sábado, 23 de fevereiro de 2013

QUE NOS TORNEMOS MELHORES

Por Maria Vanda (Ir. Maria Silvia, Obl. OSB)


                                                      

                                  A PERENE VALIDADE DO APELO QUARESMAL


                          O retorno desses dias que os mistérios da salvação humana marcaram de modo mais especial e que precedem imediatamente a festa da Páscoa, exige que nos preparemos com maior cuidado por meio de uma purificação espiritual.


                               Todos os anos, a Igreja, no tempo da Quaresma, convida seus filhos e filhas a acessar a misericórdia divina através de um programa de conversão evangélica. As celebrações litúrgicas desse período nos inserem naquela atmosfera penitencial que, paulatinamente, nos vai conduzindo ao monte santo da Páscoa. Por outras palavras, secundando o que dizia São Leão Magno, nesses quarenta dias dedicados a uma cuidadosa purificação especial, nos preparamos, reverentes, para usufruir os dons pascais.

 
                              UM PROCESSO TERAPÊUTICO

                               Com efeito, a penitência quaresmal se apresenta com um processo terapêutico de cura  do pecado e do mal que, voluntariamente ou não, praticamos. Já São Paulo advertia, na Carta aos Romanos, para essa realidade contraditória e incoerente que habita o ser humano: “Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero”.   Contudo, longe de nos acomodarmos a um pessimismo estéril, sabemos que a graça de Cristo torna-se força de renovada transformação quando lhe abrimos de par em par as portas do coração. Por isso mesmo, com afetuosa solicitude, a Mãe Igreja propõe a seus filhos esse tempo favorável, exortando-os a não receber em vão a graça divina. Mediante um conjunto de práticas exteriores, queremos dar significado a nossa disposição interior para mudar de vida. Nosso Pai São Bento, ao organizar a programação quaresmal de seus monges, elenca algumas Dessas práticas.

                               Para vivenciar ao inverso a palavra de São Paulo há pouco mencionada, ou seja, fazendo o bem que queremos e evitando o mal que não queremos mais praticar, é necessário, antes de tudo, entrar no próprio íntimo e buscar a conversão do coração, pedindo com o Salmista: Criai em mim, ó Deus, um coração puro, renovai em mim um espírito resoluto. Sem essa “transformação cardíaca”, os atos de penitência, além de desprovidos de qualquer sentido, não passariam de meras formalidades. E contra tais estereótipos inócuos, o Salvador é taxativo no Evangelho: ai de vós...

                              Na verdade, o Senhor está sempre esperando de nós aquilo que, com tanta justeza, o Salmista também exprime: Sacrifício para Deus é um espírito contrito; não desprezais, ó Deus um coração contrito e humilhado Só um coração assim, convertido e restaurado, será capaz de produzir frutos de autêntica santidade. Análogo ensinamento vamos encontrar no Catecismo da Igreja Católica: Este esforço de conversão não é apenas uma obra humana. É o movimento do “coração contrito” atraído e movido pela graça a responder ao amor misericordioso de Deus que nos amou primeiro”10.
 

                                UM CORAÇÃO CONTRITO

                               Falamos de coração contrito. O profeta Ezequiel trata, em seu livro, da remoção de um coração de pedra que será substituído por um coração de carne: Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo. Removerei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne11. Através da palavra profética, Deus nos convida a uma mudança de atitudes que consiste no “amolecimento” do coração contaminado pelo pecado e pelo orgulho. A contrição é a etapa de passagem do coração de pedra para o coração de carne, ou seja, do coração ferido pelo mal, pesado e enrijecido, para o coração purificado, renovado e recuperado na ordem da graça.

                              A contrição que converte e, sem dúvida, conseqüência da penitência interior, que justificasse as práticas penitenciais exteriores. Melhor explicando: os sinais visíveis de penitência expressam seus movimentos interiores.

                            E o que é penitência interior? É uma orientação radical de toda a vida, um retorno, uma conversão para Deus de todo o nosso coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal e repugnância às obras más que cometemos. Ao mesmo tempo, é o desejo e a resolução de mudar de vida com a esperança da misericórdia divina e a confiança na ajuda de sua  graça.
 
                          Sabendo de tudo isso, nada mais resta senão por em prática, no cotidiano da vida, o que o Senhor está, aqui e agora, pedindo, a cada um de nós: Precisais deixar a vossa antiga maneira de viver e despojar-vos do homem velho, que vai se corrompendo ao sabor das paixões enganadoras. Por outro lado, precisais renovar-vos, pela transformação espiritual das vossas mente, e vestir-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, na verdadeira justiça e santidade.



                          UMA VIDA QUARESMAL

                          É costume nos mosteiros beneditinos que, no início da Quaresma, os monges entregam ao Abade uma cédula na qual escrevem algumas penitências que se propõem a praticar, durante a sagrada quarentena, com o propósito de se corrigirem das faltas cometidas. Pretendem assim não apenas celebrar a Santa Páscoa com o coração purificado de todas elas, mas também melhorar daí por diante a qualidade e prática de sua vida espiritual e humana. Concretamente, é o esforço que cada um realiza, buscando a transformação da própria mente a fim de tornar-se um homem novo, isto é, viver com o auxílio de graça, na verdadeira justiça e santidade.

 
                        Embora a Regra de São Bento trate da observância da Quaresma em capítulo específico, contudo, em muitas de suas passagens, o tema da conversão está sempre presente. No mencionado capítulo quando se afirma que a vida do monge deve ser, em todo o tempo, uma observância da Quaresma, claro está que o inteiro viver do monge é um processo gradual e permanente de renovação interior. Neste sentido, uma passagem do Prólogo da mesma Regra é bastante significativa: Espera o Senhor todos os dias que nos empenhemos em responder com atos às suas santas exortações. Por essa razão, os dias desta vida nos são prolongados como tréguas para a emenda dos nossos vícios, conforme diz o Apóstolo: então ignoras que a paciência de Deus te conduz à penitência? Pois diz o bom Senhor: “Não quero a morte do pecador, mas sim que se converta e viva.

                       Portanto, o processo terapêutico de cura do pecado, já aludido, não se restringe apenas ao tempo quaresmal, que devemos guardar com toda pureza, mas é diário e perdura a vida inteira. Todos têm de se renovar a cada dia para evitar a ferrugem inerente à condição mortal, e não há ninguém que não deva se esforçar para progredir no caminho da perfeição,

                       A quem deseja se converter, Deus concede bom tempo. E, porque é bom, espera sempre que nos tornemos melhores. Tornar-se melhor significa deixar a graça divina operar em nosso íntimo, consentir que ela aja. É o que faz São Bento dizer: O que achar de bem em si, atribuí-lo a Deus e não a si mesmo.

                        Para efetivar essa terapia penitencial é preciso tomar as devidas providências. Quais?


