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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Um ao lado do outro

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo d0 Padre Manuel Augusto Lopes Ferreira,

missionário comboniano


Há quem, entre nós, fique confundido com algumas expressões com que o Papa Francisco fala da missão cristã hoje. Exemplifico um destes aparentes contrastes. Por um lado, Francisco fala de Igreja em saída, de abrirmos portas e tomarmos iniciativas para testemunharmos com alegria o Evangelho; fala de renovarmos o zelo apostólico, a paixão de evangelizar (a este tema dedicou toda uma série de reflexões, durante as audiências gerais de 2023). Mas, logo a seguir parece pôr água na fervura e põe-nos de sobreaviso : diz-nos que não devemos ter a preocupação de fazer discípulos (prosélitos), que a Igreja e a missão não crescem por proselitismo, mas por atração.

Naturalmente, o papa usa de algum contraste no seu vocabulário para nos ajudar a refletir e ver onde nos encontramos, a verificar o nosso vocabulário e sobretudo as nossas atitudes. Ele pretende ajudar-nos a perceber que estamos não só numa época de mudanças sérias, mas numa vertiginosa mudança de época. O mundo globalizado e as culturas a chocar entre si, estão secularizados e não podemos ter como seguro o interesse pelo Evangelho ou pretender configurá-los a partir da Verdade que testemunhamos. Por isso, ele insiste na alegria e na humildade desinteressadas, na presença e no diálogo, na fraternidade e na amizade social, nas atitudes de respeito para com as pessoas e as suas culturas, para com a Natureza e o cosmos, a casa que habitamos em comum.

Neste aspecto e por isso, estamos todos à procura do modelo de missão mais a condizer com o tempo que vivemos, na fidelidade, cada vez mais genuína, ao mistério e à natureza da Igreja e da missão, que nos superam. Num passado, ainda recente, falámos de uma missão ad gentes, ou seja, às gentes (por vezes com tons de conquista de povos e culturas); depois, passámos a falar de uma missão inter gentes, isto é, entre as gentes, os povos e as suas culturas, acentuando as atitudes de inculturação e de respeito para com os mesmos.

Os termos que o Papa Francisco tem vindo a usar extremam esta evolução de vocabulário e atitudes que definem a missão e levam alguns pensadores a falar de missão «um ao lado do outro». Jesus, efetivamente, deixou aos seus discípulos o mandato missionário de ir pelo mundo inteiro e anunciar o Evangelho fazendo discípulos; mas também lhes disse «vós sois o sal da terra ... vós sois a luz do mundo», como que a indicar uma missão de dar sabor à vida e iluminar de sentido a realidade humana, e não de configurar um reino humano pelo uso de um qualquer poder. Trata-se sempre de ser uma Igreja minoritária que vive o mistério transformante de ser sal e luz.

O despertar para esta situação leva-nos a pensar, a viver e a falar de uma missão exposta à debilidade e à força do Espírito de Cristo, em que os cristãos e os missionários saibam ser «fortes, sem ser poderosos, verdadeiros sem ser fanáticos»; saibam «cultivar o sentido de beleza sem ser esteticistas, afirmar a retidão sem ser moralistas»; em que todos saibamos «ser nós próprios mas não sem os outros ou contra os outros» (citações de uma entrevista do beneditino P.e Elmar Salmann ao L’ Osservatore Romano). Não podemos ser nós próprios sem os outros, pela simples e misteriosa razão que Deus (também) os ama em Cristo, como não se cansa de nos recordar o Papa Francisco.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1134/um-ao-lado-do-outro/

sábado, 11 de março de 2023

Quaresma: itinerário pascal

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE


O batismo é o primeiro passo da iniciação à vida crista. O batismo é também o nascimento para a vida cristã. Mediante o batismo, homens e mulheres, por serem criaturas humanas, são consagrados como filhos e filhas de Deus, tornando-se templos do Espírito Santo, assim como assegura o apóstolo Paulo : ‘Pela graça do batismo, que possamos chegar ao estado de homem perfeito à estatura da maturidade de Cristo’ (Ef 4, 13). Animados, evidentemente, pela Palavra de Deus, lâmpada para nossos passos e luz para nossas estradas da vida (cf. Sl 15), neste tempo da Quaresma, a Igreja de Deus não para, prosseguindo sua caminhada, na promessa de Jesus de Nazaré, a de um mundo reconciliado, pacificado e transfigurado em Deus.

O mistério da cruz de Cristo é enorme e ensina-nos que a salvação é definitiva, que temos que nos afastar do relativo e abraçar o absoluto. Também nos ensina que temos que nos convencer sempre mais de que o sonho de Deus, que é paz, justiça, concórdia e solidariedade, é tarefa de todos. Que a vida se constitui no viver bem neste mundo, na lógica do projeto de Deus, que quer dizer que devemos andar na direção do Reino de amor, inaugurado por Jesus de Nazaré, ensinando-nos a deixar para trás sua realidade contraditória, agora direcionada para um cenário sagrado e beatífico, longe de choro, tristeza, enfermidade e morte; enfim, será a paz, o novo céu e a nova terra, na sua Páscoa definitiva.

Como é importante perceber e acolher, neste itinerário pascal, como incógnita vasto e profusamente dilatado, a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, numa abrangência a conduzir ao mistério contemplação, mas como sinal do amor maior, imprimindo na mente e no coração das pessoas o olhar solidário de Jesus de Nazaré, sem que nunca se esqueça dos pontos cruciais da Mãe Terra, onde residem criaturas humanas em situação infra-humana ou em estado de rejeição ou abandono.

Que o Cristo exaltado da cruz seja memória clara, e que não paire dúvida sobre a redenção do gênero humano, sensibilizando-nos a proclamar bem alto e até mesmo gritar o Evangelho de Jesus com a própria vida, na assertiva do bem-aventurado Charles de Foucauld : ‘Tão logo que acreditei existir um Deus, compreendi que só podia fazer uma única coisa : viver só para Ele’. Assim seja!’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domhelder.edu.br/noticias/pagina/religiao

domingo, 3 de janeiro de 2021

O mistério inevitável da vida

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo do Padre Carlos Padilla Esteban

 

‘O protagonista do filme ‘O médico’ perguntava ao seu professor se este não se desanimava ao perceber quão pouco sabia do homem e da vida, ao contemplar o mistério do universo. Ele respondeu com simplicidade : ‘O mundo seria cinza e entediante se não existisse o mistério. É surpreendente saber que é mais o que ignoro que o que conheço’.

