segunda-feira, 6 de maio de 2013

Macrina e seus Irmãos (Capítulo 2 de 2)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


Macrina Mestra

 Nascimento espiritual
            Macrina, como suas irmãs, foi primeiramente prometida em casamento; a morte acidental daquele que lhe era destinado, conta-nos Gregório, leva-a a retirar-se do mundo :
            Resolveu viver daí por diante sozinha, propósito que veio a se tornar mais firme do que se poderia prever pela idade dela’ (VSM, 5,5).
            Por essa decisão, Macrina ‘nasce do alto’, de certa forma; ela realiza o nascimento espiritual que para Moisés coincide com o nascimento biológico : ‘Ela é o resultado de uma escolha livre e nós somos assim, em certo sentido nossos próprios pais, criando-nos nós mesmos tais como queremos ser’ (Vida de Moisés, 11,3).
Extraordinária fórmula, à qual Gregório volta várias vezes. Tal liberdade, tanto em Macrina como em Moisés, não poderia deixar de dar frutos. 

Maternidade
A própria estrutura do relato, na ‘Vida de Macrina’, nos mostra como ela se torna de certo modo a mãe de sua própria mãe, depois, de seus quatro irmãos, realizando assim um processo de conversão radical. Já se sublinhou o caráter fortemente matriarcal dessa história familiar, na qual se sucedem Macrina, a Grande, Emélia e Macrina, mas pode-se reconhecer que é o oposto de uma misoginia (13) tradicional e muitas vezes levada adiante.
Gregório nos apresenta o liame de Macrina com sua mãe como uma espécie de maternidade mútua :
Entre uma e outra realizava-se um intercâmbio muito proveitoso : uma tomava conta da alma de sua filha, outra, do corpo de sua mãe, cumprindo a filha o serviço dela exigido em todos os setores, particularmente preparando muitas vezes, com suas próprias mãos, o pão para sua mãe’ (VSM, 5).          
            Quando da morte de Naucrácio, Macrina foi para sua mãe ‘uma educadora para a coragem’ (VSM, 10). Notemos que essa atitude inquebrantável de Macrina, longe de nos ser apresentada como a marca de uma impassibilidade de inspiração estoica, aparece antes como um fruto espiritual :
            Nela também a natureza movia aos mesmos sentimentos (que sua mãe); era seu irmão, e o mais caro deles, que a morte havia levado em circunstâncias tão penosas’ (VSM, 10).
            Em relação a Basílio, Macrina tem principalmente um papel de exortação; ele voltou de Atenas deformado pelos faustos da retórica e do saber profano, mas Macrina ‘o atrai para o ideal da filosofia’. Aqui ainda, como o nota P. Maraval, tocamos no caráter subjetivo do relato : Gregório dá a Macrina um papel determinante enquanto que Basílio não diz uma palavra.
            Como já vimos, Gregório designa Naucrácio como o irmão preferido de Macrina : o relato talvez nos dê a explicação ao mostrar que no fundo, Naucrácio fez por si mesmo escolha idêntica à de Macrina, ‘voltando-se para a vida solitária e pobre, levando consigo apenas a sua própria pessoa’ (VSM, 8). Nada é dito dos seus laços com Macrina mas tudo o que nos é sugerido pela vida solitária de Naucrácio faz dele o irmão espiritual de Macrina.
            O último irmão, Pedro, foi educado sobretudo por Macrina, depois da morte de seus pais : ‘Tornou-se tudo para o menino : pai, mestre, pedagogo, mãe, conselheira de tudo que era bom’ (VSM, 12). A última oração de Emélia, cercada por Macrina e Pedro, consagra os dois a Deus (cap. 13). Aqui se apresenta o nascimento das formas de vida que vão caracterizar a família cristã, alguns filhos constituindo o ‘dízimo’ para Deus, como diz Gregório. 

            Macrina, a Filósofa
            Quando de um recente colóquio consagrado às obras biográficas de São Gregório de Nissa, a ‘Vida de Macrina’ foi comparada com dois textos profanos do mesmo período : a Vida de Plotino, escrita por porfírio, e a Vida de Pitágoras, deixada por Jâmblico (14), portanto, dois textos neoplatônicos. O autor do artigo mostra todavia, que a ‘vida filosófica’ tem para Gregório os traços característicos da vida monástica, o que modifica sensivelmente o significado do termo ‘filosofia’, que para os neoplatônicos seria uma vida contemplativa de união a Deus.
            O diálogo filosófico de Gregório e de Macrina sobre a morte e a ressurreição guarda,  entretanto, a marca do diálogo platônico. Por sua palavra que é confissão de fé, Macrina tem uma influência decisiva sobre o irmão, se o relato for verídico. No início do diálogo, ela é consoladora e acalma as dúvidas de Gregório; mas pode também se indignar por sua ignorância e acusá-lo de impiedade (cl. PG 46, 40-41). Depois da última argumentação sobre a doutrina da ressurreição, ela o felicita por sua eloquência, mas o envia firmemente à palavra evangélica :
            A verdade não é assim, e mesmo se estamos na impossibilidade de te responder com a mesma eloquência, a palavra da verdade sobre esse assunto está depositada nos tesouros ocultos da Sabedoria.’ (PG 46,145).
            Macrina convida então Gregório a converter seu próprio discurso teológico, sua maneira de raciocinar, e para além da hagiografia, podemos divisar uma interrogação verdadeira : nesse final do século IV, o nascimento do monaquismo, masculino e feminino, não operou uma ruptura mais precisa dos laços com o pensamento e a cultura profanas, até então admitidas senão requeridas, na formação dos próprios cristãos?
            Mas a influência de Macrina só teve efeito porque, continuamente, seu discurso estava associado a um comportamento. Como Sócrates que deixou a cicuta agir, com toda serenidade, Macrina se desapegou de seu próprio sofrimento e os dois textos se reúnem para mostrar a fé do personagem : o relato de sua vida, pela descrição de seus últimos gestos – sinal da cruz e movimento dos olhos para a luz (ver VSM, 25) – e o diálogo, pela firmeza de suas demonstrações e de sua confissão de fé.
            A ‘Vida de Macrina’ não é pois, apenas um elogio da vida monástica em suas primeiras manifestações. A insistência de Gregório sobre o papel familiar de Macrina nos convida a perceber como toda uma sociedade ficou doravante marcada pelo cristianismo. Alguns não deixariam de ver aí também o nascimento da neurose cristã – assunto de leitura e de discernimento cotidiano para nossas próprias vidas, porque não podemos saber o que há de certo na realidade histórica dessas existências.

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Notas :   

(13)   Ódio ou aversão às mulheres (N. do T.). 
 

(14)  Jâmblico de Cálcis, na Celessíria, (ca. 250 – ca. 328) foi o fundador da escola neoplatônica siríaca (N. do T.).



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