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quarta-feira, 17 de abril de 2024

Escutar a voz de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Pedro Nascimento,

Leigo Missionário Comboniano


Deus conhece-nos pelo nome, chama-nos! Mas nem sempre compreendemos o que quer de nós, a que nos chama, porque passamos por situações dramáticas! Necessitamos de conhecer Deus, de O escutar, compreender o que espera de nós, o que nos pede. Tal como aconteceu com Samuel, Deus vem até nós e chama! Compreender a voz de Deus implica abertura, perceber que Deus nos ama e que nos quer bem, que nos convida à santidade.

Samuel, apesar de servir o Senhor no templo, não conhecia a Sua voz! Quantas vezes Deus nos chama, nos interpela mas não sabemos, não estamos preparados para O Escutar… São tantas as distrações, a vida familiar, o trabalho, os amigos, os nossos momentos de descanso, andamos tão absorvidos por tantos compromissos, que não existe espaço para Deus na nossa vida… Mas Ele está lá!

Apesar de Samuel não ter compreendido que Deus o chamava, o Senhor continuou a chamar e não desistiu até que Samuel compreendesse a Sua voz! Deus não desiste de ti, nem de mim! E continuará a chamar até estarmos disponíveis para O acolher no nosso coração, na nossa vida.

Depois de compreender que Deus lhe falava, a resposta de Samuel foi clara e assertiva : «Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (1 Sm 3, 10). E a sua vida foi de serviço e dedicação a Deus, sendo um profeta extremamente importante! 

Abrir o coração a Deus

Precisamos de parar! Precisamos de ‘perder tempo’ para encontrar Deus, para compreender a vontade do Senhor. Samuel encontrou Deus no templo, no silêncio, na noite. Nós necessitamos de espaços na nossa vida para O acolher, para rezar, para ler a palavra de Deus, para encontros de intimidade com Deus, em que lhe falamos da nossa vida, dos nossos problemas e das nossas alegrias, em que desabafamos as vezes em que não O compreendemos…

O testemunho de Samuel deve servir de exemplo para todos nós! Quando se escuta Deus, quando se percebe a vocação a que somos chamados, devemos seguir Deus, que não nos trata como mais um, que não nos considera dispensáveis, mas um Deus amoroso que conhece cada um pelo nome e que é capaz de guardar noventa e nove ovelhas e ir em busca de uma ovelha perdida (Mt 18, 10-14, Lc 15, 4-7). Ser chamados e amados por Deus é um dom maravilhoso, que tu e eu recebemos!

Da escuta atenta de Deus, nasce uma intimidade com Ele, no nosso coração, que nos permite viver e servir o Senhor na nossa vida, com simplicidade, generosidade e autenticidade!

Viver Deus em plenitude não significa que deixaremos de pecar, que passaremos apenas a ter qualidades ou que somos seres perfeitos! Viver Deus implica conhecê-lo, experimentá-lo, amá-lo, e saber que apesar das nossas limitações, das nossas imperfeições, Deus nos ama e nunca desiste de nós!

Na vocação de Samuel é extremamente importante compreender o papel de Ana, sua mãe, e de Eli, o sacerdote.

A sua mãe ofereceu o menino a Deus, cheia de confiança que o Amor de Deus é o maior Dom que podemos ter, um Amor tão grande que dá a Sua vida por nós! Uma mãe quer o melhor para o Seu filho quer-lhe bem! Samuel foi um dom de Deus para sua mãe e, por isso, o entregou a Deus, cumprindo a sua promessa ao Senhor.

De igual modo, Eli ajudou Samuel a escutar e a compreender a voz de Deus; com a sua sabedoria, foi um verdadeiro acompanhante espiritual para o jovem Samuel.

A vocação é um dom único e pessoal. Contudo, continuamente, Deus serve-se dos outros para nos falar! Precisamos de viver Deus em comunidade, nas nossas comunidades em que nos identificamos como irmãos e irmãs na fé; precisamos de ser luz para os outros e ajudar quem passa por nós a ir ao encontro de Deus; precisamos de testemunhar Deus com o nosso exemplo; precisamos de ver Deus nos outros, nos seus exemplos, na sua vida.