Mas é fato que o homem de hoje perdeu o gosto pelo mistério. Ele já não gosta do desconhecido e quer conhecer tudo. Porque dentro de nós há um desejo de infinito, de possuir o que não temos, de desvelar os mistérios, rasgar o véu e conhecer toda a verdade.

Gostaríamos de que a vida não tivesse mistérios por desvelar, queremos saber tudo. Não somente o mistério da vida, mas o das pessoas. Não gostamos de que nos escondam nada. Perguntamos e perguntamos. Porque nos julgamos no direito de estar a par de tudo. Queremos saber o que acontece em todos os lugares. Os mistérios nos confundem.

Queremos dar razões do que acontece e encontrar sempre respostas corretas, adequadas, que nos deixem satisfeitos. Que um raciocínio lógico e claro dê explicações da vida. Não queremos perder a verdade. Não gostamos das sombras nem da escuridão.

As crianças, quando completam 3 ou 4 anos, começam a fazer muitas perguntas. Querem saber tudo e não admitem um ‘não’ como resposta. São exploradoras, buscadoras e querem respostas que revelem o mistério da vida.

Todos nós temos uma criança de 3 ou 4 anos em nosso interior, uma criança que se pergunta mil porquês e que gostaria de obter mil respostas. O oculto tem de ser exposto à luz do sol. Assim, não haverá dúvidas e saberemos o que fazer em cada momento.

Mas assim já não nos surpreendemos. É como se nada pudesse despertar nossa capacidade de assombro. Já sabemos tudo e nada nos chama a atenção.

Sendo sinceros, temos de reconhecer que muitas perguntas não têm resposta em nosso coração. Não sabemos tudo porque isso é impossível.

Mas o cristão não tem medo quando contempla o universo e entende que não abrange o infinito. Não é nossa meta desvelar todos os mistérios. Nosso fim é caminhar rumo ao céu, rumo ao infinito, e saber que lá descansaremos para sempre. Enquanto isso, caminharemos seguro em Deus, ainda que não saibamos tudo.

O Pe. Kentenich dizia : ‘O momento atual requer pessoas que tenham paz interior, que sejam provadas interior e exteriormente, muito acima da incerteza e da dúvida. Mas que recebam da união santa com Deus a força necessária para imprimir o rosto de Cristo na época’.

A incerteza e a dúvida são parte da nossa equipagem. Não podemos prescindir do que desconhecemos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/01/01/o-misterio-inevitavel-da-vida/

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Natal: descubra os tesouros escondidos no mistério do presépio

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

*Artigo de Emmanuel Pellat,

Jornalista


‘Como entrar no mistério do Natal? E como cultivar as graças da Natividade ao longo do ano? A seguir, uma entrevista com o Irmão Éric Bidot, capuchinho, guardião do convento francês de Clermont-Ferrand.

Por que, em 1223, São Francisco criou um presépio vivo?

Francisco viveu com Cristo. Ele o viu nos acontecimentos e nos encontros da vida quotidiana, reconheceu-o nos irmãos, especialmente nos mais pobres. Francisco tinha apenas um desejo : encontrar, ver, tocar seu Senhor. No Evangelho, dois mistérios da vida de Cristo trouxeram lágrimas aos seus olhos : a crucificação e a natividade. Francisco se apresenta como um homem ‘simples’, é artista, poeta, sensível. Para entender o evangelho, ele precisava vê-lo, tocá-lo, experimentá-lo.

Como as pessoas reagiram?

Mesmo se não temos nenhum vestígio do que Francisco disse durante seu sermão, diz a lenda popular que as pessoas ficaram tão tocadas que saíram com os fios de palha, a ponto de não sobrar nem um só. Além disso, sua maneira de falar sobre Jesus despertou fé e fervor. Tendo a pensar que Francisco pregava sobre a humildade de Deus : como o Deus três vezes santo, criador do universo, senhor do tempo e da história, pôde fazer-se homem, e nascer tão pobre? O presépio revoluciona a imagem que poderíamos ter de Deus : um Deus que se humilha para a nossa salvação.

Como entrar na contemplação deste mistério?

Concordemos em deixar-nos levar e ser tomados pelo mistério que se vive diante de nossos olhos. Coloquemo-nos na escola da humildade de Deus. Para aplaudir o maior milagre da história, precisamos encontrar nossa criança interior. Devíamos ficar chateados com o presépio, pois nossos berços nunca serão bonitos o suficiente. Devemos tentar torná-los ícones reais e contemplá-los com admiração por tão grande mistério!

É importante que, no presépio, sejam representadas as atividades ordinárias e concretas das pessoas de ontem e de hoje, imersas na vida cotidiana. Por que não adicionar médicos, operários da construção, fazendeiros, comerciantes, aos personagens tradicionais? No presépio, toda a criação é convocada : o cosmos, os elementos naturais, o pequeno e o grande deste mundo. Deus se faz homem para renovar e reconciliar toda a criação por dentro.

É este o cerne da mensagem do presépio?

O presépio é um mistério de simplicidade. Percebamos verdadeiramente que os pastores – as primeiras testemunhas do nascimento do Salvador – estavam entre os mais pobres e os mais desprezados dos judeus de seu tempo. Se tivéssemos coração e mãos de pobres, facilmente entraríamos no júbilo da contemplação deste grande mistério.

No Natal, a presença do Emanuel (‘Deus conosco’) revela-nos a simplicidade do Amor. Deus é simples. Somos nós que nos complicamos com o nosso pecado. Na manjedoura, Deus está lá. Mistério que ecoa a exclamação de Santo Agostinho : ‘Tarde demais eu Te amei! Eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava contigo… seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam senão em ti.’

Como você cultiva a graça do Natal ao longo do ano?

Permitindo que Deus transforme todos os nossos relacionamentos : nosso relacionamento com ele, com nós mesmos e com os outros. Esta não é uma técnica psicológica, mas uma verdadeira conversão espiritual. E para isso só existe um caminho : a oração pessoal. Sem ela é impossível viver da graça do Natal. É um pedido exigente, mas é a verdade. Todos os dias, Deus só pede para renascer em nós, para nos dar a paz e a alegria do Natal. Não uma fachada de paz e alegria entusiasmada, mas uma paz profunda e a alegria de saber que se é amado. Não temos pelo menos cinco minutos por dia para que Deus se encarne em nós?

Correndo o risco de soar provocativo, uma pergunta : por que Deus se encarnou?

