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quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Uma pastoral de escuta, proximidade e acompanhamento

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Joaquim Pereira,

Missionário Comboniano

 

‘O padre Roberto Minora, com a sua paciência e bom humor, introduziu-me na realidade social de Marcos Moura, marcada pela pobreza generalizada, crescente violência e os grandes desafios que as famílias enfrentam no quotidiano da vida. Gradualmente, inseri-me nas diversas pastorais das comunidades cristãs que procuramos acompanhar com zelo, amor e compaixão, ao jeito de Jesus. Sabemos muito bem que toda a pastoral vai beber ao múnus de Cristo, isto é, ela está ligada à missão de Cristo, o Bom Pastor.

O acolhimento que recebi por parte das comunidades cristãs foi fervoroso e afetuoso. Fizeram-me sentir parte desta grande família que é o Povo de Deus. Gente simples, respeitosa e guerreira, pois a vida quotidiana é dura para a maior parte das pessoas que moram neste bairro do município de Santa Rita, Paraíba. Porém, a dureza da vida não lhes rouba a alegria de viver e a gentileza no trato com os outros.

Ação pastoral

Partindo do princípio de que a pastoral visa fundamentalmente anunciar Cristo ao mundo e colaborar no projeto humanizador do Pai, ela envolve não apenas os pastores, mas toda a comunidade cristã. Sempre acreditei no protagonismo comunitário e não individual. Também os ritmos, os métodos, o modo de se fazer as coisas são igualmente diferentes em cada situação histórica onde o Evangelho é anunciado e encarnado.

Neste breve tempo de ação pastoral que tenho vindo a realizar na paróquia de Marcos Moura, a minha atuação tem sido mais de escuta, proximidade e acompanhamento, marcada pelo anúncio do Evangelho e formação cristã. De facto, os nossos interlocutores são pessoas que já conhecem a Cristo. Os desafios pastorais apontam mais para uma ação dirigida aos cristãos cuja fé ainda é bastante superficial ou marcadamente de sabor popular. Mas sentimos também a necessidade de ir à procura da «ovelha perdida». As igrejas evangélicas que vemos amontoadas ao longo das ruas com toda a sua gritaria e intenção proselitista podem «apanhar» aqueles cristãos católicos mais desprevenidos quanto a fé e compromisso.

Nesta realidade eclesial onde estamos inseridos, em que as nossas comunidades cristãs são relativamente pequenas, temos procurado encorajar os cristãos a viverem a sua vocação na Igreja em chave missionária, incentivando-os a ter uma presença mais forte nas casas das pessoas em forma de visita planeada em que se reza o terço, se celebra a Eucaristia reunindo os cristãos residentes naquela área e outras iniciativas. Aprecio muito os passos que algumas comunidades têm dado nesta direção de «sair para a rua» no sentido de evangelizar, mas ainda há muito que fazer

Servir os mais necessitados

A ação pastoral envolve, entre outras coisas, o serviço aos necessitados, o estudo bíblico, a dimensão celebrativa que temos procurado promover nas nossas comunidades cristãs. Conscientes de que estamos inseridos numa realidade social bastante pobre, com muitas carências humanas e afetivas, o desafio de uma participação mais generosa por parte das comunidades neste serviço aos mais carenciados é cada vez mais pertinente.

A paróquia, por meio da Pastoral da Criança, realiza ações de apoio aos menores e às suas famílias vulneráveis. Temos também outras instituições de cariz social, animadas e planeadas pelos combonianos e suas respectivas equipas, que dão um apoio extraordinário aos mais desfavorecidos da população. Entre elas, destacamos : o Centro de Formação Educativo Comunitário, sob a direção das Irmãs da Divina Providência; o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Óscar Romero; o Projeto Legal, programa de apoio às crianças e adolescentes em vulnerabilidade social; a Cooperativa de Catadores de Reciclagem. 

Desafios

Sentimos a necessidade de reativar e fortalecer a pastoral juvenil, familiar e vocacional. Infelizmente, a maioria dos cristãos não mostram grande disponibilidade em assumir compromissos e, nesse sentido, há um trabalho enorme a fazer para consciencializar as pessoas e envolvê-las mais nos diversos ministérios da comunidade.

Por fim, manifesto um desejo que trago no coração : poder vislumbrar uma igreja diocesana menos clerical e mais pastoral. Posso correr o risco de estar equivocado, pois estou aqui há pouco tempo, mas é um sentimento que quero expressar de forma fraterna. Citando as palavras do Papa Francisco, tenho a impressão de que a atitude de fundo que mais aflora numa grande parte do nosso clero é de serem «clérigos de Estado» e não «pastores do povo». É um sinal evidente de que existe ainda alguma resistência em se despojar das seguranças «clericais».

   Sonho com uma pastoral de escuta, proximidade e acompanhamento, porque esta foi a prática de Jesus como parte da sua pedagogia do caminho em que Ele agia na vida das pessoas sempre a partir das suas situações concretas e existenciais, e em comunhão constante com o Pai, que O enviou como Servo de todos. Consciente das minhas limitações, desejo também fazer o mesmo caminho.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/1409/uma-pastoral-de-escuta-proximidade-e-acompanhamento/

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Melodia Suave

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Ricardo Abrahão 


‘‘Veio um furacão tão violento que despedaçava os montes e quebrava os rochedos diante do Senhor; mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento veio um terremoto; mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terremoto veio um fogo; mas o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo ouviu-se uma brisa suave.’ (1Rs 19,11-12)

Um bom músico não é aquele que faz malabarismos sonoros, os quais são consequências de questões neurológicas cognitivas. O músico que de fato faz bela arte é aquele que tem o que há de mais precioso na vida humana : a escuta! Saber escutar os sons e classificá-los é o que mais caracteriza um ouvido sensível e humilde. O ouvido humilde é simples : aceita o som como ele é.

