quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O Sermão de Santo António aos Peixes - Capítulo I

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Exórdio ou Prólogo

 
            Nesta etapa são apresentadas as idéias a partir de um conceito predicável; em nosso caso, o termo ‘Vos estis sal terrae’ ( ‘Vós sois o sal da terra’ ).
Conceito predicável nada mais é que um processo retórico da oratória barroca. Baseia-se na interpretação de um trecho da Sagrada Escritura, utilizando figuras ou alegorias para alcançar uma demonstração de fé.
O exórdio pode funcionar como um mini-sermão ou simplesmente resumir todo o discurso.
            Aqui, António Vieira explica as razões pelas quais a terra está tão corrupta e, inacreditavelmente no desenrolar do texto, percebe-se o quanto ele é atemporal.   
       
             Ambos, o pregador e o sal destinam-se a evitar a corrupção, mas ei-la : 

             v  ou porque o sal não salga e o pregador prega uma coisa e faz outra

             v  ou porque a terra não se deixa salgar e os ouvintes preferem imitar o que fazem os pregadores, do que fazer o que eles dizem



            O pregador, se pregar apenas ao seu deleite e não a Jesus Cristo, não deve receber atenção alguma.
Quanto à terra e aos ouvintes, de acordo com Santo António, o melhor é mudar o púlpito e o auditório. A doutrina permanece, para que, ao menos, os peixes ouçam o sermão.
Tal qual os moradores de São Luís do Maranhão, que não davam ouvidos à doutrina, o Padre António Vieira também prega aos ‘peixes’, invocando a proteção de Nossa Senhora. Afinal, Maria é a Senhora do Mar e os ouvintes eram pescadores que a invocavam no trabalho exaustivo da pesca.


  
   
 Capítulo I
  
Pregado na cidade de São Luís do Maranhão no ano de 1654, pelo
Padre António Vieira, tres dias antes de embarcar ocultamente a
 Lisboa, à procura de remédio para salvação dos índios e
pelas causas que se apontam no I Sermão do I Tomo (1). 

 
Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3. (2) 
 
'Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra, o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa (3), havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si (4) e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites (5). Não é tudo isto verdade? Ainda mal (6).
Suposto pois, que, ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar, que se há-de fazer a este sal, e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus (7). Se o sal perder a substância e a virtude, e o Pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil, para que seja pisado de todos. Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça (8), que o Pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra, que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo Senhor nosso no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda (9) e gloriosa resolução que nenhum Santo tomou. Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino (10), contra os hereges (11), que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar (12), não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada da terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência, ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos (13). Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo (14)! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer (15) os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças fora de água, António pregava e eles ouviam (16).

Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom Texto para os outros Santos Doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto (17). Os outros Santos Doutores da Igreja foram sal da terra, Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que nas festas dos Santos é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são (18) da minha doutrina, qualquer que ele seja, tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra, para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele (19), vós o sabeis e eu por vós o sinto (20).
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris:" Senhora do mar"; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.'

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(1) Refere-se ao 'O Sermão da Sexagésima'.

(2) Tradução: Vós sois o sal da terra.

(3) Os jesuítas, chefiados por Vieira, andavam então em luta com os colonos do Brasil, por causa da liberdade dos Índios; ambos os partidos os queriam para si.
(4) Há aqui um jogo de palavras, um trocadilho propositado entre "prégar" e "pregar". Entenda-se: " Os Pregadores apegam-se, agarram-se aos seus interesses e não a Cristo".
(5) Desejos, tendências, inclinações.
(6) Entenda-se: ainda mal que é verdade.
(7) Mateus 5, 13 (N. de V.)." E se o sal perder a sua força, com que outra coisa se há-de salgar? Para nada mais serve senão para se lançar fora e ser calcado pelos homens."
(8) Em alto lugar, em alto conceito.
 
(9) Valente, nobre, generosa.
(10) A atual cidade de Rimini, na Itália.
(11) Aqueles que negam ou atacam os dogmas religiosos.
(12) Tirar.
(13) Vantagens, resoluções, decisões, opções.
(14) Deus.
(15) Correr para, aglomerar-se, reunir.
(16) Diz a lenda, que os peixes pequenos se chegavam aos grandes e, sem temor deles, se abrigavam debaixo das barbatanas.
(17) Limitado, inadequado, impróprio.
(18) "o são": o efeito salutar do sal contra a corrupção, portanto o efeito da doutrina.
(19) Entenda-se: "Se tem tomado o sal ou se tem tomado, ao menos, um pouco dele".
(20) Sente-se aqui um eco das lutas que dividiam os espíritos em S. Luís do Maranhão. Vieira estava em profundo desacordo com a maioria da população, que detestava os Jesuítas.


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