Para nos dizer que todo homem é filho e filha de Deus! Para nos revelar a verdadeira face de Deus e, ao mesmo tempo, restaurar nosso relacionamento com o Pai no céu. ‘Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus’, dizia Santo Irineu no século II. Jesus, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, reconcilia o homem na sua pessoa com Deus e conduz o homem à sua dimensão verdadeira e plena. Encarnando-se, o Verbo Eterno revela a onipotência da sua bondade, da sua misericórdia e da sua ternura. Em Jesus, ele se faz muito próximo, muito pequeno para não nos assustar. A manjedoura, como a Eucaristia, é a revelação de um Deus que se faz servo de cada homem para nos anunciar toda a sua força de amor. Como diz uma das canções de natal mais antigas : ‘Da manjedoura à crucificação, Deus nos revela um grande mistério’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/cp1/2020/12/22/natal-descubra-os-tesouros-escondidos-no-misterio-do-presepio/



sábado, 23 de maio de 2020

Ascensão: proximidade radical

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

ascension | Colin Dye
*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, SJ



‘O Mistério Pascal é uma realidade única : nem a ressurreição, nem a ascensão, nem o sentar-se à direita do Pai, nem a glorificação, nem a vinda do Espírito, são fatos separados.

As diferentes ‘expressões’ do Mistério Pascal, pertencem ao hoje como ao ontem, são tão nossas como foram para Pedro, João ou Madalena. Não aconteceram só no passado, mas também estão acontecendo neste instante. São realidades que estão afetando nossa própria vida. Podemos e devemos vivê-las como os(as) discípulos(as) de Jesus as viveram.

Para nós seguidores(as) de Jesus, ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É preciso partir e viver o chamado do Mestre para prolongar, neste mundo, seu modo de ser e de viver.

A ascensão de Jesus não significa evasão aos céus – ‘Homens da Galileia, por que ficai aqui, parados, olhando para o céu?’ (At. 1,11) – mas imersão na vida. Aquele que Vive não escapou do mundo; sua ascensão significa expansão e presença no universo inteiro, plenificando tudo em todos; Ele agora assume todos os rostos, identifica-se com toda a humanidade e continua a caminhar pelas Galileias dos excluídos, das periferias, dos pobres, acampa junto aqueles que vivem às margens...

Ao celebrarmos a entrada de Jesus na glória, não celebramos uma despedida ou um distanciamento, mas um novo modo de presença; celebramos a proximidade radical d’Aquele que é, realmente, o Emanuel, o Deus-conosco para sempre.

Ao ‘subir aos céus’, Jesus se faz mais radicalmente próximo de todos, ultrapassando tempo e espaço. ascensão não é afastamento, mas uma maneira nova de fazer-se presente a todos e em todos os lugares.

O único que Jesus faz é restabelecer e assegurar a proximidade e comunicação com toda a humanidade. Isto deve nos dar uma grande alegria, pois Ele permanece aqui na terra, junto a nós. Assim, a ascensão de Jesus nos desafia a romper a estreiteza de nossa vida para expandi-la a horizontes mais inspiradores.

Na festa da ascensão deste ano, a liturgia nos propõe a cena final do evangelho de Mateus; embora não fale expressamente da ‘elevação’ de Jesus ao céu, nele se condensa todo o caminho anterior, e se abre ao mundo inteiro, como presença e promessa de vida.

Mateus termina seu evangelho narrando um breve encontro entre Jesus Ressuscitado e o grupo dos onze que havia regressado à Galileia, depois de receber a mensagem das mulheres que tinham ido ao sepulcro. Este encontro acontece longe de Jerusalém, afastado do lugar onde eles tinham vivido a experiência traumática da paixão de Jesus. Esta distância física é também existencial. Depois da crise, do medo, do desespero que os havia paralisado, o Mestre os convida a voltar à Galileia, às origens, para percorrer de novo os caminhos, para ‘fazer memória’ das experiências junto d’Ele e que agora hão de reler de forma diferente.

A ascensão é a festa por excelência da nova proximidade de Jesus. No entanto, devido à situação pandêmica, celebramos fisicamente distanciados uns dos outros; mas, a ascensão pode ser um momento oportuno para ativar outras maneiras de nos fazer próximos, inspirados na proximidade do Ressuscitado.

A festa da ascensão pode também ser uma ocasião para desvelar (tirar a máscara) o farisaísmo que está latente em todos nós : a vivência camuflada de um distanciamento humano.

O isolamento sanitário pôs às claras esta dura realidade : já levamos anos praticando o distanciamento político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes. Uma voz surda sempre esteve presente : devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...

Não podemos deixar que a atual crise sanitária acentue mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força.

Esta é a dura contradição que estamos vivendo : se, estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...

Não podemos deixar que o sonho do Reino, o projeto universal de Jesus, se dilua em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca, devemos celebrar e recordar que juntos, unidos, orientados para um horizonte comum, poderemos enfrentar qualquer crise que nos venha. Talvez, esta pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crermos nisso, de verdade : de transformar declarações ocas em atos sólidos, de resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra : proximidade. Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que menos tem, com aqueles que se sentem excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a ascensão é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos.

Não nos sobram muitas outras oportunidades de transformar este sonho em realidade. Vivemos na distância, necessária no momento, mas não façamos dela nosso estilo de vida; não devemos convertê-la em meio que determine o que somos. Somos chamados a ser algo mais que compartimentos estanques e seguros, isolados. Podemos ser ‘praça comum’ de encontro e diálogo, de mãos estendidas e ouvidos atentos para dar forma a isso que tanto precisamos : sentir-nos próximos uns dos outros.

À luz da ascensão podemos afirmar : fisicamente distanciados é quando nos sentimos mais próximos.

Podemos recordar o constante convite de Jesus a provocar encontros que ajudem a integrar, a reunir, a religar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do ‘Reino de Deus’.

Como homem e como mulher, trazemos esta força interior que nos faz ‘sair de nós mesmos’ e criar laços, fortalecer a comunhão, romper distâncias...

O ser humano não é feito para viver só; ele necessita conviver, viver-com-os-outros; ele é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas : estabelece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós : a comunidade.

Textos bíblicos : Mt 28,16-20

Na oração : Jesus vive sua proximidade radical através dos seus(suas) seguidores(as) que se fazem próximos. A ‘opção de vida’ em favor do próximo é o indicador de uma vida aberta e comprometida na construção de uma convivência social na qual predomine a ternura e não a dureza de coração, o respeito à vida e o amor e não a violência e a exclusão.