A humanidade está se esquecendo, cada vez mais, de escutar. É preciso aprender a escutar, a investir nos processos de escuta. A Igreja – sempre mestra na escuta – transmite a nós de geração em geração um legado incalculável sobre a escuta, a música, a oração e a contemplação. Então, de imediato, surge uma pergunta : por que há tanto barulho nas igrejas? O que anda acontecendo com nossas músicas? Há um ensinamento no Evangelho que nos responde olho no olho : conhece-se uma árvore pelos frutos que ela dá.

O fruto da oração é o silêncio interior, uma melodia suave capaz de preencher todo o ser de sua própria existência como criatura legítima do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo e, por isso, Jesus diz que não somos mais servos e sim seus amigos e irmãos. Jesus é o caminho perfeito para a escuta do amor do Pai. O barulho nas igrejas é resultado da busca de um Deus na tempestade, no terremoto, no fogo. É uma tentativa vã de convencer o outro sobre a existência de um Deus que ainda não foi encontrado no silêncio interior. É preciso subir o monte da humildade como Elias, da busca, do conhecimento. 

Ao escutar melodias profundas como o canto gregoriano, os motetos de Palestrina, os sons sublimes de Bach e os tons salmódicos da Igreja, o coração humano encontra a essência do divino pulsando no peito. É preciso cantar a liturgia com o pulsar da brisa suave. Anselm Grün, em seu livro As exigências do silêncio, comenta sobre os pensamentos do mestre Eckhart dizendo ‘Em cada um de nós existe um lugarzinho onde o silêncio é completo, um lugar livre do ruído dos pensamentos, livre das preocupações e desejos. É um lugar em que nós mesmos nos encontramos inteiramente em nós. Esse lugar, que não é perturbado por nenhum pensamento, é para Eckhart o que existe de mais precioso no homem, o ponto onde o verdadeiro encontro entre Deus e o homem pode ocorrer. A esse lugar do silêncio nós precisamos avançar. Não temos necessidade de criá-lo, ele já existe, apenas está obstruído por nossos pensamentos e preocupações. Quando desobstruímos em nós esse lugar do silêncio, poderemos encontrar Deus assim como ele é’.

A única música verdadeiramente litúrgica é aquela que abre nossos corações para encontrarmos Deus assim como Ele é! Escute com amor!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/melodia-suave.html

sexta-feira, 7 de março de 2025

Liturgia monástica: O grande “hoje” de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

ex-Presidente da AIM

 

‘As poucas reflexões propostas aqui pretendem ser um convite para escolher viver hoje como o dia mais importante e real que nos é dado. Hoje, como todos os dias, tudo acontece pela força e verdade dos seres e das coisas, desde que nossas vidas estejam dispostas a acolhê-los. Como se sabe, a liturgia destaca esse ‘hodie’, esse presente que nos faz entrar no dia sem fim de Deus.

Essa proposta é feita pensando em todos aqueles que, hoje, como todos os dias desde a criação dos seres humanos, têm sede de ser, de viver, de compreender, de compartilhar, de amar, de existir intensamente em uma humanidade que clama por sua sede e desejo, sem realmente saber quais podem ser o objeto e o modo.

Primeiro, colocaremos a questão da escuta diária : ‘Hoje, se ouvirdes a minha voz’; depois a do alimento diário : ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’, e finalmente nos voltaremos para o Dia de Deus, o dia além dos dias, o dia prometido e tão desejado.

 ‘Hoje, se ouvirdes a minha voz, não permitais que se endureçam vossos corações’ (Sl 94)

Este versículo do salmo é citado no início da Regra de São Bento :

‘Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo : ‘Já é hora de nos levantarmos do sono’. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias : ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações’, (Sl 94, 8). E em outro lugar : ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas’ (Ap 2, 7). E o que ele diz? ‘Vinde, meus filhos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do Senhor’ (Sl 33, 12). ‘Correi enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos apanhem’ (Jo 12, 35).’ (Pról. 8-13).

O salmo 94 é ou era cantado todos os dias no início do Ofício de Vigílias na liturgia beneditina : é por excelência o salmo invitatório, o salmo que convida à oração com suas diferentes partes.

Primeiramente, um apelo geral ao louvor : ‘Vinde, exultemos de alegria pelo Senhor, aclamemos o Rochedo que nos salva! Avancemos para Ele com ações de graças! A Ele, nossos cânticos e aclamações!’ [1]. Em seguida, uma ação de graças pela obra da criação : ‘Ele é o grande Deus, o Senhor, o Rei, maior do que todos os deuses! Em Sua mão, as profundezas da terra; também a Ele pertencem os cumes das montanhas.  A Ele o mar, pois foi Ele que o fez, e os continentes que Suas mãos modelaram.’ Antes mesmo de ser reconhecido como o Criador de todas as coisas, o Senhor é confessado como o Deus único, o Deus grande acima de todas as grandezas, de todas as alturas. É por isso que Ele pode segurar em Sua mão todos os elementos criados, das profundezas da terra aos cumes das montanhas, em toda a extensão dos mares e continentes.

Depois, uma oração agradecida pela obra da salvação em relação direta com a caminhada no deserto e as maravilhas ali realizadas pela mão do Senhor. Esta oração é acompanhada de um convite ao arrependimento, garantia da verdadeira ação de graças : ‘Vinde, inclinemo-nos, prostremo-nos! Adoremos o Senhor que nos fez! Sim, Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz, o rebanho guiado por Sua mão... Não endureçais vossos corações como no deserto, como no dia da revolta e do desafio, quando vossos pais me desafiaram e provocaram, apesar de terem visto o que fiz!’ Esta ação de graças pela redenção e este apelo ao arrependimento estão ligados a uma nova confissão de fé : ‘Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz...’.