                        A ATITUDE FUNDAMENTAL: ESCUTAR

                        Primeiramente, escutar. O ato de escuta é condição preliminar para se realizar algo. A palavra escutada pede, exorta: completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova. Converter-se e crer, dois movimentos que se completam. A voz divina que “in illo tempore”, começava assim sua pregação na Galiléia, continua admoestando os homens e as mulheres de todas as épocas a se transformarem. Por conseguinte, cada um, por semelhante convite mude de conduta e viva!É fundamental, para tanto, nos dispormos ao diálogo com esse Deus paciente, que prolonga com trégua os dias desta vida para a emenda dos nossos vícios: ele é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo. Não nos trata como exigem nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas culpas. Vejamos como isso pode acontecer.

                       O penitente começa se dispondo, com um coração filial, a escutar o Filho recomendado pela voz paterna: escuta, filho: este é o meu Filho amado.  Se o Cristo, o Filho amado do Pai, é objeto de amor preferencial do monge: Nada absolutamente anteponham a Cristo,  escutar sua palavra é caminho seguro para quem pretende enveredar pelos caminhos de uma vida santa. Ela nos estimula a fazer, o quanto antes, aquele “transplante cardíaco” anunciado pelo profeta Ezequiel e reavivado pela admoestação do Salmista: Hoje , se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações.

                       Gregório Magno, em duas passagens de seus escritos, dá a medida exata da importância que tem a Palavra de Deus na vida não só do monge, mas de todo cristão: realmente, o que é a Sagrada Escritura senão uma carta de Deus onipotente a sua criatura?... Procura meditar todos os dias a palavra de teu Criador. Começa a conhecer, na Palavra de Deus, o coração de Deus para desejares, mais ardentemente, os bens eternos, e que teu coração se inflame de desejos ainda maiores pelas alegrias do céu. E: A Palavra de Deus cresce juntamente com quem a lê... Dela tirarás proveito na medida em que progredires.... Melhor se descobre o maravilhoso poder da Palavra de Deus quando o coração de quem está lendo é penetrado de amor pelas coisas vindas do alto.

                       Por isso, a prática da "lectio divina" recomendada pela Regra de São Bento, com maior empenho no tempo quaresmal, ressalta o valor da Sagrada Escritura como única e exclusiva fonte inspiradora da conversão cristã e monástica. Mesmo assim, não basta somente escutá-la. Nossos propósitos e esforços ascéticos só lograrão êxito se forem bem alicerçados pela obediência e pela oração.

                       Pela atitude de obediência ouvem o que digo e me obedecem. o monge responde por atos as interpelações que o Senhor lhe dirige enquanto ouve, coração atento, sua palavra, procurando executar eficazmente tudo o que dela hauriu. Cumprindo - a com fidelidade , ele será feliz: Andai pelos caminhos que vos ordenei para serdes felizes.
 

 
                      AGIR SOBRE SI MESMO

                      Partindo dessa premissa, chegamos ao segundo estágio da terapia penitencial: AGIR.

                     Por outros termos: a escuta amorosa e obediente da Palavra de Deus, que cresce juntamente conosco, nos instiga a responder com atos às santas exortações.  É preciso mudar a nossa maneira de pensa e de agir, dar uma nova orientação à própria vida, deixar o Espírito Santo agir à vontade para, com seu divino cinzel, esculpir na pedra bruta que somos a imagem de Jesus Cristo.

                  
                      Fiéis ao dom da graça que nos converte e santifica, de coração contrito e humilde, perseveremos em nossos propósitos de uma vida nova para que nos tornemos melhores.

                      Concluamos rezando com Balduíno de Cantuária: Arranca de mim Senhor, o coração de pedra. Tira o coração incircunciso; dá-me um coração de novo, coração de carne, coração puro! Tu purificador dos corações e amante dos corações puros, apossa-te do meu coração e nele habita, envolvendo-o e enchendo-o. Tu, superior ao que tenho de mais elevado, interior ao que tenho de mais íntimo! Tu, forma da beleza e selo da santidade, marca meu coração com a tua misericórdia, Deus de meu coração e minha parte, Deus para sempre.

Amém.”.

 
                                                   (Texto escrito por Dom Mathias Fonseca de Medeiros OSB é monge do Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro).    "In Revista Beneditina de Espiritualidade Monástica Ano V – Jan/fev -2008 pg. 3 usque 11".

 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Eucaristia : Memorial da Páscoa de Cristo (Capítulo 2 de 4)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 


Enfim, o POEMA DAS QUATRO NOITES nos diz que a celebração da Páscoa é profecia do último dia, quando a glória de Deus invadirá toda a terra para a eternidade; o último dia, que na Páscoa judaica já é celebrado em profecia, em Jesus ressuscitado encontrou um começo de realização.
            Nesse festival das quatro noites é celebrado o essencial da religião de Israel; e é esse essencial que Jesus quer celebrar e celebra efetivamente com seus apóstolos realizando a Páscoa, Páscoa que no tempo de Cristo é A FESTA por excelência (Mt 26,5 e Jo 11,56), e a tradição judaica – que não pode ser suspeita de ter sido influenciada pelo cristianismo – comenta : ‘(Deus nos trouxe da servidão à liberdade, da tristeza à alegria, do luto ao dia de festa, das trevas à luz brilhante, da servidão à redenção. Eis por que cantamos diante dele o Aleluia (4). Não é emocionante constatar que na Páscoa judaica todo o mistério da nossa Páscoa já se encontra em filigrana? E como diz o Pe. Lyonnet, se quisermos compreender o mistério eucarístico, não é sem importânica imaginar que, para os apóstolos presentes à Ceia e em primeiro lugar para o Cristo, a festa judaica que iriam celebrar, comemorava em verdade a história inteira, passada e futura, tal como será contada em nossas Bíblias cristãs desde o primeiro versículo do Gênesis : ‘No princípio Deus criou o céu e a terra’, até o último versículo do Apocalipse : ‘Vem, Senhor Jesus!(5).
            Compreendemos um pouco melhor agora em que se fundamentam nossa admiração e nosso deslumbramento que - como dissemos anteriormente – manifestam as maravilhas de Deus, especialmente, a criação, o mistério de nossa salvação, o dom e a espera da Terra prometida, que não é outra para nós senão o Reino de Deus futuro, onde habitaremos eternamente na alegria e na admiração do face a face definitivo com Deus nosso Pai.
            Portanto, a Eucaristia é o memorial da Páscoa, memorial das ‘Quatro Noites’, dos ‘Quatro nascimentos’, das ‘Quatro Primaveras’ de Israel, memorial de tudo o que Deus fez por nós. Mas, que é um memorial e que importância tem para nós? É o que vamos procurar ver nessa descoberta da Eucaristia como ‘memorial da Páscoa de Cristo’. Por enquanto, deixemo-nos ‘impregnar’ por todo o mistério pascal do Cristo, por toda a vida do Cristo, por toda a história do encontro de Deus com seu povo do qual a Eucaristia é a celebração e adentremo-nos um pouco mais ainda no fascínio e na admiração de tudo o que Deus já fez por nós. 
 
