quarta-feira, 29 de maio de 2013

Eu te adoro com afeto, Deus oculto (Capítulo 1 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM

            Com sua encíclica Ecclesia de Eucharistia, o Santo Padre João Paulo II se propôs a renovar na Igreja ‘o assombro eucarístico(1) e o hino Adoro te devote** atinge maravilhosamente esta finalidade. Poderá trazer um sopro espiritual e uma alma a tudo o que se pode fazer para honrar a eucaristia.
            Um determinado modo de falar da Eucaristia, cheio de cálida unção e devoção, além da profunda doutrina, rejeitado pela chegada da teologia chamada ‘científica’, refugiou-se nos antigos hinos eucarísticos. Se quisermos recuperá-lo e superar um certo conceitualismo árido, que afligiu o sacramento do altar depois de tantas disputas a seu respeito, devemos buscá-lo nos hinos eucarísticos.
            Iremos refletir, contudo, sobre a Eucaristia. O hino ‘Adoro te devote’ será só o mapa que nos servirá para explorar o território, o guia que nos introduzirá na obra de arte. 

  Tommaso D'Aquino, Inno ADORO TE DEVOTE,
Schola Gregoriana Mediolanensis, Milano, Italia


Adóro te devóte, latens Déitas,
Quae sub his figúris vere látitas:
Tibi se cor meum totum súbiicit,
Quia te contémplans totum déficit.
 
Eu te adoro com afeto, Deus oculto,
que te escondes nestas aparências.
A ti sujeita-se o meu coração por inteiro
e desfalece ao te contemplar.

 

Visus, tactus, gustus in te fállitur,
Sed audítu solo tuto créditur.
Credo, quidquid dixit Dei Fílus:
Nil hoc verbo Veritátis vérius.
 
A vista, o tato e o gosto não te alcançam,
mas só com o ouvir-te firmemente creio.
Creio em tudo o que disse o Filho de Deus,
nada mais verdadeiro do que esta Palavra da Verdade.

 
In cruce latébat sola Déitas,
At hic latet simul et humánitas;
Ambo tamen credens atque cónfitens,
Peto quod petívit latro paénitens.
Na cruz estava oculta somente a tua divindade,
mas aqui se esconde também a humanidade.
Eu, porém, crendo e confessando ambas,
peço-te o que pediu o ladrão arrependido.
 
 
Plagas, sicut Thomas, non intúeor;
Deum tamen meum te confíteor.
Fac me tibi semper magis crédere,
In te spem habére, te dilígere.
Tal como Tomé, também eu não vejo as tuas chagas,
mas confesso, Senhor, que és o meu Deus;
faz-me crer sempre mais em ti,
esperar em ti, amar-te.
 
 
O memoriále mortis Dómini!
Panis vivus, vitam praestan hómini!
Praesta meae menti de te vívere.
Et te illi semper dulce sápere.
 
Ó memorial da morte do Senhor,
pão vivo que dás vida ao homem,
faz que meu pensamento sempre de ti viva,
e que sempre lhe seja doce este saber.
 
 
Pie pellicáne, Iesu Dómine,
Me immúndum munda tuo sánguine.
Cuius una stilla salvum fácere
Totum mundum quit ab omni scélere.
 
Senhor Jesus, terno pelicano,
lava-me a mim, imundo, com teu sangue,
do qual uma só gota já pode salvar
o mundo de todos os pecados.
 
 
Iesu, quem velátum nunc aspício,
Oro fiat illud quod tam sítio;
Ut te reveláta cernens fácie,
Visu sim beátus tuae glóriae. Amen.
 
Jesus, a quem agora vejo sob véus,
peço-te que se cumpra o que mais anseio:
que vendo o teu rosto descoberto,
seja eu feliz contemplando a tua glória. Amém.

 
Fonte :
*Pe. Raniero Cantalamessa, OFM, é desde 1980 pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano).
Revista Beneditina nrº 33, Maio/Junho de 2009, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais. 
publicacoesmonasticas@yahoo.com.br 


**Santo Tomás de Aquino (1225 - 1274), cerca de 50 anos após sua morte, foi considerado autor do ‘Adoro te devote’. De fato, são inúmeros os pontos de contato com sua espiritualidade. O texto permaneceu quase desconhecido até que Pio V o introduziu no Missal de 1570, quando o hino rapidamente se difundiu por toda a Igreja, tornando-se uma das orações eucarísticas mais amadas pelo fiéis.


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(1) Enc. Ecclesia de Eucharistia, 6.


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Carta Apostólica Mulieris Dignitatem (Capítulo 4 de 9)


IV  CAPITULO 

Maria a nova   Eva
EVA — MARIA
O « princípio » e o pecado

9. « Constituído por Deus em estado de justiça, o homem, porém, tentado pelo Maligno, desde o início da história abusou de sua liberdade. Levanta-se contra Deus desejando atingir o seu fim fora dele ». (28) Com estas palavras, o ensinamento do último Concílio recorda a doutrina revelada sobre o pecado e, em particular, sobre o primeiro pecado que é o pecado original. O « princípio » bíblico — a criação do mundo e do homem no mundo — contém, ao mesmo tempo, a verdade sobre este pecado, que pode ser chamado também o pecado do « princípio » do homem sobre a terra. Embora o que está escrito no Livro do Gênesis venha expresso em forma de narração simbólica, como no caso da descrição da criação do homem como homem e mulher (cf. Gên 2, 18-25), mesmo assim revela aquilo a que é preciso chamar « o mistério do pecado » e, mais plenamente ainda,  « o mistério do mal » existente no mundo criado por Deus.

Não é possível ler « o mistério do pecado » sem fazer referência a toda a verdade sobre a « imagem e semelhança » com Deus, que está na base da antropologia bíblica. Esta verdade apresenta a criação do homem como uma doação especial por parte do Criador, na qual estão contidos não só o fundamento e a fonte da dignidade essencial do ser humano — homem e mulher — no mundo criado, mas também o início do chamamento dos dois a participarem da vida íntima do próprio Deus. A luz da Revelação, criação significa ao mesmo tempo início da história da salvação. Exatamente neste inicio o pecado se inscreve e se configura como contraste e negação.
Pode-se dizer paradoxalmente que o pecado, apresentado em Gênesis (c. 3), é a confirmação da verdade sobre a imagem e semelhança de Deus no homem, se esta verdade significa a liberdade, isto é, o livre arbítrio, com o uso da qual o homem pode escolher o bem, mas pode também abusar escolhendo, contra a vontade de Deus, o mal. No seu significado essencial, todavia, o pecado é a negação daquilo que Deus é—como Criador—em relação ao homem, e daquilo que Deus quer, desde o início e para sempre, para o homem. Criando o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, Deus quer para eles a plenitude do bem, ou seja a felicidade sobrenatural, que deriva da participação na sua própria vida. Cometendo o pecado, o homem rejeita este dom e, ao mesmo tempo, quer tornar-se « como Deus, conhecendo o bem e o mal » (Gên 3, 5), isto é, decidindo do bem e do mal independentemente de Deus, seu Criador. O pecado das origens tem a sua « medida » humana, a sua dimensão interior na vontade livre do homem e juntamente traz em si uma certa característica « diabólica », (29) como é claramente posto em relevo no Livro do Gênesis (3, 1-5). O pecado opera a ruptura da unidade originária, da qual o homem gozava no estado de justiça original: a união com Deus como fonte da unidade no interior do próprio « eu », na relação recíproca do homem e da mulher (« communio personarum ») e, enfim, face ao mundo exterior e à natureza.