Por fim, o salmo termina com uma evocação da promessa feita por Deus ao homem de compartilhar Sua vida em Seu repouso eterno, no último sábado, se o coração humano não se desviar, com uma nova referência ao pecado de Israel no deserto : ‘Quarenta anos, suportei essa geração; eu disse : ‘É um povo de coração desviado; eles não querem saber dos meus caminhos’. Por isso, jurei na minha ira : ‘Jamais entrarão na terra do meu repouso!’’.

No meio desse conjunto, surge o versículo citado por São Bento : ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações!’. Portanto, neste salmo, há a dimensão da memória, a da promessa e a que dá sentido a ambas, a da atualidade cotidiana. Esta é uma das chaves da espiritualidade cristã. São Bento, seguindo a tradição monástica, é um comentarista particularmente notável.

Do que se trata? Trata-se de viver cada dia acordado. Cada manhã e cada instante do dia são um chamado feito pela voz de Deus. Este chamado só pode ser percebido por aqueles que estão atentos a ele. Aqueles que abrem os olhos e os ouvidos de seus corações para ver e ouvir ‘o que o olho não viu, o ouvido não ouviu, o que Deus preparou para aqueles que O amam’ (1 Cor 2, 9 citado por RB 4, 77). O que pode nos tornar infelizes nesta vida é estar aprisionado na ilusão dos sentidos externos. Se vejo apenas com meus olhos físicos, se ouço apenas com os ouvidos do meu corpo, ainda não vi nem ouvi nada que possa me permitir saborear a verdadeira vida.

A cada dia, a cada segundo, através dos seres e das coisas criadas, nos é dada a totalidade da existência. No entanto, muitas vezes, estamos dormindo e só sonhamos. É urgente, constantemente urgente, acordar, levantar, ressuscitar e começar a ouvir : ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações’. Este é um dos propósitos essenciais do Evangelho. Para poder ouvir, o coração precisa ser tocado, convertido, circuncidado. É preciso reler a este respeito o discurso da montanha no início do Evangelho de São Mateus. Desde o primeiro versículo do Prólogo, São Bento nos convida : ‘Escuta, inclina o ouvido do seu coração’ (Prol. 1).

Ao comentar o versículo citado do Salmo 94, a epístola aos Hebreus atualiza de maneira especialmente forte nossa relação com a Palavra de Deus, que o homem recebe para colocar em prática, a fim de poder saborear um dia o descanso de Deus : ‘Viva é a Palavra de Deus, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra até o ponto de divisão entre a alma e o espírito, entre as articulações e a medula, e pode julgar os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura invisível diante dela, mas tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas’ (Hb 4, 12-13). Nossa vida está totalmente orientada para essa perspectiva do hoje da Palavra que ocorre em nossas vidas humanas para que possamos dizer com Cristo : ‘Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura’ (Lc 4, 21)?

 ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’ (Mt 6, 11; Lc 11, 3)

Não basta inclinar o ouvido do coração e não o endurecer para ouvir o chamado do Senhor por meio de Sua Palavra diária; é também necessário aceitar receber o que o Senhor providencia para nós diariamente, de acordo com Sua vontade.

É bom aqui fazer referência à experiência de Israel no deserto. O Senhor providencia gratuitamente para a fome de Seu povo, enviando durante a noite ‘uma camada de orvalho ao redor do acampamento’. Essa camada de orvalho, uma vez evaporada pela manhã, revela na superfície do solo algo pequeno e granuloso. ‘Este é o pão que o Senhor vos deu para comer. Eis o que o Senhor ordenou : Cada um recolha conforme o que pode comer’. E Moisés lhes disse : ‘Que ninguém guarde nada para o dia seguinte’; ‘Eles recolhiam a cada manhã, cada um conforme o que podia comer, e quando o sol esquentava, aquilo derretia’ (cf. Ex 16, 13-21). O alimento diário do maná descido do céu é, portanto, um elemento-chave da espiritualidade do hoje proposto por Deus ao Seu povo.

O Evangelho de São Mateus faz um belo comentário sobre este dom do céu :

‘Não vos inquieteis pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. [...] Portanto, não vos inquieteis, dizendo : o que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? [...] Vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e tudo isso vos será dado por acréscimo. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados. A cada dia basta o seu próprio mal’ (Mt 6, 25-34).

Será que devemos levar esses textos ao pé da letra? Não, isso não é suficiente, é necessário interpretá-los. Mas também é indispensável saber viver essa entrega diária com o abandono de uma fé sempre a ser renovada. Está claro que nossa busca raramente é, em primeiro lugar, pelo Reino de Deus, e é isso que apresenta um problema. Se, como os israelitas no deserto, quisermos fazer provisões de maná, se quisermos acumular o dom de Deus, se não aceitarmos receber diariamente apenas os dons que nos são necessários, não poderemos realizar a vida de Deus neste mundo.

O discurso sobre o Pão da Vida apresenta o cumprimento desse sinal do maná. Cristo nos revela que Ele mesmo é o Pão da Vida. ‘Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; este é o pão que desce do céu, para que todo o que dele comer não pereça. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém dele comer, viverá eternamente’ (Jo 6, 49-51).

Nosso único verdadeiro alimento cotidiano é Cristo, dado para que o mundo tenha vida. Recebemos isso em Sua palavra ruminada e na oração, no pão da Eucaristia e nos sacramentos, bem como na comunhão fraterna.

Assim, ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’ só pode ser compreendido plenamente nessa relação diariamente renovada com Cristo entregue. É assim que podemos buscar o Reino e Sua justiça, é assim que podemos nos contentar com o alimento cotidiano.

Toda a vida de Cristo é assim, como relata São Lucas à sua maneira : ‘Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir’ (4, 21); após a cura do paralítico, as testemunhas exclamam : ‘Hoje, vimos prodígios’ (5, 26). ‘Eis que expulso demônios e realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia serei consumado! Mas hoje, amanhã e no dia seguinte, devo seguir meu caminho, pois não é conveniente que um profeta pereça fora de Jerusalém’ (13, 32-33). ‘Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa... Hoje, a salvação chegou nesta casa...’ (19, 5-9).

