CONFIRMAÇÃO
Nesta etapa, o Padre António Vieira alude às :
v propriedades do sal
v virtudes dos peixes e
v críticas aos homens
A partir deste capítulo, até o final, todo o sermão é uma alegoria, porque
o público são os ‘peixes-gente’. Isto
é, os peixes são metáfora dos homens, inclusive de seus vícios e virtudes.
Nosso evangelizador fala aos peixes (que ouvem e não falam), mas quem
escuta são os homens (que falam muito e ouvem pouco).
Analogamente, assim como o sal conserva o são e o preserva para que não
se perca, este sermão louva o bem (para conservá-lo) e repreende o mal (para
resguardar-se dele).
Cita, ainda, que os peixes foram os primeiros animais da criação e têm a
paciência como principal virtude. Quando chamados por Santo António, obedeceram
de pronto, ouvindo-o com delicadeza e serenidade.
Em contrapartida, quem os visse, acreditaria que eles se converteram em
homens e os homens em selvagens.
O homem abusa, maltrata e prende os animais para domesticá-los. Por
isto, os peixes têm medo e mantêm-se longe dele, vivendo livres no mar.
Observem que o discurso, ao ser pregado, abrange toda a pessoa do orador: a mímica, os gestos e toda a linguagem não verbal também são importantíssimos
para transmitir a mensagem.
Capítulo II
'Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes (21)? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar o Pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária (22), que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este Sermão, do que os meus parecem aos homens, pelo (23) encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo, para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso Pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os Pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja São Basílio (24): Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione (25). Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar. Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pesca, Sagenae missae in mare (26), diz que os pescadores recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus: Collegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt (27). E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.
Começando, pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer, que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra, e a vós primeiro que ao mesmo (28) homem. Ao homem deu Deus a monarquia e domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões (29), em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Et praesit piscibus maris, et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae (30). Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais (31) e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o Elefante com a Baleia? Por isso Moisés (32), Cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia (33). E os três músicos (34) da fornalha da Babilónia (35) o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino (36) .Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação (37), e não para o púlpito.
Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seus servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo, se pudessem, porque lhe repreendia seus vícios, porque lhe não queria falar à vontade (38) e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso (39) acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio, e com sinais de admiração e assenso (40) (como se tivessem entendimento) o que não entendiam!
Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados (41) e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão. Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos Pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas (42), Pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive (43), para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam (44) à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação (45)? Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas (46) para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
Mas porque nestas duas acções teve maior parte a Omnipotência que a natureza, (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles (47) diz que só eles entre todos os animais se não domam (48) nem domesticam (49). Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio (50) tão amigo ou tão lisonjeiro (51), e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor (52) nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos (53), lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os Autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à (54) pouca docilidade (55) ou demasiada bruteza (56); mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões (57) o fazem. Cante-lhe aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhe ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes (58), faça-lhe bufonerias (59) o bugio, mas no seu cepo (60); contente-se o cão de lhe roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem fermoso ou fidalgo (61), mas com o jugo sobre a cerviz (62), puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram nos bosques, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas adentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quer lembrar, porque há Filósofos que dizem que
não tendes memória.
No tempo de Noé (63) sucedeu o
dilúvio que cobriu e alagou o mundo, e de todos os animais quais livraram (64)
melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da
terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos
peixes? Todos escaparam, antes (65) não só escaparam todos, mas
ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois
se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as
aves, porque não morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio (66)
: porque os outros animais, como mais Domésticos ou mais vizinhos, tinham mais
comunicação com os homens; os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente
pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes,
assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força
daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata;
mas como o Dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus
pecados, e ao mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da
divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o
mesmo mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal e que por
isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que
andavam longe ficaram livres. Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos
homens. Perguntando um grande Filósofo, qual era a melhor terra do mundo,
respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos
pregou também Santo António, e foi este um dos benefícios de que vos exortou a
dar graças ao Criador, bem vos pudera alegar consigo que quanto mais buscava a
Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus
Pais e se recolheu ou acolheu a uma Religião, onde professasse perpétua
clausura (67). E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha
deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para
fugir e se esconder dos homens, mudou o Hábito, mudou o nome, e até a si mesmo
se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota (68),
com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe
sucedeu com seus próprios irmãos do Capítulo Geral de Assis (69).
Dali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus
como por força o não manifestara, e por fim acabou a vida em outro deserto (70)
tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.'
(21) Entenda-se: "Com que então vamos hoje pregar aos peixes!"
(22) Frequente.
(23) Por motivo de ordem.
(24) Bispo de Cesareia, na Capadócia, orador e escritor do séc. IV, de quem conhecemos Homilias, Salmos e Cartas.
(25) Basílio (N. de V.).
(26) Mateus, 13, 47 (N. de V.). Trad.: Redes lançadas ao mar.
