terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Um sorriso e um adeus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Lev Chaim,  
jornalista e colunista


Precisamos derrubar os muros e melhorar a comunicação com nossos semelhantes.


‘Entrei na bela igreja Catharijne (Holanda), perto de casa, esbaforido. Estava atrasado dez minutos e minha amiga, Bárbara Hilwig, já devia estar lá dentro. A igreja estava cheia, mas não lotada. Ao entrar, vi todas aquelas cabeças sentadas, de costas para mim. Pela nave principal, caminhei devagarinho, procurando Bárbara. No meio do caminho, bati o olho no primeiro banco, à direita e lá estava ela. Ao seu lado havia um lugar livre. Apressei o passo e lá sentei-me. ‘Fui a sua casa e não encontrei ninguém’, sussurrou Bárbara. ‘Estava dando uma volta com o Pitú (meu cão) e esqueci-me do horário! Desculpe-me!’.

Ia sempre àquela igreja protestante porque o pastor dali, Frans Willem Verbaas, fala de uma maneira estupenda e sempre tem os braços abertos para receber quem quer que seja, independentemente de sua fé ou religião. Com o tema, ‘Semana de Orações’, houve ali uma liturgia pela unidade das igrejas cristãs. O pastor convidou o padre Albert Soeterboek, da cidade de Drune, pertíssima de Heusden, e representantes da Igreja luterana, como Frederik Hilwig, marido da Bárbara, entre outros. A cerimônia teve como título ‘Sua mão, meu sorriso’.

Durante a celebração, falaram o pastor, o padre e o representante da Igreja Luterana. E durante as falas, crianças foram colocando atrás deles caixas de papelão. Na frente de cada caixa, estava um tema que pudesse provocar a desunião das igrejas e das pessoas, afastando-as uma das outras : egoísmo, ignorância, falta de tempo, maus exemplos, etc. Até que em um determinado momento, ficou claro a todos que ali estava um muro, construído de caixas. Neste momento, o pastor Frans Willem Verbaas subiu ao púlpito e falou aos presentes. 

Ele disse que estava na moda construir muros para separar pessoas. Aqui e ali, em muitos lugares. E disse que as pessoas, sem perceber, também construíam muros ao redor de seus próprios corações, isolando-se do resto da humanidade. Ai, ele acrescentou : ‘Alguns muros são necessários para demarcar certas propriedades, mas sem o objetivo de isolar os outros. Mas o que eu peço a vocês agora, é para que derrubem os muros que os isolam do coração dos outros’.

Ele contou também que quando era mais jovem, por volta do ano de 1985, ele esteve visitando uma pequena comunidade de bravos luteranos numa cidade da Alemanha Oriental, Alemanha Comunista. O muro de Berlim e a cortina de ferro ainda não tinham sido derrubados. E nesta comunidade de ‘fortes’, ele encontrou um pastor luterano jovem e muito ativo na igreja. Verbaas, curioso, perguntou ao jovem como ele havia entrado para a Comunidade Luterana daquela cidade, num país comunista, onde a religião era tolerada mas não oficialmente aceita.

A resposta do jovem pastor alemão não demorou muito : ‘Estava no exército da Alemanha Oriental e fui colocado para guardar as fronteiras entre as duas Alemanhas. Eu, na minha torre, e o outro, a cem metros de distância, o inimigo, o soldado da Alemanha Ocidental, em sua própria torre. Um dia, olhando com um binóculo, vi que ele também estava munido de um e me olhava. Desci o binóculo e mirei seu corpo e subi logo em seguida. Ele fez o mesmo. Em um determinado momento, ele acenou e eu acenei de volta. Desde então, percebi a loucura deste muro. Todos nós éramos iguais. Por que tudo aquilo? Deixei o exército e fui me juntar a essas pessoas corajosas da Comunidade Luterana, onde estou até hoje!

Antes de terminar esta pequena história que me deixou todinho arrepiado, Frans Willem Verbaas, acrescentou : ‘O último líder da Alemanha Comunista, Erich Honecker, disse que o seu país esta preparado para tudo : um ataque da OTAN, misseis dos Estados Unidos etc. Mas não estava preparado para enfrentar um grupo de pessoas religiosas’.  Logo em seguido, ele disse que a cerimonia de hoje era para ajudar as pessoas a abrirem os olhos, começar a derrubar os muros ao seu redor e melhorar a comunicação com os seus semelhantes. Enquanto ele falava tudo isto, as crianças, que haviam construído um muro de caixas, o iam desfazendo aos poucos e formando uma cruz no chão. Segundo o pastor da igreja, a cruz representava o sacrifício que Jesus fez por todos nós ao morrer ali. Mesmo não adepto de muitos ditos teológicos, fiquei arrepiado com a simplicidade da mensagem oral e simbólica.

Ai, Verbaas desceu do púlpito e junto com o padre caminharam até a pessoas com as mãos estendida e disseram : A paz de Cristo. Pela primeira vez naquela igreja protestante, as pessoas se deram a mão, saudando umas as outras com a paz de Cristo. Enquanto isto ocorria, o organista tocava a magistral abertura de Johan Sebastiaan Bach, ‘A paixão segundo Matheus’. Neste momento, percebi a grandeza do pastor protestante, de realizar esta cerimônia, ‘minha mão, seu sorriso’, nesta grande e heráldica igreja protestante de Heusden, fé professada pela maioria da população da cidade. 

Ao sair, dei a mão de novo para o pastor e amigo Frans Willem Verbaas e lhe perguntei se poderia escrever sobre a cerimônia. Ele me deu carta branca. Depois, fui ao padre e o agradeci por este belíssimo serviço, no que ele, muito simpático, agradeceu a minha presença. E aos poucos, a igreja foi ficando vazia. Naquele instante, o muro em volta do meu coração havia caído.’


Fonte :


domingo, 29 de janeiro de 2017

O ser humano, a história e a criação à luz da fé cristã

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor em Teologia Sistemática
pela Pontificia Università Antonianum, Roma.


‘Vivemos em um mundo cada vez mais plural. E para que esta pluralidade possa ser acolhida como desafio e chance e, assim, possa produzir seus melhores frutos, é fundamental que criemos a consciência do respeito por cada uma das singularidades que compõem juntas essa imensa e variegada civilização plural. A acolhida e o respeito face a esta nova configuração plural pode se constituir, inclusive, em uma excelente estação em que nos sentimos desafiados positivamente a recuperarmos nossa própria singularidade em atitude dialógica e respeitosa.