Assim, é possível nos interrogar a respeito de nosso alimento diário. Estamos realmente recebendo Cristo em primeiro lugar para cumprir a vontade de Deus, ou estamos nos preocupando com um acúmulo completamente supérfluo que não podemos levar para o túmulo? Nossa vida está sob o sinal primário da Eucaristia, com todas as suas dimensões espiritual, pessoal, comunitária e social, ou é algo particularmente vão? Aceitar receber o alimento cotidiano do Cristo é aceitar que nossos planos imediatos sejam desviados e vivê-los alegremente seguindo Jesus que sobe a Jerusalém em direção ao Seu Êxodo.

São Bento prescreve ao abade lembrar este ensinamento do Evangelho, para que não esqueça ‘não trate com mais solicitude das coisas transitórias, terrenas e caducas, negligenciando ou tendo em pouco a salvação das almas que lhe foram confiadas, mas pense sempre que recebeu almas a dirigir, das quais deverá também prestar contas. E para que não venha, porventura, a alegar falta de recursos, lembrar-se-á do que está escrito : ‘Buscai primeiro reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo’’ (RB 2, 33-35).

O Dia do Senhor

Mas o hoje real na vida dos crentes é o grande hoje de Deus que se estende por toda a história e muito além. De fato, para o Senhor, ‘mil anos são como um dia’ (Sl 89), e ‘mais vale um dia nos átrios do Senhor que mil em minha morada’ (Sl 83, 11). Este hoje de Deus é o da Sua vinda permanente. O Senhor não cessa de vir, Ele visita a Sua criação, dirige-lhe a palavra, encarna-se nela, promete a Sua vinda gloriosa quando Cristo for tudo em todos.

Assim, a Revelação bíblica está pontuada pela proclamação deste hoje de Deus que se manifesta constantemente na vida dos homens : ‘Houve uma tarde, houve uma manhã, o primeiro dia’ (Gn 1,5); ‘Este é o dia que o Senhor fez’ (Sl 117, 24); ‘Naquele dia...’incessantemente proclamado nos profetas; esta expressão não visa necessariamente uma projeção no futuro, é um anúncio do dia de hoje, onde cada um é chamado a escolher entre a vida e a morte (cf. Deuteronômio). O Evangelho de São Lucas abre-se com o anúncio da Boa Nova : ‘Hoje, na cidade de Davi, nasceu-vos um Salvador’ (Lc 2, 11), e conclui com a promessa : ‘Hoje estarás comigo no Paraíso’ (Lc 23, 43).

Mas o que expressa melhor este grande dia de Deus é o hoje da celebração litúrgica. Na liturgia latina, hodie ressoa como uma esperança extraordinária ao longo de todo o ano. O hodie mais famoso é o de Natal : ‘Hodie Christus natus est…’ – ‘Hoje, Cristo nasceu para nós; hoje, o Salvador apareceu; hoje os anjos cantam na terra, os arcanjos se alegram; hoje os justos exultam, dizendo : ‘Glória a Deus nas alturas’’ (antífona do Magnificat das II Vésperas de Natal). Essa antífona encontra sua preparação no ofício da Vigília de Natal, onde é anunciado o hoje da revelação : ‘Hoje sabereis que o Senhor virá, e amanhã vereis a sua glória’. Podemos adicionar a essa antífona de Natal a da Epifania : ‘Hodie caelesti sponso’ – ‘Hoje, a Igreja se uniu ao seu Esposo celeste, pois Cristo a lavou de seus pecados no Jordão; os Magos correm com seus presentes para as núpcias reais, e os convivas se alegram com a água transformada em vinho’ (antífona do Benedictus das Laudes da Epifania). A antífona do Magnificat das II Vésperas  retoma esse tema : ‘Hoje, a estrela guiou os Magos até o presépio; hoje, a água se transformou em vinho no festim nupcial; hoje, no Jordão, Cristo quis ser batizado por João, para nos salvar’. No mesmo espírito, a antífona do Magnificat das II Vésperas de Pentecostes anuncia o Mistério atualizado neste dia : ‘Hoje se completaram os dias de Pentecostes; hoje, o Espírito Santo apareceu aos discípulos sob a forma de fogo e derramou sobre eles dons misteriosos; ele os enviou pelo mundo para pregar e testemunhar. Aqueles que crerem e forem batizados serão salvos’. No meio de tudo isso, há obviamente o domingo de Páscoa e o Tempo Pascal, onde ressoa o ‘Haec dies quam fecit Dominus’ tirado do Salmo 117, 24, o salmo pascal por excelência : ‘Este é o dia que o Senhor fez, exultemos e alegremo-nos nele’. Este dia é o Dia dos dias : o verdadeiro hoje da vida divina. Algumas antífonas marianas recentes (8 de dezembro, 11 de fevereiro) retomaram esse tema, e a liturgia beneditina o aplicou a São Bento, Santa Escolástica e São Mauro. O domingo é o grande Dia do Senhor, ao mesmo tempo o primeiro dia da criação, assim como da redenção na ressurreição de Cristo, e o oitavo dia, dia além dos dias, dia de Deus transfigurando todas as coisas, dia de sua vinda. O sacramental do domingo é verdadeiramente de grande importância para a expressão da vida de Cristo. Devemos desenvolver em cada uma de nossas vidas uma espiritualidade deste cotidiano que é o hoje de Deus. É o dia do nascimento, é o dia do começo, do recomeço, é o dia da ressurreição e é também o hoje da eternidade, o dia em que as aparências desaparecem para dar lugar à realidade, o dia do discernimento, que é outro nome para o julgamento.

Ao cantar os mistérios no hoje, a liturgia faz com que eles se realizem aqui como figura. Os fiéis tornam-se assim contemporâneos dos mistérios celebrados, que tomaram forma num dia do tempo e que estão sempre atuais. Este é o verdadeiro sentido do memorial cristão.