Chamados a partir

Cada um de nós, como Samuel, recebe um chamamento de Deus. Escutar a sua voz, discernir a vocação e seguir o projecto que Ele tem para nós é o que dá sentido à nossa vida e nos permite encontrar a felicidade. Assim acontece com a Maria Augusta Pires, leiga missionária comboniana, que no mês passado partiu para Moçambique e nos partilha o seu testemunho.

«Sou leiga missionária comboniana, chamo-me Maria Augusta, nasci numa família católica. O meu desejo de partir em missão começou em Agosto de 1994 ao participar numa semana missionária em Fátima. Nessa altura já tinha 39 anos. Durante essa semana ouvi testemunhos missionários fascinantes, que me cativaram muito. Conheci o padre Dário, missionário comboniano, e comecei a fazer formação para a missão.

Em Dezembro de 1997, parti para a minha primeira aventura missionária em Moçambique. Fui para a Missão de Alua na diocese de Nacala, onde tive um acolhimento excepcional de todos os missionários e do povo macua. Fui descobrindo a missão. Trabalhei sempre na escola pública, leccionando Português, e à tarde tirava dúvidas aos alunos que precisavam e queriam. As condições da maioria dos alunos eram muito precárias, tendo muitas dificuldades na aquisição dos materiais e para pagarem o que fosse preciso. Muitos deles percorriam grandes distâncias para chegarem diariamente à escola, mais ou menos 15 km e, muitos deles só tinham uma refeição diária. Aumentaram também as meninas, que começaram a estudar devido à insistência dos missionários junto das famílias.

Decorridos cinco anos, fui chamada para a missão de Mueria para ser responsável do lar feminino, com 52 meninas dos 11 aos 18 anos. Foi uma tarefa difícil, mas deveras gratificante. Conseguimos, com muita ajuda e protecão de Deus, fazer uma grande família onde havia a discussão e a zanga, mas depois existia o diálogo e o pedir perdão.

No dia 6 de Setembro de 2006, tive de voltar para Portugal a fim de leccionar o último ano antes de me reformar.

Em Fevereiro de 2008 parti outra vez, não para Mueria, mas para uma nova aventura, desta vez na República Centro-Africana. Fui, pela primeira vez, viver numa comunidade de Leigas Missionárias Combonianas, composta por uma italiana e duas portuguesas. Neste país existem dois povos : os Bantos e os Pigmeus. É com os Pigmeus que colaboramos mais, pois estes são muito pobres, marginalizados e explorados pelos Bantos. Os Pigmeus são nómadas que vivem na floresta e que, antigamente viviam daquilo que caçavam, pescavam e colhiam. Com a desflorestação, já não encontram tudo o necessário, sentindo dificuldades no acesso aos serviços básicos de saúde e de educação e a serem julgados como qualquer cidadão do país. O nosso trabalho é ajudá-los a integrarem-se na sociedade, irem ao hospital, à escola… e serem acolhidos e tratados como qualquer centro-africano.

Neste país era responsável pelas escolas da missão e quando era necessário apoiava no dispensário. Sentia grande alegria quando ia acompanhar a escola que ficava num acampamento dentro da floresta. As crianças, todas pigmeias, ficavam muito contentes com a nossa visita! Estudávamos, fazíamos jogos, cantávamos…

Em Julho de 2010, vim a Portugal de férias, mas o Senhor, mais uma vez, mudou os meus planos e permaneci até Novembro de 2015. Durante este tempo trabalhei na animação missionária em escolas e paróquias. Também cuidei da minha mãe até Deus Pai a chamar a Si.

Em 2015, voltei à missão de Mongoumba, onde servi os Pigmeus e os Bantos. Depois regressei a Portugal e nos anos de 2022 e 2023 estive em Camarate (Loures), numa missão, com crianças filhas de emigrantes africanos.

Em Março passado, parti novamente. Desta vez para Carapira, Moçambique. Sinto que Deus me chama a partir, mas não é fácil, pois ouvem-se tantas vozes a dizer para ficar. Que o Senhor me ajude a continuar a amá-Lo e servi-Lo nos irmãos mais pobres e abandonados.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/1168/escutar-a-voz-de-deus/

terça-feira, 28 de setembro de 2021

A voz inata da consciência

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Vanderlei de Lima, 

eremita na Diocese de Amparo, BA

 

‘Este artigo traz três eloquentes testemunhos sobre a voz da consciência a falar em nós nos mais diversos momentos. Estão em nosso livro Obedecer antes a Deus que aos homens : a objeção de consciência como um direito humano fundamental, da Cultor de Livros, 2021, p. 41-43. 