Salvação, na perspectiva cristã, não consiste, como muitos pensam, em uma doutrina hermética acessível unicamente a alguns poucos iniciados, nem tampouco um receituário de princípios ou de valores, nem muito menos um conjunto de mitos fundadores ou de lendas edificantes. Esta salvação, que nos é oferecida na pessoa de Jesus Cristo, se realiza no aqui e agora de cada pessoa e da comunidade cristã ‘no Espírito’. Na verdade, é o Espírito Santo quem cria as condições para que este evento da nossa salvação, realizado uma vez por todas em Jesus Cristo, possa ser recriado em todos os tempos e lugares, como possibilidade oferecida a cada pessoa. Somente ‘no Espírito’, eu posso experimentar que o evento pascal de Jesus Cristo se deu para a salvação minha e de todo o gênero humano. O Espírito Santo atualiza a redenção de Cristo, tornando-a uma experiência pessoal, vale dizer, bem concreta e circunstanciada. E ao atualizar a obra da salvação, o Espírito a universaliza, tornando-a uma experiência possível e, portanto, dirigida a todos os seres humanos e a cada ser humano. Pois, na verdade, toda autêntica universalização pressupõe a atualização nas mais variadas circunstâncias, como sua condição de possibilidade.

Buscando, portanto, recuperar a específica compreensão do ser humano, da história e da criação na perspectiva da fé cristã, importa ter presente algumas dimensões fundamentai s: graça/pecado, liberdade e escatologia.

A gratuidade da vida é o eixo ao redor e em torno do qual toda a vida se dá. O desígnio amoroso de Deus com relação ao ser humano é gratuito. Por livre decisão de sua vontade, Deus cria o ser humano para poder estabelecer com ele uma profunda relação de comunhão. Ainda como expressão do seu grande amor, enviou-nos Seu Filho para que, mediante o Espírito Santo, possamos participar plenamente do inaudito dom da filiação divina. Somos assim, por graça do Pai, filhos no Filho, no vigor do Espírito Santo. A história, por sua vez, é chamada a corresponder aos desígnios do Criador e Pai. O encontro com o Deus de Jesus Cristo se dá no ‘tempo’, configurando-se como uma experiência intrinsecamente histórica. As Escrituras Sagradas nomeiam a complexa trama dos eventos singulares da revelação divina no quotidiano da vida do povo eleito como ‘história da salvação’. Pelo fato de ser intrínseca e constitutivamente histórica, a experiência de Deus deve ser continuamente atualizada, em cada época e, portanto, também no aqui e agora de nossa experiência de fé.

Foi para a liberdade que Cristo nos libertou, diz enfaticamente o apóstolo Paulo. A gratuidade da relação de Deus para conosco pressupõe a nossa existência como criaturas livres. Graça e liberdade são, portanto, como que dois lados de uma mesma moeda. Deus espera que correspondamos ao seu dom de maneira livre e responsável. Não pretende que o façamos e nem constringe ninguém a fazê-lo. O amor de Deus para conosco é gratuito e, portanto, sem condições e sem reservas. Somente assim se salvaguarda a dimensão do encontro como característica fundamental da nossa relação com Deus. Este dom primordial da liberdade se revela sobretudo nas decisões humanas históricas e no seu caráter de projetualidade, bem como na sua convivência ordinária com as criaturas todas. Salvação, neste sentido, corresponde àquela específica experiência que nos é oferecida mediante o evento singular no qual Deus mesmo toma a iniciativa de se revelar, entregando-se pessoalmente a nós e comunicando-nos os desígnios de sua vontade. Esta autocomunicação se dá mediante uma sutil interpelação lançada à nossa liberdade. Por essa razão, a salvação jamais poderá ser reduzida a uma doutrina. Se a salvação é, fundamentalmente, a proposta que, na sua inusitada discrição, Deus faz aos seres humanos, então ela só pode se dar como encontro entre duas liberdades que se sentem movidas e sustentadas pelo amor recíproco. Deste modo, a salvação é uma experiência autenticamente humana e, portanto, penetra a totalidade da nossa existência atingindo aqueles nós fundamentais que constituem nossa existência enquanto tal. O ser humano criado por Deus e chamado à comunhão plena com Ele encontra-se, historicamente, sob o signo do pecado, vale dizer, da infidelidade ao projeto de Deus. O dom gratuito da filiação divina encontra em nós, na maioria das vezes, pouca acolhida e até mesmo indiferença e rejeição. Neste sentido, o pecado é expressão do mau uso que fazemos da liberdade. E suas conseqüências se fazem sentir na história e na inteira criação. O pecado, portanto, assume dimensões que vão além da simples experiência pessoal e inter-pessoal. Por esta razão, fala-se do pecado social e, mais recentemente, tem-se explicitado as características do assim chamado pecado ecológico.

Somos destinados a um final bom e reconciliador. Vocação à qual Deus nos chama, a promessa de uma vida transfigurada corresponde ao estado da plenitude da humanidade, da história e da criação agraciadas por Deus. O pecado não atrapalhou o projeto de Deus a nosso respeito e com relação à inteira criação. Em Jesus Cristo, Deus assume o nosso pecado, vale dizer, nossa infidelidade, indiferença e rejeição, e os transforma a partir de dentro. Operando uma autêntica reconversão do sentido, ele faz do pecado experiência de ressurreição e de vida nova. Este é precisamente o sentido cristão da salvação com redenção. E, deste modo, Deus leva à perfeição seu desígnio gratuito e amoroso. A genuína fé cristã professa que também a História e o Cosmos estão destinados à salvação. Emergem, assim, as reais dimensões do evento pascal de Cristo: numa direção, a que retorna às suas origens mais remotas, a história e a criação aparecem como fruto do movimento do Pai pelo Filho no Espírito Santo; noutra direção, a que avança para a plenitude de todo tempo, a história e o inteiro cosmos retornam no Espírito Santo pelo Filho ao Pai. Assim, protologia e escatologia se encontram no momento concreto e denso de significação no qual este dinamismo nos é revelado: a ressurreição do Filho unigênito, Jesus Cristo, e a efusão do Espírito Santo como primícias dos tempos derradeiros e definitivos.’