  • De quem eu sou próximo, ou, como me faço próximo, nestes tempos de isolamento social?


Fonte :
*Artigo na íntegra

sexta-feira, 12 de abril de 2019

‘João e Paulo: dois olhares diferentes para o mistério’ - Quinta pregação da Quaresma de 2019

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Imagem relacionada
*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCAP,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
Tradução : Thácio Siqueira


No Novo Testamento e na história da teologia há coisas que não podem ser compreendidas sem levar em conta um fato fundamental : a existência de duas abordagens diferentes, ainda que complementares, ao mistério de Cristo : a de Paulo e a de João.
João vê o mistério de Cristo a partir da Encarnação. Jesus, o Verbo feito carne, é para ele o supremo revelador do Deus vivo, aquele fora do qual ninguém ‘vai ao Pai’. A salvação consiste em reconhecer que Jesus ‘veio na carne’ (2 Jo 7) e em crer que ele ‘é o Filho de Deus’ (1 Jo 5,5); ‘Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho não tem a vida’ (1 Jo 5,12). No centro de tudo, como podemos ver, está a ‘pessoa’ de Jesus homem-Deus.
A peculiaridade desta visão joanina é evidente se a compararmos com a de Paulo. Para Paulo, o centro das atenções não é tanto a pessoa de Cristo, entendida como realidade ontológica, mas a obra de Cristo, isto é, seu mistério pascal de morte e ressurreição. A salvação não consiste tanto em crer que Jesus é o Filho de Deus que veio na carne, mas em crer em Jesus ‘que morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação’ (cf. Rm 4, 25). O acontecimento central não é a encarnação, mas o mistério Pascal.
Seria um erro fatal ver nisto uma dicotomia na própria origem do cristianismo. Quem lê o Novo Testamento sem preconceitos compreende que em João a Encarnação está em vista do mistério pascal, quando Jesus finalmente derramará o seu Espírito sobre a humanidade (Jo 7, 39), e compreende que para Paulo o mistério pascal pressupõe e se baseia na Encarnação. Aquele que se fez obediente até a morte e morte de cruz é aquele que ‘estava na forma de Deus’, igual a Deus (cf. Fl 2, 5 ss.). As fórmulas trinitárias nas quais Jesus Cristo é mencionado juntamente com o Pai e o Espírito Santo são uma confirmação de que, para Paulo, a obra de Cristo toma sentido da sua pessoa.
A diferente acentuação dos dois pólos do mistério reflete o caminho histórico que a fé em Cristo fez depois da Páscoa. João reflete o estágio mais avançado da fé em Cristo, aquele que ocorre no final, não no início da redação dos escritos do Novo Testamento. Ele está no final de um processo de ascensão às fontes do mistério de Cristo. Isto pode ser visto observando onde os quatro evangelhos começam. Marcos começa seu evangelho a partir do batismo de Jesus no Jordão; Mateus e Lucas, que vieram depois, dão um passo atrás e começam a história de Jesus desde seu nascimento por Maria; João, que escreve por último, dá um salto decisivo para trás e coloca o início da história de Cristo não mais no tempo, mas na eternidade : ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’ (Jo 1,1).  
A razão para esta mudança de interesse é bem conhecida. A fé, por sua vez, entrou em contato com a cultura grega que está mais interessada na dimensão ontológica do que na histórica. O que conta para ela não é tanto o desenvolvimento dos fatos, mas o seu fundamento (o archè). A este fator ambiental foram acrescentados os primeiros sinais da heresia do docetista que questionava a realidade da encarnação. O dogma cristológico das duas naturezas e da unidade da pessoa de Cristo será quase inteiramente baseado na perspectiva joanina do Logos feito carne.
É importante levar isso em conta para entender a diferença e a complementaridade entre teologia oriental e teologia ocidental. As duas perspectivas, a paulina e a joanina, embora fundindo-se juntas (como vemos no Credo Niceno-Constantinopolitano), mantêm a sua acentuação diferente, como dois rios que, fluindo um no outro, retêm por muito tempo a cor diferente das suas águas. A teologia e a espiritualidade ortodoxa está baseada principalmente em João; a ocidental (a protestante mais do que a católica) se fundamenta principalmente em Paulo. Dentro da mesma tradição grega, a escola de Alexandria é mais joanina, a da Antioquia mais paulina. Uma faz consistir a salvação na divinização, a outra na imitação de Cristo.