Um velho monge de nosso mosteiro, falecido há alguns anos, viveu a última parte de sua vida na convicção de que cada manhã era domingo, e como era sacristão, ele preparava diariamente tudo o que era necessário para a liturgia dominical. Claro, esse monge idoso tinha perdido um pouco o juízo, a menos que, na verdade, tenhamos sido nós que a perdemos, e ele, nessa candura, a tenha recuperado após cerca de setenta anos de vida monástica.

Um monge do deserto do Egito, no século IV, repetia a si mesmo toda manhã : ‘Hoje, eu começo’. Que este começo nunca deixe de habitar nossa ação : assim iremos, nas palavras de Gregório de Nissa, ‘de começo em começo, por começos que não têm fim’, e é assim que chegaremos ao dia sem declínio que Deus nos oferece já em figura.

Conclusão

Não basta estabelecer alguns princípios de análise; é igualmente necessário derivar deles consequências concretas.

Será que realmente ouviremos o chamado que ressoa em nossos ouvidos vindo de Deus? Teremos o coração suficientemente receptivo para entrar no hoje da Palavra? Estamos verdadeiramente nos perguntando se estamos mantendo contato com a Palavra divina de alguma forma (leituras bíblicas e espirituais, oração, meditação, ruminação, lectio divina)? Será que nosso hoje é o advento de Deus em nós e ao nosso redor, procurando e chamando Seu operário de maneiras sempre inesperadas? Faremos da nossa vida um companheirismo cotidiano? Como partilhar o Pão de Deus com irmãos e irmãs? Como receber o maná, que é o verdadeiro Pão da Vida? É evidente que, quando sabemos que metade dos habitantes do nosso planeta morre de fome, realmente nos perguntamos onde está a oração : ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’; há, então, impossibilidade de nos tornarmos discípulos na travessia do deserto deste mundo?

Finalmente, como nossa vida testemunha o Dia além dos dias? Sabemos relativizar os bens imediatos para nos entregarmos a Deus, com a coragem de um trabalho incansável, mas desprovido da preocupação de nos promovermos? O dia de Deus é sempre um dia de julgamento, onde somos desnudados para sermos verdadeiramente o que devemos ser : simples criaturas, simples servos que se reconhecem como filhos de Deus para a eternidade. Aí está o nosso tesouro, e ‘onde está o teu tesouro, aí também estará o teu coração’ (Mt 6, 21).

‘Este é o dia que o Senhor fez; alegremo-nos, passemo-lo na alegria’ (Sl 117, 24).’

[1] As citações dos salmos são provenientes da tradução do saltério pelos monges de Ligugé, publicada em ‘Le Psautier de Ligugé’, edições Saint-Léger, 2019.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/125

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Ouvir sempre!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Ricardo Abrahão 

  

‘Todos os dias, percebo entre uma atividade e outra que a maioria tem ouvido menos, ou seja, prestado menos atenção ao potencial das palavras e ao potencial das pessoas. Ainda percebo algo mais difícil do que ouvir menos : ouvir de forma errada e deturpada. Alguns dizem ser efeito do excesso de uso das redes sociais. Não sei ainda e são muitas as causas e efeitos. Uma coisa é certa e imutável : ninguém pode se chamar cristão e não ouvir com atenção sempre buscando a forma mais esclarecida de entendimento.

O cristão deve ouvir. Ouvir de tudo! Ouvir requer silêncio e ausência de julgamentos. Ouvir exige meditação. Tudo isso é o início do exercício para chegar à compreensão e dimensão da palavra ‘misericórdia’. Ouvir o outro e entender que você não é o centro do universo e que Deus deu a cada um uma forma de escutar a vida, praticá-la e buscar suas verdades. 

Uma crise gigantesca tem assolado a palavra ‘cristianismo’. Atualmente, a Bíblia e as citações bíblicas têm sofrido uma avalanche de pseudointerpretações. Não é para menos, porque vivemos uma fase em que ouvir deixou de ser importante. Algumas colocações no Evangelho são centrais e funcionam como partituras que nos levam ao encontro do coro de Deus, pois, quem ouve a Palavra dele e a coloca em prática já encontrou o resultado imediato do amor. 

Uma vez encontrado o amor, o ouvinte torna-se cristão de verdade e absolutamente nada mais poderá tirar dele o Cristo interior, a escuta passará a ser o ponto mais importante da sua vida. Amar exige ouvir com paciência, tolerância e caridade. Não é possível amar condenando e rebaixando o outro. Se alguém deseja ser missionário, antes de mais nada terá que aprender a postura da escuta e do silêncio interior. 

Um exercício estético muito importante é ouvir música sempre. É um estado de espírito que dispõe o coração a acolher o que de melhor brotar nele e assim, por meio da arte da música, aprende-se a ouvir o outro como irmão.

Ouça sempre! Persevere na esperança! Sinta os doces acordes da vida! Busque a música que há no fundo da alma e permita que a melodia do amor toque o corpo, levando o espírito a operar em direção da mais doce caridade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/ouvir-sempre.html

sexta-feira, 12 de julho de 2024

O dom de escutar no serviço do reino de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Maurício Alves de Lucena Júnior 


A partir da fala do Papa Francisco, onde ele diz que ‘a escuta corresponde ao estilo humilde de Deus’, vamos refletir sobre como os católicos leigos podem exercer a escuta, deixando de apenas ouvir para, de fato, escutar e se compadecer com a dor do outro. Seria interessante destacar momentos na vida de Jesus em que Ele escutou o interior das pessoas, mesmo sem que elas tivessem dito algo.

Como nos fala o Salmo 40, o Senhor ‘se inclina e escuta’ o clamor de quem Nele espera. Este é um ato de humildade, que mostra ser necessária uma disposição interior para escutar com atenção e com o coração.