Fonte :



quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A qual Jesus temos buscado?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Diversas imagens do Cristo são buscadas..
*Artigo de Fabrício Veliq,
protestante, é mestre e doutorando em
teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
doutorando em teologia na Katholieke Universiteit Leuven - Bélgica,
formado em matemática e graduando em filosofia pela UFMG


‘A pergunta pode parecer um pouco estranha. Afinal, a reposta mais rápida que encontramos se a fazemos a qualquer pessoa cristã é : ora, busco Jesus, o Filho de Deus. No entanto, se olharmos a questão um pouco mais de perto, podemos nos surpreender e a pergunta se tornará menos óbvia e, talvez, mais instigante. Nesse sentido, gostaria de propor somente três imagens (dentre várias possíveis) de Jesus que vemos ser buscadas hoje em dia.

A primeira imagem é o do Jesus histórico. Entre nós, há os que buscam freneticamente pelo Jesus histórico e tem a sua fé ou falta dela baseada nas conclusões a que cientistas e historiadores chegam a cada nova semana a respeito desse tema. Não é de surpreender que o afã que acomete a milhares de pessoas ao sair um novo livro sobre a história de Jesus, ou alguma revista postar um novo artigo sobre essa questão. Se são cristãs e o artigo fala a respeito de algo que comprova a narrativa cristã, a chance de falar que a Bíblia tinha razão em tudo que relata e que a ciência comprova o que a Bíblia diz são enormes. Se não são cristãs e essas mesmas pesquisas mostram divergências com relação àquilo que a narrativa bíblica mostra, a chance de considerar os cristãos como bando de supersticiosos também é enorme.

O que é interessante perceber é que, nos dois grupos, o caráter da comprovação histórica se torna papel fundamental para a crença ou descrença a respeito da pessoa de Jesus. A busca por um Jesus comprovado historicamente, mesmo que já tenha sido descartada por Albert Schweitzer em 1901, em seu livro A busca do Jesus histórico, ainda continua sendo o parâmetro para crença e não crença de muitos. Isso não quer dizer que não se deva pesquisar a história de Jesus. As pesquisas a respeito do Jesus histórico segue desde 1748 e tem trazido bons frutos na explicação da vida e da narrativa dos evangelhos. Contudo, basear a fé em comprovações desse gênero é que se mostra complicado se nos dizemos cristãos.

A segunda imagem é a do Jesus dogmático. Esse Jesus dogmático é aquele do qual os documentos oficiais falam. Não nos surpreende que se tem crescido uma ala ultraconservadora tanto em meios evangélicos como em meios católicos. A esses, o Jesus da qual os documentos da Igreja e as confissões falam é mais importante do que qualquer outro discurso a respeito dele. Assim, aqueles e aquelas que não falam e não agem de acordo com os documentos e declarações, esses não encontraram ainda a fé verdadeira e devem, portanto, ser excluídos da comunhão, das atividades e dos ministérios, uma vez que estão em pecado contra a Igreja. Para os que buscam o Jesus dogmático, somente há certo e errado de acordo com a letra e é essa que determina os que conhecem ou não conhecem o mestre e isso é muito perigoso. Assim como a pesquisa histórica da qual falamos, os dogmas e as declarações católicas e protestantes precisam ser conhecidas e é bom que se conheça para que se tenha um embasamento maior e saiba defender a fé que se tem de uma maneira racional, caso seja necessário.

A terceira imagem é a do Jesus crucificado. Ao que tudo indica, e se observarmos a situação de nossa igreja atual, essa é a menos buscada em nossos dias. O motivo disso, a meu ver, se encontra no fato de que buscar o Jesus Crucificado como padrão de vida é estar disposto à autonegação, ao sofrimento em prol do outro e a um compromisso de engajamento com o mundo que poucos de nós temos coragem e disposição de assumirmos. Diante de uma lógica de mercado que tem se instalado em diversos seguimentos cristãos, em que Deus somente é Deus se retribui de alguma forma aquilo que fazemos, autodoação e autosacrifício em amor não parece ser a palavra da vez.

Se atentarmos para nós mesmos, bem como para cristãos e cristãs que estão ao nosso lado em nosso dia a dia, muitas vezes perceberemos que se tem buscado uma segurança histórica ou dogmática na tentativa de servir a Deus, esquecendo que a fé que professamos se baseia, justamente, em um lançar-se no escuro, como diria Kierkegaard, ou em apoiar-se em uma tábua fina no meio do oceano, como diria Ratzinger.

Das três imagens, somente a terceira nos conclama a uma fé realmente cristã que crê em esperança de que assim como o Crucificado foi ressuscitado, nós também o somos por meio Dele.’


Fonte :

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O humano diante do sagrado : uma experiência de busca

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O homem está em constante busca.
*Artigo de Aldo Reis
palestrante, empresário e escritor.


‘Sempre que buscamos algo sobre o humano em direção (relação) ao sagrado, nos deparamos com conceitos já estabelecidos e sabemos qual será a conclusão da reflexão, antes mesmo de terminá-la. Contudo, esse não é o nosso intuito.

O homem, como ser inquieto e inacabado, está em constante procura por aquilo que não possui. Tanto na dimensão material, humana, afetiva e profissional, quanto na espiritual.

Essa busca incessante está para alguns pensadores como uma experiência transcendental. Trata-se de uma busca orientada pelas experiências obtidas por meio do fenômeno religioso e suas práticas tradicionais. Entretanto, a sociedade contemporânea tem provocado uma nova configuração no comportamento humano; um novo modo de se relacionar e buscar aquilo que ‘lhe falta’; uma nova forma de abrir-se à experiência transcendental, diferentemente daquelas ‘velhas’ certezas protegidas pelas instituições e asseguradas pelo modo doutrinário de administrar a experiência subjetiva de cada um.

Para falarmos do que é sagrado, faz-se necessário, também, sabermos sobre seu oposto : o profano. Os estudiosos das religiões costumeiramente dividem o fenômeno religioso em sagrado e profano, prevalecendo, assim, uma visão dualista de oposição e exclusão automática.

