*Artigo
do Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor
em Teologia Sistemática
pela
Pontificia Università Antonianum, Roma.
‘Vivemos em um
mundo cada vez mais plural. E para que esta pluralidade possa ser acolhida como
desafio e chance e, assim, possa produzir seus melhores frutos, é fundamental
que criemos a consciência do respeito por cada uma das singularidades que
compõem juntas essa imensa e variegada civilização plural. A acolhida e o
respeito face a esta nova configuração plural pode se constituir, inclusive, em
uma excelente estação em que nos sentimos desafiados positivamente a
recuperarmos nossa própria singularidade em atitude dialógica e respeitosa.
Salvação, na
perspectiva cristã, não consiste, como muitos pensam, em uma doutrina hermética
acessível unicamente a alguns poucos iniciados, nem tampouco um receituário de
princípios ou de valores, nem muito menos um conjunto de mitos fundadores ou de
lendas edificantes. Esta salvação, que nos é oferecida na pessoa de Jesus
Cristo, se realiza no aqui e agora de cada pessoa e da comunidade cristã ‘no Espírito’. Na verdade, é o Espírito
Santo quem cria as condições para que este evento da nossa salvação, realizado
uma vez por todas em Jesus Cristo, possa ser recriado em todos os tempos e
lugares, como possibilidade oferecida a cada pessoa. Somente ‘no Espírito’, eu
posso experimentar que o evento pascal de Jesus Cristo se deu para a salvação
minha e de todo o gênero humano. O Espírito Santo atualiza a redenção de
Cristo, tornando-a uma experiência pessoal, vale dizer, bem concreta e
circunstanciada. E ao atualizar a obra da salvação, o Espírito a universaliza,
tornando-a uma experiência possível e, portanto, dirigida a todos os seres
humanos e a cada ser humano. Pois, na verdade, toda autêntica universalização
pressupõe a atualização nas mais variadas circunstâncias, como sua condição de
possibilidade.
Buscando,
portanto, recuperar a específica compreensão do ser humano, da história e da
criação na perspectiva da fé cristã, importa ter presente algumas dimensões
fundamentai s: graça/pecado, liberdade e escatologia.
A gratuidade da
vida é o eixo ao redor e em torno do qual toda a vida se dá. O desígnio amoroso
de Deus com relação ao ser humano é gratuito. Por livre decisão de sua vontade,
Deus cria o ser humano para poder estabelecer com ele uma profunda relação de
comunhão. Ainda como expressão do seu grande amor, enviou-nos Seu Filho para
que, mediante o Espírito Santo, possamos participar plenamente do inaudito dom
da filiação divina. Somos assim, por graça do Pai, filhos no Filho, no vigor do
Espírito Santo. A história, por sua vez, é chamada a corresponder aos desígnios
do Criador e Pai. O encontro com o Deus de Jesus Cristo se dá no ‘tempo’, configurando-se como uma
experiência intrinsecamente histórica. As Escrituras Sagradas nomeiam a
complexa trama dos eventos singulares da revelação divina no quotidiano da vida
do povo eleito como ‘história da salvação’.
Pelo fato de ser intrínseca e constitutivamente histórica, a experiência de
Deus deve ser continuamente atualizada, em cada época e, portanto, também no
aqui e agora de nossa experiência de fé.
Foi para a
liberdade que Cristo nos libertou, diz enfaticamente o apóstolo Paulo. A
gratuidade da relação de Deus para conosco pressupõe a nossa existência como
criaturas livres. Graça e liberdade são, portanto, como que dois lados de uma
mesma moeda. Deus espera que correspondamos ao seu dom de maneira livre e responsável.
Não pretende que o façamos e nem constringe ninguém a fazê-lo. O amor de Deus
para conosco é gratuito e, portanto, sem condições e sem reservas. Somente
assim se salvaguarda a dimensão do encontro como característica fundamental da
nossa relação com Deus. Este dom primordial da liberdade se revela sobretudo
nas decisões humanas históricas e no seu caráter de projetualidade, bem como na
sua convivência ordinária com as criaturas todas. Salvação, neste sentido,
corresponde àquela específica experiência que nos é oferecida mediante o evento
singular no qual Deus mesmo toma a iniciativa de se revelar, entregando-se
pessoalmente a nós e comunicando-nos os desígnios de sua vontade. Esta
autocomunicação se dá mediante uma sutil interpelação lançada à nossa liberdade.
Por essa razão, a salvação jamais poderá ser reduzida a uma doutrina. Se a
salvação é, fundamentalmente, a proposta que, na sua inusitada discrição, Deus
faz aos seres humanos, então ela só pode se dar como encontro entre duas
liberdades que se sentem movidas e sustentadas pelo amor recíproco. Deste modo,
a salvação é uma experiência autenticamente humana e, portanto, penetra a
totalidade da nossa existência atingindo aqueles nós fundamentais que
constituem nossa existência enquanto tal. O ser humano criado por Deus e
chamado à comunhão plena com Ele encontra-se, historicamente, sob o signo do
pecado, vale dizer, da infidelidade ao projeto de Deus. O dom gratuito da filiação divina encontra em nós, na maioria das
vezes, pouca acolhida e até mesmo indiferença e rejeição. Neste sentido, o
pecado é expressão do mau uso que fazemos da liberdade. E suas conseqüências se
fazem sentir na história e na inteira criação. O pecado, portanto, assume
dimensões que vão além da simples experiência pessoal e inter-pessoal. Por esta
razão, fala-se do pecado social e, mais recentemente, tem-se explicitado as
características do assim chamado pecado ecológico.
Somos destinados a
um final bom e reconciliador. Vocação à qual Deus nos chama, a promessa de uma
vida transfigurada corresponde ao estado da plenitude da humanidade, da
história e da criação agraciadas por Deus. O pecado não atrapalhou o projeto de
Deus a nosso respeito e com relação à inteira criação. Em Jesus Cristo, Deus
assume o nosso pecado, vale dizer, nossa infidelidade, indiferença e rejeição,
e os transforma a partir de dentro. Operando uma autêntica reconversão do
sentido, ele faz do pecado experiência de ressurreição e de vida nova. Este é
precisamente o sentido cristão da salvação com redenção. E, deste modo, Deus
leva à perfeição seu desígnio gratuito e amoroso. A genuína fé cristã professa
que também a História e o Cosmos estão destinados à salvação. Emergem, assim,
as reais dimensões do evento pascal de Cristo: numa direção, a que retorna às
suas origens mais remotas, a história e a criação aparecem como fruto do
movimento do Pai pelo Filho no Espírito Santo; noutra direção, a que avança
para a plenitude de todo tempo, a história e o inteiro cosmos retornam no
Espírito Santo pelo Filho ao Pai. Assim, protologia e escatologia se encontram
no momento concreto e denso de significação no qual este dinamismo nos é
revelado: a ressurreição do Filho unigênito, Jesus Cristo, e a efusão do
Espírito Santo como primícias dos tempos derradeiros e definitivos.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.domtotal.com/noticia/1119369/2017/01/o-ser-humano-a-historia-e-a-criacao-a-luz-da-fe-crista/
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