Em sua missão, ao anunciar a proximidade do Reino de Deus e a necessidade da verdadeira conversão, Jesus mostrou que a escuta é o primeiro passo para que grandes milagres aconteçam. Mesmo em situações em que a cura necessária poderia ser previsível, como diante do cego sentado à beira do caminho, Jesus faz questão de perguntar : ‘O que queres que eu te faça?’ (Lc 18, 41), como quem diz : ‘Fala-me o que há em teu coração, desejo escutar tuas necessidades mais urgentes!’

Mesmo quando nada lhe falavam, Jesus escutava além, pois aquele ou aquela que estava diante Dele tornava-se o alvo central de sua atenção. Ele observava tudo : o olhar, os gestos, o silêncio… Tinha por certo que nada era mais importante do que entrar na vida daquela pessoa. A pecadora caída, apresentada no Evangelho de Lucas, não diz uma palavra sequer, mas, ao banhar os pés de Jesus com suas lágrimas e secá-los com seus cabelos, é por Ele escutada e recebe o perdão, diante de tanto amor expresso, para assim recomeçar a sua vida.

Em algumas ocasiões, como no encontro com a Samaritana (Jo 4, 1-29), Ele mesmo criava o momento de escuta, seguindo até o ‘poço da vida’ de cada um para revelar sua verdade, escutando a vida escondida nas marcas, nas dores e nas lutas. O diálogo que Jesus inicia com esta mulher parece desinteressado quando lhe pede um pouco de água. Mas é justamente com essas interlocuções simples – e até banais – que Ele nos ensina algo fundamental sobre escutar com o coração : que todos têm algo a oferecer, ainda que seja um pouco de água, e que a boa escuta começa com a compreensão de quão importante é aquela pessoa que irá falar.

Santa Teresa de Calcutá nos ensina que ‘não devemos permitir que alguém saia da nossa presença sem se sentir melhor e mais feliz’. Este júbilo interior começa, certamente, com a escuta; quando, olhado nos olhos, alguém é interpelado : ‘Mas você está bem mesmo? Pode falar!’ e, na confiança fraterna, pode dizer o que se passou e o que sente diante disso.

Se olharmos nossas vivências cotidianas, perceberemos que ainda nos falta algo para este ‘escutar com o coração’. E não podemos nos prender à justificativa mais corriqueira de nossos dias : ‘Não tive tempo para escutar…’ A experiência com Cristo deve sempre nos motivar a imitar os seus gestos e seguir aquele ‘aprendei de mim’ (Mt 11, 29) que Ele nos propõe.

Como na Última Ceia, no Lava-pés (Jo 13, 1-17), Jesus nos diz hoje que é preciso fazer com os outros aquilo que Ele faz conosco. Seja no silêncio do Sacrário ou na oração pessoal no quarto, o Senhor sempre se dispõe a nos escutar. Isso para que saibamos que Ele não nos abandona, mas também para que compreendamos que, ao escutar com o coração aqueles que chegam até nós, estamos cooperando com a manifestação de seu amor que abraça toda criatura.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/o-dom-de-escutar-no-servico-do-reino-de-deus.html

terça-feira, 9 de julho de 2024

Chorus

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Ricardo Abrahão 


Liturgia e música são inseparáveis; podemos escrever páginas e páginas sobre o desenvolvimento da música por meio da liturgia católica. No dia 11 de julho, a Igreja celebra o dia de São Bento, patriarca dos monges do Ocidente e patrono de toda a Europa. São muitos os elementos que podemos levantar sobre a importância de São Bento na organização da liturgia. Destaco aqui a importância do coro. Chorus significa um círculo de pessoas, especialmente quando estão reunidas para dançar e cantar, uma importante herança da Grécia e do teatro. 

Podemos também dizer que o significado fundamental do chorus é a unidade. O cristianismo também não existe sem união e amor. Os historiadores e arqueólogos divergem, às vezes, em seus relatos sobre os primeiros cristãos, mas todos são unânimes em dizer que o chorus era a marca dos cristãos. A Palavra precisa ser ouvida, escutada, contemplada. O canto é expressão e resultado da vida interior, abrindo os ouvidos dos que desejam adentrar os acordes do cristianismo. São Bento, profundo escutador da Palavra, inicia a Santa Regra mostrando o primeiro passo ao desejoso de entrar no coro monástico : ‘Escuta, filho (…) e inclina o ouvido do teu coração’. Sinto imensa musicalidade nas primeiras letras da regra. Sem escutar e inclinar os ouvidos do coração não será possível haver unidade, oração e caridade.

A Igreja é una e deve reger a orquestra de Deus promovendo unidade. A Igreja é chorus. A liturgia não existe sem a promoção da escuta. O ouvido físico e espiritual do cristão deve ser cuidado, trabalhado e respeitado. É pelo ouvido que a Palavra entra, desperta a mente e procura o entendimento. A música é o veículo para que a diversidade inclua todos na casa do Pai, sem deixar ninguém de fora, e a maior expressão da oração em comunidade. É no coro que a escola da humildade adquire forças para cada um encontrar o que é próprio e louvar a Deus com sua vida. 

São Bento foi mestre no que acabamos de dizer e se ocupou plenamente da responsabilidade em construir e respeitar o ouvido de quem bate à porta da escola da fé : ‘Não presuma cantar ou ler, a não ser quem pode desempenhar esse ofício de modo que edifiquem os ouvintes’. Santo Agostinho dirá em outras palavras que onde há dissensão, onde há inveja, aí não existe o coro. Amar de forma cristã é escutar o Deus que há no irmão e fazer de tudo para que o mesmo Deus que há em todos se torne chorus nos lábios, na música e no abraço em comunidade. 

