* Artigo
de Françoise Vinel
Introdução
Uma santidade que parece ser de família – diríamos para
começar - pois, além de Macrina, a mais velha, há Basílio e Gregório de Nissa,
conhecidos e honrados, como também Naucrácio, Pedro, bispo de Sebaste na
Armênia Menor, sem esquecer as gerações anteriores; Emélia, sua mãe e aquela
que a tradição chama de Macrina, a Grande, da primeira geração cristã na
Capadócia. Certamente, nosso olho crítico e suspeitoso de modernos não deixa de
colocar alguns pontos de interrogação : não há sobre Macrina qualquer escrito,
qualquer menção em toda a obra de Basílio, mas em contraposição, que imagem
elogiosa, cheia de afeição, encontramos dela em Gregório ao lermos a ‘Vida de Santa Macrina’ e o ‘Tratado sobre a alma e a ressurreição’ (1); no entanto, o apreciador de
biografias ficará sem dúvida decepcionado, por isso é-nos necessário
primeiramente, tomar consciência de que a noção de relato de uma vida, de
testemunho (e com essa palavra entramos no cerne da questão) mudou desde os
primeiros séculos da era cristã. Estamos hoje como que à espreita de
testemunhos que são reportagens feitas ao vivo, diários íntimos : assim a
autobiografia espiritual deixada por Simone Weil (2), ou o diário encontrado da judia holandesa Etty Hillesum,
deportada e morta em Auschwitz (3).
No século IV, os relatos de vidas, raramente autobiográficos, ainda seguiam os
modelos literários herdados da Antiguidade profana, e os textos cristãos não se
inscrevem necessariamente numa perspectiva hagiográfica, até que sejam inovados
pelas ‘Confissões’ de Santo
Agostinho.
Os manuscritos hesitam, nos diz P. Maraval (4), sobre o destinatário da ‘Vida de Macrina’. O importante é que
Gregório aí se apresenta como aquele que assistiu à morte de sua irmã, quando passava
para visitá-la em seu mosteiro, depois de ter notícias alarmantes sobre sua
saúde. O ‘Tratado sobre a alma e a
ressurreição’ se apresenta como a transcrição da última conversa de
Gregório com Macrina. Dois traços característicos desses textos aparecem
imediatamente : trata-se de um relato de vida exemplar, inscrevendo-se, por
exemplo, na mesma linha da ‘Vida de Antão’,
o eremita, escrita por Santo Atanásio (5).
Como Antão, Macrina é o modelo de uma atitude diante da morte, mas sua escolha
da vida monástica fez também de toda a sua vida um testemunho, dirigido em
primeiro lugar a seus próprios irmãos, de um desejo de conversão radical. Aos
olhos de Gregório, principalmente, Macrina é uma ‘filósofa’, ou didáscala
(mestra e como pano de fundo desse diálogo teológico que é o ‘Tratado sobre a alma e a ressurreição’,
não se pode deixar de evocar as figuras de Sócrates e de Diótima, aquela mulher
de Mantinée da qual Sócrates diz ter recebido o único ensinamento convincente
sobre a definição de amor (6).
Entramos, pois, aqui, com essas duas obras, no cerne da relação complexa entre
a presença monástica feminina, presença silenciosa, e os teólogos, no caso,
Gregório, que não cessa de afirmar a verdadeira inspiração que foi para ele sua
irmã – ela é para ele uma figura da Sabedoria.
Macrina, modelo de uma atitude diante da
morte
Na tradição dos Pais do Deserto, é na hora da morte que
se revela a profundidade, a justeza da vida do monge. Do mesmo modo, no centro
de tudo o que nos ensina Gregório sobre Macrina, há o relato comovido de seus
últimos momentos. Esse aspecto toma um relevo talvez maior ainda se nos
lembrarmos do lugar que tem na obra de Gregório a interrogação sobre a morte : um tratado sobre a questão das crianças
mortas prematuramente (7), o De mortuis (8), e com certeza as questões que o próprio Gregório coloca à sua
irmã no seu diálogo e das quais a primeira dá o tom : ‘Qual é o meio de ter como nada a partida da vida, mesmo quando se trata
de parentes, quando eles cessam de viver’ (9)? A maneira pela qual Gregório descreve sua própria atitude, sua
dor, dá todo o seu alcance ao ensino de Macrina. Mas baseando-nos na
radicalidade do relato da morte de Antão (10),
o da morte de Macrina é marcado por traços psicológicos de humanidade.
