São Bernardo
Os Dons do Espírito
Bernardo
opera uma síntese, graças à sua concepção da obra do Espírito Santo (4). Ele exprime claramente sua
doutrina da fecundidade espiritual, comentando a que é chamado o amor entre a
esposa (aqui a alma individual) e o Esposo. Ele parte da citação do Cântico : ‘Como perfume derramado é o teu nome’ (Ct
1,3).
‘Que verdade da nossa vida interior o
Espírito Santo nos faz conhecer por esse texto? Sem dúvida nenhuma, ele explica
a experiência que por vezes nos vem de suas duas operações. Pela primeira, Ele
nos consolidou, interiormente, nas virtudes requeridas para nossa salvação.
Pela segunda, Ele nos dispõe também exteriormente concedendo-nos seus dons a
fim de ganhar os outros para Deus. As virtudes, recebemo-las para nós, os dons
para o nosso próximo. Por exemplo, a fé, a esperança e a caridade nos são dadas
para nós mesmos : porque sem elas, não podemos ser salvos. Ao passo que a
linguagem da ciência ou da sabedoria, o carisma da cura, a profecia e outros
dons semelhantes, os quais podem nos faltar sem nenhum prejuízo para nossa
salvação, nos são seguramente concedidos para a salvação de nossos próximos.
Essas operações do Espírito Santo, das quais fazemos experiência em nós mesmos
ou nos outros, chama-las-emos, se o quiserem, infusão e efusão, para que os
nomes correspondam à realidade’ (SCt 18,1; cf Div 88).
Este
texto apresenta dois tipos de dons do Espírito, mas afirma ao mesmo tempo a
prioridade de ‘virtudes’, isto é, de
‘potencialidades’ que nos são
necessárias para nós mesmos e cuja ausência comprometeria nossa ação para o
exterior : a fé, a esperança e a caridade. Em outros termos, Bernardo jamais
colocará em pé de igualdade a ‘infusão’ e
a ‘efusão’. A segunda não será
válida, senão decorrendo da primeira. Mas permanece verdade que os dons do
Espírito, feitos para serem postos a serviço dos outros, não temos o direito de
guardá-los para nós mesmos. Trata-se de respeitar a natureza dos dons e de
respeitá-los pelo que eles são.
‘Mas aqui é preciso se precaver de um lado,
para não dar o que recebemos para nós mesmos, e de outro, para dar com
generosidade. Reténs para ti mesmo o bem de teu próximo, quando, por exemplo,
estás cheio de virtudes e dotado também exteriormente de ciência e de eloquência
e, por medo ou talvez por preguiça ou por humildade indiscreta (falsa
humildade), te fechas num silêncio inútil, até mesmo censurável, calando a boa
palavra da qual muitos poderiam tirar proveito’ (SCt 18,2).
Bernardo
vai do interior para o exterior. Frequentemente, é muito depressa que nos
expandimos para o exterior. Ele apela para a idéia do tonel e do canal : o
canal é apenas um lugar de passagem. Para si mesmo, ele não retém nada; o tonel
é um recipiente onde as coisas amadurecem, decantam e transbordam somente
quando já estão maduras. A vida espiritual tem necessidade dessa maturação : é
preciso tempo, formação, instrução, sabedoria.
‘A sabedoria consiste em fazer de si esse
tonel e não um canal. Um canal recebe a água e em seguida a derrama; o tonel,
ao contrário, espera ficar cheio para comunicar sua superabundância, sem se
prejudicar. (...) Verdadeiramente, na Igreja hoje, temos muitos canais e muito
poucos tonéis’ (SCt 18,3).
A
contemplação precede a ação. Esta é fruto daquela. Porque o amor é fecundo.
Para Bernardo, a ação se aplica primeiramente à pregação.
‘Este amor é apaixonado. É ele que convém ao
amigo do Esposo; (...) este amor satisfaz, aquece, ferve, expande-se enfim, com
segurança, rompendo todos os diques (...). Que ele pregue, que carregue fruto’
(SCt 18,6).
Pode-se
interpretar este texto de maneira puramente psicológica : quando se está
apaixonado, comunica-se aos outros seu entusiasmo. Mas para Bernardo, o motivo
da ação encontra sua origem no fato que Deus criou o homem para amar e para ser
amado. O homem é feito para Deus. E Deus é amor. O escopo da ação, enfim, será
Deus. Através de tudo isso que desejamos e tudo que fazemos pelo nosso próximo,
por detrás de tudo, estão o amor de Deus mesmo. Nosso amor por Ele,
consequência de seu amor por nós, Bernardo o diz em uma frase muito densa : ‘Deus é caridade e nada no mundo poderia
satisfazer a criatura feita à imagem de Deus, a não ser esse Deus-caridade,
que, somente ele, é maior que sua criatura’ (SCt 18,6).
Assim,
todo contemplativo se torna missionário. É mesmo de boa vontade que o
contemplativo interromperá sua oração para ser ativo e missionário. Mais ainda,
seu desejo de levar os outros para Deus é o sinal de uma contemplação
autêntica.
‘A contemplação verdadeira e casta tem isto
de particular : uma vez que, violentamente, abrasou o espírito com o fogo
divino, ela o cumula por vezes de um tão grande zelo e de um tão grande desejo
de ganhar para Deus almas igualmente amantes, que interrompe de boa vontade o
prazer da contemplação, pelo labor a pregação’ (SCt 57,9; cf. SCt 58,1.3).
Amar a
Deus que é amor, é querer ser como Ele, isto é, querer verdadeiramente o bem
para os outros. Não está aí uma autêntica paternidade que é também a dos
contemplativos?
