domingo, 29 de janeiro de 2017

O ser humano, a história e a criação à luz da fé cristã

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor em Teologia Sistemática
pela Pontificia Università Antonianum, Roma.


‘Vivemos em um mundo cada vez mais plural. E para que esta pluralidade possa ser acolhida como desafio e chance e, assim, possa produzir seus melhores frutos, é fundamental que criemos a consciência do respeito por cada uma das singularidades que compõem juntas essa imensa e variegada civilização plural. A acolhida e o respeito face a esta nova configuração plural pode se constituir, inclusive, em uma excelente estação em que nos sentimos desafiados positivamente a recuperarmos nossa própria singularidade em atitude dialógica e respeitosa.

Salvação, na perspectiva cristã, não consiste, como muitos pensam, em uma doutrina hermética acessível unicamente a alguns poucos iniciados, nem tampouco um receituário de princípios ou de valores, nem muito menos um conjunto de mitos fundadores ou de lendas edificantes. Esta salvação, que nos é oferecida na pessoa de Jesus Cristo, se realiza no aqui e agora de cada pessoa e da comunidade cristã ‘no Espírito’. Na verdade, é o Espírito Santo quem cria as condições para que este evento da nossa salvação, realizado uma vez por todas em Jesus Cristo, possa ser recriado em todos os tempos e lugares, como possibilidade oferecida a cada pessoa. Somente ‘no Espírito’, eu posso experimentar que o evento pascal de Jesus Cristo se deu para a salvação minha e de todo o gênero humano. O Espírito Santo atualiza a redenção de Cristo, tornando-a uma experiência pessoal, vale dizer, bem concreta e circunstanciada. E ao atualizar a obra da salvação, o Espírito a universaliza, tornando-a uma experiência possível e, portanto, dirigida a todos os seres humanos e a cada ser humano. Pois, na verdade, toda autêntica universalização pressupõe a atualização nas mais variadas circunstâncias, como sua condição de possibilidade.

Buscando, portanto, recuperar a específica compreensão do ser humano, da história e da criação na perspectiva da fé cristã, importa ter presente algumas dimensões fundamentai s: graça/pecado, liberdade e escatologia.

A gratuidade da vida é o eixo ao redor e em torno do qual toda a vida se dá. O desígnio amoroso de Deus com relação ao ser humano é gratuito. Por livre decisão de sua vontade, Deus cria o ser humano para poder estabelecer com ele uma profunda relação de comunhão. Ainda como expressão do seu grande amor, enviou-nos Seu Filho para que, mediante o Espírito Santo, possamos participar plenamente do inaudito dom da filiação divina. Somos assim, por graça do Pai, filhos no Filho, no vigor do Espírito Santo. A história, por sua vez, é chamada a corresponder aos desígnios do Criador e Pai. O encontro com o Deus de Jesus Cristo se dá no ‘tempo’, configurando-se como uma experiência intrinsecamente histórica. As Escrituras Sagradas nomeiam a complexa trama dos eventos singulares da revelação divina no quotidiano da vida do povo eleito como ‘história da salvação’. Pelo fato de ser intrínseca e constitutivamente histórica, a experiência de Deus deve ser continuamente atualizada, em cada época e, portanto, também no aqui e agora de nossa experiência de fé.

Foi para a liberdade que Cristo nos libertou, diz enfaticamente o apóstolo Paulo. A gratuidade da relação de Deus para conosco pressupõe a nossa existência como criaturas livres. Graça e liberdade são, portanto, como que dois lados de uma mesma moeda. Deus espera que correspondamos ao seu dom de maneira livre e responsável. Não pretende que o façamos e nem constringe ninguém a fazê-lo. O amor de Deus para conosco é gratuito e, portanto, sem condições e sem reservas. Somente assim se salvaguarda a dimensão do encontro como característica fundamental da nossa relação com Deus. Este dom primordial da liberdade se revela sobretudo nas decisões humanas históricas e no seu caráter de projetualidade, bem como na sua convivência ordinária com as criaturas todas. Salvação, neste sentido, corresponde àquela específica experiência que nos é oferecida mediante o evento singular no qual Deus mesmo toma a iniciativa de se revelar, entregando-se pessoalmente a nós e comunicando-nos os desígnios de sua vontade. Esta autocomunicação se dá mediante uma sutil interpelação lançada à nossa liberdade. Por essa razão, a salvação jamais poderá ser reduzida a uma doutrina. Se a salvação é, fundamentalmente, a proposta que, na sua inusitada discrição, Deus faz aos seres humanos, então ela só pode se dar como encontro entre duas liberdades que se sentem movidas e sustentadas pelo amor recíproco. Deste modo, a salvação é uma experiência autenticamente humana e, portanto, penetra a totalidade da nossa existência atingindo aqueles nós fundamentais que constituem nossa existência enquanto tal. O ser humano criado por Deus e chamado à comunhão plena com Ele encontra-se, historicamente, sob o signo do pecado, vale dizer, da infidelidade ao projeto de Deus. O dom gratuito da filiação divina encontra em nós, na maioria das vezes, pouca acolhida e até mesmo indiferença e rejeição. Neste sentido, o pecado é expressão do mau uso que fazemos da liberdade. E suas conseqüências se fazem sentir na história e na inteira criação. O pecado, portanto, assume dimensões que vão além da simples experiência pessoal e inter-pessoal. Por esta razão, fala-se do pecado social e, mais recentemente, tem-se explicitado as características do assim chamado pecado ecológico.

Somos destinados a um final bom e reconciliador. Vocação à qual Deus nos chama, a promessa de uma vida transfigurada corresponde ao estado da plenitude da humanidade, da história e da criação agraciadas por Deus. O pecado não atrapalhou o projeto de Deus a nosso respeito e com relação à inteira criação. Em Jesus Cristo, Deus assume o nosso pecado, vale dizer, nossa infidelidade, indiferença e rejeição, e os transforma a partir de dentro. Operando uma autêntica reconversão do sentido, ele faz do pecado experiência de ressurreição e de vida nova. Este é precisamente o sentido cristão da salvação com redenção. E, deste modo, Deus leva à perfeição seu desígnio gratuito e amoroso. A genuína fé cristã professa que também a História e o Cosmos estão destinados à salvação. Emergem, assim, as reais dimensões do evento pascal de Cristo: numa direção, a que retorna às suas origens mais remotas, a história e a criação aparecem como fruto do movimento do Pai pelo Filho no Espírito Santo; noutra direção, a que avança para a plenitude de todo tempo, a história e o inteiro cosmos retornam no Espírito Santo pelo Filho ao Pai. Assim, protologia e escatologia se encontram no momento concreto e denso de significação no qual este dinamismo nos é revelado: a ressurreição do Filho unigênito, Jesus Cristo, e a efusão do Espírito Santo como primícias dos tempos derradeiros e definitivos.’


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