domingo, 30 de dezembro de 2018

Cristãos: entre bárbaros e humanizados

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 'Cristo no deserto', de Ivan Kramskoj, 1872.
'Cristo no deserto', de Ivan Kramskoj, 1872

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja


Há uma nova invasão bárbara : a dos 'cristãos' que 'descristianizam' a doutrina de Cristo.


Isso foi tão levado a sério pelos cristãos dos três primeiros séculos que não é difícil encontrar entre os escritos dos padres da Igreja algo que represente esta máxima : onde não há solidariedade e amor ao próximo, não há cristianismo. É certo que não estamos atribuindo às primeiras comunidades cristãs uma ideia de perfeição que muitos grupos ideológicos contemporâneos acabaram resgatando. Porém, historicamente, não podemos negar que os primeiros seguidores do judeu ‘filho do carpinteiro’, condenado como o pior dos criminosos pelos seus algozes, atraiu um grupo de pessoas convictas. Nos escritos cheios de vida compostos por testemunhas oculares e neoconvertidos, essas pessoas encontraram um modo de se libertar dos fardos interiores impostos pela estrutura social do império romano. Por exemplo : um estrangeiro não podia participar da famosa distribuição de grãos promovida pelo imperador por não possuir a cidadania romana. Por isso, acredita-se que o ‘banco de caridade’, criado por algumas comunidades cristãs do Ocidente, servia para atender justamente essas pessoas. Inicialmente, o cristianismo surge, portanto, como uma proposta de inclusão, sobretudo para quem ‘não era ninguém’. É tanto que Papa Calisto I (155-222) traz em sua biografia um passado que, para qualquer cidadão romano do período, era condição mais infame perante a qual ninguém poderia se orgulhar : a de escravo. Isso mesmo : um ex-escravo - ou liberto, usando a nomenclatura correta - tornou-se um dos mais importantes papas do período.

A mensagem cristã apareceu como uma proposta de refrigério em meio a uma sociedade que divinizava tiranos e massacrava os mais fracos : de repente, uma doutrina sustentada por lunáticos - como os cristãos eram considerados - chegou a todas as camadas da sociedade, sem distinção. Os adeptos desse novo movimento religioso chocavam por chamarem uns aos outros de irmãos - o que lhes rendeu acusações de incesto; supersticiosos, por seguirem uma seita -  já que, para os romanos, a nova doutrina que se formava não se enquadrava nos parâmetros da religiosidade tradicional; e por fim, ignorantes por, em sua maioria, não privilegiarem somente aqueles mais doutos ou homens de posse. A propósito disso, o filósofo Celso, no seu famoso discurso Celso contra os cristãos, do século III, escreveu : ‘De fato, as pessoas desse tipo são dignas do seu próprio deus. Eles (os cristãos) admitem abertamente que somente os burros, ignorantes, insensatos, escravos, mulherzinhas e crianças cheguem à tal conversão’.

A coisa mais contraditória é que, atualmente, não sãos ‘os pagãos’ a se queixarem da abertura da Igreja àqueles que mais necessitam dela, mas os cristãos ‘barbarizados’ do presente que, através de uma ideologia pautada por um discurso político travestido de cristão, convocam cruzadas contra pessoas, não contra aquilo que as ameaçam verdadeiramente : a descrença no amor.

 Um filósofo e historiador italiano do século XVII chamado Giambattista Vico, tido como autor do conceito de verum ipsi factum - a verdade está no fato -, foi um dos primeiros pensadores a interpretar a história como ciência, contrapondo-se corajosamente a Descartes, à época . Vico divide a história em três fases : a dos deuses (quando o homem se utiliza dos mitos para interpretar os acontecimentos); a idade dos heróis (quando nascem as aristocracias) e a idade dos homens (quando os homens operam com a razão, promovem a reflexão e criam estruturas). Nessa última fase, o escritor italiano, como grande teórico dos ciclos da história, reflete sobre o retorno à barbárie. Para ele, quando uma civilização chega ao cume da sua ‘maturidade’ há o grande risco de cair de novo na barbárie, uma vez que o egoísmo, a renúncia às tradições e a desagregação promovem lentamente a sua própria decadência, a sua desumanização. E sobre o nosso cristianismo : estaríamos hoje promovendo o seu caráter humanizador em nossa sociedade, ou o estamos transformando em instrumento dessa barbárie politizada?’


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