terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Sofrimento e Renovação

Por Denis Cabrerizo Silva




Desde que era pequeno, nutro a sensação de que os livros sempre contêm algo que pode nos servir como um ensinamento prático. Pois bem, lendo, em casa, um romance russo de nome “O Idiota”, do grande escritor Fiódor Dostoievski (1821-1881) - que, a despeito de sua remota publicação, em 1868, em certos aspectos ainda apresenta uma leitura mordaz das relações humanas que compõe o nosso cotidiano -, após um tempo debruçado nas páginas densas desta inebriante narração, súbito novos pensamentos começam a nascer e a desabrochar, absorvendo-me numa série de reflexões ininterruptas.  Primeiro, começo a pensar nos sofrimentos austeros que acompanham as personagens e que, de certa forma, refletem a realidade de muitas pessoas. Tipos psicológicos que sempre afiguram estar ofendidos, humilhados pelas condições de vida que lhe são impostas, com a vaidade e o orgulho imensamente feridos por requintes alheios de ironia e desprezo e para quem a felicidade se apresenta como uma ilusão ou como um estado que parece não valer a pena  ser alcançado após tantas atribulações. 
            Tendo isto em mente e retornando à frase que introduz este pequeno texto, creio poder dizer que o ensinamento que este livro, muito aprazível, nos transmite reveste-se de uma análise aguda das relações sociais de nossos tempos: com o passar das épocas, findamos por nos tornar, assim como os personagens “dostoievsknianos”, seres ressentidos, feridos moralmente, a quem a felicidade do outro constitui-nos uma ofensa, a quem a vida não mais pode ser do que uma seqüência de sofrimentos e os sentidos desvalorizam-se, perdem seus porquês; em suma, seres que parecem habitar o subterrâneo da existência e da humanidade. E talvez deva-se a isto uma das causas da desmoralização que experimentamos, do comportamento violento e inadmissível dos novos homens, tão descontrolados do século XXI,  esmerados em  produzir tantas tristezas, incompreensão e dor.
            Assim, como no romance mencionado acima e como nos propõe o seu autor, ainda quase 150 anos antes, talvez hoje o que nos falta seja o ato de nos “idiotizarmo-nos”, isto é, deixarmos de lado, nem que seja por um pouco, a ganância, a avareza, a inveja, o ressentimento, a necessidade de outrem para existir, ou numa palavra: a necessidade de encontrar-se ofendido para subsistir; e, por outro lado, talvez nos falte também recuperar os valores humanos, como a magnanimidade, a prudência, a inocência mesma; e assim erigir uma renovação humana que passe a nos privar - nós, Homens – dos sofrimentos e dos subterrâneos da mera constituição psicológica de cada um. Desta forma, quem sabe, não poderemos elevar a humanidade para redimir-se de seus erros e atos arbitrários que tanto nos tem vilipendiado? Quem sabe não poderemos libertar a humanidade de suas limitações constrangedoras e falsas que nos tem assolado desde há muito?  E, quem sabe, assim, na simplicidade, não conquistemos a verdadeira felicidade na renovação dos Homens, finalmente apartados de seus pesares e finalmente desimpedidos para dar as mãos para uma nova fase da humanidade, em que não mais existirão vencedores e perdedores, triunfadores e humilhados, ofensores e ofendidos, mas unicamente irmãos, unidos pela pureza, pela natureza e pela condição igualitária de seres altivos, mas sinceros e não mais sofredores e vingativos. Amigos, suplantemos o ressentimento e demos as mãos para um novo mundo renovado no AMOR!


sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo II

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


CONFIRMAÇÃO  


Nesta etapa, o Padre António Vieira alude às :

v propriedades do sal

v virtudes dos peixes e

v críticas aos homens   

 A partir deste capítulo, até o final, todo o sermão é uma alegoria, porque o público são os ‘peixes-gente’. Isto é, os peixes são metáfora dos homens, inclusive de seus vícios e virtudes.
 
Nosso evangelizador fala aos peixes (que ouvem e não falam), mas quem escuta são os homens (que falam muito e ouvem pouco).
 
Analogamente, assim como o sal conserva o são e o preserva para que não se perca, este sermão louva o bem (para conservá-lo) e repreende o mal (para resguardar-se dele).
 
Cita, ainda, que os peixes foram os primeiros animais da criação e têm a paciência como principal virtude. Quando chamados por Santo António, obedeceram de pronto, ouvindo-o com delicadeza e serenidade.
 