            Em Memória de Mim
            Se observarmos os grandes textos eucarísticos, constataremos que a noção de memorial, de memória, de lembrança, ocupa um lugar essencial. Imediatamente depois de ter lembrado a palavra do Senhor : ‘Fazei isto em memória de mim’, a oração eucarística IV continua : ‘Celebrando agora, ó Pai, a memória (memorial) de nossa redenção, anunciamos (lembramos) a morte do Cristo...’; a memória, a lembrança, é primeiramente a de toda a comunidade reunida. Mas depois de ter proclamado o que precede, é a Deus que se pede para lembrar : ‘E agora, ó Pai, lembrai-vos, de todos pelos quais vos oferecemos este sacrifício...Lembrai-vos também dos que morreram...’. A lembrança se torna ato de Deus depois de ter sido ato da comunidade. Encontramos o mesmo procedimento nas orações eucarísticas II e III e nas anáforas orientais. O povo que celebra, no próprio ato de sua lembrança pede a Deus que Ele se lembre.
            Contudo essa dupla realidade não é específica da Eucaristia. Ao longo de toda a Bíblia o homem se lembra, e Deus se lembra. Pois essas duas atitudes, como diz o Padre Tillard num artigo (6) que retomaremos muitas vezes, não são indiferentes uma à outra; ao contrário, representam as duas faces de uma única realidade da graça que agora vamos aprofundar.
            A primeira coisa a ser bem compreendida é que esses dois atos de memória, de Deus e do homem têm o centro no acontecimento histórico no qual Deus se manifestou como o Deus verdadeiro de seu povo eleito. E sabemos agora que esse acontecimento fundador, esse nascimento, essa primavera do Povo de Deus, foi sintetizada pela tradição judaica no Poema das quatro noites.
            Quem diz memória evoca necessariamente o tempo; mas aqui trata-se de algo que vai além da continuidade, da permanência, da influência do passado sobre o presente, tal como em certos acontecimentos históricos decisivos que modificam o curso da História. Em 14 de julho ou 11 de novembro, fazemos memória da queda da Bastilha ou da vitória de 1918 : ambas efetivamente influenciaram o passado e modificaram o curso de nossa história. A celebração de 11 de novembro é um ‘memorial humano’ importante; é preciso ter assistido à sua celebração numa pequena vila da zona rural para nos darmos conta disso. É uma verdadeira celebração com seu ritual... Mas esse ‘memorial humano’ é um memorial que se desgasta, e outros acontecimentos vão obscurece-lo; a celebração de 11 de novembro não impediu o 8 de maio de 1945. Os memoriais humanos se desgastam porque a história humana se desgasta.
            Ao contrário, quando se trata, como na Eucaristia, da memória dos acontecimentos de Deus, é muito diferente. O ‘memorial divino’ é totalmente de outra ordem. Por quê? Porque neste caso foi Deus quem interveio no tempo, e a intervenção de Deus permanece para sempre; permanece absolutamente; modifica realmente o curso da História. Quando Deus intervém, a História toma uma forma que doravante vai depender dessa intervenção e do modo pelo qual os homens a ela reagiram. Como dissemos : Deus criou com continuidade, mas podemos dizer também : Deus salva com continuidade, Deus muda o curso da História com continuidade. É nisso que se fundamenta o memorial, que se fundamenta uma espera, isto é, a certeza que Deus tendo salvo no passado salvará ainda no futuro. Praticamente poderíamos dizer tudo no presente : no passado Deus salva, salva no presente, salva no futuro, porque a intervenção de Deus transcende o tempo, ultrapassa o tempo, domina o tempo. É por isso também que celebrar as intervenções de Deus no passado – a criação, o sacrifício de Isaac, a travessia do mar Vermelho – é celebrar na alegria todas as intervenções futuras, uma vez que estas já estão asseguradas.
            É muito importante compreender bem isso porque é o centro do ‘memorial cristão’. Porque Deus salvou no passado, ele salvará no futuro, e isso é para nós uma certeza. Reencontramos aqui o que foi dito anteriormente : a oração de súplica só pode vir depois da lembrança cheia de admiração das maravilhas de Deus e nesse mesmo louvor; assim ela não deixará de ser ouvida. O memorial é assim o revivescimento – no sentido mais forte da palavra – de uma vitória divina passada e a antecipação de uma vitória divina futura. Além disso, dá a coragem no presente porque lhe traz sentido.
            É porque Deus intervém ainda hoje na História que o presente, o que eu vivo, tem um sentido, até mesmo as coisas pesadas, incompreensíveis, que só tomam sentido na cruz do Cristo ressuscitado, intervenção suprema de Deus na história. Cada vez que a comunidade reunida celebra as grandes intervenções de Deus – as ‘quatro noites’ – o passado, o presente e o futuro estão lá; é toda a densidade do encontro de Deus com seu povo e é por isso que a celebração vai influir na minha existência. O que eu vivo hoje, com sua densidade, com o que tem de próprio, deve ser impregnado e transformado pela nova qualidade da existência que as origens da Aliança, do encontro, gravaram no desenvolvimento da história. Hoje, cada geração – e portanto eu, – que celebra em comunidade, é chamada a viver de maneira concreta, na vida de todos os dias, o que foi revelado e realizado quando dos acontecimentos que fundaram a história do Povo de Deus : a criação, o sacrifício de Isaac, a passagem do mar Vermelho, principalmente. Não se trata de uma repetição mas de uma retomada no sentido muito forte : que eu refaça ou torne meu o que foi vivido naquele dia pelo Povo, considerando ao mesmo tempo, a situação concreta da minha vida  hoje e daquilo que, uma vez por todas, o ato inicial, a intervenção de Deus, a libertação da escravidão do Egito, têm de transcendente porque vêm de Deus.
            Hoje, quando eu celebro em comunidade, meu presente deve ser penetrado pelo acontecimento redentor que foi o Êxodo, a passagem do mar Vermelho, a Aliança do Sinai. E essa característica de acontecimento-fonte vai comprometer Deus e o fiel numa experiência de salvação, na qual se localizam os traços do primeiro encontro, da primeira Aliança. O povo que hoje celebra a Eucaristia não atravessará mais o mar Vermelho, porém entrará na mesma realidade de salvação que a vivida pelos Pais da primeira geração. Cristo não morrerá mais sobre a cruz, mas o povo que celebra em memória dele deverá entrar na mesma realidade de salvação do dom de sua vida por amor. Percebe-se ainda aqui o papel privilegiado que tem a memória, a lembrança.