1. A sós no consultório médico

Na noite escura, o curioso entra em um consultório médico vazio a fim de tentar ver alguns fichários de pacientes. Eis, porém, que, no mais profundo do seu ser, algo parece dizer-lhe : ‘Você é responsável por uma ação má!’. Daí, nasce sua interessante reflexão : ‘Dizia que me sinto responsável! Mas diante de quem? Não perante as paredes, nem perante o gato que me contemplava solenemente, quando eu percorria o fichário do médico. Só posso ser responsável diante de uma pessoa. Então dirá alguém :…diante da sociedade. Ou, mais precisamente, diante das pessoas com as quais convivo. Elas têm confiança em mim; tratam-me como um tipo leal e correto. Ora, eu já não sou o que elas pensam. Sinto que há um desnível entre o que parece ser e o que realmente sou. Isto me incomoda. Preciso ser autêntico, isto é, idêntico à imagem que a sociedade tem de mim…’. 

Sem dúvida! Mas por que é que outro homem – ou o conjunto dos outros homens – tem o poder de me constranger a ser autêntico, a ser aquilo que eu pareço ser? – talvez porque a sociedade está baseada na confiança mútua e na preocupação de não se fazer a outrem o que não quer para si mesmo? Sim; não há dúvida. Mas não basta isso. Não poderia eu simplesmente evitar as más impressões e os escândalos do meu comportamento externo? Bastaria, para tanto, que eu me dissimulasse sobre a hipocrisia. E, no caso preciso em que me vejo, não bastaria que, após ter devassado indiscretamente o fichário do médico, eu guardasse com zelo o segredo violado?’ 

Talvez pudesse, sim, salvar desse modo hipócrita as aparências de honestidade. Mas reconheço que isto não me satisfaça. Ainda que os homens me aprovassem ou me deixassem passar impune, eu ouviria dentro de mim uma voz de censura severa. Não seria a voz dos homens, nem seria uma voz premeditada por mim, mas seria uma voz anterior a qualquer deliberação minha : seria a chamada ‘voz da consciência’’ (Trecho adaptado do livro J. Javaux, Prouver Dieu, p. 60-62, apud Dom Estêvão T. Bettencourt. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1994, p. 206).

2. É Deus quem fala

A consciência moral não é algo que o homem cria ou suscita dentro de si. É algo de congênito, que começa a falar desde que a criança chega ao uso da razão. Às vezes, o criminoso quisera extingui-la ou sufocá-la, porque ela remorde dolorosamente à revelia do sujeito. Por isto se diz que é a voz de Deus no íntimo de cada indivíduo, ou melhor : é a prolongação da lei eterna ou do amor ao bem que existe em Deus desde toda a eternidade e que, à semelhança de um raio de luz, vem atingir cada ser humano, a fim de orientá-lo na terra’ (Dom Estêvão T. Bettencourt. Curso de Teologia Moral. Rio de Janeiro, 1986, p. 27).

3. O alerta interior

Em linguagem jovial, testemunha Elisa Hulshof : ‘Minha consciência é a voz que berra incansavelmente nos meus ouvidos, é a que me mantém inquieta, é a que me culpa por não fazer nada, por fazer tão pouco, por estar indolente. É quem me deixa arrependida e envergonhada de mim mesma. É a razão que me sacode sem rodeios, sem papas na língua, tão clara e tão sensata que chega a ser cômica. Eu rio frequentemente comigo mesma e tenho orgulho, não de mim, mas da minha consciência, tão lúcida e tão fervorosa que é lastimável eu não obedecer-lhe mais frequentemente. Mas ela não se cala, e eu não posso estar nunca acomodada. Quando me distraio e caio, preciso me levantar rápido para não continuar a ouvi-la gritar em minha cabeça. Quando estou acomodada, preciso me remexer para não ouvir as barbaridades rudes que ela despeja sobre mim’ (A cor do trigo. São Paulo : Cultor de Livros, 2013, p. 122-123).

