Deus respeita a liberdade de cada ser humano
*Artigo
de Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor
em Teologia Sistemática
pela
Pontificia Università Antonianum, Roma.
Deus e ser humano se encontrem em uma
situação de contínua competição.
‘As várias
vertentes do ateísmo dos séculos XIX e XX, na sua quase totalidade, comungam de
um mesmo pressuposto : condição imprescindível para a afirmação do humano é a
expulsão de Deus da própria vida. Pois, na verdade, o Deus dos catecismos e das
igrejas o oprime tanto a ponto de ele se sentir sufocado e sem espaço. Convém,
pois, que o ser humano se liberte dessa situação em vistas da realização de sua
própria identidade. Acredita-se que Deus e ser humano se encontrem em uma
situação de contínua competição. Para que um se afirme, é necessário que o
outro se anule. Deste modo, o ser humano adulto e emancipado, consciente de si
e das suas ilimitadas possibilidades, emerge cada vez mais no cenário da
cultura e da história fazendo de tudo para anular a presença incômoda de Deus.
Por esta razão, em tal contexto, ser humanista implicava quase sempre em ser
ateu ou, ao menos, anti-religioso.
A grande conquista
do ser humano moderno talvez tenha sido aquela de organizar a própria vida e o
próprio destino sem ter que contar com a ajuda de Deus. O ser humano
descobriu-se como sujeito autônomo, alimentando, assim, a ilusão da própria
onipotência. Julga-se, enfim, autônomo e finalmente liberto de toda sorte de
elo que o mantinha antes preso a uma pesada corrente. A religião passa a ser
vista como uma grande corrente que o mantém enredado nas suas muitas malhas
doutrinais, rituais e míticas.
Não se pode
ignorar que muitos de nós vivemos, na prática, como se Deus não existisse. Isto
significa, em outras palavras, que Deus não participa mais de nossos projetos
pessoais e sociais. Tudo parece girar, agora, em torno de nós próprios. Tudo
parede depender ora de nossas possibilidades ora de nossos limites. Sentimo-nos
cada vez mais postos ao centro da vida e do mundo. Projetamos e construímos,
fazemos planos e os realizamos segundo nossos próprios critérios e parâmetros
sem a necessidade de recorrer a Deus.
Depois de ter
tomado consciência das potencialidades mais recônditas da própria razão, o ser
humano é capaz de solucionar os problemas mais diversos e de encontrar
respostas para as questões mais difíceis. Deus tornou-se, de fato, dispensável
e até supérfluo. Não se necessita mais da sua constante presença experimentada
como graça nem da sua generosa e gratuita providência. A providência divina
tornou-se desnecessária, uma vez que tudo, praticamente, pode ser previsto e
planejado pelo ser humano mediante cálculos cada vez mais precisos.
Quais seriam os
efeitos positivos de uma mentalidade secular que parece propor uma vida sem a
necessidade de Deus? A dificuldade maior, em tal caso, talvez resida na
pergunta pelas eventuais interpelações do Deus cristão precisamente numa
situação de aparente ausência sua. Como, em outras palavras, indagar acerca da
presença e interpelação do Deus de Jesus Cristo numa situação cultural e social
que nega formalmente a sua existência? Ou, dito em outros termos, como perceber
Deus presente numa sociedade que, na prática, vive como se Ele não existisse?
A estas
fundamentais indagações seguem outras não menos desafiadoras : Como é possível
que, na sua onipotência, Deus se deixe expulsar do mundo? Se, desde os tempos
mais remotos, Ele foi invocado como o todo-poderoso, como pode agora se revelar
como um Deus desconcertantemente fraco, que se deixa vencer pela força do ser
humano? Outros ainda se perguntam : se Deus é tão misericordioso, por que é que
Ele se retira do mundo para deixar o ser humano entregue às suas próprias
forças e ao seu inelutável destino? Por que Deus não intervém para pôr um fim a
esta situação de injustiça criada pelo ser humano na sua autonomia e impostura?
Poderíamos continuar indefinidamente com estas perguntas.
Talvez quem mais
tenha levado a sério estas questões e as tenha explicitado com invejável
lucidez seja o mártir do nazismo, o teólogo D. Bonhöffer. A este propósito, ele
assim se exprime em uma de suas cartas escritas na prisão : ‘E não podemos ser honestos sem reconhecer
que temos de viver no mundo – etsi deus non daretur. E reconhecemos justamente
isso – perante Deus! Deus mesmo nos obriga a esse reconhecimento. Assim, nossa
maioridade nos leva a um reconhecimento mais veraz de nossa situação perante
Deus. Deus nos faz saber que temos de viver como pessoas que dão conta da vida
sem Deus. O Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Mc 15,34)! O Deus
que faz com que vivamos no mundo sem a hipótese de trabalho Deus é o Deus
perante o qual nos encontramos continuamente. Perante e com Deus vivemos sem
Deus. Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz, Deus é impotente e
fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele está conosco e nos ajuda.
Em Mt 8,17 está muito claro que
Cristo não ajuda em virtude da sua onipotência, mas da sua fraqueza, do seu
sofrimento! Neste ponto reside a diferença decisiva em relação a todas as
religiões. A religiosidade do ser humano o remete, na sua necessidade ou
aflição, ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus ex machina. A Bíblia remete o
ser humano à impotência e ao sofrimento de Deus; somente o Deus sofredor pode
ajudar. Neste sentido, pode-se dizer que o desenvolvimento, acima descrito, que
levou à maioridade do mundo, através do qual se acaba com uma concepção errônea
de Deus, liberta o olhar para o Deus da Bíblia, que obtém poder e espaço no
mundo por meio de sua impotência. Este decerto será o ponto de partida da
‘interpretação mundana’’.