Em contrapartida, quem os visse, acreditaria que eles se converteram em homens e os homens em selvagens.
 
O homem abusa, maltrata e prende os animais para domesticá-los. Por isto, os peixes têm medo e mantêm-se longe dele, vivendo livres no mar.
 
Observem que o discurso, ao ser pregado, abrange toda a pessoa do orador: a mímica, os gestos e toda a linguagem não verbal também são importantíssimos para transmitir a mensagem.
 


Capítulo II


'Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes (21)? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar o Pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária (22), que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este Sermão, do que os meus parecem aos homens, pelo (23) encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.

Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo, para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso Pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os Pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja São Basílio (24): Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione (25). Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar. Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pesca, Sagenae missae in mare (26), diz que os pescadores recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus: Collegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt (27). E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.

Começando, pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer, que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra, e a vós primeiro que ao mesmo (28) homem. Ao homem deu Deus a monarquia e domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões (29), em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Et praesit piscibus maris, et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae (30). Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais (31) e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o Elefante com a Baleia? Por isso Moisés (32), Cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu:
Creavit Deus cete grandia (33). E os três músicos (34) da fornalha da Babilónia (35) o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino (36) .Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação (37), e não para o púlpito.

Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seus servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo, se pudessem, porque lhe repreendia seus vícios, porque lhe não queria falar à vontade (38) e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso (39) acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio, e com sinais de admiração e assenso (40) (como se tivessem entendimento) o que não entendiam!

Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados (41) e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão. Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos Pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas (42), Pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive (43), para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam (44) à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação (45)? Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois
que os homens. Os homens tiveram entranhas (46)  para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.

Mas porque nestas duas acções teve maior parte a Omnipotência que a natureza, (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles (47) diz que só eles entre todos os animais se não domam (48) nem domesticam (49). Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio (50) tão amigo ou tão lisonjeiro (51), e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor (52) nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos (53), lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os Autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à (54) pouca docilidade (55) ou demasiada bruteza (56); mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões (57) o fazem. Cante-lhe aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhe ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes (58), faça-lhe bufonerias (59) o bugio, mas no seu cepo (60); contente-se o cão de lhe roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem fermoso ou fidalgo (61), mas com o jugo sobre a cerviz (62), puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram nos bosques, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas adentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quer lembrar, porque há Filósofos que dizem que
não tendes memória.
 
No tempo de Noé (63) sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o mundo, e de todos os animais quais livraram (64) melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes (65) não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque não morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio (66) : porque os outros animais, como mais Domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens; os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o Dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres. Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande Filósofo, qual era a melhor terra do mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António, e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador, bem vos pudera alegar consigo que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus Pais e se recolheu ou acolheu a uma Religião, onde professasse perpétua clausura (67). E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens, mudou o Hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota (68), com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos do Capítulo Geral de Assis (69). Dali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara, e por fim acabou a vida em outro deserto (70) tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.'
 
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(21) Entenda-se: "Com que então vamos hoje pregar aos peixes!"

(22) Frequente.


(23) Por motivo de ordem.

(24) Bispo de Cesareia, na Capadócia, orador e escritor do séc. IV, de quem conhecemos Homilias, Salmos e Cartas.


(25) Basílio (N. de V.). 

 

(26) Mateus, 13, 47 (N. de V.). Trad.: Redes lançadas ao mar.

(27) Mateus, 13, 48 (N. de V.).

(28) Ao próprio homem.

 
(29) Documentos, decretos.

(30) Gênesis, 1, 26 (N. de V.). Trad.: Para que presidam aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas e a toda a terra.

 
(31) Entenda-se: os mais numerosos.

(32) Libertador do povo hebreu, cativo no Egito, dirigindo-o durante a longa caminhada para a Terra da Promissão. Salvo das águas pela mãe, viveu no Egito até que mais tarde se revoltou contra as injustiças de que o seu povo era alvo por parte do Faraó. Atravessa, então, o Mar Vermelho e entra no deserto onde Deus lhe envia o maná com que alimenta os Hebreus. No monte Sinai recebe as Tábuas da Lei, morrendo antes de entrar na Palestina.

(33) Gênesis, 1, 26 (N. de V.).Trad.: Criou Deus os grandes cetáceos.