Que São Bento interceda por nossa escuta e nos ensine a inclinarmos melhor os ouvidos de nossos corações para cantarmos no chorus da humildade.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/chorus.html

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Escutar a voz de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Pedro Nascimento,

Leigo Missionário Comboniano


Deus conhece-nos pelo nome, chama-nos! Mas nem sempre compreendemos o que quer de nós, a que nos chama, porque passamos por situações dramáticas! Necessitamos de conhecer Deus, de O escutar, compreender o que espera de nós, o que nos pede. Tal como aconteceu com Samuel, Deus vem até nós e chama! Compreender a voz de Deus implica abertura, perceber que Deus nos ama e que nos quer bem, que nos convida à santidade.

Samuel, apesar de servir o Senhor no templo, não conhecia a Sua voz! Quantas vezes Deus nos chama, nos interpela mas não sabemos, não estamos preparados para O Escutar… São tantas as distrações, a vida familiar, o trabalho, os amigos, os nossos momentos de descanso, andamos tão absorvidos por tantos compromissos, que não existe espaço para Deus na nossa vida… Mas Ele está lá!

Apesar de Samuel não ter compreendido que Deus o chamava, o Senhor continuou a chamar e não desistiu até que Samuel compreendesse a Sua voz! Deus não desiste de ti, nem de mim! E continuará a chamar até estarmos disponíveis para O acolher no nosso coração, na nossa vida.

Depois de compreender que Deus lhe falava, a resposta de Samuel foi clara e assertiva : «Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (1 Sm 3, 10). E a sua vida foi de serviço e dedicação a Deus, sendo um profeta extremamente importante! 

Abrir o coração a Deus

Precisamos de parar! Precisamos de ‘perder tempo’ para encontrar Deus, para compreender a vontade do Senhor. Samuel encontrou Deus no templo, no silêncio, na noite. Nós necessitamos de espaços na nossa vida para O acolher, para rezar, para ler a palavra de Deus, para encontros de intimidade com Deus, em que lhe falamos da nossa vida, dos nossos problemas e das nossas alegrias, em que desabafamos as vezes em que não O compreendemos…

O testemunho de Samuel deve servir de exemplo para todos nós! Quando se escuta Deus, quando se percebe a vocação a que somos chamados, devemos seguir Deus, que não nos trata como mais um, que não nos considera dispensáveis, mas um Deus amoroso que conhece cada um pelo nome e que é capaz de guardar noventa e nove ovelhas e ir em busca de uma ovelha perdida (Mt 18, 10-14, Lc 15, 4-7). Ser chamados e amados por Deus é um dom maravilhoso, que tu e eu recebemos!

Da escuta atenta de Deus, nasce uma intimidade com Ele, no nosso coração, que nos permite viver e servir o Senhor na nossa vida, com simplicidade, generosidade e autenticidade!

Viver Deus em plenitude não significa que deixaremos de pecar, que passaremos apenas a ter qualidades ou que somos seres perfeitos! Viver Deus implica conhecê-lo, experimentá-lo, amá-lo, e saber que apesar das nossas limitações, das nossas imperfeições, Deus nos ama e nunca desiste de nós!

Na vocação de Samuel é extremamente importante compreender o papel de Ana, sua mãe, e de Eli, o sacerdote.

A sua mãe ofereceu o menino a Deus, cheia de confiança que o Amor de Deus é o maior Dom que podemos ter, um Amor tão grande que dá a Sua vida por nós! Uma mãe quer o melhor para o Seu filho quer-lhe bem! Samuel foi um dom de Deus para sua mãe e, por isso, o entregou a Deus, cumprindo a sua promessa ao Senhor.

De igual modo, Eli ajudou Samuel a escutar e a compreender a voz de Deus; com a sua sabedoria, foi um verdadeiro acompanhante espiritual para o jovem Samuel.

A vocação é um dom único e pessoal. Contudo, continuamente, Deus serve-se dos outros para nos falar! Precisamos de viver Deus em comunidade, nas nossas comunidades em que nos identificamos como irmãos e irmãs na fé; precisamos de ser luz para os outros e ajudar quem passa por nós a ir ao encontro de Deus; precisamos de testemunhar Deus com o nosso exemplo; precisamos de ver Deus nos outros, nos seus exemplos, na sua vida.

Chamados a partir

Cada um de nós, como Samuel, recebe um chamamento de Deus. Escutar a sua voz, discernir a vocação e seguir o projecto que Ele tem para nós é o que dá sentido à nossa vida e nos permite encontrar a felicidade. Assim acontece com a Maria Augusta Pires, leiga missionária comboniana, que no mês passado partiu para Moçambique e nos partilha o seu testemunho.

«Sou leiga missionária comboniana, chamo-me Maria Augusta, nasci numa família católica. O meu desejo de partir em missão começou em Agosto de 1994 ao participar numa semana missionária em Fátima. Nessa altura já tinha 39 anos. Durante essa semana ouvi testemunhos missionários fascinantes, que me cativaram muito. Conheci o padre Dário, missionário comboniano, e comecei a fazer formação para a missão.

Em Dezembro de 1997, parti para a minha primeira aventura missionária em Moçambique. Fui para a Missão de Alua na diocese de Nacala, onde tive um acolhimento excepcional de todos os missionários e do povo macua. Fui descobrindo a missão. Trabalhei sempre na escola pública, leccionando Português, e à tarde tirava dúvidas aos alunos que precisavam e queriam. As condições da maioria dos alunos eram muito precárias, tendo muitas dificuldades na aquisição dos materiais e para pagarem o que fosse preciso. Muitos deles percorriam grandes distâncias para chegarem diariamente à escola, mais ou menos 15 km e, muitos deles só tinham uma refeição diária. Aumentaram também as meninas, que começaram a estudar devido à insistência dos missionários junto das famílias.

Decorridos cinco anos, fui chamada para a missão de Mueria para ser responsável do lar feminino, com 52 meninas dos 11 aos 18 anos. Foi uma tarefa difícil, mas deveras gratificante. Conseguimos, com muita ajuda e protecão de Deus, fazer uma grande família onde havia a discussão e a zanga, mas depois existia o diálogo e o pedir perdão.