Em que consiste
propriamente esta ‘interpretação mundana’
ou, dito de outra forma, esta ‘interpretação
não-religiosa dos conceitos teológicos e bíblicos’? Bonhöffer a concebe
como um processo de purificação das categorias religiosas, incompreensíveis ao
ser humano adulto, emancipado e a-religioso, interlocutor privilegiado da
reflexão teológica moderna. Ele quer, para todos os efeitos, aprofundar
teologicamente o sentido escondido por detrás da expressão etsi deus non daretur (ainda que deus não existisse). A dificuldade
maior desta empresa reside precisamente no fato que tal locução não constitui,
na verdade, um novo pressuposto, mas designa, ao contrário, a eliminação de um
pressuposto considerado enfim superado : a afirmação da necessidade de Deus
para o mundo. Bonhöffer insiste em interpretar em sentido positivo esta
expressão, afirmando que Deus quer ser conhecido e encontrado não somente nas
experiências-limite e na fronteira da realidade mas sim no centro da nossa vida
e da nossa história.
Bonhöffer vê a
morte de Jesus na cruz como a confirmação da necessidade de viver no mundo etsi deus non daretur. De fato, na cruz
Deus se deixa expulsar do mundo revelando assim toda a sua impotência e
debilidade. Viver no mundo sem Deus torna-se, portanto, exigência direta da
atitude humana de honestidade não só para com o mundo, mas também para com
Deus. Assim, procurando refletir seriamente sobre o ser mesmo de Deus,
Bonhöffer não pretende ‘pensar Deus sem o
mundo’ apesar de defender a necessidade de se ‘pensar o mundo sem Deus’. Ele sublinha que apesar de ter se deixado
expulsar do mundo pelo ser humano, Deus mantém uma profunda e estreita relação
para com o mundo. Deste modo, o Deus de Jesus Cristo revela-se como Deus suportando na cruz o mundo que não o suporta a ponto de expulsá-lo.
Esta ‘interpretação não-religiosa dos conceitos
bíblicos’ permite a Bonhöffer recuperar a singularidade ontológica do Deus
de Jesus Cristo. Segundo tal perspectiva, Ele aparece como aquele que coloca em
crise a clássica alternativa entre presença e ausência. Deixando-se expulsar do
mundo e permitindo que o ser humano seja autônomo e, portanto, adulto, Deus
faz-se radicalmente presente. Tal afirmação contrasta nitidamente com a típica
atitude religiosa de fixar um lugar ‘fora
do mundo’ e ‘acima do ser humano’
para Deus. Esta concepção produziu a teoria metafísica da onipotência divina,
de um Deus presente em toda parte e, a rigor, em nenhuma parte.
Participar do
sofrimento de Deus no mundo implica em associar-se à experiência de Jesus que
morre abandonado pelo Pai sobre o lenho da cruz. Contemplar a presença/ausência
de Deus procurando, sobretudo, deslindar os traços inusitados do Seu rosto
presentes de modo singular no rosto desfigurado do Crucificado constitui a
atitude por excelência da participação do sofrimento de Deus no mundo. Na
pessoa do Crucificado, Deus se revela em sua fraqueza e sofrimento radicais,
interpelando-nos a nos fazermos solidários com Ele no mundo, a participar da
sua impotência no mundo. Tal exigência implica em uma sincera atitude de
conversão concebida como uma autêntica renúncia aos próprios problemas,
tribulações, angústias e mesmo à própria condição de pecador para deixar-se
guiar única e exclusivamente por Jesus Cristo.
Profundamente
convencido de que o Pai de Jesus Cristo não abandona jamais seus filhos, o
cristão desentranha sua singular presença para além desta sua aparente
ausência. Isto significa que a tão propalada ausência de Deus deve ser
interpretada mediante outros critérios que não aqueles geralmente utilizados.
Na verdade, é Deus quem se deixa expulsar do mundo para que o ser humano se
torne adulto e emancipado. É Ele que, de fato, se revela na sua desconcertante
fraqueza para que o ser humano se descubra forte. É Deus quem se retira do
cenário do mundo e da história para que o ser humano se torne sujeito. É Ele,
enfim, quem se deixa vencer para que o ser humano realize todas as suas
virtuais possibilidades. Por mais escandaloso que tudo isso possa parecer,
encontramo-nos frente à inusitada, porém livre, decisão paterna e amorosa de
Deus.
Deste modo, Deus
se revela não como um competidor, nem como alguém que está aí para tolher ao
ser humano a liberdade. Pelo contrário, Ele é o primeiro a se interessar pelas
criaturas humanas e, para tanto, engaja-se pessoalmente a favor do bem delas.
No entanto, ao invés de interferir de maneira brusca e repentina, violentando
desta forma a liberdade humana, Deus prefere apelar sutilmente para sua
consciência. Neste sentido, Ele não perde uma oportunidade sequer para
convencer o ser humano daqueles valores que julga serem importantes. E isto se
chama respeito pela liberdade do outro. E o que é mais importante : Deus
respeita a liberdade de cada ser humano sem, contudo, mostrar-se indiferente ou
insensível. Deus continua presente, mas sua presença é particularmente
respeitosa. Aguarda o momento justo para interpelá-lo. Não força, nem
desrespeita o ritmo de cada um. Está ali à espreita, aguardando a ocasião mais
propícia para oferecer sua proposta de diálogo e para dirigir-lhe sua
interpelação. E o faz de maneira tal a não lesar a inviolável liberdade humana.
Só um Deus concebido como autêntico Pai assume esta atitude de respeito e de
cuidado para com seus próprios filhos e filhas.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
Nenhum comentário:
Postar um comentário