A cruz, sabedoria de Deus e poder de Deus
Agora eu gostaria de mostrar o que tudo isso significa para a nossa busca pelo rosto do Deus vivo. No final das meditações do Advento, falei do Cristo de João que, no momento em que se faz carne, introduz a vida eterna no mundo. No final destas meditações quaresmais, gostaria de falar sobre o Cristo de Paulo que muda o destino da humanidade na cruz. Escutemos imediatamente o texto onde a perspectiva paulina sobre a qual queremos refletir aparece mais clara :
Uma vez que na sabedoria de Deus o mundo não o reconheceu pela sabedoria, Deus quis servir-se da loucura da pregação para salvar os que creem. Enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos procuram sabedoria, nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gregos, mas poder e sabedoria de Deus para os chamados, quer judeus, quer gregos. Porque o que se julga loucura de Deus é mais sábio do que os homens; e o que se julga fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.’ (I Cor 1,21-25).
O Apóstolo fala de uma novidade na ação de Deus, quase uma mudança de ritmo e de método. O mundo não foi capaz de reconhecer Deus no esplendor e na sabedoria da criação; então ele decide revelar-se de maneira oposta, através da impotência e da loucura da cruz. Não é possível ler esta afirmação de Paulo sem recordar a palavra de Jesus : ‘Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos’ (Mt 11, 25).
Como interpretar esta inversão de valores? Lutero falava de uma revelação de Deus ‘sub contraria specie’, isto é, através do oposto do que se esperaria dele[1].  Ele é poder e revela-se na impotência, é sabedoria e revela-se na loucura, é glória e revela-se na ignomínia, é riqueza e revela-se na pobreza.
A teologia dialética da primeira metade do século passado trouxe esta visão às suas consequências extremas. Segundo Karl Barth, não há continuidade entre o primeiro e o segundo modo de manifestação de Deus, mas sim uma ruptura. Não é apenas uma sucessão temporal, como entre Antigo e Novo Testamento, mas de uma oposição ontológica. Em outras palavras, a graça não constrói sobre a natureza, mas contra ela; toca o mundo ‘como a tangente o círculo’, isto é, toca nela, mas sem penetrá-la como o fermento faz com a massa. É a única diferença que, segundo o próprio Barth, o impedia de se chamar católico; todas as outras lhe pareciam, em comparação, de pouca importância. À analogia entis, ele opôs a analogia fidei, isto é, à colaboração entre natureza e graça, a oposição entre a palavra de Deus e tudo o que pertence ao mundo.
Bento XVI, na sua encíclica ‘Deus caritas est’, mostra as consequências que esta diferente visão tem em relação ao amor. Karl Barth tinha escrito : ‘Onde entra em cena o amor cristão, tem início imediatamente o conflito com o outro amor [o amor humano] esse conflito não termina mais[2]. Bento XVI escreve o contrário :  
Éros e ágape - amor ascendente e amor descendente - nunca se deixam separar completamente uns dos outros [...]. A fé bíblica não constrói um mundo paralelo nem um mundo oposto àquele fenômeno humano originário que é o amor, mas acolhe todo o homem, intervindo na sua busca do amor para purificá-la, ao mesmo tempo que lhe abre novas dimensões[3].
A oposição radical entre natureza e graça, entre criação e redenção, foi atenuada nos escritos posteriores do próprio Barth e agora não encontra quase nenhum apoiador. Podemos, portanto, aproximar-nos com mais serenidade da página do Apóstolo para compreender em que consiste realmente a novidade da cruz de Cristo.
Na cruz, Deus se manifestou, sim, ‘sob o seu contrário’, mas sob o contrário do que os homens sempre pensaram de Deus, não do que Deus é realmente. Deus é amor e na cruz registrou-se a manifestação suprema do amor de Deus pelos homens. Em um certo sentido, só agora, na cruz, Deus se revela ‘na própria espécie’, no que lhe é próprio. O texto de Primeiro Coríntios sobre o significado da cruz de Cristo deve ser lido à luz de um outro texto de Paulo na Carta aos Romanos :
Com efeito, quando ainda éramos fracos, Cristo morreu no momento oportuno pelos ímpios. Dificilmente alguém aceitaria morrer por um justo; por um homem de bem talvez haja quem se anime a morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós, quando éramos ainda pecadores.’ (Rm 5, 6-8).
O teólogo bizantino medieval Nicolau Cabásilas (1322-1392) nos dá a melhor chave para entender qual é a novidade da cruz de Cristo. Escreve :
Duas características revelam o amante e o fazem triunfar : a primeira consiste em fazer o bem ao amado em tudo o que é possível, a segunda em escolher sofrer por ele e sofrer coisas terríveis se necessário. Esta última prova de amor muito superior à primeira não podia, no entanto, concordar com Deus que é impassível a todo o mal [...]. Portanto, para nos dar a experiência do seu grande amor e para mostrar que nos ama com um amor ilimitado, Deus inventa a sua aniquilação, realiza-a e fá-lo de modo a tornar-se capaz de sofrer e de sofrer coisas terríveis. Assim, com tudo o que Ele suporta, Deus convence os homens do seu extraordinário amor por eles e fá-los voltar para Si[4].
Na criação Deus nos encheu de dons, na redenção Ele sofreu por nós. A relação entre os dois é a de um amor de beneficência que se faz amor de sofrimento.
Mas o que aconteceu de tão importante na cruz de Cristo que se tornou a culminação da revelação do Deus vivo da Bíblia? A criatura humana procura instintivamente Deus na linha do poder. O título que segue o nome de Deus é quase sempre ‘onipotente’. E eis que, abrindo o Evangelho, somos convidados a contemplar a absoluta impotência de Deus na cruz. O Evangelho revela que a verdadeira onipotência é a total impotência do Calvário. É preciso pouco poder para se exibir, é preciso muito poder para se afastar, para se apagar. O Deus cristão é este poder ilimitado de esconder a si mesmo!
A explicação última reside, portanto, na ligação inseparável que existe entre amor e humildade. ‘Ele se humilhou tornando-se obediente até a morte’ (Fl 2,8). Ele se humilhou tornando-se dependente do objeto do seu amor. O amor é humilde porque, pela sua natureza, cria dependência. Vemo-lo, no pequeno, do que acontece quando duas pessoas humanas se apaixonam. O jovem que, de acordo com o ritual tradicional, se ajoelha diante de uma menina para pedir sua mão faz o ato mais radical de humildade da sua vida, torna-se um mendigo. É como se dissesse : ‘Eu não me basto, preciso de ti para viver’. A diferença essencial é que a dependência de Deus das suas criaturas nasce unicamente do amor que tem por elas, o amor das criaturas entre si da necessidade que têm umas pelas outras.
A revelação de Deus como amor, escreveu Henri de Lubac, obriga o mundo a rever todas as suas ideias sobre Deus[5]. A teologia e a exegese ainda estão longe de ter tirado todas as consequências disso, creio eu. Uma dessas consequências é esta. Se Jesus sofre atrozmente na cruz, não o faz principalmente para pagar a dívida infinita no lugar dos homens. (Na parábola dos dois servos, em Lucas 7,41, ele explicou antecipadamente que a dívida de dez mil talentos é perdoada gratuitamente pelo rei!). Não, Jesus morre crucificado para que o amor de Deus pudesse alcançar o homem no ponto mais remoto para o qual ele se tinha lançado, rebelando-se contra ele, ou seja, a morte. Também a morte é agora habitada pelo amor de Deus. No seu livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI, escreveu :
A injustiça, o mal como realidade não pode ser simplesmente ignorado, deixado para lá. Tem de ser eliminado, vencido. Esta é verdadeira misericórdia. E que agora, dado que os homens não o podem fazer, o próprio Deus o faz - esta é a bondade incondicional de Deus[6].
O motivo tradicional da expiação dos pecados conserva, como podemos ver, toda a sua validade, mas não é a razão última. O motivo último é ‘a bondade incondicional de Deus’, o seu amor.
Podemos identificar três etapas no caminho da fé pascal da Igreja. No início há apenas dois fatos : ‘morreu, ressuscitou’. ‘Tu o crucificaste, Deus o ressuscitou’, clama Pedro às multidões no dia de Pentecostes (cf. At 2, 23-24). Numa segunda fase, faz-se a pergunta : ‘Por que morreu e por que ressuscitou?’ e a resposta é o kerigma : ‘Morreu pelos nossos pecados; ressuscitou pela nossa justificação’ (cf. Rm 4, 25). Mais uma pergunta permanecia : ‘E por que morreu pelos nossos pecados? O que o levou a fazê-lo?’ A resposta (unânime, neste ponto, de Paulo e de João) é : ‘Porque nos amou’. ‘Me amou e se entregou por mim’, escreve Paulo (Gl 2, 20); ‘Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim’, escreve João (Jo 13, 1). 

