sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Uma mística do serviço : A vida contemplativa segundo São Bernardo (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

São Bernardo 


Os Dons do Espírito
Bernardo opera uma síntese, graças à sua concepção da obra do Espírito Santo (4). Ele exprime claramente sua doutrina da fecundidade espiritual, comentando a que é chamado o amor entre a esposa (aqui a alma individual) e o Esposo. Ele parte da citação do Cântico : ‘Como perfume derramado é o teu nome’ (Ct 1,3).
Que verdade da nossa vida interior o Espírito Santo nos faz conhecer por esse texto? Sem dúvida nenhuma, ele explica a experiência que por vezes nos vem de suas duas operações. Pela primeira, Ele nos consolidou, interiormente, nas virtudes requeridas para nossa salvação. Pela segunda, Ele nos dispõe também exteriormente concedendo-nos seus dons a fim de ganhar os outros para Deus. As virtudes, recebemo-las para nós, os dons para o nosso próximo. Por exemplo, a fé, a esperança e a caridade nos são dadas para nós mesmos : porque sem elas, não podemos ser salvos. Ao passo que a linguagem da ciência ou da sabedoria, o carisma da cura, a profecia e outros dons semelhantes, os quais podem nos faltar sem nenhum prejuízo para nossa salvação, nos são seguramente concedidos para a salvação de nossos próximos. Essas operações do Espírito Santo, das quais fazemos experiência em nós mesmos ou nos outros, chama-las-emos, se o quiserem, infusão e efusão, para que os nomes correspondam à realidade’ (SCt 18,1; cf Div 88).     
Este texto apresenta dois tipos de dons do Espírito, mas afirma ao mesmo tempo a prioridade de ‘virtudes’, isto é, de ‘potencialidades’ que nos são necessárias para nós mesmos e cuja ausência comprometeria nossa ação para o exterior : a fé, a esperança e a caridade. Em outros termos, Bernardo jamais colocará em pé de igualdade a ‘infusão’ e a ‘efusão’. A segunda não será válida, senão decorrendo da primeira. Mas permanece verdade que os dons do Espírito, feitos para serem postos a serviço dos outros, não temos o direito de guardá-los para nós mesmos. Trata-se de respeitar a natureza dos dons e de respeitá-los pelo que eles são.
Mas aqui é preciso se precaver de um lado, para não dar o que recebemos para nós mesmos, e de outro, para dar com generosidade. Reténs para ti mesmo o bem de teu próximo, quando, por exemplo, estás cheio de virtudes e dotado também exteriormente de ciência e de eloquência e, por medo ou talvez por preguiça ou por humildade indiscreta (falsa humildade), te fechas num silêncio inútil, até mesmo censurável, calando a boa palavra da qual muitos poderiam tirar proveito’ (SCt 18,2).
Bernardo vai do interior para o exterior. Frequentemente, é muito depressa que nos expandimos para o exterior. Ele apela para a idéia do tonel e do canal : o canal é apenas um lugar de passagem. Para si mesmo, ele não retém nada; o tonel é um recipiente onde as coisas amadurecem, decantam e transbordam somente quando já estão maduras. A vida espiritual tem necessidade dessa maturação : é preciso tempo, formação, instrução, sabedoria.
A sabedoria consiste em fazer de si esse tonel e não um canal. Um canal recebe a água e em seguida a derrama; o tonel, ao contrário, espera ficar cheio para comunicar sua superabundância, sem se prejudicar. (...) Verdadeiramente, na Igreja hoje, temos muitos canais e muito poucos tonéis’ (SCt 18,3).
A contemplação precede a ação. Esta é fruto daquela. Porque o amor é fecundo. Para Bernardo, a ação se aplica primeiramente à pregação.
Este amor é apaixonado. É ele que convém ao amigo do Esposo; (...) este amor satisfaz, aquece, ferve, expande-se enfim, com segurança, rompendo todos os diques (...). Que ele pregue, que carregue fruto’ (SCt 18,6).
Pode-se interpretar este texto de maneira puramente psicológica : quando se está apaixonado, comunica-se aos outros seu entusiasmo. Mas para Bernardo, o motivo da ação encontra sua origem no fato que Deus criou o homem para amar e para ser amado. O homem é feito para Deus. E Deus é amor. O escopo da ação, enfim, será Deus. Através de tudo isso que desejamos e tudo que fazemos pelo nosso próximo, por detrás de tudo, estão o amor de Deus mesmo. Nosso amor por Ele, consequência de seu amor por nós, Bernardo o diz em uma frase muito densa : ‘Deus é caridade e nada no mundo poderia satisfazer a criatura feita à imagem de Deus, a não ser esse Deus-caridade, que, somente ele, é maior que sua criatura’ (SCt 18,6).
Assim, todo contemplativo se torna missionário. É mesmo de boa vontade que o contemplativo interromperá sua oração para ser ativo e missionário. Mais ainda, seu desejo de levar os outros para Deus é o sinal de uma contemplação autêntica.
A contemplação verdadeira e casta tem isto de particular : uma vez que, violentamente, abrasou o espírito com o fogo divino, ela o cumula por vezes de um tão grande zelo e de um tão grande desejo de ganhar para Deus almas igualmente amantes, que interrompe de boa vontade o prazer da contemplação, pelo labor a pregação’ (SCt 57,9; cf. SCt 58,1.3).
Amar a Deus que é amor, é querer ser como Ele, isto é, querer verdadeiramente o bem para os outros. Não está aí uma autêntica paternidade que é também a dos contemplativos?
Para a esposa, ser arrastada pelo Esposo é receber d’Ele mesmo o desejo de ser arrastada, o desejo das boas obras, o desejo de produzir frutos para o Esposo. Porque, para ela, viver é o Esposo, e morrer é um ganho’ (SCt 58,1).
A primeira parte da frase exprime a dimensão contemplativa, a que consiste em acolher o desejo que Deus quer colocar em nós. A segunda parte também é clara : morrer para o Esposo é morrer dando-se aos outros. 
 