Macrina se tornou a memória de sua família e esse aspecto
é importante : a história de uma família e a história da Igreja da Capadócia
são aqui indissociáveis.
‘Ela começou a nos
contar a sua vida como tinha sido desde a juventude. Expôs por ordem todos os fatos
como numa história. Contava também os acontecimentos da vida de nossos pais,
dos quais guardava lembrança, tanto dos que haviam ocorrido antes do meu
nascimento, como os dos anos posteriores. A finalidade da narrativa era chegar
à ação de graças para com Deus’ (VSM, 20).
Macrina celebra pois, a existência de três gerações
cristãs mencionando pouco depois seus avós. Ela tem o sentimento de vidas
plenamente realizadas; e por contraste, o relato que Gregório faz de suas
próprias infelicidades no capítulo seguinte suscita as exortações e reprovações
de Macrina : ‘Não deixarás, disse-me ela
então, de desconhecer os dons de Deus?’ (cap.21). Essa atitude esclarece a
posteriori o papel de Macrina junto a Basílio, Naucrácio e Pedro. No plano
psicológico como no plano espiritual, todo o relato opõe a maturidade de
Macrina às tentações mundanas de Basílio e às inquietações de Gregório. Com a
aproximação da morte, ela continua a realizar o estado que já era o seu desde a
juventude : ela está ‘acima da natureza’,
‘como um anjo’. Os traços
hagiográficos são claros aqui, e ao relato da morte propriamente dita se
acrescenta o relato de um milagre contado a Gregório pelas virgens do mosteiro.
Entretanto, notemos, o ritual da morte, a última prece de Macrina e depois a
liturgia dos funerais, não ocultam esse aspecto humano de uma vida cristã que
se desenrolou numa duração comum.
A Conversão de um gênero
de vida
Um outro artigo neste número evoca o nascimento do
monaquismo feminino (p.55). São ainda realidades familiares e sociais concretas
que nos interessam no momento, tanto quanto o relato nos deixa entrever. À sua
luz, certos aspectos da obra de Basílio e de Gregório perdem sem dúvida um
pouco de seu caráter retórico : Macrina escolheu a pobreza e faz da propriedade
da família, transformada em mosteiro, um lugar de hospitalidade e de exercício
da caridade. Um pouco mais tarde, em Constantinopla, Basílio e Gregório fizeram
vários sermões contra os ricos e os usurários (11). Gregório se escandaliza várias vezes com o luxo das grandes
propriedades, das ‘vilas’ que deviam
existir em toda a Ásia Menor. Nas Homilias
sobre o Eclesiastes, ele argumenta com virulência contra a escravatura
recorrendo à afirmação teológica que todo homem foi feito à imagem de Deus, e
que, portanto, ninguém pode ser legitimamente, senhor dos outros.
Sem dúvida o anátema contra os ricos faz parte dos temas
obrigatórios da homilética, pelo menos em referência aos grandes textos
evangélicos sobre o tema. Mas ele ganha em realismo se nos referirmos aos
estudos recentes sobre os pobres e a pobreza em Bizâncio e sobre a Igreja na
Capadócia, no século IV (12) : tudo
leva a pensar que, se os grandes proprietários – vale dizer também o Estado
imperial e a Igreja, nova autoridade – se enriqueciam, a marginalização dos
pobres era crescente, reduzidos ao estado de dependência no meio rural e obrigados
a se submeter a um ‘patrão’ em zona
urbana. Sobre esse pano de fundo, o caráter exemplar da ‘Vida de Macrina’ diz muito sobre a mudança social operada.
Quando ela faz o relato de sua vida, Macrina não hesita
em mencionar a riqueza crescente de sua família :
‘Os recursos
familiares, graças à sua confiança, haviam aumentado tanto que não se poderia,
naquele tempo, encontrar quem os pudesse ultrapassar’ (VSM, 20).
Mas Gregório lembra imediatamente que ‘ela não guardou para si qualquer bem dos que
lhe tinham sido atribuídos quando da partilha entre irmãos e irmãs’.