            Dando um passo a mais na mesma linha de pensamento, descobriremos a que nos compromete o ato de celebrar. Uma vez que o acontecimento original, Abraão e o Êxodo unem tanto a iniciativa de Deus como a resposta livre do homem, ambos se encontram implicados nessa eficácia da memória que liga o hoje ao ontem. Com efeito, o homem não tem que ‘esperar que isso aconteça’; ele está comprometido, envolvido, hoje como ontem.
            Quando Deus se lembra, ele age. Age como da primeira vez, ou antes, como sempre age. Conduz a seus verdadeiros efeitos o que implicava sua primeira iniciativa. Uma vez pronunciada, Deus é coerente com a palavra, Deus é fiel. Para nos convencermos disso podemos reler Lv 26,44-46 :
            Mesmo assim, quando estiverem na terra dos seus inimigos, eu não os repelirei, nem os desprezarei a ponto de acabar com eles, rompendo minha aliança. Porque eu sou o Senhor, seu Deus. Eu me lembrarei em seu favor da aliança com os antepassados, que fiz sair do Egito à vista das nações, para ser o seu Deus. Eu sou o Senhor’.
            Deus finalmente se lembra, depois de uma longa série de maldições, decorrentes da infidelidade do povo.
            Quando o homem se lembra, ele se põe em atitude de Aliança, isto é, em atitude de ação de graças e de obediência, de deslumbramento e de fidelidade. Concretamente essa atitude vai se manifestar de duas maneiras : por uma recordação, uma bênção pelas maravilhas de Deus, as mirabilia Dei, mas também por uma resposta da própria vida, na fidelidade à intenção subjacente aos acontecimentos que deram seu sentido à história; por conseguinte, tal resposta se encontra profundamente marcada por aquilo que é lembrado. ‘Lembrar-se’ então, significa para o homem comungar com o que Deus fez, mas comungar de tal modo que se faça pelos outros o que outrora foi feito por nós. Celebrar a Páscoa, a Eucaristia, celebrar o ‘memorial’, lembrar-se, é maravilhar-se, mas é também comprometer-se. Porque Deus agiu com misericórdia é que se agirá com misericórdia. O querer de Deus é essencialmente um projeto no qual é preciso entrar; assim o comportamento do fiel deve ser penetrado pela memória dos atos que revelaram o projeto divino. Porque Deus ‘continua’ a se comprometer, ‘lembrando-se’, o hoem também deve, se for honesto, maravilhar-se, mas igualmente deve comprometer-se, lembrando-se. Numerosos textos da Bíblia indicam esse elo entre a lembrança e o comprometimento, como por exemplo :
            Não leses o direito do estrangeiro nem do órfão, nem tomes como penhor a roupa da viúva. Lembra-te de que foste escravo no Egito, de onde o Senhor teu Deus te resgatou. É por isso que te ordeno que procedas assim.
            Se ao fazer a colheita em teu campo, esqueceres um feixe de trigo, não voltes para buscá-lo. Deixa-o para o estrangeiro, para o órfão e a viúva, a fim de que o Senhor teu Deus te abençoe em todo trabalho de tuas mãos.
            Quando tiveres colhido o fruto das oliveiras, não voltarás para colher o que ficou nas árvores. Deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva.
            Quando colheres as uvas da tua vinha, não deves colher os cachos que ficaram. Deixa-os para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Lembra-te de que tu também foste escravo no Egito. Por isso te ordeno que procedas assim (Dt 24, 17-22)’ (7).
            Esta passagem do Antigo Testamento é simplesmente admirável. A respeito dele disseram erradamente, demasiadas vezes, mostrar um Deus que inspira medo e que seria necessário esperar o Cristo para descobrir enfim o amor. Cristo não veio abolir mas cumprir e perfazer essa antiga Aliança, na qual o amor já estava muito presente.
            O ‘memorial’ permite, pois, ao passado perfilar-se em filigranas no hoje de uma presença que compromete a responsabilidade humana; daí podermos dizer que é especialmente por sua atitude, seu comportamento para com os outros, que o fiel faz permanecer, mantém na história, da continuidade às ‘maravilhas’ realizadas outrora por Deus em seu favor.
            Até aqui falamos do memorial da celebração da Páscoa na linha da Páscoa judaica. Mas que acrescenta a Páscoa do Cristo? Que há de específico no memorial cristão? Ele é a lembrança da última intervenção de Deus, a lembrança da Nova Aliança. Pois no mistério da Páscoa de Cristo, Deus intervém hoje, não só por manifestações de poder, como na passagem do mar Vermelho, mas pelo mistério da Presença de sua própria Pessoa, e isto é para sempre. Em Jesus Cristo e no seu mistério pascal, Deus intervém com a presença de sua própria pessoa! Por conseguinte, o memorial cristão não é mais somente presença contínua do poder do Deus salvador, ele é presença da própria pessoa de Deus em Jesus Cristo, morrendo e ressuscitando (8).
            Celebrar, fazer memória do acontecimento de Jesus Cristo em seu mistério pascal, não é uma simples evocação subjetiva na bênção e ação de graças; é o que permite à densidade salvífica da morte e da ressurreição de Jesus Cristo permanecer realmente presente a todas as gerações, e muito especialmente, a essa geração à qual pertence a comunidade que celebra hoje. A Eucaristia é o acontecimento da morte e da ressurreição de Cristo tornado presente para mim hoje, com toda a sua força de salvação e essa presença de Cristo me salvando, me compromete, a mim que sou membro dessa comunidade que celebra. Essa presença de Cristo em seu mistério pascal compromete o Deus de Jesus Cristo que, reconhecendo no ato da Igreja o sacrifício de seu Filho que nos restabeleceu em sua Aliança (cf. Oração Eucarística III), põe em ação, hoje e agora, sua fidelidade; mas compromete também a comunidade dos fiéis que celebram e lembrando-se do que Deus fez por ela, devem comungar com o ato de Deus e se tornar desse modo, pelo poder assim recebido, o canal, o instrumento de uma presença ativa da Páscoa no seio do mundo.
            Celebrando a Eucaristia nós nos comprometemos a nos tornar instrumentos da presença da Páscoa no coração da humanidade. Assim se abre a perspeciva da Eucaristia como mistério de comunhão : comunhão com o Pai que é fiel, comunhão com o Cristo Salvador, comunhão com todos os meus irmãos com quem celebro e me comprometo, comunhão com todos os homens para quem me torno o instrumento, o canal de sua salvação em Jesus Cristo. O agir cristão entra assim, pela celebração da eucaristia-memorial, na própria generosidade de Deus. Incessantemente e em plena realidade, em pleno cerne da História, a Eucaristia torna mais nítido o engajamento de Deus sempre primeiro, sempre primordial, e o engajamento do homem, simples resposta, pobre, mas ao mesmo tempo aceitação em participar da atitude pascal de Jesus para salvação do mundo.
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(4)   Mishna : Tratado Pes. V,5.

