está em Roma, aparece na janela de seu aposento de trabalho para recitar o ângelus com o povo, dirigindo-lhe algumas palavras e concluindo com a bênção.

Paulo VI, numa encíclica mariana, incentiva a que se conserve o piedoso exercício do ângelus. O caráter simples, bíblico e de longa tradição histórica reforçam o valor dessa oração.

A iconografia sagrada conhece famoso quadro em que camponeses piedosos descobrem a cabeça, inclinam-na para rezar, no fim do dia de trabalho, o ângelus.

A. Manzoni, famoso escritor italiano, descreve com tons tocantes esse momento da devoção popular.

Quando surge e quando cai o dia
E o quando o sol a meio caminho o parte
Saúda-te o bronze, que as turbas piedosas
Convida a louvar-te

As cidades modernas dificultam o tocar dos sinos para não interferir numa vida social, hoje regida por outros critérios. Mas ainda várias rádios tocam às 6 horas da tarde alguma das famosas melodias da Ave-maria para que o fiel reze o ângelus. Um toque religioso no final do dia serve de repouso para o corpo e para o espírito no meio ao torvelinho da agitação urbana.

Enquanto a sociedade secular oferece técnicas de relaxamento, a piedade popular criou momentos de silêncio e contemplação. O espírito descola-se do peso do trabalho e da faina diária para perder-se durante um momento no mistério. Este visibiliza-se na reza do ângelus sob diversos aspectos. O conteúdo da oração é o mistério da Encarnação. Recorda-se, repetindo os versículos da Escritura, a visita do anjo São Gabriel que anuncia o plano da Encarnação e sua aceitação por parte de Maria. No centro está a pessoa do Verbo feito carne, mas a atenção volta-se também para a Virgem Maria que se transformou na figura feminina, símbolo da piedade e da beleza religiosa. E finalmente as ave-marias cantadas ou orquestradas são de compositores famosos, cuja melodia nos enleva. Todo esse conjunto de fatores transforma tal momento em experiência de paz e de religiosidade.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


terça-feira, 19 de julho de 2016

Participar do sofrimento de Deus no mundo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Deus respeita a liberdade de cada ser humano.
 Deus respeita a liberdade de cada ser humano


*Artigo de Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor em Teologia Sistemática
pela Pontificia Università Antonianum, Roma.


Deus e ser humano se encontrem em uma situação de contínua competição.


‘As várias vertentes do ateísmo dos séculos XIX e XX, na sua quase totalidade, comungam de um mesmo pressuposto : condição imprescindível para a afirmação do humano é a expulsão de Deus da própria vida. Pois, na verdade, o Deus dos catecismos e das igrejas o oprime tanto a ponto de ele se sentir sufocado e sem espaço. Convém, pois, que o ser humano se liberte dessa situação em vistas da realização de sua própria identidade. Acredita-se que Deus e ser humano se encontrem em uma situação de contínua competição. Para que um se afirme, é necessário que o outro se anule. Deste modo, o ser humano adulto e emancipado, consciente de si e das suas ilimitadas possibilidades, emerge cada vez mais no cenário da cultura e da história fazendo de tudo para anular a presença incômoda de Deus. Por esta razão, em tal contexto, ser humanista implicava quase sempre em ser ateu ou, ao menos, anti-religioso.

A grande conquista do ser humano moderno talvez tenha sido aquela de organizar a própria vida e o próprio destino sem ter que contar com a ajuda de Deus. O ser humano descobriu-se como sujeito autônomo, alimentando, assim, a ilusão da própria onipotência. Julga-se, enfim, autônomo e finalmente liberto de toda sorte de elo que o mantinha antes preso a uma pesada corrente. A religião passa a ser vista como uma grande corrente que o mantém enredado nas suas muitas malhas doutrinais, rituais e míticas.

Não se pode ignorar que muitos de nós vivemos, na prática, como se Deus não existisse. Isto significa, em outras palavras, que Deus não participa mais de nossos projetos pessoais e sociais. Tudo parece girar, agora, em torno de nós próprios. Tudo parede depender ora de nossas possibilidades ora de nossos limites. Sentimo-nos cada vez mais postos ao centro da vida e do mundo. Projetamos e construímos, fazemos planos e os realizamos segundo nossos próprios critérios e parâmetros sem a necessidade de recorrer a Deus.

Depois de ter tomado consciência das potencialidades mais recônditas da própria razão, o ser humano é capaz de solucionar os problemas mais diversos e de encontrar respostas para as questões mais difíceis. Deus tornou-se, de fato, dispensável e até supérfluo. Não se necessita mais da sua constante presença experimentada como graça nem da sua generosa e gratuita providência. A providência divina tornou-se desnecessária, uma vez que tudo, praticamente, pode ser previsto e planejado pelo ser humano mediante cálculos cada vez mais precisos.