A nossa resposta
Qual será a nossa resposta diante do mistério que contemplamos e que a liturgia nos fará reviver na semana santa? A primeira e fundamental resposta é a da fé. Não uma fé qualquer, mas a fé pela qual tomamos posse do que Cristo conquistou para nós. A fé que ‘arrebata’ o Reino dos Céus (Mt 11, 12). O Apóstolo conclui o texto do qual partimos com estas palavras :
Cristo Jesus [...] para nós tornou-se sabedoria pela obra de Deus, justiça, santificação e redenção, para que, como está escrito, os que se gloriam se gloriem no Senhor’ (1 Cor 1,30-31).
Aquilo que Cristo se tornou ‘para nós’ - justiça, santidade e redenção – nos pertence; é mais nosso do que se o tivéssemos feito nós mesmos! Não me canso de repetir, a este respeito, o que São Bernardo escreveu :
Em verdade, tomo com confiança para mim (usurpo!) o que me falta das entranhas do Senhor, porque transbordam de misericórdia [...] O meu mérito, portanto, é a misericórdia do Senhor. Certamente não estarei desprovido de mérito até que o Senhor não estiver desprovido de misericórdia. Se as misericórdias do Senhor são muitas, também eu sou muito grande quanto aos méritos [...] Será que vou cantar também a minha justiça? ‘Senhor, só me lembrarei da tua justiça’ (cf. Sl 71, 16). Em verdade, é também minha, porque fizeste para mim a justiça que vem de Deus (cf. 1 Cor 1, 30)[7].
Não deixemos passar a Páscoa sem ter feito, ou renovado, o golpe audacioso da vida cristã que São Bernardo nos sugeriu. São Paulo exorta frequentemente os cristãos a ‘se despojar do homem velho’ e ‘revestirem-se de Cristo[8]. A imagem de despir e vestir não indica uma operação puramente ascética, que consiste em abandonar certas ‘roupas’ e substituí-las por outras, isto é, abandonar vícios e adquirir virtudes. É acima de tudo uma operação a ser feita através da fé. A pessoa se coloca diante do crucifixo e, com um ato de fé, entrega-lhe todos os seus pecados, a própria miséria passada e presente, como aquele que se despoja e joga seus trapos sujos no fogo. Depois, reveste-se da justiça que Cristo adquiriu para nós; diz, como o publicano no templo : ‘Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!’, e volta para casa como ele ‘justificado’ (cf. Lc 18, 13-14). Isto seria realmente um ‘fazer a Páscoa’, realizar a santa ‘passagem’!
Claro que isto não é tudo. Da apropriação, temos de passar à imitação. Cristo - dizia o filósofo Kierkegaard aos seus amigos luteranos - não é apenas ‘o dom de Deus a ser aceito pela fé’; é também ‘o modelo a ser imitado na vida[9]. Gostaria de sublinhar um ponto concreto sobre o qual tentar imitar a ação de Deus : o que Cabasilas destacou com a distinção entre o amor de beneficência e o amor de sofrimento.
Na criação, Deus demonstrou o seu amor por nós, enchendo-nos de dons : a natureza com a sua magnificência fora de nós, a inteligência, a memória, a liberdade e todos os outros dons dentro de nós. Mas não lhe bastou. Em Cristo quis sofrer conosco e por nós. Isto também acontece nas relações das criaturas entre si. Quando um amor floresce, a pessoa sente imediatamente a necessidade de manifestá-lo dando presentes à pessoa amada. É o que os namorados fazem entre si. E sabemos como será o processo : uma vez casados, emergem os limites, as dificuldades, as diferenças de caráter. Já não basta dar presentes; para continuar e manter vivo o próprio matrimônio, é preciso aprender a ‘carregar os fardos uns dos outros’ (cf. Gl 6, 2), a sofrer uns pelos outros e uns pelos outros. É assim que o eros, sem falhar em si mesmo, torna-se também ágape, amor de doação e não só de busca. Bento XVI, na encíclica citada, exprime-se assim :
Mesmo que inicialmente o eros seja sobretudo anseio, ascensão - fascínio pela grande promessa de felicidade - à medida que nos aproximamos do outro, faremos cada vez menos perguntas sobre nós mesmos, buscaremos cada vez mais a felicidade do outro, nos preocuparemos cada vez mais com ele, nos daremos e desejaremos ‘estar lá para o outro’. Assim, o momento do ágape é inserido nele; caso contrário, o eros se decompõe e também perde a sua própria natureza. Por outro lado, o homem não pode sequer viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode sempre apenas dar, também deve receber. Quem quiser dar amor, deve recebê-lo como um dom.
A imitação da ação de Deus não diz respeito apenas ao matrimônio e aos casados; num sentido diferente, diz respeito a todos nós, os consagrados, antes de todos os outros.  O progresso, no nosso caso, consiste em passar de fazer tantas coisas por Cristo e pela Igreja para sofrer por Cristo e pela Igreja. O que acontece no casamento acontece na vida religiosa, e não surpreende que aconteça, pois é também um casamento, um casamento com Cristo.
Uma vez a Madre Teresa de Calcutá falava a um grupo de mulheres e as exortava a sorrir para seus maridos. Uma delas opôs-se a ela : ‘Madre, você fala assim porque não é casada e não conhece o meu marido’. Ela respondeu : ‘Você está errada. Também sou casada e garanto-vos que, às vezes, também não é fácil para mim sorrir para o meu Esposo’. Depois da sua morte se descobriu ao que a santa aludia com aquelas palavras. Seguindo o seu apelo para servir os mais pobres dos pobres, ela se comprometeu a trabalhar com entusiasmo pelo seu Esposo divino, realizando obras que surpreenderam o mundo inteiro.
Rapidamente, porém, a alegria e o entusiasmo se perderam, ela mergulhou em uma noite escura que a acompanhou pelo resto da vida. Chegou a duvidar se ainda tinha a fé, tanto assim que, quando, depois da sua morte, foram publicados os seus diários íntimos, alguém, completamente ignorante das coisas do espírito, chegou a falar de um ‘ateísmo de Madre Teresa’. A extraordinária santidade de Madre Teresa reside no fato de que ela viveu tudo isso em absoluto silêncio com todos, escondendo a sua desolação interior sob um sorriso constante no rosto. Nela vemos o que significa passar do fazer as coisas por Deus, ao sofrer por Deus e pela Igreja.
É um horizonte muito difícil, mas felizmente Jesus na cruz não só nos deu o exemplo deste novo tipo de amor, como também nos mereceu a graça de o fazer nosso, de o apropriar através da fé e dos sacramentos. Por isso, durante a Semana Santa, salte do nosso coração também o grito da Igreja : ‘Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi, quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum’. Nós Vos adoramos e Vos bendizemos, Senhor Jesus, porque pela Vossa santa cruz remistes o mundo.