(5)  Stanislas Lyonnet s.j. Eucharistie et Vie Chrétienne, Supl. de Vie chrétienne, julho, 1969.
(6)  J. M. R. Tillard, op, Faisant mémoire de ton Fils. Parole et Pain nrº 50 – 1972, p. 144-157. Do mesmo autor ainda na Maison-Dieu, nrº 106, p. 24-45 : Le mémorial dans la vie de l’Église.

(7)  Pode-se também citar Dt. 5, 12-15 ou Dt 15, 12-15.

(8) Embora não seja possível desenvolver aqui este aspecto, notaremos entretanto que é nessa noção de memorial que se enxerta muito precisamente nossa fé na presença real de Jesus Cristo Salvador na Eucaristia.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A Renúncia de Bento XVI : Um Precedente Evangélico



 * Artigo de Maria Clara Lucchetti Bingemer
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
  
‘Eram oito horas da manhã quando o telefone tocou. Em pleno carnaval, descansando fora do Rio, eu dormia até mais tarde. A voz vinha de longe e lentamente ativava as sinapses de meu cérebro. Quando escutei ‘a renúncia do Papa de Bento XVI ao cargo’, o choque de adrenalina me fez acordar de vez. Pedi um tempo para me inteirar da situação. E fui verificar. Era verdade.

Em meio às plumas e paetês das escolas de samba, a notícia da renúncia do Papa começou a ganhar volume e espaço. E a assombrar a todos! Nunca antes.jamais se viu...como pode ser...por quê? Lembrei-me de outras ocasiões, quando minha mãe me avisou: ‘O Papa morreu’. E eu lhe disse que se enganava por pensar que se referia a Paulo VI. E era João Paulo I, o Papa sorriso. Ali também havia a surpresa e o sabor do inesperado. Ali também experimentávamos perplexidade.

Bento XVI não morreu. E isto faz toda a diferença. Foi um papa lúcido e em plena posse de suas faculdades mentais que anunciou na Praça São Pedro sua decisão inabalável de renunciar ao cargo de bispo de Roma e de sucessor de Pedro. Marcou data e prazo: 28 de fevereiro. Agradeceu a todos que o ajudaram em seus quase oito anos de papado, pediu perdão pelos erros e.entregou a Igreja nas mãos de seu Supremo e Único Pastor, Jesus Cristo, assim como ao cuidado maternal de sua mãe Maria.

Surpresa como todos diante do inesperado gesto de Bento XVI, aos poucos fui sentindo o peso e a importância desta decisão e deste anúncio. Parece-me de uma grandeza impressionante, de uma coragem enorme e de uma inspiração evangélica. Nunca durante este pontificado senti tão presentes o sopro e o impulso do Espírito como neste anúncio dado na Praça de São Pedro no último dia 12 de fevereiro.

A decisão livre e minuciosamente refletida e pensada de Bento XVI pode ter um enorme significado para a Igreja. Porque se o Papa pode deixar seu cargo por motivos de idade, por sentir que lhe faltam as forças e o vigor físicos para exercer como deveria a posição que ocupa, a mesma interpelação se abre para outros segmentos eclesiais. Por que não teriam de fazer o mesmo os superiores das ordens e congregações religiosas masculinas e femininas? Por que se eternizam em cargos de chefia tantos coordenadores de movimentos leigos que não se mostram dispostos a dar um passo para liberar o caminho aos mais jovens?

Antes do Papa, a Igreja havia já assistido à renúncia do superior geral dos jesuítas, o holandês Peter Hans Kolvenbach. Depois de 25 anos à frente da Companhia de Jesus, a ordem mais forte da Igreja, Pe. Kolvenbach apresentou sua renúncia. Já vinha tentando fazê-lo desde o pontificado de João Paulo II, que nunca a aceitou. No entanto, depositou-a nas mãos do Papa Ratzinger, que entendeu perfeitamente seu desejo e sua decisão.

O ‘Papa Negro’ – como é chamado o geral dos jesuítas – ao renunciar prenunciava esta outra renúncia, a do Papa sucessor de Pedro. Em ambos a mesma atitude de fundo: liberdade interior e desapego do poder. Sair porque vê conscientemente seus limites. Afastar-se do cargo porque reconhece humildemente não ter condições objetivas de exercê-lo. Deixar o poder que lhe foi outorgado pelo colégio cardinalício e reconhecido por toda a Igreja nas mãos desse mesmo colégio para que escolha um sucessor.

No dia 28 de fevereiro, Bento XVI se retirará à sede de Castelgandolfo, no sul de Roma, e deixará o governo após quase oito anos de papado. Depois de eleito seu sucessor, viverá na cidade do Vaticano, dedicando-se àquilo que ama fazer: ao estudo, à escrita, à oração.

Com sua atitude nitidamente na contramão da lógica do poder, Bento XVI abre o caminho a uma reformulação do papado, que já deveria há muito ter sido feita na Igreja Católica. Seu sucessor, seja ele quem for, encontrará esse precedente aberto e isso certamente deverá impactar em seu comportamento, em seu estilo de governar e na compreensão que terá de seu cargo e ministério.

Com seu gesto extremamente humilde e realista, Bento XVI deixa a autoridade que lhe foi conferida como Papa, mas permanece investido de outra autoridade, mais evangélica, mais inspirada e inspiradora, mais perene: a autoridade do testemunho. Foi um confessor – como os do cristianismo primevo - aquele que, fragilizado pela idade e pelo cansaço, com a voz tênue e quase inaudível, reconheceu seus limites e abdicou do poder que detinha. Assim entrava na esfera daquela humildade que deve ser mais forte e presente ainda nos que detêm cargos de mando, tal como ensinou o Mestre Jesus de Nazaré.

Se faltasse ainda algo para convencer-nos da beleza do acontecimento que ungiu a Igreja inteira com a renúncia do Papa, talvez fosse importante prestar atenção ao respeito atento e admirativo que esta despertou naqueles que mais divergiam de suas ideias e de seu magistério. O teólogo brasileiro Leonardo Boff, por exemplo, declarou que a atitude de Bento XVI merece toda admiração e respeito. Assim também o teólogo suíço Hans Küng, com quem Ratzinger teve alguns embates bem conhecidos: ‘A decisão de Bento XVI merece grande respeito, é legítima, compreensível e também corajosa. Nunca esperei que este Papa conseguisse me surpreender, algum dia, de maneira tão positiva’.

A nós, que somos espectadores e testemunhas deste evento histórico-teologal, que a atitude do Papa nos inspire e ilumine nesta Quaresma que agora começamos.’