Queira, pois, ler com atenção o livro Obedecer antes a Deus que aos homens. Seu conteúdo é importantíssimo para os nossos dias.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/09/26/a-voz-inata-da-consciencia/ 

sexta-feira, 30 de abril de 2021

A voz da Palavra: um breve ensaio sobre a sacramentalidade da voz

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Daniel Reis


‘Concorde ao princípio da Encarnação, onde Deus se fez acessível à nossa humanidade para nos salvar, o escopo de todo e qualquer sacramento é comunicar-nos essa salvação por Ele oferecida através de sinais sensíveis à nossa condição humana. Um desses sinais sacramentais, componente da estrutura simbólico-ritual da Liturgia, é a voz.

A voz é o elemento sensível que embala a Palavra de Deus proclamada, cantada e rezada. Como som que é, toda voz aspira a tornar-se palavra, a ganhar forma e sentido, contribuindo ou prejudicando para a manifestação do conteúdo da fala ou do significado das palavras. Como afirmava Santo Agostinho em um de seus sermões : ‘Suprime a palavra; o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.’ (Sermo 293).

Especialmente para a fé cristã, a voz deve estar sempre a serviço da Palavra divina e, com ela, em perfeita simbiose, a fim de ultrapassar seu caráter informativo e alcançar o seu condão performativo, ou seja, sua força transformadora, animadora, libertadora e salvadora. Com o auxílio da voz, pode-se potencializar a eficácia sacramental da proclamação da Palavra de Deus, para que ela seja, efetivamente, Palavra da Salvação.

Nesse sentido, voltando ao sermão do bispo de Hipona, encontramos : ‘O som da voz te faz entender a palavra; e quando te fez entendê-la, esse som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração’. Assim, no âmbito pastoral-ministerial, deve-se dar a máxima importância aos gêneros literários da Sagrada Escritura, bem como aos gêneros musicais e oracionais (suplicante, laudatório, penitencial, etc.), para que através de um adequado revestimento vocal das leituras, da música e das orações, as vozes contribuam para uma fecunda comunicação da Palavra à assembleia litúrgica, fazendo com que, mesmo depois de passada a voz, permaneça gravada no coração do ouvinte a Palavra que não passa (cf. Mt 24,35).

A responsabilidade da qualidade comunicacional da Palavra pela voz não recai somente sobre o aspecto vocal, uma vez que dependerá também de uma boa e dócil acolhida por parte dos interlocutores. E aqui reside uma grande dificuldade : o Povo de Deus, de ontem e de hoje, ‘é um povo de cabeça dura’ (Ex 32,9), de ‘dura cerviz e incircuncisos de coração e ouvido’ (At 7,51). Por isso o tema da ‘escuta’ nas Sagradas Escrituras é frequente, seja para denunciar a ‘surdez’, seja para exaltar a audição atenta.

No Monte Sinai, Deus instrui Moisés : ‘Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos.’ (Ex 19,5). Assim, por diversas vezes, Moisés, a mando do Senhor, dirige-se ao povo clamando : ‘Escuta ('Shemá'), ó Israel, as normas que eu hoje proclamo aos vossos ouvidos!’ (Dt 5,1. 6,3. 4,1). O profeta Jeremias se revolta com os ‘ouvidos fechados’ do povo, dizendo : ‘A quem falarei, para que ouça? Eis que seus ouvidos estão incircuncisos e não podem ouvir!’ (Jr 6,10). Por outro lado, o profeta Samuel, na narrativa de sua vocação, responde confiante : ‘Fala, Senhor, que o teu servo te escuta.’ (1Sm 3,10). Neemias, narrando uma autêntica Liturgia da Palavra em seu tempo, detalha a atitude da assembleia ali formada : ‘[...] Então o sacerdote Esdras leu o livro da Lei de Moisés desde a aurora até o meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e dos que tinham o uso da razão. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei.’ (Ne 8,3).

