quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Eucaristia : Memorial da Páscoa de Cristo (Capítulo 1 de 4)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
* Artigo de Pe. Vincent Lescanne, OSB 

A Eucaristia : Celebração da Páscoa

Eucaristia é bênção, adoração, louvor, admiração, confissão das maravilhas de Deus, especialmente pela criação, salvação (a libertação do Egito) e o dom da Terra prometida. Mas é também Memorial da Páscoa. Que significa e que nos dá a entender essa palavra um pouco estranha : memorial? E Páscoa? Será que sabemos verdadeiramente o que é?

Recordemos que a Eucaristia é o sacramento do Amor de Deus. E também que a primeira maravilha que proclamamos é a criação. A criação, esse primeiro gesto de amor de Deus por nós, gesto imenso, gesto permanente como uma fonte. Deus, que criou o homem, vai também elevá-lo, educá-lo, aperfeiçoá-lo. Deus vai fazer o homem e toda a criação ascenderem a uma beleza maior, a maior liberdade, humanização, divinização. A humanidade é atraída para sua realização perfeita, para seu cume, Jesus Cristo e Jesus Cristo Deus, Filho de Deus, ressuscitado e junto de seu Pai. Se na Eucaristia nos fascinamos com a criação é porque, como diz o Padre Rey-Mermet, ‘esse imento movimento de divinização foi aí realizado de uma maneira particularmente intensa. Na consagração os elementos materiais do mundo, o pão e o vinho, são mudados no Corpo e no Sangue do Filho de Deus. Pelo poder do Espírito Santo a criação é atingida pela irradiação soberana do Cristo ressuscitado e se torna a plenitude que é ele próprio : ‘Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue (1). A criação transfigurada, transubstanciada, torna-se vida eterna, torna-se o Corpo do Filho de Deus. A Eucaristia é, de algum modo, o sentido último do ato criador de Deus; é a vocação de toda a criação que é progressão da matéria para o homem, do homem para o Cristo e do Cristo para o Pai. Esse retorno da criatura para Deus é significado de modo particularmente intenso na Eucaristia. Sob este aspecto ela é a Passagem de toda criatura para Deus em Jesus Cristo; é a Páscoa da criação, a Páscoa do mundo, uma vez que em hebraico, Páscoa significa passagem.

A Eucaristia é Páscoa porque Passagem da criação para Deus. É Páscoa porque celebração na lembrança da Passagem do mar Vermelho; pressentimos também que é Páscoa porque antecipação de nossa Passagem definitiva para o mundo de Deus no final dos tempos. Mas o que é a Páscoa? Que significava para o próprio Jesus a festa da Páscoa quando da instituição da Eucaristia: É muito importante descobrirmos isso, pois Jesus ligou explicitamente a Eucaristia e a sua Paixão à celebração da Páscoa judaica. Releiamos Mt 26,1 : ‘Sabeis que dentro de dois dias se celebra a Páscoa, e o Filho do Homem vai ser entregue para ser crucificado’, e Lc 22,15s : ‘Ardentemente desejei comer convosco esta ceia pascal antes de padecer. Pois eu vos digo que não mais a comerei, até que ela se realize no Reino de Deus...A seguir, tomou o pão... Depois, fez o mesmo com o cálice...

Jesus, antes de instituir a Eucaristia, colocou-a em referência explícita com a Páscoa; Jesus, para cumprir, para viver sua Hora, esperou a festa da Páscoa judaica. Assim pode-se dizer que a ‘Ceia da Quinta-feira Santa e o Sacrifício da Sexta-feira Santa são, em conjunto, a Páscoa judaica em vias de ‘realização na Páscoa ‘futura’, no final dos tempos (2). É muito importante uma vez mais tomar consciência dessa ligação, pois como compreender a própria figura do Cristo, da qual São Paulo nos diz que é ‘nosso Cordeiro Pascal imolado’ (cf 1Cor 5,7), se ignorarmos o que enchia seu coração e o dos apóstolos quando dessa Páscoa da Quinta-feira, que antecedeu a sua morte? 