Fonte :
*Jornal do Brasil – edição de 15.02.2013

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Eucaristia : Memorial da Páscoa de Cristo (Capítulo 1 de 4)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
* Artigo de Pe. Vincent Lescanne, OSB 

A Eucaristia : Celebração da Páscoa

Eucaristia é bênção, adoração, louvor, admiração, confissão das maravilhas de Deus, especialmente pela criação, salvação (a libertação do Egito) e o dom da Terra prometida. Mas é também Memorial da Páscoa. Que significa e que nos dá a entender essa palavra um pouco estranha : memorial? E Páscoa? Será que sabemos verdadeiramente o que é?

Recordemos que a Eucaristia é o sacramento do Amor de Deus. E também que a primeira maravilha que proclamamos é a criação. A criação, esse primeiro gesto de amor de Deus por nós, gesto imenso, gesto permanente como uma fonte. Deus, que criou o homem, vai também elevá-lo, educá-lo, aperfeiçoá-lo. Deus vai fazer o homem e toda a criação ascenderem a uma beleza maior, a maior liberdade, humanização, divinização. A humanidade é atraída para sua realização perfeita, para seu cume, Jesus Cristo e Jesus Cristo Deus, Filho de Deus, ressuscitado e junto de seu Pai. Se na Eucaristia nos fascinamos com a criação é porque, como diz o Padre Rey-Mermet, ‘esse imento movimento de divinização foi aí realizado de uma maneira particularmente intensa. Na consagração os elementos materiais do mundo, o pão e o vinho, são mudados no Corpo e no Sangue do Filho de Deus. Pelo poder do Espírito Santo a criação é atingida pela irradiação soberana do Cristo ressuscitado e se torna a plenitude que é ele próprio : ‘Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue (1). A criação transfigurada, transubstanciada, torna-se vida eterna, torna-se o Corpo do Filho de Deus. A Eucaristia é, de algum modo, o sentido último do ato criador de Deus; é a vocação de toda a criação que é progressão da matéria para o homem, do homem para o Cristo e do Cristo para o Pai. Esse retorno da criatura para Deus é significado de modo particularmente intenso na Eucaristia. Sob este aspecto ela é a Passagem de toda criatura para Deus em Jesus Cristo; é a Páscoa da criação, a Páscoa do mundo, uma vez que em hebraico, Páscoa significa passagem.

A Eucaristia é Páscoa porque Passagem da criação para Deus. É Páscoa porque celebração na lembrança da Passagem do mar Vermelho; pressentimos também que é Páscoa porque antecipação de nossa Passagem definitiva para o mundo de Deus no final dos tempos. Mas o que é a Páscoa? Que significava para o próprio Jesus a festa da Páscoa quando da instituição da Eucaristia: É muito importante descobrirmos isso, pois Jesus ligou explicitamente a Eucaristia e a sua Paixão à celebração da Páscoa judaica. Releiamos Mt 26,1 : ‘Sabeis que dentro de dois dias se celebra a Páscoa, e o Filho do Homem vai ser entregue para ser crucificado’, e Lc 22,15s : ‘Ardentemente desejei comer convosco esta ceia pascal antes de padecer. Pois eu vos digo que não mais a comerei, até que ela se realize no Reino de Deus...A seguir, tomou o pão... Depois, fez o mesmo com o cálice...

Jesus, antes de instituir a Eucaristia, colocou-a em referência explícita com a Páscoa; Jesus, para cumprir, para viver sua Hora, esperou a festa da Páscoa judaica. Assim pode-se dizer que a ‘Ceia da Quinta-feira Santa e o Sacrifício da Sexta-feira Santa são, em conjunto, a Páscoa judaica em vias de ‘realização na Páscoa ‘futura’, no final dos tempos (2). É muito importante uma vez mais tomar consciência dessa ligação, pois como compreender a própria figura do Cristo, da qual São Paulo nos diz que é ‘nosso Cordeiro Pascal imolado’ (cf 1Cor 5,7), se ignorarmos o que enchia seu coração e o dos apóstolos quando dessa Páscoa da Quinta-feira, que antecedeu a sua morte? 


A Páscoa Judaica

Ao longo da história de Israel, várias festas contribuíram para formar a solenidade pascal : rito dos pastores no contexto de uma vida nômade ou seminômade, incluindo o sacrifício de um cordeiro novo e celebrada quando partiam em migração, e a festa dos Ázimos ou dos pães sem fermento, no contexto agrário de uma vida sedentarizada e celebrada no início da colheita da cevada. Reunidas mais tarde porque ambas eram celebradas na primavera, a celebração da Páscoa vai servir de suporte à celebração por Israel da primavera (depois, das primaveras) de seu nascimento, isto é, da intervenção histórica decisiva de Deus em seu favor. Assim, se a história das origens da festa da Páscoa permanece um pouco imprecisa, seu significado espiritual ao contrário é iluminado por um grande esplendor. O povo hebreu sabia muito bem o que significava espiritualmente a festa da Páscoa; no espírito de Jesus e dos apóstolos, o sentido profundo da Páscoa que eles celebravam na noite da ‘grande Quinta-feira’ era muito claro : não se tratava apenas da lembrança da saída do Egito, mas também da lembrança, o memorial, de três outras noites, de três outros nascimentos, de três outras primaveras que pouco a pouco a Tradição judaica tinha acrescentado à lembrança da noite primordial da saída do Egito; de sorte que a Páscoa resumia toda a história da salvação, desde a criação até ao fim do mundo. Convém citar aqui um poema muito belo, o Poema das quatro noites (3). Encontra-se no Targum palestino, isto é, o comentário aramaico da Bíblia hebraica, e desenvolve Êxodo 12,42. Era utilizado na liturgia da sinagoga no tempo de Jesus : basta isso para nos dizer quanto este poema é importante para nos ajudar a compreender o que se passava no coração da pequena comunidade reunida no Cenáculo naquela vigília da Páscoa. 

 ‘A primeira noite foi aquela em que o Senhor se manifestou ao mundo para o criar; o mundo era deserto e vazio, e a treva cobria a superfície do abismo. E a palavra do Senhor era a luz e brilhava, e ele a chamou : PRIMEIRA NOITE.’

‘A segunda noite foi quando a palavra do Senhor se manifestou a Abraão com a idade de cem anos e a Sara, sua mulher, de noventa anos, para que se cumprisse a Escritura : ‘Será que Abraaão com a idade de cem anos irá gerar, e Sara, sua mulher, com noventa nos dará a luz?’ E ele a chamou : SEGUNDA NOITE.

Uma tradição secundária acrescenta aqui o memorial do sacrifício de Isaac, quando este, morto, por assim dizer, e ressuscitado ‘em parábola’ (cf. Hb 11,19) tornou-se em sentido pleno ‘filho da promessa’ :

‘E Isaac, nosso pai, tinha trinta e sete anos quando foi oferecido sobre o altar. Os céus desceram e se abaixaram, e Isaac viu suas perfeições, e seus olhos se obscureceram em conseqüência dessas perfeições. E ele a chamou : SEGUNDA NOITE.