A descrição bíblica do pecado original em Gênesis (c. 3) de certo modo « distribui os papéis » que nele desempenharam a mulher e o homem. A isto farão referência ainda mais tarde algumas passagens da Bíblia, como, por exemplo, a Carta de São Paulo a Timóteo: « Adão foi formado primeiro e depois Eva. E não foi Adão o seduzido; mas a mulher ». (1 Tim 2, 13-14). Não há dúvida, porém, que, independentemente desta « distribuição das partes » na descrição bíblica, esse primeiro pecado é o pecado do homem, criado por Deus homem e mulher. Esse é também o pecado dos « primeiros pais », ao qual se prende o seu caráter hereditário. Neste sentido chamamo-lo « pecado original ».
Esse pecado, como já foi dito, não pode ser entendido adequadamente se não se referir ao mistério da criação do ser humano — homem e mulher — à imagem e semelhança de Deus. Através dessa referência se pode entender também o mistério da « não-semelhança » com Deus, na qual consiste o pecado, e que se manifesta no mal presente na história do mundo; da « não-semelhança » com Deus, o único que é bom (cf. Mt 19, 17) e que é a plenitude do bem. Se esta « não-semelhança » do pecado com Deus, a própria Santidade, pressupõe a « semelhança » no campo da liberdade, do livre arbítrio, pode-se dizer então que, precisamente por esta razão, a « não-semelhança » contida no pecado é tanto mais dramática e tanto mais dolorosa. É preciso também admitir que Deus, como Criador e Pai, é aqui atingido, « ofendido » e, obviamente, ofendido no coração mesmo da doação que faz parte do desígnio eterno de Deus sobre o homem.

Ao mesmo tempo, porém, também o ser humano — homem e mulher — é atingido pelo mal do pecado, do qual é autor. O texto bíblico de Gênesis (c. 3) mostra-o com as palavras que descrevem claramente a nova situação do homem no mundo criado. Ele mostra a perspectiva da « fadiga » com que o homem há de procurar os meios para viver (cf. Gên 3, 17-19), bem como a das grandes « dores » em meio às quais a mulher dará à luz seus filhos (cf. Gên 3, 16). Tudo isto, depois, é marcado pela necessidade da morte, que constitui o termo da vida humana sobre a terra. Deste modo o homem, como pó, « voltará à terra, porque dela foi tirado »: « porque és pó, e em pó te hás de tornar » (cf. Gên 3, 19).
Estas palavras confirmam-se de geração em geração. Elas não significam que a imagem e a semelhança de Deus no ser humano, quer mulher quer homem, foi destruída pelo pecado; significam, ao invés, que foi « ofuscada » (30) e, em certo sentido, « diminuída ». Na verdade, o pecado « diminui » o homem, como recorda também o Concílio Vaticano II. (31) Se o homem, já pela sua própria natureza de pessoa, é imagem e semelhança de Deus, então a sua grandeza e dignidade se realizam na aliança com Deus, na união com ele, no fato de procurar a unidade fundamental que pertence à « lógica » interior do mistério próprio da criação. Essa unidade corresponde à verdade profunda de todas as criaturas dotadas de inteligência e, em particular, do homem, o qual, entre as criaturas do mundo visível, desde o início foi elevado, mediante a eleição eterna por parte de Deus em Jesus: « Em Cristo ... ele nos elegeu antes da criação do mundo... Por puro amor ele nos predestinou a sermos por ele adotados por filhos, por intermédio de Jesus

Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade (cf. Ef 1,4-6). O ensinamento bíblico, no seu conjunto, consente-nos dizer que a predestinação diz respeito a todas as pessoas humanas, a homens e mulheres, a cada um e cada uma, sem exceção.

« Ele te dominará »

10. A descrição bíblica do Livro do Gênesis delineia a verdade sobre as consequências do pecado do homem, como indica também a perturbação da relação original entre o homem e a mulher que corresponde à dignidade pessoal de cada um deles. O ser humano, tanto homem como mulher, é uma pessoa e, por conseguinte, « a única criatura na terra que Deus quis por si mesma »; e, ao mesmo tempo, precisamente esta criatura única e irrepetível « não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesma ». (32) Daqui se origina a relação de « comunhão », na qual se exprimem a « unidade dos dois » e a dignidade pessoal tanto do homem como da mulher. Quando lemos, pois, na descrição bíblica, as palavras dirigidas à mulher: « sentir-te-ás atraída para o teu marido, e ele te dominará » (Gên 3, 16), descobrimos uma ruptura e uma constante ameaça precisamente a respeito desta « unidade dos dois », que corresponde à dignidade da imagem e da semelhança de Deus em ambos. Tal ameaça resulta, porém, mais grave para a mulher. Com efeito, ao ser um dom sincero, e por isso ao viver « para » o outro, sucede o domínio: « ele te dominará ». Este « domínio » indica a perturbação e a perda da estabilidade da igualdade fundamental, que na « unidade dos dois » possuem o homem e a mulher: e isto vem sobretudo em desfavor da mulher, porquanto somente a igualdade, resultante da dignidade de ambos como pessoas, pode dar às relações recíprocas o caráter de uma autêntica « communio personarum » (comunhão de pessoas). Se a violação desta igualdade, que é conjuntamente dom e direito que derivam do próprio Deus Criador, comporta um elemento em desfavor da mulher, ao mesmo tempo tal violação diminui também a verdadeira dignidade do homem. Tocamos aqui um ponto extremamente sensível na dimensão do « ethos » inscrito originariamente pelo Criador, já no fato mesmo da criação de ambos à sua imagem e semelhança.
Esta afirmação de Gênesis 3, 16 tem um grande e significativo alcance. Ela implica uma referência à relação recíproca entre o homem e a mulher no matrimônio. Trata-se do desejo nascido no clima do amor esponsal, que faz com que « o dom sincero de si mesmo » da parte da mulher encontre resposta e complemento num « dom » análogo da parte do marido. Somente apoiados neste princípio podem os dois, e em particular a mulher, « encontrar-se » como verdadeira « unidade dos dois » segundo a dignidade da pessoa. A união matrimonial exige o respeito e o aperfeiçoamento da verdadeira subjetividade pessoal dos dois. A mulher não pode tornar-se « objeto » de « domínio » e de « posse » do homem. Mas as palavras do texto bíblico referem-se diretamente ao pecado original e às suas consequências duradouras no homem e na mulher. Onerados pela pecaminosidade hereditária, carregam em si a constante « causa do pecado », ou seja a tendência a ferir a ordem moral, que corresponde à própria natureza racional e à dignidade do ser humano como pessoa. Esta tendência exprime-se na tríplice concupiscência, que o texto apostólico precisa como concupiscência dos olhos, concupiscência da carne e fausto da vida (cf. 1 Jo 2, 16). As palavras do Gênesis, acima citadas (3, 16), indicam de que modo esta tríplice concupiscência, como « causa do pecado », pesará sobre a relação recíproca entre homem e mulher.

Essas mesmas palavras se referem diretamente ao matrimônio, mas indiretamente abrangem os diversos campos da convivência social: as situações em que a mulher permanece em desvantagem ou é discriminada pelo fato de ser mulher. A verdade revelada sobre a criação do homem como homem e mulher constitui o principal argumento contra todas as situações que, sendo objetivamente prejudiciais, isto é injustas, contêm e exprimem a herança do pecado que todos os seres humanos trazem em si. Os Livros da Sagrada Escritura confirmam em vários pontos a existência efetiva de tais situações e juntamente proclamam a necessidade de converter-se, isto é, de purificar-se do mal e de libertar-se do pecado: de tudo aquilo que ofende o outro, que « diminui » o homem, não só aquele a quem se ofende, mas também aquele que comete a ofensa. Essa é a mensagem imutável da Palavra revelada de Deus. Nisso se exprime o « ethos » bíblico até o fim. (33).

