*Texto original em italiano por Claudia Mancini
em Libertà e Persona
Uma reflexão natalina magistral da filósofa
judia que se converteu a Cristo, morreu mártir em Auschwitz e foi canonizada
pela Igreja
Filósofa, judia,
ateia, convertida, religiosa e mártir, essa mulher especial começa a meditação não com
uma citação erudita, como quem se esforçasse por captar as atenções, e sim com
uma reflexão que surpreende pela simplicidade; pela simplicidade de
quem tem o olhar inclusivo da fenomenologia. Edith Stein destaca que o fascínio
do Natal atinge a todos, mesmo os que pertencem a outras religiões e os não
crentes, para quem a antiga história do Menino de Belém não diz nada.
Nas
semanas anteriores ao dia de Natal, ‘uma cálida corrente de amor inunda toda
a terra’, porque ‘todos preparam a festa e tentam irradiar um raio de
alegria’. É sempre apreciável o gesto de procurar e dar alegria,
de preparar e de preparar-se para uma festa : são gestos estruturalmente
humanos. Para o cristão, porém, especialmente para os cristãos católicos, a
estrela que leva até a manjedoura é diferente. O coração de quem vive com a
Igreja, desde o repicar do Rorate Coeli até os cantos do
Advento, começa a bater em uníssono com a sagrada liturgia que emoldura um
momento único : o tempo de uma espera que é também ardente nostalgia. Uma espera-nostalgia que
cresce durante o Advento e encontra satisfação somente quando os sinos da Missa
do Galo anunciam que ‘o Verbo se fez carne’. Com este anúncio, vemo-nos
sempre diante do fascínio do Menino na manjedoura, que estende as mãos e parece
já dizer, sorrindo, o que mais tarde os seus lábios de Mestre repetirão até o
último suspiro na cruz : ‘Segue-Me’.
Atenção
: a Luz da estrela e o encanto do Menino na manjedoura duram um piscar de
olhos. ‘À luz descida do céu, opõe-se, ainda mais escura, a noite do pecado’.
Diante do Menino, ao mesmo tempo, os espíritos se dividem em ‘contra’ e ‘a
favor’. Diante do ‘Segue-Me’, quem não é por Ele é contra Ele.
Não por acaso, no dia depois do Natal, enquanto ainda ecoam os sons festivos
dos sinos da noite e das festivas liturgias natalinas, a Igreja se desveste do
branco de festa e se reveste do vermelho do sangue, e, no quarto dia, já usa o
roxo do luto para recordar o primeiro mártir, Estêvão, e as crianças inocentes
que foram mortas por Herodes. O que isto significa? Onde foi parar o encanto do
Menino na manjedoura? Onde está o bem-aventurado silêncio da noite santa?
O
mistério da noite de Natal, escreve Edith Stein, carrega uma verdade grave e
séria que o encanto da manjedoura não deve encobrir aos nossos olhos : ‘O
mistério da encarnação e o mistério do mal estão intimamente unidos’.
A
alegria do Menino e das figuras luminosas que se ajoelham em torno da
manjedoura, das crianças inocentes, dos pastores esperançosos, dos reis
humildes, dos mártires, dos discípulos, dos homens de boa vontade que seguem o
chamado do Senhor, essa alegria, enfim, caminha de mãos dadas com a constatação
de que nem todos os homens são de boa vontade; de que a paz não alcança ‘os
filhos das trevas’; de que, para esses, o Príncipe da Paz ‘traz a espada’;
de que, para esses, Ele é a ‘pedra de tropeço’ que os derruba. Aquele
Menino divide e separa, porque, enquanto o contemplamos, Ele nos impõe uma
escolha : ‘Segue-Me’. Ele a impõe a nós também, hoje, e nos coloca
diante da decisão entre a luz e a escuridão. As mãos do Menino ‘dão e exigem
ao mesmo tempo’.
Se
colocarmos as nossas mãos nas do Menino Deus e respondermos sim ao seu ‘Segue-Me’,
o que recebemos?
‘Oh,
maravilhoso intercâmbio! O Criador da humanidade nos dá, assumindo um corpo, a
sua divindade!’. Aqui reside a grandeza do mistério da Encarnação :
quem escolhe a luz, quem fica do lado do Menino, ‘abre caminho para que a
sua vida divina se derrame sobre nós’ e traz ‘de forma invisível o Reino
de Deus dentro de si’. O Natal é o começo da aventura de deixar a graça ‘permear
de vida divina toda a vida humana’. Por que Deus se fez homem? Deus
se tornou um filho do homem para que os homens se tornem filhos de Deus.
Escreve Edith Stein : ‘Um de nós tinha rasgado o vínculo da filiação divina;
um de nós tinha que reatá-lo e pagar pelo pecado. Mas nenhum descendente da antiga
progênie, doente e bastarda, tinha condições de fazê-lo. Era preciso
enxertar-lhe um ramo novo, saudável e nobre’. Estas palavras de Edith Stein
evocam, por analogia óbvia, uma passagem do ‘Cur Deus Homo’ (CDH), de
Santo Anselmo, que contém a mesma lógica da redenção : ‘A restauração da
natureza humana não teria acontecido se o homem não tivesse pagado a Deus o que
lhe devia pelo pecado. Mas a dívida era tão grande que a satisfação, de
obrigação apenas do homem, mas possível somente a Deus, precisava ser dada por
um homem-Deus’ (CDH 2,6).
Edith
Stein tinha aprendido, na escola dos professores do carmelo, Teresa de Ávila e
João da Cruz em particular, que a graça se desenvolve em nós
como uma semente que nos transforma, deixando-nos participar da própria vida de
Deus. Por esta razão, a meditação seguinte insiste nos sinais fundamentais de
uma vida humana unida a Deus.