Fonte :
*Artigo na íntegra
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[1] Cf. Martinho Lutero, De servo arbitrio, in WA, 18, 633; cf. também WA, 56, pp. 392. 446-447.

[2] Karl Barth, Dommatica ecclesiale, IV, 2, 832-852. A incompatibilidade entre o amor humano e o amor divino é a tese de Anders Nygren, Eros e agapeLa nozione cristiana dell’amore e le sue trasformazioni, Bolonha, Il Mulino, 1971(Edição original em sueco, Estocolmo 1930).
[3] Bento XVI, Deus caritas est, n. 7-8.
[4] Nicolau Cabásilas, Vita in Cristo, VI, 2 (PG 150, 645).
[5] H. de Lubac, Histoire et esprit, Paris 1950, c.5.
[6] Cf. J. Ratzinger - Bento XVI, Gesù di Nazaret, II Parte, Libreria Editrice Vaticana 2011, pp. 151.
[7] S. Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico, 61, 4-5 (PL 183, 1072).
[8] Cf. Col 3,9; Rm 13,14; Gl 3,27; Ef 4,24).
[9] Cf. Søren Kierkegaard, Diario, X1, A, 154 (Ano 1849).

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Edith Stein: “O mistério do Natal e o mistério do mal estão intimamente unidos”

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Imagem relacionada
*Texto original em italiano por Claudia Mancini 
em Libertà e Persona


Uma reflexão natalina magistral da filósofa judia que se converteu a Cristo, morreu mártir em Auschwitz e foi canonizada pela Igreja



Filósofa, judia, ateia, convertida, religiosa e mártir, essa mulher especial começa a meditação não com uma citação erudita, como quem se esforçasse por captar as atenções, e sim com uma reflexão que surpreende pela simplicidade; pela simplicidade de quem tem o olhar inclusivo da fenomenologia. Edith Stein destaca que o fascínio do Natal atinge a todos, mesmo os que pertencem a outras religiões e os não crentes, para quem a antiga história do Menino de Belém não diz nada.

Nas semanas anteriores ao dia de Natal, ‘uma cálida corrente de amor inunda toda a terra’, porque ‘todos preparam a festa e tentam irradiar um raio de alegria’. É sempre apreciável o gesto de procurar e dar alegria, de preparar e de preparar-se para uma festa : são gestos estruturalmente humanos. Para o cristão, porém, especialmente para os cristãos católicos, a estrela que leva até a manjedoura é diferente. O coração de quem vive com a Igreja, desde o repicar do Rorate Coeli até os cantos do Advento, começa a bater em uníssono com a sagrada liturgia que emoldura um momento único : o tempo de uma espera que é também ardente nostalgia. Uma espera-nostalgia que cresce durante o Advento e encontra satisfação somente quando os sinos da Missa do Galo anunciam que ‘o Verbo se fez carne’. Com este anúncio, vemo-nos sempre diante do fascínio do Menino na manjedoura, que estende as mãos e parece já dizer, sorrindo, o que mais tarde os seus lábios de Mestre repetirão até o último suspiro na cruz : ‘Segue-Me’.

Atenção : a Luz da estrela e o encanto do Menino na manjedoura duram um piscar de olhos. ‘À luz descida do céu, opõe-se, ainda mais escura, a noite do pecado’. Diante do Menino, ao mesmo tempo, os espíritos se dividem em ‘contra’ e ‘a favor’. Diante do ‘Segue-Me’, quem não é por Ele é contra Ele. Não por acaso, no dia depois do Natal, enquanto ainda ecoam os sons festivos dos sinos da noite e das festivas liturgias natalinas, a Igreja se desveste do branco de festa e se reveste do vermelho do sangue, e, no quarto dia, já usa o roxo do luto para recordar o primeiro mártir, Estêvão, e as crianças inocentes que foram mortas por Herodes. O que isto significa? Onde foi parar o encanto do Menino na manjedoura? Onde está o bem-aventurado silêncio da noite santa?

O mistério da noite de Natal, escreve Edith Stein, carrega uma verdade grave e séria que o encanto da manjedoura não deve encobrir aos nossos olhos : ‘O mistério da encarnação e o mistério do mal estão intimamente unidos’.

A alegria do Menino e das figuras luminosas que se ajoelham em torno da manjedoura, das crianças inocentes, dos pastores esperançosos, dos reis humildes, dos mártires, dos discípulos, dos homens de boa vontade que seguem o chamado do Senhor, essa alegria, enfim, caminha de mãos dadas com a constatação de que nem todos os homens são de boa vontade; de que a paz não alcança ‘os filhos das trevas’; de que, para esses, o Príncipe da Paz ‘traz a espada’; de que, para esses, Ele é a ‘pedra de tropeço’ que os derruba. Aquele Menino divide e separa, porque, enquanto o contemplamos, Ele nos impõe uma escolha : ‘Segue-Me’. Ele a impõe a nós também, hoje, e nos coloca diante da decisão entre a luz e a escuridão. As mãos do Menino ‘dão e exigem ao mesmo tempo’.

Se colocarmos as nossas mãos nas do Menino Deus e respondermos sim ao seu ‘Segue-Me’, o que recebemos?