Nos nossos dias a questão dos « direitos da mulher » tem adquirido um novo significado no amplo contexto dos direitos da pessoa humana. Iluminando este programa, constantemente declarado e de várias maneiras recordado, a mensagem bíblica e evangélica guarda a verdade sobre a « unidade » dos « dois », isto é, sobre a dignidade e a vocação que resultam da diversidade específica e originalidade pessoal do homem e da mulher. Por isso, também a justa oposição da mulher face àquilo que exprimem as palavras bíblicas: « ele te dominará » (Gên 3, 16) não pode sob pretexto algum conduzir à « masculinização » das mulheres. A mulher—em nome da libertação do « domínio » do homem—não pode tender à apropriação das características masculinas, contra a sua própria « originalidade » feminina. Existe o temor fundado de que por este caminho a mulher não se « realizará », mas poderia, ao invés, deformar e perder aquilo que constitui a sua riqueza essencial. Trata-se de uma riqueza imensa. Na descrição bíblica, a exclamação do primeiro homem à vista da mulher criada é uma exclamação de admiração e de encanto, que atravessa toda a história do homem sobre a terra.
Os recursos pessoais da feminilidade certamente não são menores que os recursos da masculinidade, mas são diversos. A mulher, portanto, — como, de resto, também o homem — deve entender a sua « realização » como pessoa, a sua dignidade e vocação, em função destes recursos, segundo a riqueza da feminilidade, que ela recebeu no dia da criação e que herda como expressão, que lhe é peculiar, da « imagem e semelhança de Deus ». Somente por este caminho pode ser superada também aquela herança do pecado que é sugerida nas palavras da Bíblia: « sentir-te-ás atraída para o teu marido, e ele te dominará ». A superação desta má herança é, de geração em geração, dever de todo homem, seja homem, seja mulher. Efetivamente, em todos os casos em que o homem é responsável de quanto ofende a dignidade pessoal e a vocação da mulher, ele age contra a própria dignidade pessoal e a própria vocação.
Proto-Evangelho
11. O Livro do Gênesis atesta o pecado, que é o mal do « princípio » do homem, as suas consequências que desde então pesam sobre todo o gênero humano, e juntamente contém o primeiro anúncio da vitória sobre o mal, sobre o pecado. Provam-no as palavras que lemos em Gênesis 3, 15, habitualmente ditas « Proto-Evangelho »: « Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a dela; esta te esmagará a cabeça enquanto tu te lanças contra o seu calcanhar ». É significativo que o anúncio do redentor, do salvador do mundo, contido nestas palavras, se refira à « mulher ». Esta é nomeada em primeiro lugar no Proto-Evangelho como progenitora daquele que será o redentor do homem. (34) E se a redenção deve realizar-se mediante a luta contra o mal, por meio da « inimizade » entre a estirpe da mulher e a estirpe daquele que, como « pai da mentira » (Jo 8, 44), é o primeiro autor do pecado na história do homem, esta será também a inimizade entre ele e a mulher.
Nessas palavras desvela-se a perspectiva de toda a Revelação, primeiro como preparação ao Evangelho e depois como próprio Evangelho. Nesta perspectiva convergem, sob o nome da mulher, as duas figuras femininas: Eva e Maria.

As palavras do Proto-Evangelho, relidas à luz do Novo Testamento, exprimem adequadamente a missão da mulher na luta salvífica do redentor contra o autor do mal na história do homem.
O confronto Eva-Maria retorna constantemente no curso da reflexão sobre o depósito da fé recebida da Revelação divina, e é um dos temas retomados frequentemente pelos Padres, pelos escritores eclesiásticos e pelos teólogos. (35) Habitualmente, nesta comparação surge à primeira vista uma diferença, uma contraposição. Eva, como « mãe de todos os viventes » (Gên 3, 20), é testemunha do « princípio » bíblico, no qual estão contidas a verdade sobre a criação do homem à imagem e semelhança de Deus e a verdade sobre o pecado original. Maria é testemunha do novo « princípio » e da « nova criatura » (cf. 2 Cor 5, 17). Melhor, ela mesma, como a primeira redimida na história da salvação, é « nova criatura »: é a « cheia de graça ». É difícil compreender porque as palavras do Proto-Evangelho realcem tão fortemente a « mulher », se não se admite que com ela se inicia a nova e definitiva Aliança de Deus com a humanidade, a Aliança no sangue redentor de Cristo. Essa Aliança inicia-se com uma mulher, a « mulher », na Anunciação em Nazaré. Esta é a novidade absoluta do Evangelho: outras vezes no Antigo Testamento, Deus, para intervir na história do seu Povo, se tinha dirigido a mulheres, como a mãe de Samuel e de Sansão; mas para estipular a sua Aliança com a humanidade se tinha dirigido somente a homens: Noé, Abraão, Moisés. No início da Nova Aliança, que deve ser eterna e irrevogável, está a mulher: a Virgem de Nazaré. Trata-se de um sinal indicativo de que « em Jesus Cristo » « não há homem nem mulher » (Gál 3, 28). Nele a contraposição recíproca entre homem e mulher — como herança do pecado original — é essencialmente superada. « Todos vós sois um só em Cristo Jesus », escreverá o Apóstolo (Gál 3, 28).

Estas palavras tratam da originária « unidade dos dois », que está ligada à criação do homem, como homem e mulher, à imagem e semelhança de Deus, segundo o modelo da comunhão perfeitíssima de Pessoas que é o próprio Deus. As palavras paulinas constatam que o mistério da redenção do homem em Jesus Cristo, filho de Maria, retoma e renova aquilo que no mistério da criação correspondia ao desígnio eterno de Deus Criador. Precisamente por isso, no dia da criação do homem como homem e mulher, « Deus contemplou tudo o que tinha feito, e eis que estava tudo muito bem » (Gen 1, 31). A redenção restitui, em certo sentido, à sua própria raiz o bem que foi essencialmente « diminuído » pelo pecado e pela sua herança na história do homem.

A « mulher » do Proto-Evangelho é inserida na perspectiva da redenção. O confronto Eva-Maria pode ser entendido também no sentido de que Maria assume em si mesma e abraça o mistério da « mulher », cujo início é Eva, « a mãe de todos os viventes » (Gên 3, 20): antes de tudo o assume e abraça no interior do mistério de Cristo — « novo e último Adão » (cf. 1 Cor 15, 45) — o qual assumiu na sua pessoa a natureza do primeiro Adão. A essência da Nova Aliança consiste no fato de que o Filho de Deus, consubstancial ao Pai eterno, se torna homem: acolhe a humanidade na unidade da Pessoa divina do Verbo. Aquele que opera a Redenção é, ao mesmo tempo, verdadeiro homem. O mistério da Redenção do mundo pressupõe que Deus-Filho tenha assumido a humanidade como herança de Adão, tornando-se semelhante a ele e a todo homem em tudo, « com exceção do pecado » (Hebr 4, 15). Deste modo, ele « manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação », como ensina o Concílio Vaticano II. (36) Em certo sentido, ajudou-o a redescobrir « quem é o homem » (cf. Sl 8, 5).

Em todas as gerações, na tradição da fé e da reflexão cristã sobre a mesma, a aproximação Adão-Cristo é frequentemente acompanhada da de Eva-Maria. Se Maria é descrita também como « nova Eva », quais podem ser os significados desta analogia? Certamente são múltiplos. É preciso deter-se particularmente no significado que vê em Maria a revelação plena de tudo o que é compreendido na palavra bíblica « mulher »: uma revelação proporcional ao mistério da Redenção. Maria significa, em certo sentido, ultrapassar o limite de que fala o Livro do Gênesis (3, 16) e retornar ao « princípio » no qual se encontra a « mulher » tal como foi querida na criação, portanto no pensamento eterno de Deus, no seio da Santíssima Trindade. Maria é o « novo princípio » da dignidade e da vocação da mulher, de todas e de cada uma das mulheres. (37)

Para compreender isto podem servir de chave, de modo particular, as palavras postas pelo evangelista nos lábios de Maria depois da Anunciação, durante a sua visita a Isabel: « grandes coisas fez em mim o Todo-poderoso » (Lc 1, 49). Estas se referem certamente à concepção do Filho, que é « Filho do Altíssimo » (Lc 1, 32), o « santo » de Deus; conjuntamente, porém, elas podem significar também a descoberta da própria humanidade feminina. « Grandes coisas fez em mim »: esta é a descoberta de toda a riqueza, de todos os recursos pessoais da feminilidade, de toda a eterna originalidade da "mulher", assim como Deus a quis, pessoa por si mesma, e que se encontra contemporaneamente
 « por um dom sincero de Si mesma ».
Esta descoberta relaciona-se com a clara consciência do dom, da dádiva oferecida por Deus. O pecado já no « princípio » tinha ofuscado esta consciência, em certo sentido a tinha sufocado, como indicam as palavras da primeira tentação por obra do « pai da mentira » (cf. Gen 3, 1-5). Com a chegada da «plenitude dos tempos» (cf. Gál 4, 4), ao começar a cumprir-se na história da humanidade o mistério da redenção, esta consciência irrompe com toda a sua força nas palavras da « mulher » bíblica de Nazaré. Em Maria, Eva redescobre qual é a verdadeira dignidade da mulher, da humanidade feminina. Esta descoberta deve chegar continuamente ao coração de cada mulher e plasmar a sua vocação e a sua vida.