(34) Alusão aos três judeus que se recusaram a adorar a estátua de ouro de Nabucodonosor. Foram metidos numa fornalha sobre-aquecida, mas o fogo não lhes fez mal nenhum. Daniel, III.  

 
(35) Cidade da Mesopotâmia, cujo rei mais conhecido foi Hamurabi (1728 – 1686), devido ao famoso Código que suplantou os anteriores. Quando Nabucodonosor ascendeu ao poder continuou as conquistas e em 586 apoderou-se de Jerusalém e levou grande parte dos seus habitantes cativos para a Babilónia.  

 
(36) Daniel, 3, 79 (N. de V.). Trad.: Bendizei o senhor, cetáceos e todos os que se movem nas águas.

(37) Lisonja.

(38) Dirigindo-se às paixões, ao sentimento.
 
(39) Ajuntamento, multidão.
 
(40) Assentimento, concordância.
 
(41) Teimoso, endurecido, empedernido.
 
(42) Embora incluído nos livros proféticos, o de Jonas é mais uma narrativa a que não falta sátira e ironia. É o mais pequeno dos livros do Antigo Testamento. Aí se conta que Jonas foi enviado a Nínive, que seguiu no ventre dum peixe e o que fez naquela cidade.
 
(43) Capital do Reino da Assíria, na margem esquerda do Tibre, que atingiu o esplendor durante o reinado de Senaquerib, no séc. VIII A.C. Nela mandou erguer um grande palácio com altas e fortes muralhas.
 
(44) Nota-se o emprego do Indicativo com a locução É possível, em frase interrogativa, construção clássica e muito própria de Vieira. O Indicativo acentua energicamente a realidade do facto.
 
(45) Sacerdotes ou missionários a quem incumbe velar pela salvação dos homens.
 
(46) Repare-se no trocadilho com o duplo sentido moral e físico, da palavra "entranhas".

(47) Filósofo grego, nascido em Estagira (por isso, também conhecido por Estagirita) em 384 e que morreu em Cálcis em 322. Estudou em Atenas, na Academia, onde foi discípulo de Platão. Foi mais tarde professor de Alexandre, filho de Filipe da Macedonia. Escreveu entre outras obras, a Arte Poética, Organon, e a Ética a Nicomaco.
 
(48) Subjugar, amansar.

(49) Tornar doméstico, tornar manso ou familiar.

(50) Espécie de macaco.

(51) Amigo de fazer festas.

(52) Ave de rapina, semelhante ao falcão, que era usada na caça de altanaria. D. Fernando e D. João I dedicaram-lhe um cuidado especial. Recorde-se O Livro de Falcoaria de Pero Menino, que era no seu tempo considerado o melhor sobre este tipo de caça, em toda a Europa.

(53) Profundidade de rio ou mar, sorvedouro, abismo.
 
(54) Atribuir à.
 
(55) Obediência, submissão.
 
(56) Falta de raciocínio.
 
(57) Proventos, haveres, servidões.
 
(58) Correia que prendia a perna da ave. 
 
(59) Arremedos, trejeitos, fanfarrices, basófias. 
 
(60) Armadilha para caçar.
 
(61) Alusão aos nomes familiares com que os lavradores chamam os animais ao seu serviço.
 
(62) Pescoço, cabeça.
 
(63) Último dos patriarcas anteriores ao Dilúvio que inundou toda a terra. Deus o encarrega de construir a Arca para salvação sua, da família e dos animais.
 
(64) Escapar, resistir à provação.
 
(65) Ou melhor.  

(66) Bispo de Milão que viveu no séc. IV (340 – 397). Ficou conhecido pelos seus sermões, alguns dos quais parece terem contribuído para a conversão de Santo Agostinho.
 
(67) Vida religiosa que não permite a saída nem a entrada de pessoas estranhas ao convento. Vida no claustro. 
 
(68) Ignorante. 
 
(69) Cidade na Itália onde nasceu S. Francisco de Assis.

(70) É a solidão em que se refugia o religioso: pode ser numa povoação ou num convento.



terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Um luxo para os cristãos



Este artigo foi gentilmente cedido por Dom João Evangelista Kovas, OSB,
monge beneditino do Mosteiro de São Bento de São Paulo.

 
           No dia 22 deste mês de fevereiro de 2012, iniciamos o tempo quaresmal com a Quarta-feira de Cinzas. Na liturgia a Igreja reveste-se com a cor roxa, querendo significar o tempo propício para refletirmos com nossa vida o significado da palavra do Salvador: “Convertei-vos e crede no Evangelho”.