Nos evangelhos, a temática também está ‘na boca’ de Jesus. Quando avisado da chegada de sua família, responde a seus discípulos : ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática!’ (Lc 8,21). Anunciando as bem-aventuranças, apresenta a maior delas : ‘Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam.’ (Lc 11,28). Sobre a maior prudência humana, diz : ‘Todo aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática são como o homem prudente que constrói sua casa sobre a rocha.’ (Mt 7, 24). Sobre nossa pertença e filiação a Deus, Jesus exclama : ‘Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus.’ (Jo 8,47). Temos também o que parece ser um bordão utilizado por Jesus : ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!’ (Mc 4,23; Mt 11,15).

Ainda no Novo Testamento, encontramos no episódio da Transfiguração a voz do Pai que sai da nuvem mandando ouvir o Filho muito amado (cf. Mc 9,7). Também Paulo, em sua carta aos romanos, onde assevera : ‘A fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a Palavra de Cristo.’ (Rm 10,17).

O lugar por excelência onde escutamos a voz de Deus, na Palavra que é Cristo, falada sob o fôlego do Espírito, é a Liturgia. Assim afirmou o papa Bento XVI : ‘Considerando a Igreja como 'casa da Palavra', deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia Sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida : fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.’ (Verbum Domini, nº 52).

A Liturgia, assim, é o especial e primeiro locus theologicus, porque nela escutamos, sacramentalmente, o próprio Cristo se dirigir a nós, ‘pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura’, bem como ‘quando a Igreja reza e canta’ (Sacrosanctum Concilium, nº 7). É nela que podemos e devemos escancarar os ouvidos do coração para escutarmos a voz do nosso amado (cf. Ct 2,8), a voz do nosso Pastor (cf, Jo 10,3-4), para que a Palavra se faça carne em nós, e assim possamos anunciá-la ao mundo, reverberando nele o amor do Verbo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1513321/2021/04/a-voz-da-palavra-um-breve-ensaio-sobre-a-sacramentalidade-da-voz/ 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

7 dicas sobre o que ouvir na oração: a voz de Deus ou a minha?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre James Martin, SJ

Tradução : Ramón Lara


‘Não faz muito tempo, uma mulher veio até mim pedindo orientação espiritual. Como a maioria dos acompanhantes espirituais faz, comecei estabelecendo algumas diretrizes : a frequência dos encontros, o horário e a finalidade.

Então perguntei o que esperava no acompanhamento espiritual. A primeira coisa que disse foi : ‘Quero ajuda para entender o que está vindo de Deus e o que está vindo de mim’ – ela apontou para a cabeça – ‘daqui’.

Como essa mulher percebeu, nem tudo que chega em sua cabeça vem diretamente de Deus. É claro que toda oração é mediada por nossa consciência, mas quando digo : ‘O que vem de Deus e o que vem de mim?’ a maioria das pessoas sabe do que estou falando. Há uma diferença entre a voz de Deus e nossa voz.

Digamos que você esteja orando sobre a Multiplicação dos Pães e dos Peixes, a história do Evangelho em que Jesus alimenta uma imensa multidão com apenas alguns pães e poucos peixes. Você chega à frase ‘pães e peixes’ e a palavra ‘peixe’ acerta você. Você se lembra de uma refeição ruim que teve na semana passada em um restaurante de frutos do mar. Você ainda não tem certeza se foi uma intoxicação alimentar, mas definitivamente veio daquele prato com salmão. Sua mente divaga e você promete para você mesmo que nunca mais voltará ao restaurante.

Depois de um tempo, você pensa : O que Deus está me dizendo aqui? Não devo seguir Jesus? Seguir Jesus de alguma forma vai me deixar doente?

Em resposta, diria que isso provavelmente é algo que surgiu em sua mente e pode não existir nenhuma mensagem profunda aqui. Provavelmente é uma distração.

Agora imagine que você está orando com a mesma passagem e algo diferente surge. Você deseja se sentar e comer com Jesus. Não simplesmente por fome física, mas pelo desejo de estar com ele. Você imagina como seria bom passar um tempo com ele, como um companheiro. Você nunca pensou sobre o que significaria fazer uma refeição com Jesus, e então você se lembra de uma comida com seu amado avô quando era mais jovem. Ele sempre foi tão gentil e ouviu você com muita atenção, como se você fosse a única pessoa no mundo, mesmo sendo apenas uma criança. Seu avô fez você se sentir especial e amado. Você o vê como uma figura de sabedoria real.

