quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Eucaristia : Memorial da Páscoa de Cristo (Capítulo 2 de 4)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 


Enfim, o POEMA DAS QUATRO NOITES nos diz que a celebração da Páscoa é profecia do último dia, quando a glória de Deus invadirá toda a terra para a eternidade; o último dia, que na Páscoa judaica já é celebrado em profecia, em Jesus ressuscitado encontrou um começo de realização.
            Nesse festival das quatro noites é celebrado o essencial da religião de Israel; e é esse essencial que Jesus quer celebrar e celebra efetivamente com seus apóstolos realizando a Páscoa, Páscoa que no tempo de Cristo é A FESTA por excelência (Mt 26,5 e Jo 11,56), e a tradição judaica – que não pode ser suspeita de ter sido influenciada pelo cristianismo – comenta : ‘(Deus nos trouxe da servidão à liberdade, da tristeza à alegria, do luto ao dia de festa, das trevas à luz brilhante, da servidão à redenção. Eis por que cantamos diante dele o Aleluia (4). Não é emocionante constatar que na Páscoa judaica todo o mistério da nossa Páscoa já se encontra em filigrana? E como diz o Pe. Lyonnet, se quisermos compreender o mistério eucarístico, não é sem importânica imaginar que, para os apóstolos presentes à Ceia e em primeiro lugar para o Cristo, a festa judaica que iriam celebrar, comemorava em verdade a história inteira, passada e futura, tal como será contada em nossas Bíblias cristãs desde o primeiro versículo do Gênesis : ‘No princípio Deus criou o céu e a terra’, até o último versículo do Apocalipse : ‘Vem, Senhor Jesus!(5).
            Compreendemos um pouco melhor agora em que se fundamentam nossa admiração e nosso deslumbramento que - como dissemos anteriormente – manifestam as maravilhas de Deus, especialmente, a criação, o mistério de nossa salvação, o dom e a espera da Terra prometida, que não é outra para nós senão o Reino de Deus futuro, onde habitaremos eternamente na alegria e na admiração do face a face definitivo com Deus nosso Pai.
            Portanto, a Eucaristia é o memorial da Páscoa, memorial das ‘Quatro Noites’, dos ‘Quatro nascimentos’, das ‘Quatro Primaveras’ de Israel, memorial de tudo o que Deus fez por nós. Mas, que é um memorial e que importância tem para nós? É o que vamos procurar ver nessa descoberta da Eucaristia como ‘memorial da Páscoa de Cristo’. Por enquanto, deixemo-nos ‘impregnar’ por todo o mistério pascal do Cristo, por toda a vida do Cristo, por toda a história do encontro de Deus com seu povo do qual a Eucaristia é a celebração e adentremo-nos um pouco mais ainda no fascínio e na admiração de tudo o que Deus já fez por nós. 
 
            Em Memória de Mim
            Se observarmos os grandes textos eucarísticos, constataremos que a noção de memorial, de memória, de lembrança, ocupa um lugar essencial. Imediatamente depois de ter lembrado a palavra do Senhor : ‘Fazei isto em memória de mim’, a oração eucarística IV continua : ‘Celebrando agora, ó Pai, a memória (memorial) de nossa redenção, anunciamos (lembramos) a morte do Cristo...’; a memória, a lembrança, é primeiramente a de toda a comunidade reunida. Mas depois de ter proclamado o que precede, é a Deus que se pede para lembrar : ‘E agora, ó Pai, lembrai-vos, de todos pelos quais vos oferecemos este sacrifício...Lembrai-vos também dos que morreram...’. A lembrança se torna ato de Deus depois de ter sido ato da comunidade. Encontramos o mesmo procedimento nas orações eucarísticas II e III e nas anáforas orientais. O povo que celebra, no próprio ato de sua lembrança pede a Deus que Ele se lembre.
            Contudo essa dupla realidade não é específica da Eucaristia. Ao longo de toda a Bíblia o homem se lembra, e Deus se lembra. Pois essas duas atitudes, como diz o Padre Tillard num artigo (6) que retomaremos muitas vezes, não são indiferentes uma à outra; ao contrário, representam as duas faces de uma única realidade da graça que agora vamos aprofundar.