Oh, maravilhoso intercâmbio! O Criador da humanidade nos dá, assumindo um corpo, a sua divindade!’. Aqui reside a grandeza do mistério da Encarnação : quem escolhe a luz, quem fica do lado do Menino, ‘abre caminho para que a sua vida divina se derrame sobre nós’ e traz ‘de forma invisível o Reino de Deus dentro de si’. O Natal é o começo da aventura de deixar a graça ‘permear de vida divina toda a vida humana’. Por que Deus se fez homem? Deus se tornou um filho do homem para que os homens se tornem filhos de Deus. Escreve Edith Stein : ‘Um de nós tinha rasgado o vínculo da filiação divina; um de nós tinha que reatá-lo e pagar pelo pecado. Mas nenhum descendente da antiga progênie, doente e bastarda, tinha condições de fazê-lo. Era preciso enxertar-lhe um ramo novo, saudável e nobre’. Estas palavras de Edith Stein evocam, por analogia óbvia, uma passagem do ‘Cur Deus Homo’ (CDH), de Santo Anselmo, que contém a mesma lógica da redenção : ‘A restauração da natureza humana não teria acontecido se o homem não tivesse pagado a Deus o que lhe devia pelo pecado. Mas a dívida era tão grande que a satisfação, de obrigação apenas do homem, mas possível somente a Deus, precisava ser dada por um homem-Deus’ (CDH 2,6).

Edith Stein tinha aprendido, na escola dos professores do carmelo, Teresa de Ávila e João da Cruz em particular, que a graça se desenvolve em nós como uma semente que nos transforma, deixando-nos participar da própria vida de Deus. Por esta razão, a meditação seguinte insiste nos sinais fundamentais de uma vida humana unida a Deus.

O primeiro sinal da filiação divina é ‘ser um só com Deus’. O Menino desceu ao mundo para ser um ‘corpo misterioso’ conosco : ‘Ele é a nossa cabeça, nós os Seus membros’. Não existimos mais ‘um ao lado do outro, como pessoas isoladas, autônomas, e sim, todos juntos, como uma só coisa com Cristo’. O segundo sinal da filiação divina é ‘ser um só em Deus’ : ‘Se, no corpo místico, Cristo é o corpo e nós os membros, então somos membros uns dos outros e, todos juntos, somos um só em Deus’. A medida do nosso amor a Deus é o nosso amor para com o próximo, ‘seja parente ou não, seja-nos simpático ou não, seja moralmente digno da nossa ajuda ou não; quem ama com o amor de Cristo, ama a humanidade por Deus e não por si’. O terceiro sinal da filiação divina é a disponibilidade para aceitar qualquer coisa da mão de Deus : o ‘faça-se a Tua vontade!’, em toda a sua extensão, deve ser o critério da vida cristã. Ele deve permear a jornada da manhã até a noite, o curso do ano e de toda a vida. ‘Deve ser a única preocupação do cristão. Todas as outras o Senhor as toma para Si’.

À luz e ao calor da Noite Santa, quando mal começamos a nos confiar ao Menino, apertamos confiantes a Sua mão e vemos com clareza o que devemos fazer ou não fazer. Mas a situação não ficará assim para sempre. Quem vê o encanto do Menino na Noite Santa não pode fingir que não percebe que o caminho que parte de Belém conduz ao Gólgota, vai da manjedoura até a cruz. ‘Quem pertence a Cristo deve viver toda a vida d’Ele’. A noite de Natal e a noite da cruz são uma única noite. Chegará o tempo do sofrimento e da morte para cada homem. Quando ele vier, a confiança em Deus permanecerá firme? Estaremos dispostos a aceitar qualquer coisa da Sua mão? Seremos ainda capazes de dizer ‘faça-se a Tua vontade’, mesmo na ’noite escura’, quando a luz divina já não brilhar e a voz do Senhor silenciar?

Os mistérios do cristianismo são um todo indivisível. Quem se aprofunda em um, acaba por tocar os outros todos, escreve Edith Stein. Sobre o luminoso esplendor da manjedoura paira a sombra da cruz. A luz da Noite Santa se apaga na escuridão da Sexta-Feira Santa, mas volta a brilhar mais forte na manhã da Ressurreição. O Filho encarnado de Deus, através da cruz e da paixão, chega até a glória da ressurreição. É assim que cada homem deve sofrer e morrer. Se for um membro vivo do Corpo de Cristo, porém, o seu sofrimento e a sua morte se tornarão, graças à divindade da Cabeça do corpo, redentores : ‘Cada um de nós, toda a humanidade, chegará, com o Filho do homem, através do sofrimento e da morte, até a mesma glória’. E o Salvador, sabendo que somos homens em luta diária com as nossas fraquezas, vem em nosso auxílio com aqueles que Edith Stein chamava de ‘meios de salvação’ : ‘estar todos os dias em relação com Deus’ através da escuta da Palavra, da oração litúrgica e interior, da vida sacramental. Mas é principalmente para o ‘Salvador eucarístico’ que precisamos abrir espaço, para podermos transformar a nossa vida na d’Ele. Assim como o corpo terreno precisa do pão de cada dia, assim também a vida divina aspira em nós a ser alimentada continuamente : ‘Em quem realmente faz d’Ele o seu pão de cada dia, cumpre-se diariamente o mistério do Natal, a encarnação do Verbo’. E esta é, sem dúvida, a maneira mais segura de manter ininterrupta a união com Deus e de enraizar-se todos os dias e cada vez mais firmemente no corpo místico de Cristo.

Edith Stein escreveu vinte páginas de meditação sobre o Natal, densíssimas, para lembrar que os mistérios do cristianismo são um todo indivisível, porque todos são mistérios portadores de salvação. Encarnação, cruz e ressurreição são inseparáveis. Só porque verdadeiramente o Filho, que é Deus, ‘se fez carne’ é que Ele poderia morrer e ressuscitar, arrebatando-nos da morte e nos abrindo um futuro em que esta carne’, a nossa existência terrena, entrará na eternidade do Reino de Deus. Celebramos o Natal como um convite a nos deixar transformar por Aquele que entrou em nossa carne, que se uniu a nós e nos uniu a Si, para permear de vida divina toda a vida humana.

Que o mistério da noite de Natal nos lembre que algo extraordinário acontece mediante a encarnação : a carne se torna o instrumento da salvação.

Verbum caro factum est’ : o Verbo Se fez carne, escreve João Evangelista, e um autor cristão do século III, Tertuliano, afirma : ‘Caro salutis est cardo’, a carne é o eixo da salvação.

Se a alma se torna totalmente de Deus, é a carne que o torna possível! A carne é batizada para que a alma seja purificada; a carne é ungida para que a alma seja consagrada; a carne é marcada pela cruz para que a alma fique incólume; a carne é coberta pela imposição das mãos para que a alma seja iluminada pelo Espírito; a carne se nutre do Corpo e do Sangue de Cristo para que a alma se sacie de Deus. Elas não serão, pois, separadas no dia da recompensa, porque estiveram unidas durante as obras’ (De carnis resurrectione, 8,3: PL 2,806).’’


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