quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Uma mística do serviço : A vida contemplativa segundo São Bernardo (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

São Bernardo   
 Ser útil aos outros
            Compreendemos agora em que sentido Bernardo fala da caridade como alguma coisa de ‘útil’. A utilidade tem certamente o sentido espiritual de agir no que se refere a Deus : amar o próximo é aproximá-lo de Deus. Mas não é indigno do Espírito ser muito prático. É nesse duplo sentido que devemos compreender a famosa frase, na Carta 11: ‘A caridade não procura jamais o que é útil para si, mas a utilidade de um grande número’ (Ep 11,4) (3).
            Já em São Paulo, que Bernardo citava aqui muito livremente, a caridade é concreta e prática :
            Em suma : quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus. Não sejais motivo de tropeço para ninguém – judeus, gregos ou a Igreja de Deus -, como também eu me esforço por agradar em tudo a todos, buscando não o que é vantajoso para mim, mas o que é vantajoso para o maior número de pessoas, a fim de que sejam salvas’ (1Cor 10,31-33).
            Eu diria : não somente prático, mas francamente diplomático; a caridade se esforça por re-encontrar o outro em seu próprio terreno e por isso está pronta a concessões.
            A importância da caridade em ato bem prova que a ‘vida ativa’ é sempre necessária em uma comunidade. Bernardo aplica a imagem de duas irmãs, Marta e Maria. Tanto a contemplação (Maria) como as obras (Marta), são formas da luz. Ambas luminosas, na medida em que são bem vividas. ‘Marta é mesmo a irmã de Maria. Ainda que a alma caia da luz da contemplação (...), ela se mantém na luz de uma atividade louvável’ (SCt 51,2).
            Bernardo jamais admitiu que os Abades renunciassem a seu cargo abacial para levar uma vida mais contemplativa. A seu amigo Oger, escreveu severamente : ‘Confessa sinceramente : julgaste que tua própria tranquilidade é mais importante que a utilidade da comunidade’ (Ep 87,3). E em uma outra carta : ‘Se é lícito a alguém preferir ao bem comum (utilitati communi) sua própria tranquilidade, quem pois poderá proclamar em verdade : Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer, lucro?’ [Fl 1,21] (Ep 82,1). Mais conhecidas ainda são as advertências muito severas, dirigidas a um outro amigo, Guilherme de Saint-Thierry : ‘Infeliz de ti, se és superior sem ser útil, mas bem maior tua infelicidade se, por temor de ser superior, foges da ocasião de ser útil’ (Ep 86,2).
            É sempre por causa dessa estima da vida comunitária que Bernardo tem apreensões a respeito da vida eremítica : ‘Aquele que é fraco tem necessidade da comunidade. Mas aquele que é forte, é a comunidade que tem necessidade dele’ (cf. Ep 115,2). Sempre fico impressionado com esta definição que Bernardo dá do degrau mais elevado do amor espiritual. Ela toma toda sua força nos lábios de um místico :
            Afinal, nós amamos espiritualmente nosso espírito quando, por amor, consideramos aquilo que é útil a nossos irmãos como sendo mais importante até que nossas ocupações espirituais’ (Div 101). 
 
            Fraqueza e Força 
            A força da comunidade cristã apóia paradoxalmente sua energia na partilha das fraquezas de seus membros. Entendamo-nos bem. Não digo que uma multiplicidade de misérias faça uma fortaleza. Ela pode fazer desmoronar o castelo. Mas em regime cristão, a consciência de seus próprios limites faz com que se procure apoio alhures, sem se atribuir o poder e a força. O caminho obrigatório – não somente para nossa vida espiritual pessoal, mas também para a saúde comunitária – é através de suas próprias zonas de sombra.
            Mas para que vosso coração seja tocado de compaixão pela miséria dos outros, é preciso que primeiramente reconheçais a vossa própria, a fim de que encontreis o sentimento do próximo no vosso, e aprendais de vós mesmos de que maneira deveis socorrê-lo’ (Hum 6).
            Nisso Bernardo se une à grande tradição dos mestres espirituais que sempre fundamentaram a caridade verdadeira num conhecimento esclarecido de si mesmo. Afinal, é uma questão de equilíbrio. É preciso dar tempo a Deus, a si mesmo e aos outros.
            Será considerado perfeito todo homem cuja alma deixar transparecer uma harmoniosa e feliz convergência dessas três realidades : ele sabe gemer por si mesmo, exultar em Deus e ao mesmo tempo, ele está em condição de contribuir para o bem de seus próximos’ (SCt 57,11).
            Uma semelhante frase é típica do espírito de Bernardo : ele tem o cuidado de reunir os elementos diferentes em uma síntese equilibrada. Não se pode negligenciar nem o tempo dado a Deus, nem a atenção a si mesmo, nem o cuidado dos outros. Negligenciar uma dessas três coisas é fragilizar não só sua vida espiritual, mas também a comunidade em que se vive. Nós devemos aos outros não somente a atenção caridosa, mas ainda nosso engajamento pessoal na oração, bem como o cuidado de nós mesmos. Deus sabe quantos religiosos e religiosas pagaram caro suas negligências nestes domínios, e quantas comunidades acabaram por ficar em perigo pela falta de lucidez e de coragem para remediar os problemas daí resultantes. 
 