           De fato, ao longo do ano, as obrigações da vida nos consomem, a ponto de pensarmos se somos nós que vivemos em função delas ou, antes, são elas que devem servir ao propósito de contribuir para que tenhamos uma vida boa. Parar para refletir sobre nossa salvação, sobre a Palavra que o Senhor dirige para nós, parece um luxo que não podemos nos dedicar muito a ele. Somos obrigados a dar toda a nossa atenção para os acontecimentos correntes da vida. E, na maioria das vezes, deixamos mesmo de pensar sobre o significado de nossa vida.

            Deus não nos revelou sua presença viva no mundo, em benefício de seus filhos, para que nos esqueçamos dele e de nosso destino eterno. Não fomos abandonados nesse mundo, para que ficássemos todos entretidos e fustigados apenas com a ordem desse mundo. A revelação de Deus é um alento para a nossa alma de que necessitamos tanto. A graça de Deus e a sua justiça são verdadeiro respiro da alma, que vive nesse mundo com um anseio irrefreável de viver na presença de Deus e amá-lo de todo coração.

            Por isso, a Igreja na sua diligência para com as coisas do Senhor institui o Tempo da Quaresma. Um tempo de sobriedade para os cristãos, que deixam de se entreter exclusivamente com as coisas do mundo, para se voltar para Deus, para cuidar daquilo que é mais caro para nós, ainda que no correr do dia-a-dia temos a tendência de nos esquecermos. Esse é, sobretudo, o sentido da conversão, proposto nesse tempo especial, no qual somos levados a acreditar sempre mais na Palavra Daquele que não se esqueceu de nós e está sempre presente.

           O Tempo da Quaresma é também um tempo de penitência. Aliás, a penitência e a conversão estão intimamente ligadas entre si. A conversão é algo mais amplo do que a penitência. Ela significa toda nossa volta para o Senhor, o qual nos convida a nos achegarmos a ele e conhecê-lo sempre mais. Por isso, ela é antes motivo de satisfação e contentamento. A penitência é um capítulo dessa volta.

          O fato é que nosso afastamento de Deus é causa em nós de muito sofrimento e mesmo motivo pelo qual causamos sofrimento para outras pessoas, inclusive àquelas que estão ou estiveram mais próximas de nós. Esse testemunho do mal que carregamos é ainda mais doloroso e mesmo sem cura, quando não encontramos o caminho do perdão.

           A Palavra de Deus não nos quer condenar a esse tipo de vida. Por isso, o Senhor veio para nos salvar e prometeu uma vida em abundância: uma vida verdadeira, que não pode coexistir com a mentira e com a dureza de um coração de quem insiste em não reconhecer as próprias faltas e refugia-se no esquecimento.

          Muito do esquecimento de Deus que encontramos nesse mundo faz parte de uma tentativa frustrada de esquecer o mal que se cometeu. Não é preciso dizer que, no fun  do, nunca nos esquecemos desse mal. Se a mente se esquece, cedo ou tarde, o corpo nos lembra.

           Se o capítulo da penitência pode parecer muito duro para nós, ele, no entanto, esconde toda alegria do regresso para o Senhor. Como Jesus mesmo nos disse, ele não veio para condenar o mundo, mas para salvá-lo. O mundo pode recusar, de início, o perdão oferecido pelo Senhor, mediante o reconhecimento das próprias faltas. Porém, a fé nos recorda que seu perdão restaura nossas forças, nos ajuda a retomar o caminho do bem e da verdade e nos garante o prêmio para nós imerecido da vida eterna. Se nossos pecados nos afastam das coisas do alto, o perdão nos aproxima do seio caloroso de Deus.

      Que os cristãos saibam reconhecer a grandeza desse tempo de perdão e conversão. Trata-se de verdadeiro luxo, ao qual o mundo não se permite ter acesso, pois pensa que não e para si. Mas a Igreja que é Mãe nos apresenta constantemente esse dom que o Senhor nos faz e nos ajuda a esperar com alegria espiritual a celebração da Páscoa do Senhor.