Quais seriam os efeitos positivos de uma mentalidade secular que parece propor uma vida sem a necessidade de Deus? A dificuldade maior, em tal caso, talvez resida na pergunta pelas eventuais interpelações do Deus cristão precisamente numa situação de aparente ausência sua. Como, em outras palavras, indagar acerca da presença e interpelação do Deus de Jesus Cristo numa situação cultural e social que nega formalmente a sua existência? Ou, dito em outros termos, como perceber Deus presente numa sociedade que, na prática, vive como se Ele não existisse?

A estas fundamentais indagações seguem outras não menos desafiadoras : Como é possível que, na sua onipotência, Deus se deixe expulsar do mundo? Se, desde os tempos mais remotos, Ele foi invocado como o todo-poderoso, como pode agora se revelar como um Deus desconcertantemente fraco, que se deixa vencer pela força do ser humano? Outros ainda se perguntam : se Deus é tão misericordioso, por que é que Ele se retira do mundo para deixar o ser humano entregue às suas próprias forças e ao seu inelutável destino? Por que Deus não intervém para pôr um fim a esta situação de injustiça criada pelo ser humano na sua autonomia e impostura? Poderíamos continuar indefinidamente com estas perguntas.

Talvez quem mais tenha levado a sério estas questões e as tenha explicitado com invejável lucidez seja o mártir do nazismo, o teólogo D. Bonhöffer. A este propósito, ele assim se exprime em uma de suas cartas escritas na prisão : ‘E não podemos ser honestos sem reconhecer que temos de viver no mundo – etsi deus non daretur. E reconhecemos justamente isso – perante Deus! Deus mesmo nos obriga a esse reconhecimento. Assim, nossa maioridade nos leva a um reconhecimento mais veraz de nossa situação perante Deus. Deus nos faz saber que temos de viver como pessoas que dão conta da vida sem Deus. O Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Mc 15,34)! O Deus que faz com que vivamos no mundo sem a hipótese de trabalho Deus é o Deus perante o qual nos encontramos continuamente. Perante e com Deus vivemos sem Deus. Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz, Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele está conosco e nos ajuda. Em Mt 8,17 está muito claro que Cristo não ajuda em virtude da sua onipotência, mas da sua fraqueza, do seu sofrimento! Neste ponto reside a diferença decisiva em relação a todas as religiões. A religiosidade do ser humano o remete, na sua necessidade ou aflição, ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus ex machina. A Bíblia remete o ser humano à impotência e ao sofrimento de Deus; somente o Deus sofredor pode ajudar. Neste sentido, pode-se dizer que o desenvolvimento, acima descrito, que levou à maioridade do mundo, através do qual se acaba com uma concepção errônea de Deus, liberta o olhar para o Deus da Bíblia, que obtém poder e espaço no mundo por meio de sua impotência. Este decerto será o ponto de partida da ‘interpretação mundana’’.

Em que consiste propriamente esta ‘interpretação mundana’ ou, dito de outra forma, esta ‘interpretação não-religiosa dos conceitos teológicos e bíblicos’? Bonhöffer a concebe como um processo de purificação das categorias religiosas, incompreensíveis ao ser humano adulto, emancipado e a-religioso, interlocutor privilegiado da reflexão teológica moderna. Ele quer, para todos os efeitos, aprofundar teologicamente o sentido escondido por detrás da expressão etsi deus non daretur (ainda que deus não existisse). A dificuldade maior desta empresa reside precisamente no fato que tal locução não constitui, na verdade, um novo pressuposto, mas designa, ao contrário, a eliminação de um pressuposto considerado enfim superado : a afirmação da necessidade de Deus para o mundo. Bonhöffer insiste em interpretar em sentido positivo esta expressão, afirmando que Deus quer ser conhecido e encontrado não somente nas experiências-limite e na fronteira da realidade mas sim no centro da nossa vida e da nossa história.

Bonhöffer vê a morte de Jesus na cruz como a confirmação da necessidade de viver no mundo etsi deus non daretur. De fato, na cruz Deus se deixa expulsar do mundo revelando assim toda a sua impotência e debilidade. Viver no mundo sem Deus torna-se, portanto, exigência direta da atitude humana de honestidade não só para com o mundo, mas também para com Deus. Assim, procurando refletir seriamente sobre o ser mesmo de Deus, Bonhöffer não pretende ‘pensar Deus sem o mundo’ apesar de defender a necessidade de se ‘pensar o mundo sem Deus’. Ele sublinha que apesar de ter se deixado expulsar do mundo pelo ser humano, Deus mantém uma profunda e estreita relação para com o mundo. Deste modo, o Deus de Jesus Cristo revela-se como Deus suportando na cruz o mundo que não o suporta a ponto de expulsá-lo.