            Mística do Serviço
            Mas o equilíbrio perfeito não existe. As necessidades da caridade fraterna entram sempre em concorrência com a contemplação.
            Nesse sentido, nenhuma contemplação continua fácil nem de duração agradável; a exigência constrangedora e imperiosa do trabalho e do dever nos pressiona’ (SCt 58,1).
            Jó é a figura bíblica que testemunha o dilaceramento que o contemplativo ressente, quando se põe ao mesmo tempo a serviço dos irmãos.
            Parece que o bem-aventurado Jó sofria algo de semelhante a isto quando dizia : ‘Quando me deito, penso : Quando virá o dia? Ao levantar-me : Quando chegará a noite?’ Isto quer dizer : Se estou tranquilo, me censuro por negligenciar o trabalho. Se estou ocupado, me censuro também por perturbar minha tranquilidade. Vês que este santo homem é dolorosamente sacudido entre o fruto do trabalho e o sono da contemplação. Ainda que ele se aplique a obras boas, todavia, está sempre na iminência de se arrepender, como se fossem más. A todo momento ele procura, gemendo, a Vontade de Deus. Sem nenhuma dúvida, o único remédio ou refúgio na ocorrência é a oração e um gemido frequentemente dirigido a Deus, para que Ele se digne sem cesar mostrar-nos o que Ele quer que façamos, e a qual momento, e até que ponto’ (SCt 57,9).
            Notemos uma vez mais o equilíbrio na última frase. É preciso rezar não só para que Deus mostre sua Vontade, mas ainda para saber a qual momento é preciso fazê-la, enfim, em que medida, porque a impetuosidade denota frequentemente menos o fervor que a falta de discernimento.
            O serviço a prestar é sempre uma carga? Mas a pessoa é impelida para ele e até atraída – pelo amor. Bernardo tem uma bela expressão em sua Carta 48 : Gravor, sed trahor (Ep 48,3). Poder-se-ia traduzir livremente : ‘Isto me pesa, mas estou arrastado’ (subentendido pelo amor). O critério é sempre : será que faço isso por amor de Deus? Será que a esposa sai da contemplação por causa do Esposo? Se sim, com a esposa podemos dizer a respeito daqueles a quem servimos :
            Eles me pouparão não me poupando, e eu antes encontrarei meu repouso naquilo que eles tinham receio de me perturbar por suas necessidades. Eu farei o que desejam, enquanto eu puder, e é neles que servirei meu Deus, tanto tempo quanto viver, por uma cariade sem fingimento’ (SCt 52,7).
            É isso que Bernardo chamará em outro lugar : a oportuna inoportunitas, a oportuna inoportunidade (Div 93,2). É que não só o amor nos impele interiormente para o serviço, mas o Esposo tão procurado o faz também.
            Enquanto ela mostra o pequeno leito, Ele a chama para o campo; Ele a convida para o trabalho. Ele julga que nada será mais persuasivo para decidi-la ao combate que se propor a si mesmo, seja como exemplo, seja como recompensa desse combate’ (SCt 47,6).
            Conforme São Bernardo, a ‘mística dos esponsais’ não é oposta a uma ‘mística do serviço’. Há um impulso para o serviço que é a expressão exata de um alto grau de contemplação. O amor impele a ir ao encontro dos outros, a partilhar com eles o que se recebeu. A nível pessoal, a sequência é sempre : conversão, ascese do desejo, fecundidade. Em um contexto eclesial, deixar-se guiar pela Palavra de Deus significa que se vive na Igreja, que se vive com os outros, na Igreja, o que permite tornar-se por sua vez, esposa de Cristo, que a Igreja misteriosamente já é.
            É nesse sentido que se pode compreender como, durante séculos, a expressão ‘vida apostólica’ exprimiu o objetivo da vida contemplativa cenobítica : o fato de querer viver intensamente a vida das primeiras comunidades na partilha dos bens e da oração. Atualmente, a expressão significa mais a missão junto aos ‘outros’, isto é, os que não fazem parte de nossa comunidade no sentido estrito do termo. A própria comunidade está a serviço dos outros. Portanto, poder-se-ia dizer que, primeiramente a expressão ‘vida apóstólica’, definiria a comunidade ‘ad intra’; atualmente ela designa a relação que mantém a comunidade ‘ad extra’.

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(3)  Cf. RB 72,7 : ‘Ninguém procure aquilo que julga útil para si, mas principalmente, o que o é para o outro’. Portanto, estamos na perspectiva do capítulo sobre o Zelo Bom.

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