* Artigo de Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio
‘Eram oito horas da manhã quando o telefone tocou. Em pleno
carnaval, descansando fora do Rio, eu dormia até mais tarde. A voz vinha de
longe e lentamente ativava as sinapses de meu cérebro. Quando escutei ‘a renúncia do Papa de Bento XVI ao cargo’,
o choque de adrenalina me fez acordar de vez. Pedi um tempo para me inteirar da
situação. E fui verificar. Era verdade.
Em meio às plumas e paetês das escolas
de samba, a notícia da renúncia do Papa começou a ganhar volume e espaço. E a
assombrar a todos! Nunca antes.jamais se viu...como pode ser...por quê?
Lembrei-me de outras ocasiões, quando minha mãe me avisou: ‘O Papa morreu’. E eu lhe disse que se
enganava por pensar que se referia a Paulo VI. E era João Paulo I, o Papa
sorriso. Ali também havia a surpresa e o sabor do inesperado. Ali também
experimentávamos perplexidade.
Bento XVI não morreu. E isto faz toda a
diferença. Foi um papa lúcido e em plena posse de suas faculdades mentais que
anunciou na Praça São Pedro sua decisão inabalável de renunciar ao cargo de
bispo de Roma e de sucessor de Pedro. Marcou data e prazo: 28 de fevereiro.
Agradeceu a todos que o ajudaram em seus quase oito anos de papado, pediu
perdão pelos erros e.entregou a Igreja nas mãos de seu Supremo e Único Pastor,
Jesus Cristo, assim como ao cuidado maternal de sua mãe Maria.
Surpresa como todos diante do
inesperado gesto de Bento XVI, aos poucos fui sentindo o peso e a importância
desta decisão e deste anúncio. Parece-me de uma grandeza impressionante, de uma
coragem enorme e de uma inspiração evangélica. Nunca durante este pontificado
senti tão presentes o sopro e o impulso do Espírito como neste anúncio dado na
Praça de São Pedro no último dia 12 de fevereiro.
A decisão livre e minuciosamente
refletida e pensada de Bento XVI pode ter um enorme significado para a Igreja.
Porque se o Papa pode deixar seu cargo por motivos de idade, por sentir que lhe
faltam as forças e o vigor físicos para exercer como deveria a posição que
ocupa, a mesma interpelação se abre para outros segmentos eclesiais. Por que
não teriam de fazer o mesmo os superiores das ordens e congregações religiosas
masculinas e femininas? Por que se eternizam em cargos de chefia tantos
coordenadores de movimentos leigos que não se mostram dispostos a dar um passo
para liberar o caminho aos mais jovens?
Antes do Papa, a Igreja havia já
assistido à renúncia do superior geral dos jesuítas, o holandês Peter Hans
Kolvenbach. Depois de 25 anos à frente da Companhia de Jesus, a ordem mais
forte da Igreja, Pe. Kolvenbach apresentou sua renúncia. Já vinha tentando
fazê-lo desde o pontificado de João Paulo II, que nunca a aceitou. No entanto,
depositou-a nas mãos do Papa Ratzinger, que entendeu perfeitamente seu desejo e
sua decisão.
O ‘Papa Negro’ – como é chamado o geral
dos jesuítas – ao renunciar prenunciava esta outra renúncia, a do Papa sucessor
de Pedro. Em ambos a mesma atitude de fundo: liberdade interior e desapego do
poder. Sair porque vê conscientemente seus limites. Afastar-se do cargo porque
reconhece humildemente não ter condições objetivas de exercê-lo. Deixar o poder
que lhe foi outorgado pelo colégio cardinalício e reconhecido por toda a Igreja
nas mãos desse mesmo colégio para que escolha um sucessor.
No dia 28 de fevereiro, Bento XVI se
retirará à sede de Castelgandolfo, no sul de Roma, e deixará o governo após
quase oito anos de papado. Depois de eleito seu sucessor, viverá na cidade do
Vaticano, dedicando-se àquilo que ama fazer: ao estudo, à escrita, à oração.
Com sua atitude nitidamente na
contramão da lógica do poder, Bento XVI abre o caminho a uma reformulação do
papado, que já deveria há muito ter sido feita na Igreja Católica. Seu
sucessor, seja ele quem for, encontrará esse precedente aberto e isso
certamente deverá impactar em seu comportamento, em seu estilo de governar e na
compreensão que terá de seu cargo e ministério.
Com seu gesto extremamente humilde e
realista, Bento XVI deixa a autoridade que lhe foi conferida como Papa, mas
permanece investido de outra autoridade, mais evangélica, mais inspirada e
inspiradora, mais perene: a autoridade do testemunho. Foi um confessor – como
os do cristianismo primevo - aquele que, fragilizado pela idade e pelo cansaço,
com a voz tênue e quase inaudível, reconheceu seus limites e abdicou do poder
que detinha. Assim entrava na esfera daquela humildade que deve ser mais forte
e presente ainda nos que detêm cargos de mando, tal como ensinou o Mestre Jesus
de Nazaré.
Se faltasse ainda algo para
convencer-nos da beleza do acontecimento que ungiu a Igreja inteira com a
renúncia do Papa, talvez fosse importante prestar atenção ao respeito atento e
admirativo que esta despertou naqueles que mais divergiam de suas ideias e de
seu magistério. O teólogo brasileiro Leonardo Boff, por exemplo, declarou que a
atitude de Bento XVI merece toda admiração e respeito. Assim também o teólogo
suíço Hans Küng, com quem Ratzinger teve alguns embates bem conhecidos: ‘A decisão de Bento XVI merece grande
respeito, é legítima, compreensível e também corajosa. Nunca esperei que este
Papa conseguisse me surpreender, algum dia, de maneira tão positiva’.
A nós, que somos espectadores e
testemunhas deste evento histórico-teologal, que a atitude do Papa nos inspire
e ilumine nesta Quaresma que agora começamos.’
Fonte :
*Jornal do Brasil –
edição de 15.02.2013
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