Esta ‘interpretação não-religiosa dos conceitos bíblicos’ permite a Bonhöffer recuperar a singularidade ontológica do Deus de Jesus Cristo. Segundo tal perspectiva, Ele aparece como aquele que coloca em crise a clássica alternativa entre presença e ausência. Deixando-se expulsar do mundo e permitindo que o ser humano seja autônomo e, portanto, adulto, Deus faz-se radicalmente presente. Tal afirmação contrasta nitidamente com a típica atitude religiosa de fixar um lugar ‘fora do mundo’ e ‘acima do ser humano’ para Deus. Esta concepção produziu a teoria metafísica da onipotência divina, de um Deus presente em toda parte e, a rigor, em nenhuma parte.

Participar do sofrimento de Deus no mundo implica em associar-se à experiência de Jesus que morre abandonado pelo Pai sobre o lenho da cruz. Contemplar a presença/ausência de Deus procurando, sobretudo, deslindar os traços inusitados do Seu rosto presentes de modo singular no rosto desfigurado do Crucificado constitui a atitude por excelência da participação do sofrimento de Deus no mundo. Na pessoa do Crucificado, Deus se revela em sua fraqueza e sofrimento radicais, interpelando-nos a nos fazermos solidários com Ele no mundo, a participar da sua impotência no mundo. Tal exigência implica em uma sincera atitude de conversão concebida como uma autêntica renúncia aos próprios problemas, tribulações, angústias e mesmo à própria condição de pecador para deixar-se guiar única e exclusivamente por Jesus Cristo.

Profundamente convencido de que o Pai de Jesus Cristo não abandona jamais seus filhos, o cristão desentranha sua singular presença para além desta sua aparente ausência. Isto significa que a tão propalada ausência de Deus deve ser interpretada mediante outros critérios que não aqueles geralmente utilizados. Na verdade, é Deus quem se deixa expulsar do mundo para que o ser humano se torne adulto e emancipado. É Ele que, de fato, se revela na sua desconcertante fraqueza para que o ser humano se descubra forte. É Deus quem se retira do cenário do mundo e da história para que o ser humano se torne sujeito. É Ele, enfim, quem se deixa vencer para que o ser humano realize todas as suas virtuais possibilidades. Por mais escandaloso que tudo isso possa parecer, encontramo-nos frente à inusitada, porém livre, decisão paterna e amorosa de Deus.

Deste modo, Deus se revela não como um competidor, nem como alguém que está aí para tolher ao ser humano a liberdade. Pelo contrário, Ele é o primeiro a se interessar pelas criaturas humanas e, para tanto, engaja-se pessoalmente a favor do bem delas. No entanto, ao invés de interferir de maneira brusca e repentina, violentando desta forma a liberdade humana, Deus prefere apelar sutilmente para sua consciência. Neste sentido, Ele não perde uma oportunidade sequer para convencer o ser humano daqueles valores que julga serem importantes. E isto se chama respeito pela liberdade do outro. E o que é mais importante : Deus respeita a liberdade de cada ser humano sem, contudo, mostrar-se indiferente ou insensível. Deus continua presente, mas sua presença é particularmente respeitosa. Aguarda o momento justo para interpelá-lo. Não força, nem desrespeita o ritmo de cada um. Está ali à espreita, aguardando a ocasião mais propícia para oferecer sua proposta de diálogo e para dirigir-lhe sua interpelação. E o faz de maneira tal a não lesar a inviolável liberdade humana. Só um Deus concebido como autêntico Pai assume esta atitude de respeito e de cuidado para com seus próprios filhos e filhas.’


Fonte :
* Artigo na íntegra

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Mística e espiritualidade: o humano diante de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Percebemos que o ser humano, filho do tempo pós-moderno, está em busca de viver mais inteiro.
Percebemos que o ser humano, filho do tempo pós-moderno, 
está em busca de viver mais inteiro.


*Artigo de Felipe Magalhães Francisco,
Mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações,
da Arquidiocese de Belo Horizonte.


A mística lança-nos diante da experiência profunda do amor, que dá sentido e que plenifica.