            A primeira coisa a ser bem compreendida é que esses dois atos de memória, de Deus e do homem têm o centro no acontecimento histórico no qual Deus se manifestou como o Deus verdadeiro de seu povo eleito. E sabemos agora que esse acontecimento fundador, esse nascimento, essa primavera do Povo de Deus, foi sintetizada pela tradição judaica no Poema das quatro noites.
            Quem diz memória evoca necessariamente o tempo; mas aqui trata-se de algo que vai além da continuidade, da permanência, da influência do passado sobre o presente, tal como em certos acontecimentos históricos decisivos que modificam o curso da História. Em 14 de julho ou 11 de novembro, fazemos memória da queda da Bastilha ou da vitória de 1918 : ambas efetivamente influenciaram o passado e modificaram o curso de nossa história. A celebração de 11 de novembro é um ‘memorial humano’ importante; é preciso ter assistido à sua celebração numa pequena vila da zona rural para nos darmos conta disso. É uma verdadeira celebração com seu ritual... Mas esse ‘memorial humano’ é um memorial que se desgasta, e outros acontecimentos vão obscurece-lo; a celebração de 11 de novembro não impediu o 8 de maio de 1945. Os memoriais humanos se desgastam porque a história humana se desgasta.
            Ao contrário, quando se trata, como na Eucaristia, da memória dos acontecimentos de Deus, é muito diferente. O ‘memorial divino’ é totalmente de outra ordem. Por quê? Porque neste caso foi Deus quem interveio no tempo, e a intervenção de Deus permanece para sempre; permanece absolutamente; modifica realmente o curso da História. Quando Deus intervém, a História toma uma forma que doravante vai depender dessa intervenção e do modo pelo qual os homens a ela reagiram. Como dissemos : Deus criou com continuidade, mas podemos dizer também : Deus salva com continuidade, Deus muda o curso da História com continuidade. É nisso que se fundamenta o memorial, que se fundamenta uma espera, isto é, a certeza que Deus tendo salvo no passado salvará ainda no futuro. Praticamente poderíamos dizer tudo no presente : no passado Deus salva, salva no presente, salva no futuro, porque a intervenção de Deus transcende o tempo, ultrapassa o tempo, domina o tempo. É por isso também que celebrar as intervenções de Deus no passado – a criação, o sacrifício de Isaac, a travessia do mar Vermelho – é celebrar na alegria todas as intervenções futuras, uma vez que estas já estão asseguradas.
            É muito importante compreender bem isso porque é o centro do ‘memorial cristão’. Porque Deus salvou no passado, ele salvará no futuro, e isso é para nós uma certeza. Reencontramos aqui o que foi dito anteriormente : a oração de súplica só pode vir depois da lembrança cheia de admiração das maravilhas de Deus e nesse mesmo louvor; assim ela não deixará de ser ouvida. O memorial é assim o revivescimento – no sentido mais forte da palavra – de uma vitória divina passada e a antecipação de uma vitória divina futura. Além disso, dá a coragem no presente porque lhe traz sentido.
            É porque Deus intervém ainda hoje na História que o presente, o que eu vivo, tem um sentido, até mesmo as coisas pesadas, incompreensíveis, que só tomam sentido na cruz do Cristo ressuscitado, intervenção suprema de Deus na história. Cada vez que a comunidade reunida celebra as grandes intervenções de Deus – as ‘quatro noites’ – o passado, o presente e o futuro estão lá; é toda a densidade do encontro de Deus com seu povo e é por isso que a celebração vai influir na minha existência. O que eu vivo hoje, com sua densidade, com o que tem de próprio, deve ser impregnado e transformado pela nova qualidade da existência que as origens da Aliança, do encontro, gravaram no desenvolvimento da história. Hoje, cada geração – e portanto eu, – que celebra em comunidade, é chamada a viver de maneira concreta, na vida de todos os dias, o que foi revelado e realizado quando dos acontecimentos que fundaram a história do Povo de Deus : a criação, o sacrifício de Isaac, a passagem do mar Vermelho, principalmente. Não se trata de uma repetição mas de uma retomada no sentido muito forte : que eu refaça ou torne meu o que foi vivido naquele dia pelo Povo, considerando ao mesmo tempo, a situação concreta da minha vida  hoje e daquilo que, uma vez por todas, o ato inicial, a intervenção de Deus, a libertação da escravidão do Egito, têm de transcendente porque vêm de Deus.