Como as ‘velhas certezas’ religiosas afirmam, o sagrado só pode estar para o humano enquanto sua concepção se dá mediante uma manifestação diferente da realidade natural em algo quase que sobrenatural, esplendoroso e cheio de anormalidades. E, segundo esse raciocínio, o profano é, então, um mero fato natural, biológico, ‘normal’ e quase que autoexplicativo.

O sagrado é, desse modo, um arcabouço de elaborações metafísicas e conceitos irrefutáveis com o intuito de afirmar a plena manifestação de uma entidade divina em uma bela hierofania.

Mas, e o homem? Onde se encaixa o humano diante de tanta conceituação e normatização daquilo que está ‘além’ de suas experiências ‘horizontais’?

Há transcendência, ou melhor, a transcendência é algo que induz a experiência humana a buscar sempre aquilo que ainda lhe falta. Entretanto, entre o sagrado e o humano costumam existir barreiras e pontes de ligação. Tais barreiras e pontes podemos chamar de religião.

O humano, como ser incompleto e inacabado, sempre estará em busca de algo, mesmo que já esteja nos mais elevados graus religiosos e até mesmo se houver vivenciado inúmeras experiências promovidas por manifestações sagradas dentro das tradicionais formas e expressões. Essa busca insaciável, quando não encontra o mínimo de uma experiência autêntica, leva o homem a sacralizar inúmeras ‘coisas’, pessoas, experiências e situações. Mas isso não o torna completamente equivocado.

Como a experiência de busca, encontro e relação com o sagrado é algo essencialmente subjetivo, intransferível e inesgotável, não podemos permitir que a conceituação e sistematização produza uma padronização dessa experiência pessoal.

Podemos afirmar que há diferenças imensas entre sagrado e religião. Nos é necessário, pois, admitir que o sentimento religioso está completamente imbuído de um sentido de reverência, solenidade, adoração, veneração, desprezo de si e máximo respeito diante do Outro Absoluto. Já na vivência autêntica do sagrado, o humano desmonta essas certezas de outrora e vivencia genuinamente tal experiência transcendental. Como todo empreendimento humano visa certa satisfação e busca, no que tange ao seu estado diante do sagrado, a satisfação dessa necessidade de ser não se contenta com o que satisfaz os sentidos meramente imanentes. O desejo se desenvolve, a busca pela plenitude aumenta e a imaginação orienta todos os sentimentos para aquilo que está ‘além’.

Tudo isso é fundamentalmente necessário para o melhor desenvolvimento humano diante da sociedade, dos outros e de si mesmo, pois, a necessidade de relacionar-se com algo ‘além-de-si’ o torna, cada vez mais, um ser de busca constante, destruidor de barreiras e construtor de pontes de ligação para este sagrado que considera como início, meio e fim.

Assim, o contrário seria a perda do sentido de diversos aspectos fundamentais para o desenvolvimento de seu ser e, inclusive, levando à coisificação de suas estruturas humanas e perda da capacidade de relação e criação.

O humano diante do sagrado promove um certo intercambio entre sujeito e sociedade cultural por meio da possibilidade de elaboração de diversos símbolos que o remetem àquela busca de sempre, levando-o à experiência transcendental e, assim, alcançando, para si, a possibilidade de viver ‘além’ das possibilidades horizontais.

Desta forma, podemos concluir que, em se tratando de uma relação direta com o sagrado, o humano é um ser de construção e vivência, que se faz e refaz em cada gesto, cada símbolo e palavra; que debruça tudo em ritos e mitos; que promove o elo de encontro entre si e aquilo que busca e subjetivamente considera sagrado. É um ser de constante metamorfose e por isso mesmo desenvolve variações de sua própria expressão religiosa de vida. Assim, na mais profunda e autêntica experiência, vivencia a mais plena expressão do sagrado que busca : o próprio homem.’


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domingo, 22 de janeiro de 2017

Mineiros e seu Santuário

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Santuário celebra 250 anos de peregrinação e fé.
 *Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘O desenvolvimento integral de uma sociedade depende, significativamente, de sua capacidade para valorizar e cuidar do seu patrimônio, que inclui personagens e acontecimentos da sua história. São eles que tecem a cultura - alicerce do progresso, do desenvolvimento, do sentido de respeito. Por isso, os mineiros têm que aproveitar a ‘oportunidade de ouro’ que marca este novo ano e, assim, impulsionar crescimentos, consolidar a força do Estado de Minas Gerais, nos mais diferentes cenários. Esse momento especial é a celebração do Ano Jubilar - os 250 anos do povo peregrinando na fé ao Santuário Nossa Senhora da Piedade - a Padroeira de Minas Gerais.

A vivência deste tempo é uma convocação que remete todos os mineiros à Serra da Piedade, tesouro de inestimável valor ambiental e ecológico. Ali está um milagre da natureza, obra do Criador, com riquíssima fauna que é referência para pesquisas científicas de diferentes centros acadêmicos. Esse singular jardim botânico congrega, harmoniosamente, a Mata Atlântica, o Cerrado e os Campos Rupestres. Um território com mais de um milhão de metros quadrados, assentado sobre uma rocha de ferro, minas de ouro e aquífero exuberante, patrimônio que jamais será presa do desarvoro do lucro e da ambição desmedida. Este Ano Jubilar é, justamente, tempo propício para se firmar - a partir de legislações, gestos concretos de solidariedade e atitudes cidadãs - conforme se reza na oração de consagração a Nossa Senhora da Piedade - Padroeira de Minas Gerais: esse patrimônio é herança nossa que vamos sempre preservar e defender.

A proteção desse bem significa o rompimento com as dinâmicas que deixam ‘heranças nefastas’, verdadeiras ofensas: as graves feridas na casa comum, os buracos e as devastações que nunca serão apagados da história em razão dos pesos e das desolações que provocam. Por tudo isso, a defesa do Santuário Ecológico dedicado a Nossa Senhora da Piedade é compromisso da Igreja, mas também de todos os segmentos da sociedade, que precisam trabalhar juntos, em cooperação, a partir dessa missão. Não há espaço nem tempo para irracionalidades - a exemplo do desejo de se mostrar poder com a imposição de entraves burocráticos aos projetos reconhecidamente necessários para a preservação do meio ambiente e do patrimônio histórico.  Essas obstruções, de órgãos governamentais ou de outras instâncias, impedem a efetivação de iniciativas capazes de impulsionar o desenvolvimento de Minas. Ações com força para amalgamar as muitas Minas, superando dispersões regionais, para consolidar uma ‘consciência mineira’. A retomada do crescimento e do desenvolvimento do Estado depende dessa consciência que nasce da valorização do próprio patrimônio e da cultura. Um olhar valorativo sobre o que se é e o que se tem.