Próximo - Capítulo V

domingo, 19 de maio de 2013

O envio do Espírito Santo

A Liturgia das Horas e a reflexão no dia de Pentecostes : 


Ofício das Leituras 


Segunda leitura

Do Tratado contra as heresias, de Santo Irineu, bispo

(Lib. 3,17,1-3:SCh34,302-306)     (Séc.II)

O envio do Espírito Santo

'Ao dar a seus discípulos poder para que fizessem os homens renascer em Deus, o Senhor lhes disse: Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28,19).

Deus prometera, por meio dos profetas, que nos últimos tempos derramaria o seu Espírito sobre os seus servos e servas para que recebessem o dom da profecia. Por isso, o Espírito Santo desceu sobre o Filho de Deus, que se fez Filho do homem, habituando-se com ele a conviver com o gênero humano, a repousar sobre os homens e a morar na criatura de Deus. Assim renovava os homens segundo a vontade do Pai, fazendo-os passar da sua antiga condição para a vida nova em Cristo.

São Lucas nos diz que esse Espírito, depois da ascensão do Senhor, desceu sobre os discípulos no dia de Pentecostes, com o poder de dar a vida nova a todos os povos e de fazê-los participar da Nova Aliança. Eis por que, naquele dia, todas as línguas se uniram no mesmo louvor de Deus, enquanto o Espírito congregava na unidade as raças mais diferentes e oferecia ao Pai as primícias de todas as nações.

Foi por isso que o Senhor prometeu enviar o Paráclito, que os tornaria capazes de receber a Deus. Assim como a farinha seca não pode, sem água, tornar-se uma só massa nem um só pão, nós também, que somos muitos, não poderíamos transformar-nos num só corpo, em Cristo Jesus, sem a água que vem do céu. E assim como a terra árida não produz fruto se não for regada, também nós, que éramos antes como uma árvore ressequida, jamais daríamos frutos de vida, sem a chuva da graça enviada do alto.

Com efeito, nossos corpos receberam, pela água do batismo, aquela unidade que os torna incorruptíveis; nossas almas, porém, a receberam pelo Espírito.

O Espírito de Deus desceu sobre o Senhor como espírito de sabedoria e discernimento, espírito de conselho e fortaleza, espírito de ciência e de temor de Deus (Is 11,2). É este mesmo Espírito que o Senhor por sua vez deu à Igreja, enviando do céu o Paráclito sobre toda a terra, daquele céu de onde também Satanás caiu como um relâmpago (cf. Lc 10,18).

Por esse motivo, temos necessidade deste orvalho da graça de Deus para darmos fruto e não sermos lançados ao fogo, e para que também tenhamos um Defensor onde temos um acusador. Pois o Senhor confiou ao Espírito Santo o cuidado da sua criatura, daquele homem que caíra nas mãos dos ladrões e a quem ele, cheio de compaixão, enfaixou as feridas e deu dois denários reais. Tendo assim recebido pelo Espírito a imagem e a inscrição do Pai e do Filho, façamos frutificar os dons que nos foram confiados e os restituamos multiplicados ao Senhor.'


Fonte :
‘In Liturgia das Horas II, pg. 926 a 927’  

domingo, 12 de maio de 2013

Carta Apostólica Mulieris Dignitatem (Capítulo 3 de 9)


CAPÍTULO III
                                       
               A IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS

As 50 mais belas cachoeiras naturais do mundo


O Livro do Gênesis


6. Devemos colocar-nos no contexto do « princípio » bíblico, no qual a verdade revelada sobre o homem como « imagem e semelhança de Deus » constitui a base imutável de toda a antropologia cristã. (22) « Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou » (Gên 1, 27). Esta passagem concisa contém as verdades antropológicas fundamentais: o homem é o ápice de toda a ordem criada no mundo visível; o gênero humano, que se inicia com a chamada à existência do homem e da mulher, coroa toda a obra da criação; os dois são seres humanos, em grau igual o homem e a mulher, ambos criados à imagem de Deus. Esta imagem e semelhança com Deus, essencial para o homem, o homem e a mulher transmitem-na, como esposos e pais, aos seus descendentes: « Sede fecundos e multiplicai-vos, povoai a terra; submetei-a » (Gen 1, 28). O Criador confia o « domínio » da terra ao gênero humano, a todas as pessoas, a todos os homens e a todas as mulheres, que haurem a sua dignidade e vocação do « princípio » comum.

No Gênesis encontramos ainda uma outra descrição da criação do homem — homem e mulher (cf. 2, 18-25) — à qual nos referiremos em seguida. Desde agora, todavia, é preciso afirmar que da citação bíblica emerge a verdade sobre o caráter pessoal do ser humano. O homem é uma pessoa, em igual medida o homem e a mulher: os dois, na verdade, foram criados à imagem e semelhança do Deus pessoal. O que torna o homem semelhante a Deus é o fato de — diferentemente de todo o mundo das criaturas viventes, incluídos os entes dotados de sentidos (animalia) — ser também racional (animal rationale). (23) Graças a esta propriedade o homem e a mulher podem « dominar » as outras criaturas do mundo visível (cf. Gên 1, 28).

Na segunda descrição da criação do homem (cf. Gên 2, 18-25), a linguagem em que se expressa a verdade sobre a criação do homem e, especialmente, da mulher é diversa; em certo sentido é menos precisa; é — poder-se-ia dizer — mais descritiva e metafórica; mais próxima da linguagem dos mitos então conhecidos. Todavia, não se encontra contradição essencial alguma entre os dois textos. O texto de Gênesis 2, 18-25 ajuda a compreender bem o que encontramos na passagem concisa de Gênesis 1, 27-28 e, ao mesmo tempo, se lido em conjunção com este, ajuda a compreender de modo ainda mais profundo a verdade fundamental aí contida sobre o homem, criado à imagem e semelhança de Deus como homem e mulher.

Na descrição de Gênesis 2, 18-25, a mulher é criada por Deus « da costela » do homem e é colocada como um outro « eu », como um interlocutor junto ao homem, o qual, no mundo circonstante das criaturas animadas, está só e não encontra em nenhuma delas um « auxiliar » que lhe seja conforme. A mulher, chamada desse modo à existência, é imediatamente reconhecida pelo homem « como carne da sua carne e osso dos seus ossos » (cf. Gên 2, 23), e precisamente por isto é chamada « mulher ». Na linguagem bíblica este nome indica a identidade essencial com referência ao homem: 'iš - 'iššah, o que, em geral, as línguas modernas infelizmente não conseguem exprimir. « Ela chamar-se-á mulher ('iššah), porque foi tirada do homem ('iš) » (Gên 2, 23).