‘A terceira noite foi quando o Senhor se manifestou aos egípcios no meio da noite : sua mão (esquerda) matava os primogênitos dos egípcios, e sua direita protegia os primogênitos de Israel, para que se cumprisse o que diz a Escritura : ‘Israel é meu filho, meu primogênito’ (Ex 4,22). E ele a chamou : TERCEIRA NOITE.’

‘A QUARTA NOITE será quando o mundo for consumado; os jugos de ferro serão rompidos e as gerações da impiedade serão destruídas. E Moisés sairá do deserto e o Rei Messias das alturas (...) É a noite da Páscoa para o nome do Senhor, noite fixada e reservada para a salvação de todas as gerações de Israel.

O Targum palestinense, que acabamos de citar, deixa evidente o que significava para a fé tradicional do povo de Deus no tempo de Cristo a festa pascal : comemoração, memorial – voltaremos mais adiante a essa palavara – das quatro noites da História da Salvação, da Criação ao fim dos tempos. Celebrar a Páscoa era pois celebrar a lembrança na admiração e no deslumbramento da criação, a lembrança daquela noite na qual Deus fez surgir o mundo para a glória de seu Nome, criação hoje transfigurada no Cristo pascal, como dizíamos ao começar, Lembrança também da história de Abraão. Do nascimento de Isaac, primeiramente, mas também e principalmente do seu sacrifício, isto é, lembrança daquela festa do amor do Patriarca que não recusou seu filho, seu único filho, como diz o Gênesis (22,12); Isaac morto por assim dizer e ressuscitado em parábola, como dirá a carta aos Hebreus (cf. 11,19), vendo aí o anúncio da morte e da ressurreição do Cristo. Esta celebração da Páscoa é portanto, para nós também, o anúncio e celebração da morte e da ressurreição do Filho único de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor.

Mas a Páscoa, nos diz o poema, é também lembrança e memorial da libertação do Egito, quando Deus libertou Israel do jugo do cativeiro egípcio. Esta libertação é o modelo, o arquétipo de todas as libertações futuras, em particular, no Cristo, da libertação da morte e do pecado.


Fonte :
*Pe. Vincent Lescanne, OSB, monge da Abadia Sainte Marie de la Pierre-qui-vire, França. Transcrição de uma conferência pronunciada durante um retiro espiritual.
Artigo publicado em Écoute 252-253 e 254, 1979. Traduzido do francês pelo Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora - MG

Revista Beneditina nrº 33, Maio/Junho de 2009, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais

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(1) Mission Chrétienne, nº 207, p. 3.

(2) Mission Chrétienne, nº 207, p. 6.

(3) A tradução do Poema das Quatro Noites é de P.R. Lê Déaut, em La Nuit Pascals, Instituto Bíblico, 1963  

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Uma mística do serviço : A vida contemplativa segundo São Bernardo (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

São Bernardo 


Os Dons do Espírito
Bernardo opera uma síntese, graças à sua concepção da obra do Espírito Santo (4). Ele exprime claramente sua doutrina da fecundidade espiritual, comentando a que é chamado o amor entre a esposa (aqui a alma individual) e o Esposo. Ele parte da citação do Cântico : ‘Como perfume derramado é o teu nome’ (Ct 1,3).
Que verdade da nossa vida interior o Espírito Santo nos faz conhecer por esse texto? Sem dúvida nenhuma, ele explica a experiência que por vezes nos vem de suas duas operações. Pela primeira, Ele nos consolidou, interiormente, nas virtudes requeridas para nossa salvação. Pela segunda, Ele nos dispõe também exteriormente concedendo-nos seus dons a fim de ganhar os outros para Deus. As virtudes, recebemo-las para nós, os dons para o nosso próximo. Por exemplo, a fé, a esperança e a caridade nos são dadas para nós mesmos : porque sem elas, não podemos ser salvos. Ao passo que a linguagem da ciência ou da sabedoria, o carisma da cura, a profecia e outros dons semelhantes, os quais podem nos faltar sem nenhum prejuízo para nossa salvação, nos são seguramente concedidos para a salvação de nossos próximos. Essas operações do Espírito Santo, das quais fazemos experiência em nós mesmos ou nos outros, chama-las-emos, se o quiserem, infusão e efusão, para que os nomes correspondam à realidade’ (SCt 18,1; cf Div 88).     
Este texto apresenta dois tipos de dons do Espírito, mas afirma ao mesmo tempo a prioridade de ‘virtudes’, isto é, de ‘potencialidades’ que nos são necessárias para nós mesmos e cuja ausência comprometeria nossa ação para o exterior : a fé, a esperança e a caridade. Em outros termos, Bernardo jamais colocará em pé de igualdade a ‘infusão’ e a ‘efusão’. A segunda não será válida, senão decorrendo da primeira. Mas permanece verdade que os dons do Espírito, feitos para serem postos a serviço dos outros, não temos o direito de guardá-los para nós mesmos. Trata-se de respeitar a natureza dos dons e de respeitá-los pelo que eles são.
Mas aqui é preciso se precaver de um lado, para não dar o que recebemos para nós mesmos, e de outro, para dar com generosidade. Reténs para ti mesmo o bem de teu próximo, quando, por exemplo, estás cheio de virtudes e dotado também exteriormente de ciência e de eloquência e, por medo ou talvez por preguiça ou por humildade indiscreta (falsa humildade), te fechas num silêncio inútil, até mesmo censurável, calando a boa palavra da qual muitos poderiam tirar proveito’ (SCt 18,2).
Bernardo vai do interior para o exterior. Frequentemente, é muito depressa que nos expandimos para o exterior. Ele apela para a idéia do tonel e do canal : o canal é apenas um lugar de passagem. Para si mesmo, ele não retém nada; o tonel é um recipiente onde as coisas amadurecem, decantam e transbordam somente quando já estão maduras. A vida espiritual tem necessidade dessa maturação : é preciso tempo, formação, instrução, sabedoria.
A sabedoria consiste em fazer de si esse tonel e não um canal. Um canal recebe a água e em seguida a derrama; o tonel, ao contrário, espera ficar cheio para comunicar sua superabundância, sem se prejudicar. (...) Verdadeiramente, na Igreja hoje, temos muitos canais e muito poucos tonéis’ (SCt 18,3).
A contemplação precede a ação. Esta é fruto daquela. Porque o amor é fecundo. Para Bernardo, a ação se aplica primeiramente à pregação.
Este amor é apaixonado. É ele que convém ao amigo do Esposo; (...) este amor satisfaz, aquece, ferve, expande-se enfim, com segurança, rompendo todos os diques (...). Que ele pregue, que carregue fruto’ (SCt 18,6).
Pode-se interpretar este texto de maneira puramente psicológica : quando se está apaixonado, comunica-se aos outros seu entusiasmo. Mas para Bernardo, o motivo da ação encontra sua origem no fato que Deus criou o homem para amar e para ser amado. O homem é feito para Deus. E Deus é amor. O escopo da ação, enfim, será Deus. Através de tudo isso que desejamos e tudo que fazemos pelo nosso próximo, por detrás de tudo, estão o amor de Deus mesmo. Nosso amor por Ele, consequência de seu amor por nós, Bernardo o diz em uma frase muito densa : ‘Deus é caridade e nada no mundo poderia satisfazer a criatura feita à imagem de Deus, a não ser esse Deus-caridade, que, somente ele, é maior que sua criatura’ (SCt 18,6).
Assim, todo contemplativo se torna missionário. É mesmo de boa vontade que o contemplativo interromperá sua oração para ser ativo e missionário. Mais ainda, seu desejo de levar os outros para Deus é o sinal de uma contemplação autêntica.
A contemplação verdadeira e casta tem isto de particular : uma vez que, violentamente, abrasou o espírito com o fogo divino, ela o cumula por vezes de um tão grande zelo e de um tão grande desejo de ganhar para Deus almas igualmente amantes, que interrompe de boa vontade o prazer da contemplação, pelo labor a pregação’ (SCt 57,9; cf. SCt 58,1.3).
Amar a Deus que é amor, é querer ser como Ele, isto é, querer verdadeiramente o bem para os outros. Não está aí uma autêntica paternidade que é também a dos contemplativos?
Para a esposa, ser arrastada pelo Esposo é receber d’Ele mesmo o desejo de ser arrastada, o desejo das boas obras, o desejo de produzir frutos para o Esposo. Porque, para ela, viver é o Esposo, e morrer é um ganho’ (SCt 58,1).
A primeira parte da frase exprime a dimensão contemplativa, a que consiste em acolher o desejo que Deus quer colocar em nós. A segunda parte também é clara : morrer para o Esposo é morrer dando-se aos outros. 
 