Esse olhar permite reconhecer também os tesouros da religiosidade, um legado de riqueza inestimável desse estado diamante. O Ano Jubilar celebrado em 2017 exalta, precisamente, a fé católica mineira - 250 anos de peregrinações ao Santuário da Padroeira de Minas Gerais. O ponto de partida é conversão de Antônio da Silva Bracarena, em 1767. Esse português veio para o Brasil com o objetivo de ganhar dinheiro, trabalhando na construção da Igreja Nossa Senhora do Bonsucesso, em Caeté, exemplar precioso da arte barroca. Convertido, Bracarena colocou no horizonte de sua vida - no lugar de uma busca egoísta pelo acúmulo de bens - a espiritualidade e a devoção. Passou a viver no alto da Serra da Piedade, como eremita e, após receber autorização da Igreja, começou a construir a Ermida da Padroeira de Minas, ainda em 1767.

Tempos depois a história do Santuário da Padroeira de Minas Gerais é enriquecida com um dom alcançado graças ao trabalho do Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, que integrou o clero da Arquidiocese de Belo Horizonte. A partir da atuação desse mineiro ilustre, que foi colaborador do Monsenhor Domingos Evangelista Pinheiro - o Evangelista da Piedade -  admirável guardião desse território sagrado, um capítulo importante foi escrito na história de Minas : o Papa São João XXIII concedeu ao Santuário Nossa Senhora da Piedade o título de Santuário da Padroeira de Minas Gerais.  Firma-se, assim e cada vez mais, esse território como grande centro de espiritualidade, força indispensável que conduz a sociedade mineira rumo a avanços, a partir da fé, do compromisso com a justiça e com o bem de todos.

 O Santuário Nossa Senhora da Piedade é o coração de Minas Gerais e este Ano Jubilar deve ser vivido sobre os trilhos da oração e do trabalho. Nos trilhos da oração, todos são convidados a peregrinar - em grupos, com as comunidades de fé e famílias, para viver os momentos que reúnem celebrações e a oportunidade de se reconciliar com Deus. Momentos propícios para deixar-se tocar pela força restauradora do silêncio da montanha sagrada, por sua aragem que limpa o coração, fecundando-o com a densidade espiritual da presença inspiradora de Maria, discípula exemplar. Esse Ano Jubilar, que precisa ser vivido também nos trilhos do trabalho, é convocação para que todos, em parceria e colaboração com os que integram a Faço Parte - Campanha dos Devotos de Nossa Senhora da Piedade -, instâncias governamentais e segmentos diversos, se comprometam com a realização de obras fundamentais : a edificação da Via do Peregrino, do Museu Maria Regina Mundi, a conclusão e restauração da Igreja Nova das Romarias, que pode tornar-se Basílica da Padroeira de Minas.

Essas e tantas outras iniciativas buscam fortalecer, cada vez mais, o Santuário e, consequentemente, as batidas do Coração de Minas, que é esse território sagrado.  Peregrinar ao Santuário e receber a graça de uma nova etapa na vida - abrindo um novo ciclo familiar, pessoal e social, de vida cidadã e religiosa -, além de assumir a tarefa de divulgar que Nossa Senhora da Piedade é a Padroeira de Minas Gerais. Um compromisso de todos, ato de fé e de religiosidade, de cidadania e de apreço pelo dom de ser do Estado de Minas Gerais.  Agora é a hora dos mineiros e de seu Santuário.’


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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Que sentido tem, nos dias de hoje, crer?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Em seu Espírito, Deus se revela como interioridade da história.
*Artigo do Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor em Teologia Sistemática
pela Pontificia Università Antonianum, Roma.


‘Mais do que em uma ‘época de crises’, nos encontramos diante de uma ‘crise de época’, caracterizada fundamentalmente por grandes transformações.  Esta descrição, que não se resume a um simples jogo de palavras, remete-nos a uma maior sensibilidade face ao caráter inusitado dos tempos atuais. Trata-se, de fato, de uma crise dos próprios paradigmas que orientam as distintas relações que compõem nossa vida quotidiana. Vivemos, em nossa opinião, uma situação caracterizada pela presença simultânea entre o que se tem definido como ‘eclipse’ do divino e sua ‘epifania’. Surpresos e perplexos, na verdade, testemunhamos fenômenos de uma desenfreada perda de sentido e de um visível excesso de crença. A própria alternância ou simultaneidade leva a crer que, para além da aparente oposição entre ambos, tais fenômenos constituem no fundo dois lados da mesma moeda.

A experiência da perda do sentido ou de auto-suficiência. Não se pode ignorar que muitos de nós vivemos, na prática, como se Deus não existisse. Isto significa, em outras palavras, que Deus não participa mais dos projetos pessoais e sociais do ser humano contemporâneo. Tudo parece girar, agora, em torno de si próprio. Tudo parece depender ora das suas possibilidades ora dos seus limites. O ser humano se sente cada vez mais posto ao centro da vida e do mundo. Projeta e constrói, faz planos e os realiza segundo seus próprios critérios e parâmetros sem a necessidade de recorrer a Deus. Depois de ter tomado consciência das potencialidades mais recônditas da própria razão, é capaz de solucionar os problemas mais diversos e de encontrar respostas para as questões mais difíceis. Deus tornou-se, de fato, dispensável e até supérfluo. Não se necessita mais da sua constante presença experimentada como graça nem da sua generosa e gratuita providência. A providência divina tornou-se desnecessária, uma vez que tudo, praticamente, pode ser previsto e planejado pelo ser humano mediante cálculos cada vez mais precisos.