            Hoje, quando eu celebro em comunidade, meu presente deve ser penetrado pelo acontecimento redentor que foi o Êxodo, a passagem do mar Vermelho, a Aliança do Sinai. E essa característica de acontecimento-fonte vai comprometer Deus e o fiel numa experiência de salvação, na qual se localizam os traços do primeiro encontro, da primeira Aliança. O povo que hoje celebra a Eucaristia não atravessará mais o mar Vermelho, porém entrará na mesma realidade de salvação que a vivida pelos Pais da primeira geração. Cristo não morrerá mais sobre a cruz, mas o povo que celebra em memória dele deverá entrar na mesma realidade de salvação do dom de sua vida por amor. Percebe-se ainda aqui o papel privilegiado que tem a memória, a lembrança.
            Dando um passo a mais na mesma linha de pensamento, descobriremos a que nos compromete o ato de celebrar. Uma vez que o acontecimento original, Abraão e o Êxodo unem tanto a iniciativa de Deus como a resposta livre do homem, ambos se encontram implicados nessa eficácia da memória que liga o hoje ao ontem. Com efeito, o homem não tem que ‘esperar que isso aconteça’; ele está comprometido, envolvido, hoje como ontem.
            Quando Deus se lembra, ele age. Age como da primeira vez, ou antes, como sempre age. Conduz a seus verdadeiros efeitos o que implicava sua primeira iniciativa. Uma vez pronunciada, Deus é coerente com a palavra, Deus é fiel. Para nos convencermos disso podemos reler Lv 26,44-46 :
            Mesmo assim, quando estiverem na terra dos seus inimigos, eu não os repelirei, nem os desprezarei a ponto de acabar com eles, rompendo minha aliança. Porque eu sou o Senhor, seu Deus. Eu me lembrarei em seu favor da aliança com os antepassados, que fiz sair do Egito à vista das nações, para ser o seu Deus. Eu sou o Senhor’.
            Deus finalmente se lembra, depois de uma longa série de maldições, decorrentes da infidelidade do povo.
            Quando o homem se lembra, ele se põe em atitude de Aliança, isto é, em atitude de ação de graças e de obediência, de deslumbramento e de fidelidade. Concretamente essa atitude vai se manifestar de duas maneiras : por uma recordação, uma bênção pelas maravilhas de Deus, as mirabilia Dei, mas também por uma resposta da própria vida, na fidelidade à intenção subjacente aos acontecimentos que deram seu sentido à história; por conseguinte, tal resposta se encontra profundamente marcada por aquilo que é lembrado. ‘Lembrar-se’ então, significa para o homem comungar com o que Deus fez, mas comungar de tal modo que se faça pelos outros o que outrora foi feito por nós. Celebrar a Páscoa, a Eucaristia, celebrar o ‘memorial’, lembrar-se, é maravilhar-se, mas é também comprometer-se. Porque Deus agiu com misericórdia é que se agirá com misericórdia. O querer de Deus é essencialmente um projeto no qual é preciso entrar; assim o comportamento do fiel deve ser penetrado pela memória dos atos que revelaram o projeto divino. Porque Deus ‘continua’ a se comprometer, ‘lembrando-se’, o hoem também deve, se for honesto, maravilhar-se, mas igualmente deve comprometer-se, lembrando-se. Numerosos textos da Bíblia indicam esse elo entre a lembrança e o comprometimento, como por exemplo :
            Não leses o direito do estrangeiro nem do órfão, nem tomes como penhor a roupa da viúva. Lembra-te de que foste escravo no Egito, de onde o Senhor teu Deus te resgatou. É por isso que te ordeno que procedas assim.
            Se ao fazer a colheita em teu campo, esqueceres um feixe de trigo, não voltes para buscá-lo. Deixa-o para o estrangeiro, para o órfão e a viúva, a fim de que o Senhor teu Deus te abençoe em todo trabalho de tuas mãos.
            Quando tiveres colhido o fruto das oliveiras, não voltarás para colher o que ficou nas árvores. Deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva.
            Quando colheres as uvas da tua vinha, não deves colher os cachos que ficaram. Deixa-os para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Lembra-te de que tu também foste escravo no Egito. Por isso te ordeno que procedas assim (Dt 24, 17-22)’ (7).
