Macrina Mestra
Nascimento
espiritual
Macrina, como suas irmãs, foi primeiramente prometida em
casamento; a morte acidental daquele que lhe era destinado, conta-nos Gregório,
leva-a a retirar-se do mundo :
‘Resolveu viver daí
por diante sozinha, propósito que veio a se tornar mais firme do que se poderia
prever pela idade dela’ (VSM, 5,5).
Por essa decisão, Macrina ‘nasce do alto’, de certa forma; ela realiza o nascimento espiritual
que para Moisés coincide com o nascimento biológico : ‘Ela é o resultado de uma escolha livre e nós somos assim, em certo
sentido nossos próprios pais, criando-nos nós mesmos tais como queremos ser’
(Vida de Moisés, 11,3).
Extraordinária
fórmula, à qual Gregório volta várias vezes. Tal liberdade, tanto em Macrina
como em Moisés, não poderia deixar de dar frutos.
Maternidade
A
própria estrutura do relato, na ‘Vida de
Macrina’, nos mostra como ela se torna de certo modo a mãe de sua própria
mãe, depois, de seus quatro irmãos, realizando assim um processo de conversão
radical. Já se sublinhou o caráter fortemente matriarcal dessa história
familiar, na qual se sucedem Macrina, a Grande, Emélia e Macrina, mas pode-se
reconhecer que é o oposto de uma misoginia (13)
tradicional e muitas vezes levada adiante.
Gregório
nos apresenta o liame de Macrina com sua mãe como uma espécie de maternidade
mútua :
‘Entre uma e outra realizava-se um
intercâmbio muito proveitoso : uma tomava conta da alma de sua filha, outra, do
corpo de sua mãe, cumprindo a filha o serviço dela exigido em todos os setores,
particularmente preparando muitas vezes, com suas próprias mãos, o pão para sua
mãe’ (VSM, 5).
Quando da morte de Naucrácio, Macrina foi para sua mãe ‘uma educadora para a coragem’ (VSM, 10).
Notemos que essa atitude inquebrantável de Macrina, longe de nos ser
apresentada como a marca de uma impassibilidade de inspiração estoica, aparece
antes como um fruto espiritual :
‘Nela também a
natureza movia aos mesmos sentimentos (que sua mãe); era seu irmão, e o mais
caro deles, que a morte havia levado em circunstâncias tão penosas’ (VSM,
10).
Em relação a Basílio, Macrina tem principalmente um papel
de exortação; ele voltou de Atenas deformado pelos faustos da retórica e do
saber profano, mas Macrina ‘o atrai para
o ideal da filosofia’. Aqui ainda, como o nota P. Maraval, tocamos no
caráter subjetivo do relato : Gregório dá a Macrina um papel determinante
enquanto que Basílio não diz uma palavra.
Como já vimos, Gregório designa Naucrácio como o irmão
preferido de Macrina : o relato talvez nos dê a explicação ao mostrar que no
fundo, Naucrácio fez por si mesmo escolha idêntica à de Macrina, ‘voltando-se para a vida solitária e pobre,
levando consigo apenas a sua própria pessoa’ (VSM, 8). Nada é dito dos seus
laços com Macrina mas tudo o que nos é sugerido pela vida solitária de
Naucrácio faz dele o irmão espiritual de Macrina.
O último irmão, Pedro, foi educado sobretudo por Macrina,
depois da morte de seus pais : ‘Tornou-se
tudo para o menino : pai, mestre, pedagogo, mãe, conselheira de tudo que era
bom’ (VSM, 12). A última oração de Emélia, cercada por Macrina e Pedro,
consagra os dois a Deus (cap. 13). Aqui se apresenta o nascimento das formas de
vida que vão caracterizar a família cristã, alguns filhos constituindo o ‘dízimo’ para Deus, como diz Gregório.
Macrina, a
Filósofa
Quando de um recente colóquio consagrado às obras
biográficas de São Gregório de Nissa, a ‘Vida
de Macrina’ foi comparada com dois textos profanos do mesmo período : a Vida de Plotino, escrita por porfírio, e
a Vida de Pitágoras, deixada por
Jâmblico (14), portanto, dois textos
neoplatônicos. O autor do artigo mostra todavia, que a ‘vida filosófica’ tem para Gregório os traços característicos da
vida monástica, o que modifica sensivelmente o significado do termo ‘filosofia’, que para os neoplatônicos
seria uma vida contemplativa de união a Deus.
O diálogo filosófico de Gregório e de Macrina sobre a
morte e a ressurreição guarda, entretanto, a marca do diálogo platônico. Por
sua palavra que é confissão de fé, Macrina tem uma influência decisiva sobre o
irmão, se o relato for verídico. No início do diálogo, ela é consoladora e
acalma as dúvidas de Gregório; mas pode também se indignar por sua ignorância e
acusá-lo de impiedade (cl. PG 46, 40-41). Depois da última argumentação sobre a
doutrina da ressurreição, ela o felicita por sua eloquência, mas o envia
firmemente à palavra evangélica :
‘A verdade não é
assim, e mesmo se estamos na impossibilidade de te responder com a mesma
eloquência, a palavra da verdade sobre esse assunto está depositada nos
tesouros ocultos da Sabedoria.’ (PG 46,145).
Macrina convida então Gregório a converter seu próprio
discurso teológico, sua maneira de raciocinar, e para além da hagiografia,
podemos divisar uma interrogação verdadeira : nesse final do século IV, o
nascimento do monaquismo, masculino e feminino, não operou uma ruptura mais
precisa dos laços com o pensamento e a cultura profanas, até então admitidas senão
requeridas, na formação dos próprios cristãos?
Mas a influência de Macrina só teve efeito porque,
continuamente, seu discurso estava associado a um comportamento. Como Sócrates
que deixou a cicuta agir, com toda serenidade, Macrina se desapegou de seu
próprio sofrimento e os dois textos se reúnem para mostrar a fé do personagem :
o relato de sua vida, pela descrição de seus últimos gestos – sinal da cruz e
movimento dos olhos para a luz (ver VSM, 25) – e o diálogo, pela firmeza de
suas demonstrações e de sua confissão de fé.
A ‘Vida de Macrina’
não é pois, apenas um elogio da vida monástica em suas primeiras manifestações.
A insistência de Gregório sobre o papel familiar de Macrina nos convida a
perceber como toda uma sociedade ficou doravante marcada pelo cristianismo.
Alguns não deixariam de ver aí também o nascimento da neurose cristã – assunto
de leitura e de discernimento cotidiano para nossas próprias vidas, porque não
podemos saber o que há de certo na realidade histórica dessas existências.
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Notas :
(13) Ódio ou aversão às mulheres
(N. do T.).
(14) Jâmblico de Cálcis, na Celessíria,
(ca. 250 – ca. 328) foi o fundador da escola neoplatônica siríaca (N. do T.).
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