O Texto bíblico fornece bases suficientes para reconhecer a igualdade essencial do homem e da mulher do ponto de vista da humanidade. (24) Ambos, desde o início, são pessoas, à diferença dos outros seres vivos do mundo que os circunda. A mulher é um outro «eu» na comum humanidade. Desde o início aparecem como « unidade dos dois », e isto significa a superação da solidão originária, na qual o homem não encontra um « auxiliar que lhe seja semelhante » (Gên 2, 20). Trata-se aqui do « auxiliar » só na ação, no « submeter a terra » (cf. Gên 1, 28)? Certamente se trata da companheira da vida, com a qual o homem pode unir-se como a uma esposa, tornando-se com ela « uma só carne » e abandonando por isso « seu pai e sua mãe » (cf. Gên 2, 24). A descrição bíblica, por conseguinte, fala da instituição, por parte de Deus, do matrimônio contextualmente com a criação do homem e da mulher como condição indispensável para a transmissão da vida às novas gerações dos homens, à qual o matrimônio e o amor conjugal são, por sua natureza, ordenados: « Sede fecundos e multiplicai-vos, povoai a terra; submetei-a » (Gên 1, 28).

Pessoa — Comunhão — Dom

7. Penetrando com o pensamento no conjunto da descrição de Gênesis 2, 18-25 e interpretando-a à luz da verdade sobre a imagem e semelhança de Deus (cf. Gên 1, 26-27),podemos compreender ainda mais plenamente em que consiste o caráter pessoal do ser humano, graças ao qual ambos — o homem e a mulher — são semelhantes a Deus. Cada homem, com efeito, é à imagem de Deus enquanto criatura racional e livre, capaz de conhecê-lo e de amá-lo. Lemos também que o homem não pode existir « só » (cf. Gên 2, 18); pode existir somente como « unidade dos dois », e portanto em relação a uma outra pessoa humana. Trata-se de uma relação recíproca: do homem para com a mulher e da mulher para com o homem. Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus comporta, pois, também um existir em relação, em referência ao outro « eu ». Isto preludia a definitiva autorevelação de Deus uno e trino: unidade viva na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

O início da Bíblia, não se ouve ainda dizer isto diretamente. Todo o Antigo Testamento é sobretudo a revelação da verdade sobre a unicidade e unidade de Deus. Nesta verdade fundamental sobre Deus o Novo Testamento introduzirá a revelação do mistério imperscrutável da vida íntima de Deus. Deus, que se dá a conhecer aos homens por meio de Cristo, é unidade na Trindade: é unidade na comunhão. Desse modo lança-se uma nova luz também sobre a semelhança e imagem de Deus no homem, de que fala o Livro do Gênesis. O fato de o homem, criado como homem e mulher, ser imagem de Deus não significa apenas que cada um deles, individualmente, é semelhante a Deus, enquanto ser racional e livre; significa também que o homem e a mulher, criados como « unidade dos dois » na comum humanidade, são chamados a viver uma comunhão de amor e, desse modo, a refletir no mundo a comunhão de amor que é própria de Deus, pela qual as três Pessoas se amam no íntimo mistério da única vida divina. O Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só Deus pela unidade da divindade, existem como pessoas pelas imperscrutáveis relações divinas. Somente assim se torna compreensível a verdade que Deus em si mesmo é amor (cf. 1 Jo 4, 16).

A Imagem e semelhança de Deus no homem, criado como homem e mulher (pela analogia que se pode presumir entre o Criador e a criatura), exprime portanto também a « unidade dos dois » na comum humanidade. Esta « unidade dos dois », que é sinal da comunhão interpessoal, indica que na criação do homem foi inscrita também uma certa semelhança com a comunhão divina (« communio »). Esta semelhança foi inscrita como qualidade do ser pessoal dos dois, do homem e da mulher, e, conjuntamente, como uma chamada e um empenho. Na imagem e semelhança de Deus que o gênero humano traz consigo desde o « princípio », radica-se o fundamento de todo o « ethos » humano: o Antigo e o Novo Testamento irão desenvolver esse « ethos », cujo vértice é o mandamento do amor. (25)

Na « unidade dos dois », o homem e a mulher são chamados, desde o início, não só a existir « um ao lado do outro » ou « juntos », mas também a existir reciprocamente « um para outro ».

Assim se explica também o significado daquele « auxiliar » de que se fala em Gênesis 2, 18-25: « Dar-lhe-ei um auxiliar que lhe seja semelhante ». O contexto bíblico permite entendê-lo também no sentido de que a mulher deve « auxiliar » o homem — e que este, por sua vez, deve ajudar a ela — em primeiro lugar por causa do seu idêntico « ser pessoa humana »: isto, em certo sentido, permite a ambos descobrirem sempre de novo e confirmarem o sentido integral da própria humanidade. É fácil compreender que — neste plano fundamental — se trata de um « auxiliar » de ambas as partes e de um « auxiliar » recíproco. Humanidade significa chamada à comunhão interpessoal. O texto de Gênesis 2, 18-25 indica que o matrimônio é a primeira e, num certo sentido, a fundamental dimensão desta chamada. Não é, porém, a única. Toda a história do homem sobre a terra realiza-se no âmbito desta chamada. Na base do princípio do recíproco ser « para » o outro, na « comunhão » interpessoal, desenvolve-se nesta história a integração na própria humanidade, querida por Deus, daquilo que é « masculino » e daquilo que é « feminino ». Os textos bíblicos, começando pelo Gênesis, permitem-nos reencontrar constantemente o terreno no qual se enraíza a verdade sobre o homem, um terreno sólido e inviolável em meio a tantas transformações da existência humana.

Esta verdade refere-se também à história da salvação. A este respeito, um enunciado do Concílio Vaticano II é particularmente significativo. No capítulo sobre a « comunidade dos homens » da Constituição pastoral Gaudium et Spes lemos: « Quando o Senhor Jesus reza ao Pai que "todos sejam um... como nós somos um" (Jo 17, 21-22), abre perspectivas inacessíveis à razão humana e sugere alguma semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança manifesta que o homem, única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesmo ». (26)

Com estas palavras o texto conciliar apresenta sinteticamente o conjunto da verdade sobre o homem e sobre a mulher — verdade que se delineia já nos primeiros capítulos do Livro do Gênesis — como a própria estrutura que sustenta a antropologia bíblica e cristã. O homem — tanto homem como mulher — é o único ser entre as criaturas do mundo visível que Deus Criador « quis por si mesmo »: é portanto uma pessoa. O ser pessoa significa tender à própria realização (o texto conciliar diz « se encontrar »), que não se pode alcançar « senão por um dom sincero de si mesmo ». Modelo de tal interpretação da pessoa é Deus mesmo como Trindade, como comunhão de Pessoas. Dizer que o homem é criado à imagem e semelhança deste Deus quer dizer também que o homem é chamado a existir « para » os outros, a tornar-se um dom.

Isso diz respeito a todo ser humano, seja homem, seja mulher; estes o atuam na peculiaridade própria a cada um. No âmbito da presente meditação sobre a dignidade e a vocação da mulher, esta verdade sobre o ser humano constitui o ponto de partida indispensável. Já o Livro do Gênesis permite entrever, como num primeiro esboço, este caráter esponsal da relação entre as pessoas, terreno sobre o qual se desenvolverá, a seguir, a verdade sobre a maternidade, como também sobre a virgindade, como duas dimensões particulares da vocação da mulher à luz da Revelação divina. Estas duas dimensões vão encontrar a sua expressão mais alta no advento da «plenitude dos tempos» (cf. Gál 4, 4) na figura da « mulher » de Nazaré: Mãe-Virgem.

O antropomorfismo da linguagem bíblica

8. A apresentação do homem como « imagem e semelhança de Deus », logo no início da Sagrada Escritura, reveste-se também de outro significado. Este fato constitui a chave para compreender a Revelação bíblica como um discurso de Deus sobre si mesmo. Falando de si, seja « pelos profetas, seja por meio do Filho » (cf. Hbr 1, 1-2) feito homem, Deus fala com linguagem humana, faz uso de conceitos e imagens humanas. Se este modo de exprimir-se é caracterizado por um certo antropomorfismo, a razão está no fato de que o homem é « semelhante » a Deus: criado à sua imagem e semelhança. E então também Deus é, de algum modo, « semelhante ao homem » e, precisamente com base nesta semelhança, ele pode ser conhecido pelos homens. Ao mesmo tempo a linguagem da Bíblia é suficientemente precisa para indicar os limites da « semelhança », os limites da « analogia ». Com efeito, a revelação bíblica afirma que, se é verdadeira a « semelhança » do homem com Deus, é essencialmente mais verdadeira ainda a « não-semelhança », (27) que separa do Criador toda a criação. Em última análise, para o homem criado à semelhança de Deus, Deus não cessa de ser « aquele que habita numa luz inacessível » ( 1 Tim 6, 16): é o « Diverso » por essência, o « totalmente Outro ».