A grande conquista efetuada pelo ser humano moderno talvez tenha sido aquela de organizar a própria vida e o próprio destino sem ter que contar com a ajuda de Deus. O ser humano descobriu-se como sujeito autônomo passando, assim, a alimentar a ilusão da própria onipotência. Julga-se, enfim, autônomo e finalmente liberto de toda sorte de elo que o mantinha antes preso a tantas correntes. A religião passa a ser vista como a maior das correntes que o mantinha enredado nas suas muitas malhas doutrinais, rituais e míticas. Por esta razão, de alguma forma ainda predomina na cultura contemporânea o pressuposto que, para ser ainda mais humano, ele deve expulsar Deus da própria vida. Pois, na verdade, o Deus dos catecismos e das igrejas o oprime tanto a ponto de ele se sentir sufocado e sem espaço. Convém, pois, que o ser humano se liberte dessa situação em vistas da realização de sua própria identidade. Acredita-se que Deus e ser humano se encontrem em uma situação de contínua competição. Para que um se afirme, é necessário que o outro se anule. Deste modo, o ser humano adulto e emancipado, consciente de si e das suas ilimitadas possibilidades, emerge cada vez mais no cenário da cultura e da história fazendo de tudo para anular a presença incômoda de Deus.

Estão, assim, colocadas as premissas para o ateísmo, fenômeno que emergiu com um vigor particular no mundo ocidental contemporâneo. É esta ainda a razão pela qual o ateísmo esteve sempre de mãos dadas com as várias vertentes do humanismo dos séculos XIX e XX. Em tal contexto, ser humanista implicava naturalmente ser ateu ou, ao menos, anti-religioso.

O fenômeno do excesso de crença constitui, em nossa opinião, a atmosfera vital da condição pós-moderna. Neste contexto, consideramos que os principais desafios com relação à experiência do crer são provocados pela ‘subjetivação da fé’, ou ainda, pela ‘privatização do religioso’.

A ‘subjetivação da fé’ ou ‘privatização do religioso’ se caracteriza fundamentalmente por uma religiosidade difusa, cujo resultado mais significativo parece ser a instrumentalização da religião em função de interesses e de necessidades individuais. Constata-se assim uma religiosidade sem nenhuma exigência de conversão, sem qualquer intervenção externa capaz de provocar no fiel um processo de adesão incondicional a Deus, expresso na busca de conformidade maior à sua vontade. Perde-se o sentido da fé como atitude obediencial a Deus.

Esta específica experiência do sagrado toca antes a superficialidade dos sentimentos e das emoções, deixando, ao contrário, intactas aquelas estruturas existenciais mais íntimas do ser humano. Trata-se, ademais, de uma religiosidade sem nenhuma objetividade; os preceitos objetivos das tradições religiosas são considerados por demais hard. Deseja-se agora, neste novo quadro referencial, uma religiosidade de caráter mais light, na qual as necessidades e carências individuais passam a ocupar lugar de relevo. Se, no passado, a profissão religiosa provocava transformações, verdadeiras conversões, na vida dos crentes, prefere-se, hoje, mudar de religião para não se ter que mudar de vida.

Esta situação agrava-se ainda mais quando considerada na sua estreita relação com o consumismo. A ‘privatização da fé’ serviu como uma luva aos interesses econômicos da sociedade de consumo. A testemunhar esta espécie de ‘instrumentalização consumista do religioso’ estão tantas iniciativas propostas com frequência em tais ambientes. Apesar do aparente otimismo do ponto de vista religioso, o fenômeno do ‘retorno do sagrado’ traz consigo um novo e desconcertante desafio constituído pelo ‘excesso de crença’. Mais que a perda do sentido, talvez seja o ‘excesso de crença’ a recolocar com gravidade e urgência a questão do Deus verdadeiro contra possíveis e eventuais manipulações do religioso em função de interesses individuais e egoístas.

Isso posto, o que significa concretamente crer nos dias de hoje? Diríamos, em primeiro lugar, que o Pai de Jesus Cristo não abandona jamais seus filhos e que, portanto, é preciso desentranhar sua singular presença para além desta sua aparente ausência. Isto significa que a tão propalada ausência de Deus deve ser interpretada mediante outros critérios que não aqueles geralmente utilizados. Na verdade, é Deus quem se deixa expulsar do mundo para que o ser humano se torne adulto e emancipado. É Ele que, de fato, se revela na sua desconcertante fraqueza para que o ser humano se descubra forte. É Deus quem se retira do cenário do mundo e da história para que o ser humano se torne sujeito. É Ele, enfim, quem se deixa vencer para que o ser humano realize todas as suas virtuais possibilidades. Por mais escandaloso que tudo isso possa parecer, encontramo-nos frente à inusitada, porém livre, decisão paterna e amorosa de Deus.

Deste modo, Deus se revela não como um competidor, como alguém que está aí para tolher ao ser humano a liberdade. Pelo contrário, Ele é o primeiro a se interessar pelas criaturas humanas e, para tanto, engaja-se pessoalmente a favor do bem delas. No entanto, ao invés de interferir de maneira brusca e repentina, violentando desta forma a liberdade humana, Deus prefere apelar sutilmente para sua consciência. Neste sentido, Ele não perde uma oportunidade sequer para convencer o ser humano daqueles valores que julga serem importantes. E isto se chama respeito pela liberdade do outro. E o que é mais importante: Deus respeita a liberdade de cada ser humano sem, contudo, mostrar-se indiferente ou insensível. Deus continua presente, mas sua presença é particularmente respeitosa. Aguarda o momento justo para interpelá-lo. Não força, nem desrespeita o ritmo de cada um. Está ali à espreita, aguardando a ocasião mais propícia para oferecer sua proposta de diálogo e para dirigir-lhe sua interpelação. E o faz de maneira tal a não lesar a inviolável liberdade humana. Só um Deus concebido como autêntico Pai alcança uma tal atitude de respeito e de cuidado para com seus próprios filhos e filhas.

Em Jesus Cristo contemplamos a emergência do Deus solidário. Esta singular dimensão do Deus cristão transparece na sua original beleza no itinerário existencial de Jesus de Nazaré. Tem razão, de fato, o autor do quarto evangelho quando escreve: ‘Tendo amado os seus, amou-os até o fim’. O testemunho oferecido por Jesus é o de quem nunca se furta ao diálogo, valorizando sempre as questões postas por seus interlocutores, independentemente de quem sejam. Procura sempre dialogar e o faz até o fim. Não impõe jamais sua vontade nem obriga os outros a aceitar sem mais seus ensinamentos. Como sua maneira de ser e de agir, Ele retira as pessoas do anonimato causado por relações desumanas para que elas tenham sua dignidade respeitada e, consequentemente, se assumam como sujeito da própria história. Em sua relação para com os doentes, pecadores e demais pessoas marginalizadas tem o cuidado de, primeiro, estimulá-los à recuperação da própria dignidade negada lançando mão de gestos singelos e significativos para com o corpo delas para, depois, somente depois, começar a falar-lhes de Deus e de seu Reino.