A continuação do texto menciona ‘as obras’ realizadas por Macrina e suas companheiras. A
historiadora E. Patlagean, quando se interroga sobre as consequências
econômicas e sociais do monaquismo feminino na alta sociedade bizantina,
mostra que isso não modificou seu papel social de beneficência; como se a
sociedade religiosa e sociedade civil se encontrassem nesse ponto. A
modificação da ordem social operada por Macrina é ainda mais notável :
‘Como qualquer
possibilidade de vida excessivamente voltada para as coisas materiais já lhe
tivesse sido cortada, Macrina convenceu a mãe de renunciar à sua maneira
habitual de viver, a seus modos de grande dama, bem como aos serviços que
costumava receber de suas criadas, a fim de assumir a condição das pessoas mais
simples. Deveria viver como as virgens que tinha consigo, transformando-as, de
escravas e criadas que eram, em irmãs e suas iguais’ (VSM, 7).
Na atitude de Macrina em relação à sua mãe transparece
sua função de mestra espiritual, mas convém primeiramente sublinhar esse
enraizamento concreto do papel de Macrina, realizando de uma só vez, a
perfeição da vida monástica.
Fonte :
* Françoise Vinel tem formação literária (Escola
Normal Superior), é diplomada em Letras Clássicas e tem especialização em
patrística.
Tese : Homilias sobre o Eclesiástico de Gregório de Nissa (primeira tradução francesa), defendida na Universidade de Paris IV – Sorbonne.
Desde 1986, integra a equipe de tradução da Septuaginta, dirigida por M. Harl, G. Dorival e O. Munnich, de iniciação ao hebraico, à história e literatura do judaísmo antigo.
Desde 2000, colabora com J. Larchet na publicação da tradução às Questões de Talásio de Máximo, Confessor, fazendo voltar o interesse pela antropologia teológica e hermenêutica bíblica dos Padres gregos.
Artigo publicado em Connaissance des Pères de L’Eglise, 36, dezembro 1989.
Tese : Homilias sobre o Eclesiástico de Gregório de Nissa (primeira tradução francesa), defendida na Universidade de Paris IV – Sorbonne.
Desde 1986, integra a equipe de tradução da Septuaginta, dirigida por M. Harl, G. Dorival e O. Munnich, de iniciação ao hebraico, à história e literatura do judaísmo antigo.
Desde 2000, colabora com J. Larchet na publicação da tradução às Questões de Talásio de Máximo, Confessor, fazendo voltar o interesse pela antropologia teológica e hermenêutica bíblica dos Padres gregos.
Artigo publicado em Connaissance des Pères de L’Eglise, 36, dezembro 1989.
Traduzido do francês pelo Mosteiro da Santa Cruz, Juiz de Fora – MG.
Revista Beneditina nrº 36, Novembro/Dezembro de 2009, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.
publicacoesmonasticas@yahoo.com.br
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publicacoesmonasticas@yahoo.com.br
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Notas
:
(1) Este artigo se apoia
essencialmente em duas obras de GREGÓRIO DE NISSA : a Vida de Santa Macrina,
editada e traduzida por P. MARAVAL (SC 178 que nas referências será abrevida
por VSM); o Tratado sobre a alma
e a ressurreição.
(2) S. WEIL, ‘Autobiographie
spirituelle’, carta dirigida ao Pe. Perrin, em Attente de Dieu
(Col. Livre de Vie).
(3) ETTY HILLESUM, Une vie bouleversée
(Uma vida tumultuada), Seuil.
(4) Ver VSM, p. 136-137.
(5) SANTO ATANÁSIO, Antoine le Grand,
père des moines (Antão, o Grande, pai dos monges), tradução de B. Lavaoud,
reed. Le Cerf, col. Foi vivante 240.
(6) Ver PLATÃO, O Banquete.
(Diótima de Mantinée é uma sacerdotisa e profetisa que desempenha um papel
importante no ‘Banquete’
de Platão. De fato, com Diótima é a filosofia que entra em cena no diálogo e
que abre uma dimensão nova, a da inteligência. N. do T.).
(7) PG 46, 161-192.
(8) PG 46, 497 ss.
(9) PG 46, 13A.
(10)
Ver Vida de Antão,
caps. 91 e 92.
(11)
Ver a série de textos do século IV reunidos no volume Riches et pauvres
dan l’Eglise ancienne, col. Pères dan la foi, DDB.
(12)
Duas teses recentes estudaram esse aspecto : E. ATLAGEAN, Pauvreté economique
et pauvreté sociale à Byzance (IVe. – VIIe. siècles), Paris 1977; e B.
GAIN, L’Eglise de
Cappadoce au IVe. siècle d’après la correspondance de Basile de Césarée,
Roma, 1985.
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