            Esta passagem do Antigo Testamento é simplesmente admirável. A respeito dele disseram erradamente, demasiadas vezes, mostrar um Deus que inspira medo e que seria necessário esperar o Cristo para descobrir enfim o amor. Cristo não veio abolir mas cumprir e perfazer essa antiga Aliança, na qual o amor já estava muito presente.
            O ‘memorial’ permite, pois, ao passado perfilar-se em filigranas no hoje de uma presença que compromete a responsabilidade humana; daí podermos dizer que é especialmente por sua atitude, seu comportamento para com os outros, que o fiel faz permanecer, mantém na história, da continuidade às ‘maravilhas’ realizadas outrora por Deus em seu favor.
            Até aqui falamos do memorial da celebração da Páscoa na linha da Páscoa judaica. Mas que acrescenta a Páscoa do Cristo? Que há de específico no memorial cristão? Ele é a lembrança da última intervenção de Deus, a lembrança da Nova Aliança. Pois no mistério da Páscoa de Cristo, Deus intervém hoje, não só por manifestações de poder, como na passagem do mar Vermelho, mas pelo mistério da Presença de sua própria Pessoa, e isto é para sempre. Em Jesus Cristo e no seu mistério pascal, Deus intervém com a presença de sua própria pessoa! Por conseguinte, o memorial cristão não é mais somente presença contínua do poder do Deus salvador, ele é presença da própria pessoa de Deus em Jesus Cristo, morrendo e ressuscitando (8).
            Celebrar, fazer memória do acontecimento de Jesus Cristo em seu mistério pascal, não é uma simples evocação subjetiva na bênção e ação de graças; é o que permite à densidade salvífica da morte e da ressurreição de Jesus Cristo permanecer realmente presente a todas as gerações, e muito especialmente, a essa geração à qual pertence a comunidade que celebra hoje. A Eucaristia é o acontecimento da morte e da ressurreição de Cristo tornado presente para mim hoje, com toda a sua força de salvação e essa presença de Cristo me salvando, me compromete, a mim que sou membro dessa comunidade que celebra. Essa presença de Cristo em seu mistério pascal compromete o Deus de Jesus Cristo que, reconhecendo no ato da Igreja o sacrifício de seu Filho que nos restabeleceu em sua Aliança (cf. Oração Eucarística III), põe em ação, hoje e agora, sua fidelidade; mas compromete também a comunidade dos fiéis que celebram e lembrando-se do que Deus fez por ela, devem comungar com o ato de Deus e se tornar desse modo, pelo poder assim recebido, o canal, o instrumento de uma presença ativa da Páscoa no seio do mundo.
            Celebrando a Eucaristia nós nos comprometemos a nos tornar instrumentos da presença da Páscoa no coração da humanidade. Assim se abre a perspeciva da Eucaristia como mistério de comunhão : comunhão com o Pai que é fiel, comunhão com o Cristo Salvador, comunhão com todos os meus irmãos com quem celebro e me comprometo, comunhão com todos os homens para quem me torno o instrumento, o canal de sua salvação em Jesus Cristo. O agir cristão entra assim, pela celebração da eucaristia-memorial, na própria generosidade de Deus. Incessantemente e em plena realidade, em pleno cerne da História, a Eucaristia torna mais nítido o engajamento de Deus sempre primeiro, sempre primordial, e o engajamento do homem, simples resposta, pobre, mas ao mesmo tempo aceitação em participar da atitude pascal de Jesus para salvação do mundo.
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(4)   Mishna : Tratado Pes. V,5.

(5)  Stanislas Lyonnet s.j. Eucharistie et Vie Chrétienne, Supl. de Vie chrétienne, julho, 1969.
(6)  J. M. R. Tillard, op, Faisant mémoire de ton Fils. Parole et Pain nrº 50 – 1972, p. 144-157. Do mesmo autor ainda na Maison-Dieu, nrº 106, p. 24-45 : Le mémorial dans la vie de l’Église.

(7)  Pode-se também citar Dt. 5, 12-15 ou Dt 15, 12-15.

(8) Embora não seja possível desenvolver aqui este aspecto, notaremos entretanto que é nessa noção de memorial que se enxerta muito precisamente nossa fé na presença real de Jesus Cristo Salvador na Eucaristia.

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