*Artigo
de Felipe Magalhães Francisco,
Mestre em Teologia, pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
Coordena a Comissão
Arquidiocesana de Publicações,
da Arquidiocese de Belo
Horizonte.
As Sagradas Escrituras já não são
vistas como fonte, mas como reservatório.
‘Sim, a Bíblia
diz, exatamente, isto : ‘Deus não existe!’.
Está no versículo primeiro do Salmo 14 (13). Podem conferir. Há a possibilidade
de se sustentar tudo e qualquer ideia a partir da Bíblia. Lembrem-se os
leitores e leitoras, que a palavra Bíblia significa biblioteca. Os que pausaram
a leitura para conferir o citado Salmo já descobriram que a fala ‘Deus não existe!’ é atribuída aos
insensatos – os que não se deram ao trabalho de procurar, agora já sabem!
O título desse
artigo demonstra uma técnica, infelizmente, muito comum nos meios religiosos
fundamentalistas. Quando o assunto é Bíblia, importa dizer, todos corremos o
risco de nos tornarmos fundamentalistas. Isso porque a Bíblia é compreendida
como um livro sagrado e, geralmente, nosso envolvimento com ela é no nível da
fé. O conflito é : como colocar em dúvida o que o texto diz, se ele é digno de
fé? É nesse contexto em que todos estamos incluídos, quando digo da
possibilidade de todos nos comportarmos como fundamentalistas, ao lermos as
Sagradas Escrituras. Para minar essa possibilidade, apenas uma autêntica
formação bíblica. Ao fim, perceberemos que não se trata de colocar em dúvida o
que a Bíblia diz, mas de compreendê-la em seu contexto, bem como compreender os
desdobramentos do que ela diz, em nossos dias.
Uma das características do fundamentalismo é o que chamaremos, aqui,
de teologia da pinça. Trata-se,
justamente, do que fizemos ao escolher um versículo solto da Bíblia,
excluindo-o de seu contexto. É possível, sim, fazer uma pregação e, até mesmo,
um longo retiro espiritual tendo como apoio apenas um versículo bíblico.
Entretanto, isso seria possível, de forma honesta para com o texto, desde que
não o tiremos de seu contexto. Já nos diz o velho e acertado ditado: o texto,
fora do contexto, é motivo para pretexto.
No exercício
religioso de muitos líderes, essa teologia da pinça é muito usual. Para
confirmar um argumento, seja esse honesto ou absurdo, usa-se de um versículo
bíblico, para dar garantias de que o que se argumenta deve ser levado a sério,
pois a própria Bíblia confirma. Trata-se de usar a autoridade bíblica para
difundir um pensamento que é próprio de quem prega. Barbaridades são feitas
desse modo. A prática já não se limita aos líderes religiosos. Ela já atingiu
os fiéis. Basta um acesso rápido às redes sociais para se atestar isso.
Há pouco tempo, a
cantora gospel Ana Paula Valadão propôs um boicote a uma loja, porque a
propaganda relativizava os papéis de gênero na sociedade. As reações foram
muitas, tanto dos prós quanto dos que estavam contra. Uma coisa me chamou a
atenção : nos comentários, o uso deliberado do livro de Levíticos para propagar
a abominação de Deus em relação aos homossexuais. Os contrários a essa leitura
citavam outros versículos do mesmo livro, com outras proibições hoje ignoradas
pelos cristãos, como, por exemplo, a proibição em comer carne de porco e de
fazer a barba, entre outras.
As reações dos
militantes fundamentalistas foram imediatas, a partir do argumento da nova
aliança em Jesus. Segundo a leitura deles, em Jesus, todos estamos desobrigados
ao cumprimento das leis veterotestamentárias. Mas só para algumas coisas, como
podemos ver! Afinal, o mesmo livro é usado para argumento de proibição de uma
coisa, mas não vale para autenticar outras proibições. E tudo a partir de uma
errônea leitura daquilo que significa a nova aliança em Jesus. Ora, ele próprio
disse : ‘Não penseis que vim abolir a Lei
e os Profetas. Não vim para abolir, mas para cumprir’ (Mt 5,17).
Tal prática da
pinça revela um uso utilitarista da Bíblia. As Sagradas Escrituras já não são
vistas como fonte, mas como reservatório. A verdade bíblica, como Palavra de
Deus, é a verdade da experiência de um povo que faz, ao longo da história,
discernimentos de sua relação com Deus. Disso não podemos nos esquecer, pois
essa é uma das grandes riquezas que a Bíblia nos traz. É preciso compreender
que nada presente na Bíblia está solto : tudo se amarra de maneira orgânica.
Aos teólogos da
pinça, um aviso, a partir da própria Bíblia : ‘Para todo o que ouve as palavras da profecia deste livro vai aqui o meu
testemunho : se alguém lhe acrescentar qualquer coisa, Deus lhe acrescentará as
pragas que estão aqui descritas. E se alguém retirar algo das palavras do livro
desta profecia, Deus lhe retirará a sua parte da árvore da vida e da Cidade
Santa, que se encontram descritas neste livro’ (Ap 22,18-19). E aí, para
isso vale a literalidade ou não?’
Fonte :
* Artigo na íntegra
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