Esta observação sobre os limites da analogia — limites da semelhança do homem com Deus na linguagem bíblica — deve ser levada em consideração também quando, em diversas passagens da Sagrada Escritura (especialmente no Antigo Testamento), encontramos comparações que atribuem a Deus qualidades « masculinas » ou « femininas ». Encontramos nessas comparações a confirmação indireta da verdade de que ambos, tanto o homem como a mulher, foram criados à imagem e semelhança de Deus. Se existe semelhança entre o Criador e as criaturas, é compreensível que a Bíblia tenha usado, a esse respeito, expressões que lhe atribuem qualidades quer « masculinas » quer « femininas ».

Lembramos aqui algumas passagens características do profeta Isaías: « Dissera Sião: "Javé abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim ". Pode, acaso, uma mãe esquecer o próprio filhinho, não se enternecer pelo fruto das suas entranhas? Pois bem; ainda que tais mulheres dele se esqueçam, eu, porém, não me esquecerei de ti » (49, 14-15). E noutra passagem: « Como alguém que é consolado pela própria mãe, assim eu vos consolarei; e em Jerusalém recebereis conforto » (Is 66, 13). Também nos Salmos Deus é comparado a uma mãe pressurosa: « Como a criança desmamada no regaço da mãe, como uma criança desmamada está minh'alma. Espera, Israel, no Senhor » (Sl 131, 2-3). Em diversos trechos o amor de Deus, solícito para com o seu povo, é apresentado como semelhante ao amor de uma mãe: tal como uma mãe, Deus «carregou » a humanidade e, particularmente, o seu povo escolhido no próprio seio, deu-o à luz na dor, nutriu-o e consolou-o (cf. Is 42, 14; 46, 3-4). O amor de Deus é apresentado em muitos trechos como amor « masculino » de esposo e pai (cf. Os 11, 1-4; Jer 3, 4-19), mas, às vezes, também como amor a feminino » de mãe.

Esta característica da linguagem bíblica, o seu modo antropomórfico de falar de Deus, indica também indiretamente o mistério do eterno « gerar », que pertence à vida íntima de Deus. Todavia, este « gerar » em si mesmo não possui qualidades « masculinas » nem « femininas ». É de natureza totalmente divina. É espiritual do modo mais perfeito, pois « Deus é espírito » (Jo 4, 24) e não possui nenhuma propriedade típica do corpo, nem « feminina » nem « masculina ». Por conseguinte, também a « paternidade » em Deus é totalmente divina, livre da característica corporal « masculina », que é própria da paternidade humana. Neste sentido, o Antigo Testamento falava de Deus como de um Pai e se dirigia a ele como a um Pai. Jesus Cristo, que pôs esta verdade no próprio centro do seu Evangelho como norma da oração cristã, e que se dirigia a Deus chamando-lhe: « Abá - Pai » (Mc 14, 36), como Filho unigênito e consubstancial, indicava a paternidade neste sentido ultra-corporal, sobre-humano, totalmente divino. Falava como Filho, unido ao Pai pelo mistério eterno do gerar divino, e o fazia sendo ao mesmo tempo. Filho autenticamente humano da sua Mãe Virgem.

Se à geração eterna do Verbo de Deus não se podem atribuir qualidades humanas, nem a paternidade divina possui caracteres « masculinos » em sentido físico, contudo o modelo absoluto de toda « geração » dos seres humanos no mundo deve ser procurado em Deus. Nesse sentido — parece — lemos na Carta aos Efésios: « dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda a paternidade quer nos céus, quer na terra » (3, 14-15). Todo « gerar » na dimensão das criaturas encontra o seu primeiro modelo no gerar que em Deus é de modo completamente divino, isto é, espiritual. A este modelo absoluto, não-criado, é assimilado todo « gerar » no mundo criado. Por isso, tudo quanto no gerar humano é próprio do homem, como também tudo quanto é próprio da mulher, isto é, a « paternidade » e a « maternidade » humanas, trazem em si a semelhança, ou seja, a analogia com o « gerar » divino e com a « paternidade » que em Deus é « totalmente diversa »: completamente espiritual e divina por essência. Na ordem humana, ao invés, o gerar é próprio da « unidade dos dois »: um e outro são « genitores », tanto o homem como a mulher.

                                   Próxima Publicação Capítulo IV

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Macrina e seus Irmãos (Capítulo 2 de 2)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Macrina Mestra

 Nascimento espiritual
            Macrina, como suas irmãs, foi primeiramente prometida em casamento; a morte acidental daquele que lhe era destinado, conta-nos Gregório, leva-a a retirar-se do mundo :
            Resolveu viver daí por diante sozinha, propósito que veio a se tornar mais firme do que se poderia prever pela idade dela’ (VSM, 5,5).
            Por essa decisão, Macrina ‘nasce do alto’, de certa forma; ela realiza o nascimento espiritual que para Moisés coincide com o nascimento biológico : ‘Ela é o resultado de uma escolha livre e nós somos assim, em certo sentido nossos próprios pais, criando-nos nós mesmos tais como queremos ser’ (Vida de Moisés, 11,3).
Extraordinária fórmula, à qual Gregório volta várias vezes. Tal liberdade, tanto em Macrina como em Moisés, não poderia deixar de dar frutos. 

Maternidade
A própria estrutura do relato, na ‘Vida de Macrina’, nos mostra como ela se torna de certo modo a mãe de sua própria mãe, depois, de seus quatro irmãos, realizando assim um processo de conversão radical. Já se sublinhou o caráter fortemente matriarcal dessa história familiar, na qual se sucedem Macrina, a Grande, Emélia e Macrina, mas pode-se reconhecer que é o oposto de uma misoginia (13) tradicional e muitas vezes levada adiante.
Gregório nos apresenta o liame de Macrina com sua mãe como uma espécie de maternidade mútua :
Entre uma e outra realizava-se um intercâmbio muito proveitoso : uma tomava conta da alma de sua filha, outra, do corpo de sua mãe, cumprindo a filha o serviço dela exigido em todos os setores, particularmente preparando muitas vezes, com suas próprias mãos, o pão para sua mãe’ (VSM, 5).          
            Quando da morte de Naucrácio, Macrina foi para sua mãe ‘uma educadora para a coragem’ (VSM, 10). Notemos que essa atitude inquebrantável de Macrina, longe de nos ser apresentada como a marca de uma impassibilidade de inspiração estoica, aparece antes como um fruto espiritual :
            Nela também a natureza movia aos mesmos sentimentos (que sua mãe); era seu irmão, e o mais caro deles, que a morte havia levado em circunstâncias tão penosas’ (VSM, 10).
            Em relação a Basílio, Macrina tem principalmente um papel de exortação; ele voltou de Atenas deformado pelos faustos da retórica e do saber profano, mas Macrina ‘o atrai para o ideal da filosofia’. Aqui ainda, como o nota P. Maraval, tocamos no caráter subjetivo do relato : Gregório dá a Macrina um papel determinante enquanto que Basílio não diz uma palavra.
            Como já vimos, Gregório designa Naucrácio como o irmão preferido de Macrina : o relato talvez nos dê a explicação ao mostrar que no fundo, Naucrácio fez por si mesmo escolha idêntica à de Macrina, ‘voltando-se para a vida solitária e pobre, levando consigo apenas a sua própria pessoa’ (VSM, 8). Nada é dito dos seus laços com Macrina mas tudo o que nos é sugerido pela vida solitária de Naucrácio faz dele o irmão espiritual de Macrina.
            O último irmão, Pedro, foi educado sobretudo por Macrina, depois da morte de seus pais : ‘Tornou-se tudo para o menino : pai, mestre, pedagogo, mãe, conselheira de tudo que era bom’ (VSM, 12). A última oração de Emélia, cercada por Macrina e Pedro, consagra os dois a Deus (cap. 13). Aqui se apresenta o nascimento das formas de vida que vão caracterizar a família cristã, alguns filhos constituindo o ‘dízimo’ para Deus, como diz Gregório. 

