*Artigo
de Fernando Félix,
Jornalista
As sete obras de misericórdia
corporais são o tema de uma pintura do pintor italiano Michelangelo Merisi da
Caravaggio, do final de 1606. O quadro encontra-se no altar da Igreja Pio Monte
della Misericordia, numa estreita rua do centro histórico de Nápoles.
‘Em 1597, o
cardeal italiano Roberto Belarmino escreveu um catecismo em que defendia um
retorno aos valores mais puros do Evangelho e, nesse espírito, recomendava a
prática de obras de caridade como um meio de expiação dos pecados e de elevação
espiritual. Em consequência, uma das missões da Igreja seria a promoção e a
prática das obras de misericórdia, para ser uma Igreja mais acolhedora dos
desamparados. Os pobres eram, na retórica religiosa oficial, considerados a
imagem terrena de Jesus Cristo, o redentor sofredor.
Nesse contexto, em
1601, nasceu em Nápoles a irmandade Pio Monte della Misericordia,
fundada por sete jovens nobres piedosos que se dedicavam a cuidar dos pobres.
Cinco anos mais tarde, eles encomendam ao grande mestre da pintura
renascentista Michelangelo Caravaggio sete quadros, cada um dedicado a uma obra
de misericórdia corporal. Todavia, Caravaggio optou por reunir as sete obras
numa única tela. E completou a sua maior obra – tem quase quatro metros de
altura e mais de dois metros e meio de largura – em menos de quatro meses.
Entregou-a a 9 de Janeiro de 1607.
Mendigo e guardião da
misericórdia
Michelangelo
Merisi nasceu em 1571, na pequena cidade de Caravaggio, no Norte de Itália, de
onde colheu o seu apelido. O seu pai, Fermo Merisi, era administrador e arquiteto-decorador
do marquês de Caravaggio.
Tinha 6 anos
quando a peste bubônica matou o seu pai e praticamente todos os homens da
família. Por causa disso, cresceu buliçoso e o temperamento conflituoso nunca o
abandonou. Teve inúmeros confrontos com a polícia e viveu os últimos anos da
sua vida como fugitivo da justiça, mudando constantemente de cidade. Morreu com
apenas 38 anos, em circunstâncias nunca esclarecidas, a caminho de Roma,
levando consigo três quadros.
Caravaggio era
talentoso. Era dono de uma técnica apurada. Tornou-se famoso por pintar diretamente
sobre as telas sem esboços preliminares. Pintava tanto cestos com frutas quanto
pessoas. Usava o contraste entre luzes e sombras para transmitir maior
realismo. No entanto, foi nas pinturas religiosas que lhe encomendavam que ele
encontrou a sua verdadeira vocação, assim como a fama. As suas pinturas A Vocação de São Mateus e O Martírio de São Mateus, por exemplo,
fizeram dele, por volta de 1600, o artista mais imitado na Itália, mas também o
mais polémico, por causa do naturalismo com que abordava as paisagens bíblicas
e que o clero não via com bons olhos. O ser humano era analisado e representado
a partir do seu lado animalesco, da sua agressividade e das suas
características fisiológicas e naturais. O homem e a mulher são apenas um fruto
da Natureza.
Havia,
simultaneamente, teatralidade nos seus quadros. Na Crucificação de São Pedro e na Conversão
de São Paulo imprimiu uma intensa ação dramática.
Também a sua
espiritualidade era intensa e crítica. Socialmente, os ricos tudo faziam para
banir os pobres. Diziam que estes eram capazes de todos os crimes. Metiam-nos
em asilos, por exemplo. Mas Caravaggio tinha o hábito de retratar as cenas com
mendigos comuns : os seus santos são camponeses, os seus anjos assemelham-se às
crianças das ruas de Nápoles. Também abundam bispos e cardeais representados. «O que Caravaggio faz é trazer os homens e
mulheres comuns para dentro de suas pinturas e torná-los sagrados», diz o
escritor norte-americano Terence Ward na obra dedicada ao autor italiano, The Guardian of Mercy : How an Extraordinary
Painting by Caravaggio Changed an Ordinary Life Today [O Guardião da
Misericórdia : Como a Extraordinária Pintura de Caravaggio Muda a Vida
Quotidiana, em tradução livre].
As sete obras de
misericórdia
A obra de
misericórdia «enterrar os mortos» [1]
é retratada ao fundo, à direita, com o transporte de um cadáver de que se vêem
apenas os pés. Quem o leva é um diácono que segura uma tocha.
As obras de
misericórdia «visitar os presos» [2]
e «dar de comer a quem tem fome» [3]
são representadas num único episódio, do lado direito da tela, retirado do
livro Factorum et dictorum memorabilium,
do escritor romano Valério Máximo. Cimone estava condenado a morrer à fome na
prisão, mas foi alimentado pela filha Pero, que lhe dava leite do seu peito. Em
atenção a isso, os magistrados perdoaram-lhe a pena e ergueram no local um
templo dedicado à deusa Misericórdia. No mesmo sítio, mais tarde foi construída
a Basílica de São Nicolau no Cárcere.
A obra de
misericórdia «vestir os nus» [4]
surge à frente, do lado esquerdo. Caravaggio usa a figura de um jovem
cavaleiro, que representa São Martinho de Tours a dar de presente o seu manto
ao homem nu. À esquerda do homem nu está outro homem, um paralítico, também
associado a São Martinho de Tours, em cuja biografia se refere a prática de «visitar os doentes» [5].
A obra de
misericórdia «dar de beber a quem tem
sede» [6] é retratada a meio da faixa esquerda da tela, no homem que bebe
água servindo-se de uma mandíbula de burro. Esta cena evoca o episódio bíblico
em que Sansão, depois de derrotar os filisteus lutando com uma queixada de
jumento (Jz 15, 18-19), bebe água no deserto graças a um milagre do Senhor.
A obra de
misericórdia «dar pousada aos peregrinos»
[7] é sintetizada em duas figuras na faixa esquerda da tela : um
estalajadeiro de pé aponta para o exterior a outro homem que ostenta uma concha
no chapéu, símbolo do peregrino de Santiago de Compostela.
A figura de Maria
com uma criança ao colo e o seu manto que desce em direção ao homem nu aludem
ao papel da Igreja na promoção e prática das obras de caridade.
Os anjos
simbolizam a Graça divina que inspira as obras de misericórdia. E a sua sombra
projetada na parede indica que é algo concreto, que tem uma aplicação terrena.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
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