* Artigo de Pe. Vincent Lescanne, OSB
A Eucaristia : Celebração da Páscoa
Eucaristia é bênção, adoração, louvor,
admiração, confissão das maravilhas de Deus, especialmente pela criação,
salvação (a libertação do Egito) e o dom da Terra prometida. Mas é também
Memorial da Páscoa. Que significa e que nos dá a entender essa palavra um pouco
estranha : memorial? E Páscoa? Será que sabemos verdadeiramente o
que é?
Recordemos que a Eucaristia é o
sacramento do Amor de Deus. E também que a primeira maravilha que proclamamos é
a criação. A criação, esse primeiro gesto de amor de Deus por nós, gesto
imenso, gesto permanente como uma fonte. Deus, que criou o homem, vai também
elevá-lo, educá-lo, aperfeiçoá-lo. Deus vai fazer o homem e toda a criação
ascenderem a uma beleza maior, a maior liberdade, humanização, divinização. A humanidade
é atraída para sua realização perfeita, para seu cume, Jesus Cristo e Jesus
Cristo Deus, Filho de Deus, ressuscitado e junto de seu Pai. Se na Eucaristia
nos fascinamos com a criação é porque, como diz o Padre Rey-Mermet, ‘esse
imento movimento de divinização foi aí realizado de uma maneira particularmente
intensa. Na consagração os elementos materiais do mundo, o pão e o vinho, são
mudados no Corpo e no Sangue do Filho de Deus. Pelo poder do Espírito Santo a
criação é atingida pela irradiação soberana do Cristo ressuscitado e se torna a
plenitude que é ele próprio : ‘Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue’ (1). A criação transfigurada, transubstanciada, torna-se vida
eterna, torna-se o Corpo do Filho de Deus. A Eucaristia é, de algum modo, o
sentido último do ato criador de Deus; é a vocação de toda a criação que é
progressão da matéria para o homem, do homem para o Cristo e do Cristo para o
Pai. Esse retorno da criatura para Deus é significado de modo particularmente
intenso na Eucaristia. Sob este aspecto ela é a Passagem de toda criatura para Deus em
Jesus Cristo ; é a Páscoa da criação, a
Páscoa do mundo, uma vez que em hebraico, Páscoa significa passagem.
A Eucaristia é Páscoa porque Passagem da criação para Deus. É Páscoa porque
celebração na lembrança da Passagem do mar Vermelho; pressentimos também
que é Páscoa porque antecipação de nossa Passagem definitiva para o mundo de Deus no
final dos tempos. Mas o que é a Páscoa? Que significava para o próprio Jesus a
festa da Páscoa quando da instituição da Eucaristia: É muito importante
descobrirmos isso, pois Jesus ligou explicitamente a Eucaristia e a sua Paixão
à celebração da Páscoa judaica. Releiamos Mt 26,1 : ‘Sabeis que dentro de
dois dias se celebra a Páscoa, e o Filho do Homem vai ser entregue para ser
crucificado’, e Lc 22,15s : ‘Ardentemente desejei comer convosco esta
ceia pascal antes de padecer. Pois eu vos digo que não mais a comerei, até que
ela se realize no Reino de Deus...A seguir, tomou o pão... Depois, fez o mesmo
com o cálice...’
Jesus, antes de instituir a Eucaristia,
colocou-a em referência explícita com a Páscoa; Jesus, para cumprir, para viver
sua Hora, esperou a festa da Páscoa judaica. Assim pode-se dizer que a ‘Ceia
da Quinta-feira Santa e o Sacrifício da Sexta-feira Santa são, em conjunto, a
Páscoa judaica em vias de ‘realização na Páscoa ‘futura’, no final dos
tempos’ (2). É muito
importante uma vez mais tomar consciência dessa ligação, pois como compreender
a própria figura do Cristo, da qual São Paulo nos diz que é ‘nosso Cordeiro
Pascal imolado’ (cf 1Cor 5,7), se ignorarmos o que enchia seu coração e o
dos apóstolos quando dessa Páscoa da Quinta-feira, que antecedeu a sua morte?
A Páscoa Judaica
Ao longo da história de Israel, várias
festas contribuíram para formar a solenidade pascal : rito dos pastores no
contexto de uma vida nômade ou seminômade, incluindo o sacrifício de um
cordeiro novo e celebrada quando partiam em migração, e a festa dos Ázimos ou
dos pães sem fermento, no contexto agrário de uma vida sedentarizada e
celebrada no início da colheita da cevada. Reunidas mais tarde porque ambas
eram celebradas na primavera, a celebração da Páscoa vai servir de suporte à
celebração por Israel da primavera (depois, das primaveras) de seu nascimento,
isto é, da intervenção histórica decisiva de Deus em seu favor. Assim, se a
história das origens da festa da Páscoa permanece um pouco imprecisa, seu
significado espiritual ao contrário é iluminado por um grande esplendor. O povo
hebreu sabia muito bem o que significava espiritualmente a festa da Páscoa; no
espírito de Jesus e dos apóstolos, o sentido profundo da Páscoa que eles
celebravam na noite da ‘grande Quinta-feira’ era muito claro : não se
tratava apenas da lembrança da saída do Egito, mas também da lembrança, o
memorial, de três outras noites, de três outros nascimentos, de três outras
primaveras que pouco a pouco a Tradição judaica tinha acrescentado à lembrança
da noite primordial da saída do Egito; de sorte que a Páscoa resumia toda a
história da salvação, desde a criação até ao fim do mundo. Convém citar aqui um
poema muito belo, o Poema das
quatro noites (3).