A Páscoa Judaica

Ao longo da história de Israel, várias festas contribuíram para formar a solenidade pascal : rito dos pastores no contexto de uma vida nômade ou seminômade, incluindo o sacrifício de um cordeiro novo e celebrada quando partiam em migração, e a festa dos Ázimos ou dos pães sem fermento, no contexto agrário de uma vida sedentarizada e celebrada no início da colheita da cevada. Reunidas mais tarde porque ambas eram celebradas na primavera, a celebração da Páscoa vai servir de suporte à celebração por Israel da primavera (depois, das primaveras) de seu nascimento, isto é, da intervenção histórica decisiva de Deus em seu favor. Assim, se a história das origens da festa da Páscoa permanece um pouco imprecisa, seu significado espiritual ao contrário é iluminado por um grande esplendor. O povo hebreu sabia muito bem o que significava espiritualmente a festa da Páscoa; no espírito de Jesus e dos apóstolos, o sentido profundo da Páscoa que eles celebravam na noite da ‘grande Quinta-feira’ era muito claro : não se tratava apenas da lembrança da saída do Egito, mas também da lembrança, o memorial, de três outras noites, de três outros nascimentos, de três outras primaveras que pouco a pouco a Tradição judaica tinha acrescentado à lembrança da noite primordial da saída do Egito; de sorte que a Páscoa resumia toda a história da salvação, desde a criação até ao fim do mundo. Convém citar aqui um poema muito belo, o Poema das quatro noites (3). Encontra-se no Targum palestino, isto é, o comentário aramaico da Bíblia hebraica, e desenvolve Êxodo 12,42. Era utilizado na liturgia da sinagoga no tempo de Jesus : basta isso para nos dizer quanto este poema é importante para nos ajudar a compreender o que se passava no coração da pequena comunidade reunida no Cenáculo naquela vigília da Páscoa. 

 ‘A primeira noite foi aquela em que o Senhor se manifestou ao mundo para o criar; o mundo era deserto e vazio, e a treva cobria a superfície do abismo. E a palavra do Senhor era a luz e brilhava, e ele a chamou : PRIMEIRA NOITE.’

‘A segunda noite foi quando a palavra do Senhor se manifestou a Abraão com a idade de cem anos e a Sara, sua mulher, de noventa anos, para que se cumprisse a Escritura : ‘Será que Abraaão com a idade de cem anos irá gerar, e Sara, sua mulher, com noventa nos dará a luz?’ E ele a chamou : SEGUNDA NOITE.

Uma tradição secundária acrescenta aqui o memorial do sacrifício de Isaac, quando este, morto, por assim dizer, e ressuscitado ‘em parábola’ (cf. Hb 11,19) tornou-se em sentido pleno ‘filho da promessa’ :

‘E Isaac, nosso pai, tinha trinta e sete anos quando foi oferecido sobre o altar. Os céus desceram e se abaixaram, e Isaac viu suas perfeições, e seus olhos se obscureceram em conseqüência dessas perfeições. E ele a chamou : SEGUNDA NOITE.

‘A terceira noite foi quando o Senhor se manifestou aos egípcios no meio da noite : sua mão (esquerda) matava os primogênitos dos egípcios, e sua direita protegia os primogênitos de Israel, para que se cumprisse o que diz a Escritura : ‘Israel é meu filho, meu primogênito’ (Ex 4,22). E ele a chamou : TERCEIRA NOITE.’

‘A QUARTA NOITE será quando o mundo for consumado; os jugos de ferro serão rompidos e as gerações da impiedade serão destruídas. E Moisés sairá do deserto e o Rei Messias das alturas (...) É a noite da Páscoa para o nome do Senhor, noite fixada e reservada para a salvação de todas as gerações de Israel.

O Targum palestinense, que acabamos de citar, deixa evidente o que significava para a fé tradicional do povo de Deus no tempo de Cristo a festa pascal : comemoração, memorial – voltaremos mais adiante a essa palavara – das quatro noites da História da Salvação, da Criação ao fim dos tempos. Celebrar a Páscoa era pois celebrar a lembrança na admiração e no deslumbramento da criação, a lembrança daquela noite na qual Deus fez surgir o mundo para a glória de seu Nome, criação hoje transfigurada no Cristo pascal, como dizíamos ao começar, Lembrança também da história de Abraão. Do nascimento de Isaac, primeiramente, mas também e principalmente do seu sacrifício, isto é, lembrança daquela festa do amor do Patriarca que não recusou seu filho, seu único filho, como diz o Gênesis (22,12); Isaac morto por assim dizer e ressuscitado em parábola, como dirá a carta aos Hebreus (cf. 11,19), vendo aí o anúncio da morte e da ressurreição do Cristo. Esta celebração da Páscoa é portanto, para nós também, o anúncio e celebração da morte e da ressurreição do Filho único de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor.

Mas a Páscoa, nos diz o poema, é também lembrança e memorial da libertação do Egito, quando Deus libertou Israel do jugo do cativeiro egípcio. Esta libertação é o modelo, o arquétipo de todas as libertações futuras, em particular, no Cristo, da libertação da morte e do pecado.


Fonte :
*Pe. Vincent Lescanne, OSB, monge da Abadia Sainte Marie de la Pierre-qui-vire, França. Transcrição de uma conferência pronunciada durante um retiro espiritual.
Artigo publicado em Écoute 252-253 e 254, 1979. Traduzido do francês pelo Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora - MG

Revista Beneditina nrº 33, Maio/Junho de 2009, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais

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(1) Mission Chrétienne, nº 207, p. 3.

(2) Mission Chrétienne, nº 207, p. 6.

(3) A tradução do Poema das Quatro Noites é de P.R. Lê Déaut, em La Nuit Pascals, Instituto Bíblico, 1963  

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