            Macrina, a Filósofa
            Quando de um recente colóquio consagrado às obras biográficas de São Gregório de Nissa, a ‘Vida de Macrina’ foi comparada com dois textos profanos do mesmo período : a Vida de Plotino, escrita por porfírio, e a Vida de Pitágoras, deixada por Jâmblico (14), portanto, dois textos neoplatônicos. O autor do artigo mostra todavia, que a ‘vida filosófica’ tem para Gregório os traços característicos da vida monástica, o que modifica sensivelmente o significado do termo ‘filosofia’, que para os neoplatônicos seria uma vida contemplativa de união a Deus.
            O diálogo filosófico de Gregório e de Macrina sobre a morte e a ressurreição guarda,  entretanto, a marca do diálogo platônico. Por sua palavra que é confissão de fé, Macrina tem uma influência decisiva sobre o irmão, se o relato for verídico. No início do diálogo, ela é consoladora e acalma as dúvidas de Gregório; mas pode também se indignar por sua ignorância e acusá-lo de impiedade (cl. PG 46, 40-41). Depois da última argumentação sobre a doutrina da ressurreição, ela o felicita por sua eloquência, mas o envia firmemente à palavra evangélica :
            A verdade não é assim, e mesmo se estamos na impossibilidade de te responder com a mesma eloquência, a palavra da verdade sobre esse assunto está depositada nos tesouros ocultos da Sabedoria.’ (PG 46,145).
            Macrina convida então Gregório a converter seu próprio discurso teológico, sua maneira de raciocinar, e para além da hagiografia, podemos divisar uma interrogação verdadeira : nesse final do século IV, o nascimento do monaquismo, masculino e feminino, não operou uma ruptura mais precisa dos laços com o pensamento e a cultura profanas, até então admitidas senão requeridas, na formação dos próprios cristãos?
            Mas a influência de Macrina só teve efeito porque, continuamente, seu discurso estava associado a um comportamento. Como Sócrates que deixou a cicuta agir, com toda serenidade, Macrina se desapegou de seu próprio sofrimento e os dois textos se reúnem para mostrar a fé do personagem : o relato de sua vida, pela descrição de seus últimos gestos – sinal da cruz e movimento dos olhos para a luz (ver VSM, 25) – e o diálogo, pela firmeza de suas demonstrações e de sua confissão de fé.
            A ‘Vida de Macrina’ não é pois, apenas um elogio da vida monástica em suas primeiras manifestações. A insistência de Gregório sobre o papel familiar de Macrina nos convida a perceber como toda uma sociedade ficou doravante marcada pelo cristianismo. Alguns não deixariam de ver aí também o nascimento da neurose cristã – assunto de leitura e de discernimento cotidiano para nossas próprias vidas, porque não podemos saber o que há de certo na realidade histórica dessas existências.

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Notas :   

(13)   Ódio ou aversão às mulheres (N. do T.). 
 

(14)  Jâmblico de Cálcis, na Celessíria, (ca. 250 – ca. 328) foi o fundador da escola neoplatônica siríaca (N. do T.).



sexta-feira, 3 de maio de 2013

Macrina e seus Irmãos (Capítulo 1 de 2)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 * Artigo de Françoise Vinel
 

Introdução
            Uma santidade que parece ser de família – diríamos para começar - pois, além de Macrina, a mais velha, há Basílio e Gregório de Nissa, conhecidos e honrados, como também Naucrácio, Pedro, bispo de Sebaste na Armênia Menor, sem esquecer as gerações anteriores; Emélia, sua mãe e aquela que a tradição chama de Macrina, a Grande, da primeira geração cristã na Capadócia. Certamente, nosso olho crítico e suspeitoso de modernos não deixa de colocar alguns pontos de interrogação : não há sobre Macrina qualquer escrito, qualquer menção em toda a obra de Basílio, mas em contraposição, que imagem elogiosa, cheia de afeição, encontramos dela em Gregório ao lermos a ‘Vida de Santa Macrina’ e o ‘Tratado sobre a alma e a ressurreição(1); no entanto, o apreciador de biografias ficará sem dúvida decepcionado, por isso é-nos necessário primeiramente, tomar consciência de que a noção de relato de uma vida, de testemunho (e com essa palavra entramos no cerne da questão) mudou desde os primeiros séculos da era cristã. Estamos hoje como que à espreita de testemunhos que são reportagens feitas ao vivo, diários íntimos : assim a autobiografia espiritual deixada por Simone Weil (2), ou o diário encontrado da judia holandesa Etty Hillesum, deportada e morta em Auschwitz (3). No século IV, os relatos de vidas, raramente autobiográficos, ainda seguiam os modelos literários herdados da Antiguidade profana, e os textos cristãos não se inscrevem necessariamente numa perspectiva hagiográfica, até que sejam inovados pelas ‘Confissões’ de Santo Agostinho.
            Os manuscritos hesitam, nos diz P. Maraval (4), sobre o destinatário da ‘Vida de Macrina’. O importante é que Gregório aí se apresenta como aquele que assistiu à morte de sua irmã, quando passava para visitá-la em seu mosteiro, depois de ter notícias alarmantes sobre sua saúde. O ‘Tratado sobre a alma e a ressurreição’ se apresenta como a transcrição da última conversa de Gregório com Macrina. Dois traços característicos desses textos aparecem imediatamente : trata-se de um relato de vida exemplar, inscrevendo-se, por exemplo, na mesma linha da ‘Vida de Antão’, o eremita, escrita por Santo Atanásio (5). Como Antão, Macrina é o modelo de uma atitude diante da morte, mas sua escolha da vida monástica fez também de toda a sua vida um testemunho, dirigido em primeiro lugar a seus próprios irmãos, de um desejo de conversão radical. Aos olhos de Gregório, principalmente, Macrina é uma ‘filósofa’, ou didáscala (mestra e como pano de fundo desse diálogo teológico que é o ‘Tratado sobre a alma e a ressurreição’, não se pode deixar de evocar as figuras de Sócrates e de Diótima, aquela mulher de Mantinée da qual Sócrates diz ter recebido o único ensinamento convincente sobre a definição de amor (6). Entramos, pois, aqui, com essas duas obras, no cerne da relação complexa entre a presença monástica feminina, presença silenciosa, e os teólogos, no caso, Gregório, que não cessa de afirmar a verdadeira inspiração que foi para ele sua irmã – ela é para ele uma figura da Sabedoria. 
 