‘Para a esposa, ser arrastada pelo Esposo é
receber d’Ele mesmo o desejo de ser arrastada, o desejo das boas obras, o
desejo de produzir frutos para o Esposo. Porque, para ela, viver é o Esposo, e
morrer é um ganho’ (SCt 58,1).
A
primeira parte da frase exprime a dimensão contemplativa, a que consiste em
acolher o desejo que Deus quer colocar em nós. A segunda parte também é clara :
morrer para o Esposo é morrer dando-se aos outros.
Fecundidade Eclesial
Bernardo
dá duas condições para que o ministério do pregador seja fecundo – isto se
aplica também hoje a todos os que têm a missão de testemunhar a fé em Cristo.
Antes de tudo, estar maduro não por ambição pessoal, mas por ter recebido a
missão de o fazer :
‘É, pois, para examinar (as almas e as
igrejas), para corrigí-las, para instruí-las, para salvá-las que é convidada
uma alma mais perfeita, supondo-se que tenha obtido este ministério, não à
custa de reivindicações, mas pelo chamado de Deus, como Aarão’ (SCt 58,3).
Mas em
seguida, é preciso ainda alguma coisa de mais interior, essa chama que nos
impele para os outros.
‘Que é este convite, senão um certo aguilhão
interior da caridade, que suavemente nos incita a ter zelo pela salvação de
nossos irmãos, zelo pela beleza da casa de Deus, pelo crescimento de seus grãos
e frutos da sua justiça, para o louvor e a glória de seu nome? Aquele que deve
dirigir as almas ou se entregar, por causa de seu cargo, ao trabalho da
pregação, cada vez que sentir em si mesmo o homem interior movido por tais
sentimentos de piedade para com Deus, compreenderá sem dúvida possível que o
Esposo está lá e que Ele o convida para suas vinhas’ (SCt 58,3).
Nada
impede que aquele que é chamado a instruir os outros seja muitas vezes
importunado, pois precisamente neste momento, ele quereria se nutrir
espiritualmente a si mesmo.
‘Note-se o que acontece : a esposa pede uma
coisa e recebe outra. Ela aspira a calma da contemplação e se lhe impõe o
trabalho da pregação; ela tem sede da presença do Esposo e se alegra por gerar
filhos para Ele e nutri-los’ (SCt 41,5).
O
repouso contemplativo não é, pois, um absoluto. As necessidades do próximo
podem nos eximir dele. ‘Com efeito, é bem
preferível repousar e estar com Cristo. Mas é necessário sair do repouso para
ganhar os homens que devem ser salvos’ (SCt 46,’).
Bernardo
jamais separa as diferentes formas de vida possíveis. Para ele só há uma
orientação contemplativa, na qual tudo o mais deve adequar-se. Desde que se
encontre bem no seu lugar nesta vocação contemplativa fundamental, trata-se de
receber seu lugar pessoal. Que isto possa causar dilaceramentos interiores, é
certo. Mas é normal e inevitável. Vivemos sempre as duas facetas de uma única
vocação.
‘O sentimento da alma é bem diferente,
conforme ela frutifica pelo Verbo, ou usufrui do Verbo. No primeiro caso, sua
atenção se volta para as necessidades do seu próximo; no segundo, ela é chamada
pela doçura do Verbo’ (SCt 85,13).
O
princípio será sempre a caridade, o que é ‘util’
para os outros : ‘Não procurarei minha
vantagem pessoal, nem o que me interessa, mas o que o é para o maior número’
(SCt 52,7). A expressão volta frequentemente : é preciso viver para os outros,
para ‘todos’ (cf. SCt 41,6). É sempre
o interesse comum que tem a primazia : ‘O
que alegra o coração de um só homem é bem diferente do que edifica a muitos’
(SCt 9,8).
Essa
doutrina tem por consequência que Bernardo relativiza, de certo modo, a própria
vocação monástica, o que não deixará de espantar alguns. Ele considera a vida
para fora do mosteiro, frequentemente ‘melhor’
ou ‘mais viril’ : ‘Fazes bem em ser vigilante na guarda de ti
mesmo; mas o que é útil a muitos age melhor e mais virilmente’ (SCt 12,9).
Sem dúvida, nem sempre se viu essa dimensão do ensinamento de Bernardo, talvez
porque se julgou a priori, indigno de um místico dar tanta importância ao
engajamento pastoral. Uma ‘mística de
esponsais’ parecia se bastar e ser quase incompatível com uma ‘mística de serviço’. Todavia, os textos
de Bernardo estão aí, para o comprovar (5).
Para
concluir, volto a uma de minhas idéias do início : deixar-se levar pela Palavra
de Deus significa, em geral, viver na Igreja e a seu serviço. O cristão faz
suas as necessidades da Igreja universal (Ep 141,1). O que tem a primazia
sempre, antes de tudo e depois de tudo, é a caridade :
‘Arrasta-me após ti : eu te sigo com alegria;
eu me rejubilo contigo, com mais alegria ainda. Se és bom, Senhor, para aqueles
que te seguem, como não serás para os que se rejubilam em ti?’ (SCt 47,6).
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(4) Esta concepção será encontrada mais tarde em Ruysbroeck.
(4) Esta concepção será encontrada mais tarde em Ruysbroeck.
(5) Alguns autores (Cuthbert, Mieth) reconhecem-no e vêem nesta ‘idéia de fecundidade’ uma contribuição original de Bernardo à tradição agostiniana e gregoriana.
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