Fecundidade Eclesial
Bernardo dá duas condições para que o ministério do pregador seja fecundo – isto se aplica também hoje a todos os que têm a missão de testemunhar a fé em Cristo. Antes de tudo, estar maduro não por ambição pessoal, mas por ter recebido a missão de o fazer :
É, pois, para examinar (as almas e as igrejas), para corrigí-las, para instruí-las, para salvá-las que é convidada uma alma mais perfeita, supondo-se que tenha obtido este ministério, não à custa de reivindicações, mas pelo chamado de Deus, como Aarão’ (SCt 58,3).
Mas em seguida, é preciso ainda alguma coisa de mais interior, essa chama que nos impele para os outros.
Que é este convite, senão um certo aguilhão interior da caridade, que suavemente nos incita a ter zelo pela salvação de nossos irmãos, zelo pela beleza da casa de Deus, pelo crescimento de seus grãos e frutos da sua justiça, para o louvor e a glória de seu nome? Aquele que deve dirigir as almas ou se entregar, por causa de seu cargo, ao trabalho da pregação, cada vez que sentir em si mesmo o homem interior movido por tais sentimentos de piedade para com Deus, compreenderá sem dúvida possível que o Esposo está lá e que Ele o convida para suas vinhas’ (SCt 58,3).
Nada impede que aquele que é chamado a instruir os outros seja muitas vezes importunado, pois precisamente neste momento, ele quereria se nutrir espiritualmente a si mesmo.
Note-se o que acontece : a esposa pede uma coisa e recebe outra. Ela aspira a calma da contemplação e se lhe impõe o trabalho da pregação; ela tem sede da presença do Esposo e se alegra por gerar filhos para Ele e nutri-los’ (SCt 41,5).
O repouso contemplativo não é, pois, um absoluto. As necessidades do próximo podem nos eximir dele. ‘Com efeito, é bem preferível repousar e estar com Cristo. Mas é necessário sair do repouso para ganhar os homens que devem ser salvos’ (SCt 46,’).
Bernardo jamais separa as diferentes formas de vida possíveis. Para ele só há uma orientação contemplativa, na qual tudo o mais deve adequar-se. Desde que se encontre bem no seu lugar nesta vocação contemplativa fundamental, trata-se de receber seu lugar pessoal. Que isto possa causar dilaceramentos interiores, é certo. Mas é normal e inevitável. Vivemos sempre as duas facetas de uma única vocação.
O sentimento da alma é bem diferente, conforme ela frutifica pelo Verbo, ou usufrui do Verbo. No primeiro caso, sua atenção se volta para as necessidades do seu próximo; no segundo, ela é chamada pela doçura do Verbo’ (SCt 85,13).
O princípio será sempre a caridade, o que é ‘util’ para os outros : ‘Não procurarei minha vantagem pessoal, nem o que me interessa, mas o que o é para o maior número’ (SCt 52,7). A expressão volta frequentemente : é preciso viver para os outros, para ‘todos’ (cf. SCt 41,6). É sempre o interesse comum que tem a primazia : ‘O que alegra o coração de um só homem é bem diferente do que edifica a muitos’ (SCt 9,8).
Essa doutrina tem por consequência que Bernardo relativiza, de certo modo, a própria vocação monástica, o que não deixará de espantar alguns. Ele considera a vida para fora do mosteiro, frequentemente ‘melhor’ ou ‘mais viril’ : ‘Fazes bem em ser vigilante na guarda de ti mesmo; mas o que é útil a muitos age melhor e mais virilmente’ (SCt 12,9). Sem dúvida, nem sempre se viu essa dimensão do ensinamento de Bernardo, talvez porque se julgou a priori, indigno de um místico dar tanta importância ao engajamento pastoral. Uma ‘mística de esponsais’ parecia se bastar e ser quase incompatível com uma ‘mística de serviço’. Todavia, os textos de Bernardo estão aí, para o comprovar (5).
Para concluir, volto a uma de minhas idéias do início : deixar-se levar pela Palavra de Deus significa, em geral, viver na Igreja e a seu serviço. O cristão faz suas as necessidades da Igreja universal (Ep 141,1). O que tem a primazia sempre, antes de tudo e depois de tudo, é a caridade :
Arrasta-me após ti : eu te sigo com alegria; eu me rejubilo contigo, com mais alegria ainda. Se és bom, Senhor, para aqueles que te seguem, como não serás para os que se rejubilam em ti?’ (SCt 47,6).

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(4) Esta concepção será encontrada mais tarde em Ruysbroeck.

(5) Alguns autores (Cuthbert, Mieth) reconhecem-no e vêem nesta ‘idéia de fecundidade’ uma contribuição original de Bernardo à tradição agostiniana e gregoriana.