Fecundidade Eclesial
Bernardo dá duas condições para que o ministério do pregador seja fecundo – isto se aplica também hoje a todos os que têm a missão de testemunhar a fé em Cristo. Antes de tudo, estar maduro não por ambição pessoal, mas por ter recebido a missão de o fazer :
É, pois, para examinar (as almas e as igrejas), para corrigí-las, para instruí-las, para salvá-las que é convidada uma alma mais perfeita, supondo-se que tenha obtido este ministério, não à custa de reivindicações, mas pelo chamado de Deus, como Aarão’ (SCt 58,3).
Mas em seguida, é preciso ainda alguma coisa de mais interior, essa chama que nos impele para os outros.
Que é este convite, senão um certo aguilhão interior da caridade, que suavemente nos incita a ter zelo pela salvação de nossos irmãos, zelo pela beleza da casa de Deus, pelo crescimento de seus grãos e frutos da sua justiça, para o louvor e a glória de seu nome? Aquele que deve dirigir as almas ou se entregar, por causa de seu cargo, ao trabalho da pregação, cada vez que sentir em si mesmo o homem interior movido por tais sentimentos de piedade para com Deus, compreenderá sem dúvida possível que o Esposo está lá e que Ele o convida para suas vinhas’ (SCt 58,3).
Nada impede que aquele que é chamado a instruir os outros seja muitas vezes importunado, pois precisamente neste momento, ele quereria se nutrir espiritualmente a si mesmo.
Note-se o que acontece : a esposa pede uma coisa e recebe outra. Ela aspira a calma da contemplação e se lhe impõe o trabalho da pregação; ela tem sede da presença do Esposo e se alegra por gerar filhos para Ele e nutri-los’ (SCt 41,5).
O repouso contemplativo não é, pois, um absoluto. As necessidades do próximo podem nos eximir dele. ‘Com efeito, é bem preferível repousar e estar com Cristo. Mas é necessário sair do repouso para ganhar os homens que devem ser salvos’ (SCt 46,’).
Bernardo jamais separa as diferentes formas de vida possíveis. Para ele só há uma orientação contemplativa, na qual tudo o mais deve adequar-se. Desde que se encontre bem no seu lugar nesta vocação contemplativa fundamental, trata-se de receber seu lugar pessoal. Que isto possa causar dilaceramentos interiores, é certo. Mas é normal e inevitável. Vivemos sempre as duas facetas de uma única vocação.
O sentimento da alma é bem diferente, conforme ela frutifica pelo Verbo, ou usufrui do Verbo. No primeiro caso, sua atenção se volta para as necessidades do seu próximo; no segundo, ela é chamada pela doçura do Verbo’ (SCt 85,13).
O princípio será sempre a caridade, o que é ‘util’ para os outros : ‘Não procurarei minha vantagem pessoal, nem o que me interessa, mas o que o é para o maior número’ (SCt 52,7). A expressão volta frequentemente : é preciso viver para os outros, para ‘todos’ (cf. SCt 41,6). É sempre o interesse comum que tem a primazia : ‘O que alegra o coração de um só homem é bem diferente do que edifica a muitos’ (SCt 9,8).
Essa doutrina tem por consequência que Bernardo relativiza, de certo modo, a própria vocação monástica, o que não deixará de espantar alguns. Ele considera a vida para fora do mosteiro, frequentemente ‘melhor’ ou ‘mais viril’ : ‘Fazes bem em ser vigilante na guarda de ti mesmo; mas o que é útil a muitos age melhor e mais virilmente’ (SCt 12,9). Sem dúvida, nem sempre se viu essa dimensão do ensinamento de Bernardo, talvez porque se julgou a priori, indigno de um místico dar tanta importância ao engajamento pastoral. Uma ‘mística de esponsais’ parecia se bastar e ser quase incompatível com uma ‘mística de serviço’. Todavia, os textos de Bernardo estão aí, para o comprovar (5).
Para concluir, volto a uma de minhas idéias do início : deixar-se levar pela Palavra de Deus significa, em geral, viver na Igreja e a seu serviço. O cristão faz suas as necessidades da Igreja universal (Ep 141,1). O que tem a primazia sempre, antes de tudo e depois de tudo, é a caridade :
Arrasta-me após ti : eu te sigo com alegria; eu me rejubilo contigo, com mais alegria ainda. Se és bom, Senhor, para aqueles que te seguem, como não serás para os que se rejubilam em ti?’ (SCt 47,6).

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(4) Esta concepção será encontrada mais tarde em Ruysbroeck.

(5) Alguns autores (Cuthbert, Mieth) reconhecem-no e vêem nesta ‘idéia de fecundidade’ uma contribuição original de Bernardo à tradição agostiniana e gregoriana.

 

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