Encontra-se no Targum palestino, isto é, o comentário aramaico da Bíblia
hebraica, e desenvolve Êxodo 12,42. Era utilizado na liturgia da sinagoga no
tempo de Jesus : basta isso para nos dizer quanto este poema é importante para
nos ajudar a compreender o que se passava no coração da pequena comunidade
reunida no Cenáculo naquela vigília da Páscoa.
‘A
primeira noite foi aquela em que o Senhor se manifestou ao mundo para o criar;
o mundo era deserto e vazio, e a treva cobria a superfície do abismo. E a
palavra do Senhor era a luz e brilhava, e ele a chamou : PRIMEIRA NOITE.’
‘A segunda noite foi quando a palavra
do Senhor se manifestou a Abraão com a idade de cem anos e a Sara, sua mulher,
de noventa anos, para que se cumprisse a Escritura : ‘Será que Abraaão com a
idade de cem anos irá gerar, e Sara, sua mulher, com noventa nos dará a luz?’ E
ele a chamou : SEGUNDA NOITE.
Uma tradição secundária acrescenta aqui
o memorial do sacrifício de Isaac, quando este, morto, por assim dizer, e
ressuscitado ‘em
parábola’ (cf. Hb 11,19)
tornou-se em sentido pleno ‘filho
da promessa’ :
‘E Isaac, nosso pai, tinha trinta e
sete anos quando foi oferecido sobre o altar. Os céus desceram e se abaixaram,
e Isaac viu suas perfeições, e seus olhos se obscureceram em conseqüência
dessas perfeições’. E ele a chamou : SEGUNDA
NOITE.’
‘A terceira
noite foi quando o Senhor se
manifestou aos egípcios no meio da noite : sua mão (esquerda) matava os
primogênitos dos egípcios, e sua direita protegia os primogênitos de Israel,
para que se cumprisse o que diz a Escritura : ‘Israel é meu filho, meu
primogênito’ (Ex 4,22). E ele a chamou : TERCEIRA
NOITE.’
‘A QUARTA
NOITE será quando o mundo for
consumado; os jugos de ferro serão rompidos e as gerações da impiedade serão
destruídas. E Moisés sairá do deserto e o Rei Messias das alturas (...) É a
noite da Páscoa para o nome do Senhor, noite fixada e reservada para a salvação
de todas as gerações de Israel.’
O Targum palestinense, que acabamos de
citar, deixa evidente o que significava para a fé tradicional do povo de Deus
no tempo de Cristo a festa pascal : comemoração, memorial – voltaremos mais
adiante a essa palavara – das quatro noites da História da Salvação, da Criação
ao fim dos tempos. Celebrar a Páscoa era pois celebrar a lembrança na admiração
e no deslumbramento da criação, a lembrança daquela noite na qual Deus fez
surgir o mundo para a glória de seu Nome, criação hoje transfigurada no Cristo
pascal, como dizíamos ao começar, Lembrança também da história de Abraão. Do
nascimento de Isaac, primeiramente, mas também e principalmente do seu
sacrifício, isto é, lembrança daquela festa do amor do Patriarca que não
recusou seu filho, seu único
filho, como diz o Gênesis (22,12); Isaac morto por assim dizer e
ressuscitado em parábola, como dirá a carta aos Hebreus (cf. 11,19), vendo aí o
anúncio da morte e da ressurreição do Cristo. Esta celebração da Páscoa é
portanto, para nós também, o anúncio e celebração da morte e da ressurreição do
Filho único de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor.
Mas a Páscoa, nos diz o poema, é também
lembrança e memorial da libertação do Egito, quando Deus libertou Israel do
jugo do cativeiro egípcio. Esta libertação é o modelo, o arquétipo de todas as
libertações futuras, em particular, no Cristo, da libertação da morte e do
pecado.
Fonte :
*Pe. Vincent Lescanne, OSB, monge da Abadia Sainte Marie de la
Pierre-qui -vire, França. Transcrição de uma
conferência pronunciada durante um retiro espiritual.
Artigo publicado em Écoute 252-253 e
254, 1979. Traduzido do francês pelo Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora - MG
Revista Beneditina nrº 33, Maio/Junho
de 2009, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de
Fora/Minas Gerais
-----------------------------------------
(1) Mission
Chrétienne, nº 207, p. 3.
(2) Mission
Chrétienne, nº 207, p. 6.
(3) A tradução
do Poema das Quatro Noites é de P.R. Lê
Déaut , em La Nuit Pascals ,
Instituto Bíblico, 1963
Nenhum comentário:
Postar um comentário