Apesar de tudo, vale dizer, diante do fechamento de seus interlocutores e da mais abjeta rejeição à sua pessoa e missão, assume coerentemente as consequências desta sua decisão. Deixa-se assim crucificar, pagando o altíssimo preço do respeito à liberdade humana e da sujeição aos ditames das decisões históricas. Assume sobre os próprios ombros o enorme peso do fechamento humano e das iníquas estruturas sociais. Prefere pagar com a própria vida a desrespeitar a liberdade humana e violentar as coordenadas históricas que lhe eram adversas.

Não pretende que seu Pai intervenha para debelar de vez a perversidade humana e a iniquidade de suas decisões, reduzindo assim o ser humano a uma espécie de marionete, alguém destituído de vontade livre e de capacidade de decisão. Consciente de ter recebido a missão de realizar em tudo a vontade do Pai, custe o que custar, Ele obedece. E o faz sem pretender nada em troca. Comunga desta forma do desígnio amoroso do Pai e, movido pelo Espírito Santo, leva a cumprimento a missão que lhe fora por Deus confiada.

Em seu Espírito, Deus se revela como interioridade da história. Fiel a seu desígnio de estabelecer uma proximidade sempre maior com relação ao ser humano, à sua história e à inteira realidade criada, Deus age no mundo interiormente, a partir de dentro. Sua ação se realiza, portanto, de dentro para fora e não, ao contrário, de fora para dentro. Por essa razão é que Deus não intervém magicamente, desrespeitando assim a história e suas coordenadas próprias. Agir de dentro para fora significa, em outros termos, não violentar o ser humano naquilo que ele tem de mais nobre e próprio, sua liberdade. Deus não fere a dignidade humana, mas a respeita até o fim. Por isso mesmo, nunca imporá ao ser humano sua vontade e nem o constrangerá a realizá-la.

A maneira peculiar do Deus cristão se fazer presente na história é aquela própria do Espírito. Por esta razão, ele se nos revelou também como Espírito Santo. Trata-se de uma presença sutil, porém eficaz. Ele jamais abandona a pessoa humana : Ele a in-habita, vale dizer, vem habitar no íntimo dela e, a partir de sua interioridade mais íntima, Ele sugere, inspira atitudes e mentalidades condizentes com seus desígnios. E o modo peculiar através do qual ele assim age é o da sedução: Ele perscruta os corações e cria as condições para que suas sugestões sejam acolhidas e encontrem seu espaço de realização.

Não perde uma ocasião sequer para interpelar a pessoa humana, potencializando ao máximo suas virtualidades em termos de decisões e de engajamentos históricos. No entanto, o faz de maneira discreta, sutil, íntima. E a inspiração que ele deseja comunicar a cada pessoa privilegia vias indiretas. Sua interpelação atinge cada um através de outras pessoas, situações alheias e acontecimentos em geral. Porque Espírito, Deus se serve sempre de sinais para interpelar o ser humano a um processo de discernimento dos mesmos. Ele fala através das criaturas, mediante os acontecimentos históricos e, sobretudo, através de sua imagem viva por excelência que é o pobre, o marginalizado, o excluído.

Por se revelar como a interioridade da história, o Deus de Jesus Cristo potencializa as mediações humanas, históricas e cósmicas como possíveis vias de sua presença e interpelação. Entre tantas mediações escolhidas pelo Deus bíblico, uma merece ser destacada. Trata-se da mediação do pobre, concebido como sacramento primordial do Deus comunhão, revelado por Jesus Cristo. Ao se revelar preferencialmente no pobre, no excluído e no marginalizado, Deus revela um de seus segredos mais recônditos. E o segredo é este: que Deus ama tudo o que é desprezível, insignificante, simples. Deus ama a todos e se serve de toda e qualquer situação para se fazer presente e comunicar-lhes os desígnios de sua vontade. No entanto, manifesta um carinho especial para com os pequenos, desprezados e últimos deste mundo, e ama particularmente aquelas situações mais desprezíveis e insignificantes. Numa palavra, Deus ama o abandonado e faz dele seu sacramento por excelência.

Francisco de Assis, o Poverello, e Teresa de Calcutá, entre outros, intuíram este segredo de Deus. Foi assim que, descobrindo o valor recôndito das situações insignificantes, realizaram a experiência singular do encontro com o Deus de Jesus Cristo e, em comunhão com os pobres, aprenderam a cultivar e a apreçar a beleza desta intimidade. Assim vivendo, portanto, ensinam que o caminho que conduz o ser humano a Deus passa inevitavelmente pelo irmão ou pela irmã e, de modo especial, por aquele que se encontra caído à margem, vale dizer, excluído de toda e qualquer convivência social.

Deste modo, no rosto desfigurado do pobre transparece o Deus-comunhão que nos foi revelado por Jesus Cristo. E esta se configura numa transfiguração escandalosa. Presente no rosto sofrido do pobre, Deus clama urgentemente por relações sociais novas, mais humanas e fraternas. Esta presença inusitada e paradoxal do Deus de Jesus Cristo constitui por si só uma desafiante convocação dirigida a todos e a cada pessoa em particular.’


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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Sou eu o responsável por meu irmão?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Fabrício Veliq,
protestante, é mestre e doutorando em
teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
doutorando em teologia na Katholieke Universiteit Leuven - Bélgica,
formado em matemática e graduando em filosofia pela UFMG


‘Sou eu responsável pelo meu irmão? Essa pergunta se encontra no início do livro do Gênesis (Gn 4:9) e faz parte da narrativa a respeito de Caim e Abel. Ela surge em resposta a uma outra feita por Deus a Caim a respeito do paradeiro de Abel que havia sido morto. Embora seja um simples diálogo, ainda hoje ele nos faz refletir a respeito da nossa relação com nossos irmãos e irmãs. Gostaria de propor dois aspectos que a resposta de Caim à pergunta feita por Deus nos faz pensar a respeito da nossa relação com nossa irmandade.