No dia 6 de Setembro de 2006, tive de voltar para Portugal a fim de leccionar o último ano antes de me reformar.

Em Fevereiro de 2008 parti outra vez, não para Mueria, mas para uma nova aventura, desta vez na República Centro-Africana. Fui, pela primeira vez, viver numa comunidade de Leigas Missionárias Combonianas, composta por uma italiana e duas portuguesas. Neste país existem dois povos : os Bantos e os Pigmeus. É com os Pigmeus que colaboramos mais, pois estes são muito pobres, marginalizados e explorados pelos Bantos. Os Pigmeus são nómadas que vivem na floresta e que, antigamente viviam daquilo que caçavam, pescavam e colhiam. Com a desflorestação, já não encontram tudo o necessário, sentindo dificuldades no acesso aos serviços básicos de saúde e de educação e a serem julgados como qualquer cidadão do país. O nosso trabalho é ajudá-los a integrarem-se na sociedade, irem ao hospital, à escola… e serem acolhidos e tratados como qualquer centro-africano.

Neste país era responsável pelas escolas da missão e quando era necessário apoiava no dispensário. Sentia grande alegria quando ia acompanhar a escola que ficava num acampamento dentro da floresta. As crianças, todas pigmeias, ficavam muito contentes com a nossa visita! Estudávamos, fazíamos jogos, cantávamos…

Em Julho de 2010, vim a Portugal de férias, mas o Senhor, mais uma vez, mudou os meus planos e permaneci até Novembro de 2015. Durante este tempo trabalhei na animação missionária em escolas e paróquias. Também cuidei da minha mãe até Deus Pai a chamar a Si.

Em 2015, voltei à missão de Mongoumba, onde servi os Pigmeus e os Bantos. Depois regressei a Portugal e nos anos de 2022 e 2023 estive em Camarate (Loures), numa missão, com crianças filhas de emigrantes africanos.

Em Março passado, parti novamente. Desta vez para Carapira, Moçambique. Sinto que Deus me chama a partir, mas não é fácil, pois ouvem-se tantas vozes a dizer para ficar. Que o Senhor me ajude a continuar a amá-Lo e servi-Lo nos irmãos mais pobres e abandonados.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/1168/escutar-a-voz-de-deus/

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Olhar

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Fernando Domingues,

Missionário Comboniano


‘​O olhar de Jesus deve ter sido fascinante. Dizemos que «os olhos são a janela da alma». Então Jesus, que na alma trazia todo o amor e a força de Deus, certamente olhava para as pessoas com essa mesma força e amor.  O que os evangelhos nos contam sobre o olhar de Jesus é bem diferente do que eu ouvia na catequese antiga, quando a catequista nos mostrava aquela imagem pendurada na parede na sacristia : um olho grande e sempre aberto, dentro de um triângulo, a lembrar que «Deus vê tudo e não há maneira de esconder dele as nossas más acções».

O olhar de Jesus é bem diferente, basta ver alguns exemplos : o seu olhar exprime sempre estima, apreciação. Revela o amor que lhe vai na alma. Como diz o Papa Francisco, comentando o encontro de Jesus com a mulher adúltera (Jo 8,1-11), «Jesus só olha de cima para baixo quando é para dar a mão e ajudar a pessoa a levantar-se».

Muitas vezes o evangelho diz que Jesus «levanta os olhos», como em Jericó, quando passou por baixo da árvore onde Zaqueu se tinha empoleirado para o ver passar : o olhar de Jesus eleva-se com o convite a «descer depressa». Zaqueu deixa de ser um simples espectador que olha de cima para baixo, e desce para fazer da sua casa um lugar de acolhimento e de fraternidade para Jesus e os seus amigos (Lc 19,1-10).

 Em outra ocasião, «uma certa pessoa» – não há nome : cada um de nós pode ver-se ali espelhado – chegou a correr e perguntou a Jesus o que podia fazer para «herdar a vida eterna» (Mc 10, 17-22). Jesus olhou para ele, e, desta vez, o olhar e as palavras de Jesus ofereceram um convite : «Se queres mesmo avançar para a plenitude da vida, vai, vende, dá aos pobres, vem e segue-me.» O olhar de Jesus não te deixa onde estás, aponta caminhos de maior doação e de felicidade.

Com outras duas mulheres, o olhar de Jesus vê os gestos que fazem e ressalta o seu imenso valor. Uma é a viúva pobre que coloca as duas moedinhas no tesouro do templo, em Jerusalém. Onde outros viam só miséria, Jesus levanta os olhos e vê a imensa generosidade : «Ela deu mais do que todos, deu tudo» (Lc 21,1-4). O outro gesto que atrai o olhar de Jesus é o da senhora que lhe «lava os pés com lágrimas, os enxuga com os cabelos e os unge com perfume precioso» (Lc 7,36-50). O fariseu que o tinha convidado olha e vê uma pecadora bem conhecida de todos. Jesus olha e vê a enorme capacidade de carinho de uma pessoa que experimentou o imenso perdão de Deus. Mateus (26, 13) acrescenta que o gesto dela será contado no mundo inteiro, onde quer que se anuncie o Evangelho. Na visão de Jesus, o gesto daquela mulher é o exemplo claro de como o perdão de Deus pode transformar a vida de uma pessoa.

Finalmente, o olhar de Jesus para Pedro, que acabava de o atraiçoar (Lc 22,61). É um olhar de verdade, de perdão, e de força para renovar a vida e o caminho. Leva Pedro a reconhecer a verdade da traição que acaba de fazer ao Mestre; saindo, ele chora amargamente.  Mas é um olhar que transmite também perdão e esperança : Pedro não desespera, arrepende-se, e com a força do perdão que sente no olhar de Jesus, voltará a escutar de novo o chamamento do Mestre que lhe diz «segue-me» e renova o compromisso concreto na missão que lhe tinha sido anunciada : «Farei de vós pescadores de homens.»’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1140/olhar/