‘Um dos maiores teólogos católicos do séc. XX, o alemão Karl Rahner, escreveu que os cristãos do futuro ou seriam místicos ou não seriam cristãos. Esse futuro já se fez presente. Essa leitura crítica da realidade, feita por Rahner, ainda é difícil de ser percebida em nosso país, quando está em ascensão, cada vez mais, um tipo de religiosidade espiritualista, de cunho neopentecostal. Nos países secularizados, no entanto, observa-se crescer as tendências místicas no cristianismo. É uma questão de tempo até que chegue até nós, pois a efervescência neopentecostal passará por um arrefecimento natural.

O crescimento de uma religiosidade espiritualista, no Brasil, demonstra que, por muito tempo, vivemos uma religiosidade marcadamente cristocêntrica, na qual a figura do Espírito Santo não era abordada. Hoje, percebe-se que o acento cristológico dessa religiosidade vigente aborda uma imagem de Cristo vitorioso, todo poderoso. Ao mesmo tempo, vive-se como num tempo novo, inaugurado pelo Espírito Santo : fala-se, muito, em batismo no Espírito Santo e em novo pentecostes.

Possíveis – e devidas – críticas à parte, observamos que a atual insistência na Pessoa do Espírito Santo revela que, de fato, é preciso que pensemos uma espiritualidade trinitária. Caso queiramos que as práticas religiosas alcancem a profundidade de uma autêntica espiritualidade, precisamos resgatar o papel do Espírito Santo em nossas tradições cristãs. Dessa maneira, viveremos uma verdadeira espiritualidade, sem lugar para espiritualismos. Esse é o lugar da mística, da qual nos fala Rahner, como característica de todo cristão e cristã de nossos tempos.

Se, nas tradições religiosas cristãs, ainda não percebemos com tal clareza a dimensão mística, por causa dessa religiosidade espiritualista, neopentecostal, secularmente podemos perceber que o ser humano, filho deste tempo pós-moderno, está em busca de viver mais inteiro, na completeza. Cresce o interesse pela leitura dos místicos; as espiritualidades orientais começam a ganhar, cada vez mais, expressão. Tudo isso revela que é preciso algo a mais, para que nos realizemos como pessoa. Esse é o papel da mística e do exercício da espiritualidade que, para a tradição cristã, encontra seu porto em Deus.

O que significa, então, mística nesses nossos tempos? O artigo A mística na encruzilhada da pós-modernidade, do Padre Paulo Sérgio Carrara, CSSR, doutor em Teologia, ajuda-nos a compreender a mística como experiência de revelação, pela qual podemos mergulhar em Deus, saboreando-o. Hodiernamente, a mística é uma real possibilidade de encontro e experiência com Deus que, revelando-se em Jesus, abre-nos a possibilidade para que conheçamos a nós mesmos. Para além das conceituações dogmáticas, a mística, aproximando-nos da experiência dos poetas, lança-nos diante da experiência profunda do amor, que dá sentido e que plenifica.

A mística e a espiritualidade são caminhos de integração. Já não basta que nos compreendamos seres racionais, sem mais. É preciso que busquemos nos compreender na complexidade do que somos, para que à nossa vida seja dado o sentido que tanto almejamos. Nesse horizonte, é preciso ultrapassar o bipartidarismo do corpo-alma, tão próprio de nossa cultura ocidental. Somos, também, seres abertos à Transcendência e a busca do ser humano pós-moderno, em grande medida, revela isso. Tudo isso demanda um conhecimento de nós mesmos. A mística e a espiritualidade, além de nos colocar diante de Deus, colocam-nos dentro de nós mesmos. Aprofundando essa reflexão, o artigo Psicologia e Espiritualidade : ‘irmãs’ que precisam caminhar unidas, do Padre Marcos Uchôa, mestre em Teologia pela FAJE, ajuda-nos a pensar sobre a importância da busca de nossa integração, como verdadeiro caminho espiritual.

Para o cristianismo, é o Espírito Santo o responsável por nos colocar na dinâmica da configuração de nossa vida à vida de Jesus. É o Espírito quem mantém viva, em nós, a memória do Ressuscitado, este que nos integra na vida do Pai. Dessa maneira, observa-se que é próprio da espiritualidade – o mover do Espírito, de Deus e também do nosso – colocar-nos diante do sentido que, para o cristianismo, é Deus. Essa espiritualidade precisa tocar o cotidiano da vida, pois ele é o lugar no qual acontece a irrupção de Deus que vem ao nosso encontro. Para nos ajudar a compreender melhor a importância da espiritualidade no cotidiano, como possibilidade de nossa integração pessoal, o Padre Marcelo Silva, mestre em Psicologia, pela PUC-Minas, propõe-nos o artigo Espiritualidade das pequenas coisas : um modo de viver a fé no cotidiano.

Com o desejo de uma vida cada vez mais espiritual e mística, boa leitura!’


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* Artigo na íntegra