O primeiro, diretamente ligado à narrativa, tem a ver com a indiferença. A resposta de Caim denota uma postura indiferente em relação ao seu irmão Abel. Se trouxermos para nossos dias, isso quer dizer que simplesmente não nos é importante saber aquilo que acontece com quem está próximo de mim e com minha irmandade que está na Terra. Dessa forma, tanto faz se quem mora na mesma região que eu passa fome, tem necessidades, é violentado ou violentada em seus direitos ou em seus corpos, não tem os filhos e filhas na escola, etc. Se não faz parte do meu convívio e se não tem minha amizade, então, simplesmente, não preciso fazer nada para ajuda-los ou me importar, verdadeiramente, com eles. Basta passar a ideia de alguém engajado com justiça social e equidade de todos nas redes sociais para me ver como alguém que realmente se importa com todos. Em um mundo virtual, em que ações efetivas tem se tornado cada vez mais raro, passar a impressão de que se é alguma coisa se torna mais importante do que realmente ser aquilo que se fala. Porém, ao fazermos isso, não estamos simplesmente dando a mesma resposta que Caim deu com uma pitada de hipocrisia? No final, nossa atitude continua a mesma a de Caim com relação à Abel, seu irmão.

O segundo, trazendo de uma maneira interpretativa da atualidade, tem a ver com o julgamento que fazemos em relação àqueles e àquelas que pensam diferente de mim. Não dificilmente, ouvimos pessoas dizerem frases do tipo sempre que algum escândalo acontece : ‘não tenho nada a ver com isso’; ‘eu, ser igual a esses? Jamais’; ‘Que eu tenho a ver com essa pessoa que faz isso?’; ‘Eu jamais faria algo assim’, dentre diversas outras que poderíamos listar e, com certeza, seria do mesmo teor. Ao fazermos isso, nos colocamos em posição de julgamento em relação ao nosso irmão sem reconhecermos que também seríamos capazes de cometermos os mesmos atos que esse cometeu. Dessa forma, a pergunta de Caim, se tomada em seu sentido justificador, nos coloca não como indiferentes, antes, como superiores em relação ao nosso irmão ou irmã.

Qual o perigo disso? O perigo está, justamente, ao nos considerarmos fortes o suficiente para não sucumbir às tentações e nos transformamos nos monstros que combatemos. Se observarmos bem, transformarmos nos monstros que combatemos é o que mais acontece em cenários atuais. Basta vermos que os que mais condenavam a corrupção têm se revelado pertencerem aos mais corruptos, os que mais condenavam os homossexuais se revelaram, com o passar do tempo, também homossexuais, os que condenavam veemente a teologia da prosperidade se transformaram em um de seus pregadores e a lista segue indefinidamente.

Nisso tudo, o que é importante de percebermos é que, quanto mais nos colocarmos como aqueles que dizem : ‘que tenho eu a ver com meu irmão?’ maior será a probabilidade de, dadas as circunstâncias propícias, nos tornarmos naquilo que condenamos. Assim, reconhecermo-nos como capazes do mal em sua pior forma é, talvez, a maneira mais sábia de nos tornarmos pessoas mais humanas. Como disse Paulo : ‘quando sou fraco, aí que sou forte.’ (2 Co 12:10).

Estejamos sempre atentos para que nosso olhar em relação ao nosso próximo não se encaixe em nenhum desses, antes, que seja um olhar que reconheça a importância e também se reconheça nas dificuldades e fracassos que todos e todas passamos ao longo da vida. Assim, no lugar da indiferença surgirá um importar verdadeiro e no lugar do julgamento, a misericórdia entre nós que somos todos iguais.’


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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A oração favorita de Bento XVI

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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‘O jornalista Peter Seewald fez diversas entrevistas com o papa emérito e as publicou em setembro de 2016 no livro ‘Últimas Conversas’. No decurso das entrevistas, como uma autêntica joia espiritual, encontra-se a prece preferida de Bento XVI : é a ‘Oração comum’, de São Pedro Canísio, o ‘segundo apóstolo da Alemanha’ (o primeiro foi São Bonifácio, que levou o Evangelho às terras germânicas; São Pedro Canísio é considerado o ‘novo apóstolo’ da Alemanha porque defendeu a doutrina da Igreja entre os alemães no meio do caos provocado pela reforma protestante).


ORAÇÃO COMUM

De São Pedro Canísio


Deus eterno e todo-poderoso, Senhor, Pai celestial!

Voltai o vosso olhar misericordioso ao nosso pranto, às nossas misérias e às nossas penas.

Tende piedade de todos os cristãos, pelos quais o vosso Filho Único, nosso Senhor bem-amado e Salvador, Jesus Cristo, entregou a própria vontade em mãos dos pecadores e derramou seu precioso Sangue sobre a Santa Cruz.

Por Jesus Cristo, nosso Senhor, livrai-nos de todas as nossas penas, dos perigos presentes e futuros, dos rancores, das guerras e das armas, da fome, dos momentos de angústia e de miséria.

Em vossa bondade, iluminai e fortalecei os nossos dirigentes religiosos e os nossos governantes, para que, com suas ações, possam participar da vossa glória divina, da nossa salvação, da paz e do bem de toda a cristandade.

Concedei-nos, ó Senhor, a paz, uma justa unidade na fé, sem divisões nem separações.

Orientai os nossos corações para a autêntica penitência e para a edificação das nossas vidas.

Acendei em nós o fogo do vosso amor!

Dai-nos fome e sede da vossa justiça, de modo que, como filhos obedientes, possamos glorificar-vos com a nossa vida e na hora da nossa morte.

Nós vos rogamos ainda, ó nosso Deus, que se faça a vossa vontade em nossos amigos e inimigos, nas pessoas de boa saúde e nos enfermos, em todos os cristãos aflitos e atribulados, nos vivos e nos falecidos, em nossas profissões e trabalhos, em nossa vida e nossa morte.

Ajudai-nos a beneficiar-nos da vossa graça neste mundo. Que possamos unir-nos a todos os vossos eleitos para vos louvar, honrar e glorificar junto a eles.

Concedei-nos esta graça, ó Senhor, nosso Pai celestial!

Pelo vosso Filho, Jesus Cristo, que vive e reina convosco na unidade do Espírito Santo pelos séculos dos séculos.

Amém.

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