O
primeiro sinal da filiação divina é ‘ser um só com Deus’.
O Menino desceu ao mundo para ser um ‘corpo misterioso’ conosco : ‘Ele
é a nossa cabeça, nós os Seus membros’. Não existimos mais ‘um ao lado
do outro, como pessoas isoladas, autônomas, e sim, todos juntos, como uma só
coisa com Cristo’. O segundo sinal da filiação divina é ‘ser um só em
Deus’ : ‘Se, no corpo místico, Cristo é o corpo e nós os membros, então
somos membros uns dos outros e, todos juntos, somos um só em Deus’. A
medida do nosso amor a Deus é o nosso amor para com o próximo, ‘seja parente
ou não, seja-nos simpático ou não, seja moralmente digno da nossa ajuda ou não;
quem ama com o amor de Cristo, ama a humanidade por Deus e não por si’. O
terceiro sinal da filiação divina é a disponibilidade para aceitar qualquer
coisa da mão de Deus : o ‘faça-se a Tua vontade!’, em toda a sua
extensão, deve ser o critério da vida cristã. Ele deve permear a jornada da
manhã até a noite, o curso do ano e de toda a vida. ‘Deve ser a única
preocupação do cristão. Todas as outras o Senhor as toma para Si’.
À
luz e ao calor da Noite Santa, quando mal começamos a nos confiar ao Menino,
apertamos confiantes a Sua mão e vemos com clareza o que devemos fazer ou não
fazer. Mas a situação não ficará assim para sempre. Quem vê o encanto do Menino
na Noite Santa não pode fingir que não percebe que o caminho que parte
de Belém conduz ao Gólgota, vai da manjedoura até a cruz. ‘Quem pertence
a Cristo deve viver toda a vida d’Ele’. A noite de Natal e a noite
da cruz são uma única noite. Chegará o tempo do sofrimento e da morte para
cada homem. Quando ele vier, a confiança em Deus permanecerá firme? Estaremos
dispostos a aceitar qualquer coisa da Sua mão? Seremos ainda capazes de dizer ‘faça-se
a Tua vontade’, mesmo na ’noite escura’, quando a luz divina já
não brilhar e a voz do Senhor silenciar?
Os mistérios do
cristianismo são um todo indivisível. Quem se aprofunda em um, acaba por tocar os outros
todos, escreve Edith Stein. Sobre o luminoso esplendor da manjedoura paira a
sombra da cruz. A luz da Noite Santa se apaga na escuridão da Sexta-Feira
Santa, mas volta a brilhar mais forte na manhã da Ressurreição. O Filho
encarnado de Deus, através da cruz e da paixão, chega até a glória da
ressurreição. É assim que cada homem deve sofrer e morrer. Se for um membro
vivo do Corpo de Cristo, porém, o seu sofrimento e a sua morte se tornarão,
graças à divindade da Cabeça do corpo, redentores : ‘Cada um de nós, toda a
humanidade, chegará, com o Filho do homem, através do sofrimento e da morte,
até a mesma glória’. E o Salvador, sabendo que somos homens em luta diária
com as nossas fraquezas, vem em nosso auxílio com aqueles que Edith Stein
chamava de ‘meios de salvação’ : ‘estar todos os dias em relação com
Deus’ através da escuta da Palavra, da oração litúrgica e interior, da vida
sacramental. Mas é principalmente para o ‘Salvador eucarístico’ que
precisamos abrir espaço, para podermos transformar a nossa vida na d’Ele. Assim
como o corpo terreno precisa do pão de cada dia, assim também a vida divina
aspira em nós a ser alimentada continuamente : ‘Em quem realmente faz d’Ele
o seu pão de cada dia, cumpre-se diariamente o mistério do Natal, a encarnação
do Verbo’. E esta é, sem dúvida, a maneira mais segura de manter
ininterrupta a união com Deus e de enraizar-se todos os dias e cada vez mais
firmemente no corpo místico de Cristo.
Edith
Stein escreveu vinte páginas de meditação sobre o Natal, densíssimas, para
lembrar que os mistérios do cristianismo são um todo indivisível, porque todos
são mistérios portadores de salvação. Encarnação, cruz e ressurreição
são inseparáveis. Só porque verdadeiramente o Filho, que é Deus, ‘se fez
carne’ é que Ele poderia morrer e ressuscitar, arrebatando-nos da morte e
nos abrindo um futuro em que esta ‘carne’, a nossa existência
terrena, entrará na eternidade do Reino de Deus. Celebramos o Natal como um
convite a nos deixar transformar por Aquele que entrou em nossa carne, que se
uniu a nós e nos uniu a Si, para permear de vida divina toda a vida humana.
Que
o mistério da noite de Natal nos lembre que algo extraordinário acontece
mediante a encarnação : a carne se torna o instrumento da salvação.
‘Verbum
caro factum est’ : o Verbo Se fez carne, escreve João Evangelista, e um
autor cristão do século III, Tertuliano, afirma : ‘Caro salutis est cardo’,
a carne é o eixo da salvação.
‘Se
a alma se torna totalmente de Deus, é a carne que o torna possível! A carne é
batizada para que a alma seja purificada; a carne é ungida para que a alma seja
consagrada; a carne é marcada pela cruz para que a alma fique incólume; a carne
é coberta pela imposição das mãos para que a alma seja iluminada pelo Espírito;
a carne se nutre do Corpo e do Sangue de Cristo para que a alma se sacie de
Deus. Elas não serão, pois, separadas no dia da recompensa, porque estiveram
unidas durante as obras’ (De carnis resurrectione, 8,3: PL 2,806).’’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2018/12/18/edith-stein-o-misterio-do-natal-e-o-misterio-do-mal-estao-intimamente-unidos/
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