Macrina, modelo de uma atitude diante da morte
            Na tradição dos Pais do Deserto, é na hora da morte que se revela a profundidade, a justeza da vida do monge. Do mesmo modo, no centro de tudo o que nos ensina Gregório sobre Macrina, há o relato comovido de seus últimos momentos. Esse aspecto toma um relevo talvez maior ainda se nos lembrarmos do lugar que tem na obra de Gregório a interrogação sobre a morte : um tratado sobre a questão das crianças mortas prematuramente (7), o De mortuis (8), e com certeza as questões que o próprio Gregório coloca à sua irmã no seu diálogo e das quais a primeira dá o tom : ‘Qual é o meio de ter como nada a partida da vida, mesmo quando se trata de parentes, quando eles cessam de viver(9)? A maneira pela qual Gregório descreve sua própria atitude, sua dor, dá todo o seu alcance ao ensino de Macrina. Mas baseando-nos na radicalidade do relato da morte de Antão (10), o da morte de Macrina é marcado por traços psicológicos de humanidade.
            Macrina se tornou a memória de sua família e esse aspecto é importante : a história de uma família e a história da Igreja da Capadócia são aqui indissociáveis.
            Ela começou a nos contar a sua vida como tinha sido desde a juventude. Expôs por ordem todos os fatos como numa história. Contava também os acontecimentos da vida de nossos pais, dos quais guardava lembrança, tanto dos que haviam ocorrido antes do meu nascimento, como os dos anos posteriores. A finalidade da narrativa era chegar à ação de graças para com Deus’ (VSM, 20).
            Macrina celebra pois, a existência de três gerações cristãs mencionando pouco depois seus avós. Ela tem o sentimento de vidas plenamente realizadas; e por contraste, o relato que Gregório faz de suas próprias infelicidades no capítulo seguinte suscita as exortações e reprovações de Macrina : ‘Não deixarás, disse-me ela então, de desconhecer os dons de Deus?’ (cap.21). Essa atitude esclarece a posteriori o papel de Macrina junto a Basílio, Naucrácio e Pedro. No plano psicológico como no plano espiritual, todo o relato opõe a maturidade de Macrina às tentações mundanas de Basílio e às inquietações de Gregório. Com a aproximação da morte, ela continua a realizar o estado que já era o seu desde a juventude : ela está ‘acima da natureza’, ‘como um anjo’. Os traços hagiográficos são claros aqui, e ao relato da morte propriamente dita se acrescenta o relato de um milagre contado a Gregório pelas virgens do mosteiro. Entretanto, notemos, o ritual da morte, a última prece de Macrina e depois a liturgia dos funerais, não ocultam esse aspecto humano de uma vida cristã que se desenrolou numa duração comum.

            A Conversão de um gênero de vida
            Um outro artigo neste número evoca o nascimento do monaquismo feminino (p.55). São ainda realidades familiares e sociais concretas que nos interessam no momento, tanto quanto o relato nos deixa entrever. À sua luz, certos aspectos da obra de Basílio e de Gregório perdem sem dúvida um pouco de seu caráter retórico : Macrina escolheu a pobreza e faz da propriedade da família, transformada em mosteiro, um lugar de hospitalidade e de exercício da caridade. Um pouco mais tarde, em Constantinopla, Basílio e Gregório fizeram vários sermões contra os ricos e os usurários (11). Gregório se escandaliza várias vezes com o luxo das grandes propriedades, das ‘vilas’ que deviam existir em toda a Ásia Menor. Nas Homilias sobre o Eclesiastes, ele argumenta com virulência contra a escravatura recorrendo à afirmação teológica que todo homem foi feito à imagem de Deus, e que, portanto, ninguém pode ser legitimamente, senhor dos outros.
            Sem dúvida o anátema contra os ricos faz parte dos temas obrigatórios da homilética, pelo menos em referência aos grandes textos evangélicos sobre o tema. Mas ele ganha em realismo se nos referirmos aos estudos recentes sobre os pobres e a pobreza em Bizâncio e sobre a Igreja na Capadócia, no século IV (12) : tudo leva a pensar que, se os grandes proprietários – vale dizer também o Estado imperial e a Igreja, nova autoridade – se enriqueciam, a marginalização dos pobres era crescente, reduzidos ao estado de dependência no meio rural e obrigados a se submeter a um ‘patrão’ em zona urbana. Sobre esse pano de fundo, o caráter exemplar da ‘Vida de Macrina’ diz muito sobre a mudança social operada.
            Quando ela faz o relato de sua vida, Macrina não hesita em mencionar a riqueza crescente de sua família :
            Os recursos familiares, graças à sua confiança, haviam aumentado tanto que não se poderia, naquele tempo, encontrar quem os pudesse ultrapassar’ (VSM, 20).
            Mas Gregório lembra imediatamente que ‘ela não guardou para si qualquer bem dos que lhe tinham sido atribuídos quando da partilha entre irmãos e irmãs’.
            A continuação do texto menciona ‘as obras’ realizadas por Macrina e suas companheiras. A historiadora E. Patlagean, quando se interroga sobre as consequências econômicas e sociais do monaquismo feminino na alta sociedade bizantina, mostra que isso não modificou seu papel social de beneficência; como se a sociedade religiosa e sociedade civil se encontrassem nesse ponto. A modificação da ordem social operada por Macrina é ainda mais notável :
            Como qualquer possibilidade de vida excessivamente voltada para as coisas materiais já lhe tivesse sido cortada, Macrina convenceu a mãe de renunciar à sua maneira habitual de viver, a seus modos de grande dama, bem como aos serviços que costumava receber de suas criadas, a fim de assumir a condição das pessoas mais simples. Deveria viver como as virgens que tinha consigo, transformando-as, de escravas e criadas que eram, em irmãs e suas iguais’ (VSM, 7).
            Na atitude de Macrina em relação à sua mãe transparece sua função de mestra espiritual, mas convém primeiramente sublinhar esse enraizamento concreto do papel de Macrina, realizando de uma só vez, a perfeição da vida monástica.  
 

Fonte : 

* Françoise Vinel tem formação literária (Escola Normal Superior), é diplomada em Letras Clássicas e tem especialização em patrística.

Tese : Homilias sobre o Eclesiástico de Gregório de Nissa (primeira tradução francesa), defendida na Universidade de Paris IV – Sorbonne.

Desde 1986, integra a equipe de tradução da Septuaginta, dirigida por M. Harl, G. Dorival e O. Munnich, de iniciação ao hebraico, à história e literatura do judaísmo antigo.

Desde 2000, colabora com J. Larchet na publicação da tradução às Questões de Talásio de Máximo, Confessor, fazendo voltar o interesse pela antropologia teológica e hermenêutica bíblica dos Padres gregos. 

Artigo publicado em Connaissance des Pères de L’Eglise, 36, dezembro 1989.
Traduzido do francês pelo Mosteiro da Santa Cruz, Juiz de Fora – MG.

Revista Beneditina nrº 36, Novembro/Dezembro de 2009, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais. 

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Notas :
 

(1)   Este artigo se apoia essencialmente em duas obras de GREGÓRIO DE NISSA : a Vida de Santa Macrina, editada e traduzida por P. MARAVAL (SC 178 que nas referências será abrevida por VSM); o Tratado sobre a alma e a ressurreição.
 

(2)  S. WEIL, ‘Autobiographie spirituelle’, carta dirigida ao Pe. Perrin, em Attente de Dieu (Col. Livre de Vie).
 

(3)  ETTY HILLESUM, Une vie bouleversée (Uma vida tumultuada), Seuil.
 

(4)  Ver VSM, p. 136-137.
 

(5)  SANTO ATANÁSIO, Antoine le Grand, père des moines (Antão, o Grande, pai dos monges), tradução de B. Lavaoud, reed. Le Cerf, col. Foi vivante 240.
 

(6)  Ver PLATÃO, O Banquete. (Diótima de Mantinée é uma sacerdotisa e profetisa que desempenha um papel importante no ‘Banquete’ de Platão. De fato, com Diótima é a filosofia que entra em cena no diálogo e que abre uma dimensão nova, a da inteligência. N. do T.).
 

(7)  PG 46, 161-192.
 

(8) PG 46, 497 ss.
 

(9)  PG 46, 13A. 
 

(10)  Ver Vida de Antão, caps. 91 e 92. 
 

(11)  Ver a série de textos do século IV reunidos no volume Riches et pauvres dan l’Eglise ancienne, col. Pères dan la foi, DDB. 
 

(12)  Duas teses recentes estudaram esse aspecto : E. ATLAGEAN, Pauvreté economique et pauvreté sociale à Byzance (IVe. – VIIe. siècles), Paris 1977; e B. GAIN, L’Eglise de Cappadoce au IVe. siècle d’après la correspondance de Basile de Césarée, Roma, 1985.