(27) Mateus, 13, 48 (N. de V.).
(28) Ao próprio homem.
(29) Documentos, decretos.
(30) Gênesis, 1, 26 (N. de V.). Trad.: Para que presidam aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas e a toda a terra.
(30) Gênesis, 1, 26 (N. de V.). Trad.: Para que presidam aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas e a toda a terra.
(31) Entenda-se: os mais numerosos.
(32) Libertador do povo hebreu, cativo no Egito, dirigindo-o durante a longa caminhada para a Terra da Promissão. Salvo das águas pela mãe, viveu no Egito até que mais tarde se revoltou contra as injustiças de que o seu povo era alvo por parte do Faraó. Atravessa, então, o Mar Vermelho e entra no deserto onde Deus lhe envia o maná com que alimenta os Hebreus. No monte Sinai recebe as Tábuas da Lei, morrendo antes de entrar na Palestina.
(33) Gênesis, 1, 26 (N. de V.).Trad.: Criou Deus os grandes cetáceos.
(34) Alusão aos três judeus que se recusaram a adorar a estátua de ouro de Nabucodonosor. Foram metidos numa fornalha sobre-aquecida, mas o fogo não lhes fez mal nenhum. Daniel, III.
(35) Cidade da Mesopotâmia, cujo rei mais conhecido foi Hamurabi (1728 – 1686), devido ao famoso Código que suplantou os anteriores. Quando Nabucodonosor ascendeu ao poder continuou as conquistas e em 586 apoderou-se de Jerusalém e levou grande parte dos seus habitantes cativos para a Babilónia.
(36) Daniel, 3, 79 (N. de V.). Trad.: Bendizei o senhor, cetáceos e todos os que se movem nas águas.
(37) Lisonja.
(38) Dirigindo-se às paixões, ao sentimento.
(39) Ajuntamento, multidão.
(40) Assentimento, concordância.
(41) Teimoso, endurecido, empedernido.
(42) Embora incluído nos livros proféticos, o de Jonas é mais uma narrativa a que não falta sátira e ironia. É o mais pequeno dos livros do Antigo Testamento. Aí se conta que Jonas foi enviado a Nínive, que seguiu no ventre dum peixe e o que fez naquela cidade.
(43) Capital do Reino da Assíria, na margem esquerda do Tibre, que atingiu o esplendor durante o reinado de Senaquerib, no séc. VIII A.C. Nela mandou erguer um grande palácio com altas e fortes muralhas.
(44) Nota-se o emprego do Indicativo com a locução É possível, em frase interrogativa, construção clássica e muito própria de Vieira. O Indicativo acentua energicamente a realidade do facto.
(45) Sacerdotes ou missionários a quem incumbe velar pela salvação dos homens.
(46) Repare-se no trocadilho com o duplo sentido moral e físico, da palavra "entranhas".
(47) Filósofo grego, nascido em Estagira (por isso, também conhecido por Estagirita) em 384 e que morreu em Cálcis em 322. Estudou em Atenas, na Academia, onde foi discípulo de Platão. Foi mais tarde professor de Alexandre, filho de Filipe da Macedonia. Escreveu entre outras obras, a Arte Poética, Organon, e a Ética a Nicomaco.
(48) Subjugar, amansar.
(49) Tornar doméstico, tornar manso ou familiar.
(50) Espécie de macaco.
(51) Amigo de fazer festas.
(52) Ave de rapina, semelhante ao falcão, que era usada na caça de altanaria. D. Fernando e D. João I dedicaram-lhe um cuidado especial. Recorde-se O Livro de Falcoaria de Pero Menino, que era no seu tempo considerado o melhor sobre este tipo de caça, em toda a Europa.
(53) Profundidade de rio ou mar, sorvedouro, abismo.
(54) Atribuir à.
(55) Obediência, submissão.
(56) Falta de raciocínio.
(57) Proventos, haveres, servidões.
(58) Correia que prendia a perna da ave.
(59) Arremedos, trejeitos, fanfarrices, basófias.
(60) Armadilha para caçar.
(61) Alusão aos nomes familiares com que os lavradores chamam os animais ao seu serviço.
(62) Pescoço, cabeça.
(63) Último dos patriarcas anteriores ao Dilúvio que inundou toda a terra. Deus o encarrega de construir a Arca para salvação sua, da família e dos animais.
(64) Escapar, resistir à provação.
(65) Ou melhor.
(66) Bispo de Milão que viveu no séc. IV (340 – 397). Ficou conhecido pelos seus sermões, alguns dos quais parece terem contribuído para a conversão de Santo Agostinho.
(67) Vida religiosa que não permite a saída nem a entrada de pessoas estranhas ao convento. Vida no claustro.
(68) Ignorante.
(69) Cidade na Itália onde nasceu S. Francisco de Assis.
(70) É a solidão em que se refugia o religioso: pode ser numa povoação ou num convento.
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