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo I

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Exórdio ou Prólogo

 
            Nesta etapa são apresentadas as idéias a partir de um conceito predicável; em nosso caso, o termo ‘Vos estis sal terrae’ ( ‘Vós sois o sal da terra’ ).
Conceito predicável nada mais é que um processo retórico da oratória barroca. Baseia-se na interpretação de um trecho da Sagrada Escritura, utilizando figuras ou alegorias para alcançar uma demonstração de fé.
O exórdio pode funcionar como um mini-sermão ou simplesmente resumir todo o discurso.
            Aqui, António Vieira explica as razões pelas quais a terra está tão corrupta e, inacreditavelmente no desenrolar do texto, percebe-se o quanto ele é atemporal.   
       
             Ambos, o pregador e o sal destinam-se a evitar a corrupção, mas ei-la : 

             v  ou porque o sal não salga e o pregador prega uma coisa e faz outra

             v  ou porque a terra não se deixa salgar e os ouvintes preferem imitar o que fazem os pregadores, do que fazer o que eles dizem



            O pregador, se pregar apenas ao seu deleite e não a Jesus Cristo, não deve receber atenção alguma.
Quanto à terra e aos ouvintes, de acordo com Santo António, o melhor é mudar o púlpito e o auditório. A doutrina permanece, para que, ao menos, os peixes ouçam o sermão.
Tal qual os moradores de São Luís do Maranhão, que não davam ouvidos à doutrina, o Padre António Vieira também prega aos ‘peixes’, invocando a proteção de Nossa Senhora. Afinal, Maria é a Senhora do Mar e os ouvintes eram pescadores que a invocavam no trabalho exaustivo da pesca.


  
   
 Capítulo I
  
Pregado na cidade de São Luís do Maranhão no ano de 1654, pelo
Padre António Vieira, tres dias antes de embarcar ocultamente a
 Lisboa, à procura de remédio para salvação dos índios e
pelas causas que se apontam no I Sermão do I Tomo (1). 

 
Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3. (2) 
 
'Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra, o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa (3), havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si (4) e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites (5). Não é tudo isto verdade? Ainda mal (6).
Suposto pois, que, ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar, que se há-de fazer a este sal, e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus (7). Se o sal perder a substância e a virtude, e o Pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil, para que seja pisado de todos. Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça (8), que o Pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra, que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo Senhor nosso no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda (9) e gloriosa resolução que nenhum Santo tomou. Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino (10), contra os hereges (11), que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar (12), não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada da terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência, ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos (13). Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo (14)! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer (15) os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças fora de água, António pregava e eles ouviam (16).

Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom Texto para os outros Santos Doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto (17). Os outros Santos Doutores da Igreja foram sal da terra, Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que nas festas dos Santos é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são (18) da minha doutrina, qualquer que ele seja, tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra, para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele (19), vós o sabeis e eu por vós o sinto (20).
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris:" Senhora do mar"; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.'

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(1) Refere-se ao 'O Sermão da Sexagésima'.

(2) Tradução: Vós sois o sal da terra.

(3) Os jesuítas, chefiados por Vieira, andavam então em luta com os colonos do Brasil, por causa da liberdade dos Índios; ambos os partidos os queriam para si.
(4) Há aqui um jogo de palavras, um trocadilho propositado entre "prégar" e "pregar". Entenda-se: " Os Pregadores apegam-se, agarram-se aos seus interesses e não a Cristo".
(5) Desejos, tendências, inclinações.
(6) Entenda-se: ainda mal que é verdade.
(7) Mateus 5, 13 (N. de V.)." E se o sal perder a sua força, com que outra coisa se há-de salgar? Para nada mais serve senão para se lançar fora e ser calcado pelos homens."
(8) Em alto lugar, em alto conceito.
 
(9) Valente, nobre, generosa.
(10) A atual cidade de Rimini, na Itália.
(11) Aqueles que negam ou atacam os dogmas religiosos.
(12) Tirar.
(13) Vantagens, resoluções, decisões, opções.
(14) Deus.
(15) Correr para, aglomerar-se, reunir.
(16) Diz a lenda, que os peixes pequenos se chegavam aos grandes e, sem temor deles, se abrigavam debaixo das barbatanas.
(17) Limitado, inadequado, impróprio.
(18) "o são": o efeito salutar do sal contra a corrupção, portanto o efeito da doutrina.
(19) Entenda-se: "Se tem tomado o sal ou se tem tomado, ao menos, um pouco dele".
(20) Sente-se aqui um eco das lutas que dividiam os espíritos em S. Luís do Maranhão. Vieira estava em profundo desacordo com a maioria da população, que detestava os Jesuítas.