Estranhamente, você começa a pensar em Jesus da mesma forma que pensa em seu avô – alguém com quem você gostaria de estar, alguém que o ama.

Essa segunda memória soa diferente da primeira, não é? Então, o que distingue os dois? Como posso discernir o que vem de Deus e o que vem de mim? O que é uma distração e o que não é? Ou talvez uma maneira melhor de colocar isso seja : Em que devo prestar atenção?

Sendo mais claro : não há uma maneira de discernir essas coisas, e o que ofereço aqui são apenas algumas perguntas a se fazer nessas situações, que considero úteis em minha própria vida e em ajudar outros em suas orações.

Primeiro, o ‘espírito maligno’ está envolvido?

Vamos voltar ao pensamento sobre aquele pedaço de peixe ruim. Se isso lhe causa ansiedade, perturba seu espírito ou afasta você de sua oração, pode realmente não ser simplesmente uma distração, mas o que Santo Inácio de Loiola chama de ‘espírito maligno’, um impulso que o afasta de Deus e impede seu progresso espiritual.

Nesse caso, o espírito maligno está tentando afastá-lo de Deus ou, mais precisamente, o espírito maligno está usando a distração para afastar você. A última coisa que o espírito maligno deseja é que você se aproxime de Deus. Até mesmo usar um pedaço de peixe servirá, para seus propósitos. Da mesma forma, você pode estar pensando em seguir Jesus e depois começar a pensar : se eu seguir Jesus, provavelmente terei que trabalhar com os pobres e então ficarei doente! Exatamente como quando comi aquele peixe. Isso claramente não vem de Deus.

Em geral, o espírito maligno tenta movê-lo para propósitos malignos ou, inicialmente, um sentimento de desespero e desesperança. Como escreve Santo Inácio nos Exercícios Espirituais, na pessoa boa o mau espírito procura ‘causar angústia corrosiva, entristecer e levantar obstáculos. Desta forma, ele os perturba por falsas razões destinadas a impedir seu progresso’.

Uma maneira simples de entender é olhar se você está sentindo desespero, desesperança ou inutilidade, isso não vem de Deus, porque, como entendeu Inácio, esses sentimentos levam à ‘prevenção do progresso’ na vida.

Também tome cuidado com a linguagem ‘universal’ que geralmente é característica do desespero, especialmente quando associada a afirmações negativas sobre você. Sempre que você se pega dizendo coisas como ‘Nada vai ficar melhor’, ‘Todo mundo me odeia’, ‘Ninguém me ama’, ‘Estou sempre falhando’ ou ‘Nunca serei capaz de mudar’, é um sinal comum da presença do espírito maligno. Detenha-se ao usar esses termos universais e tente não dar ouvidos a esses impulsos. Em contraste, escreve Inácio, o ‘bom espírito’, o espírito que leva a Deus, é aquele que age da seguinte maneira : ‘É característico do bom espírito despertar coragem e força, consolações, lágrimas, inspirações e tranquilidade. Ele facilita e elimina todos os obstáculos, para que a pessoa siga em frente fazendo o bem’.

O espírito maligno pode ser reconhecido quando você se desespera; o bom espírito quando você sente esperança.

Portanto, quando você está tentando discernir o que é e o que não vem de Deus, este é um bom ponto para começar.

Deixe-me dar um exemplo de minha própria vida. Por algum tempo, quando jovem, lutei contra um leve caso de hipocondria. Não foi debilitante, mas me fez focar demais nos problemas físicos e ter medo de ficar doente; no processo, isso me levou a me concentrar em meu próprio bem-estar de maneira egoísta.

Vinte anos atrás, eu tinha que fazer uma cirurgia, que trouxe uma confusão de emoções e desencadeou um pouco de hipocondria – e algum ‘pensamento universal’ : ‘Esta é a pior coisa de todas’. ‘Estou sempre ficando doente’. ‘Eu nunca vou ser capaz de superar isso’.

Mas também senti uma atração na outra direção : em direção a uma maior liberdade, em direção a uma liberação do ego arrogante que sempre me fez focar em mim mesmo, em direção à esperança.

No meio disso, falei com meu diretor espiritual. Então, eu coloquei isso na forma de uma pergunta. ‘É uma nova experiência’, disse-lhe, ‘de sentir liberdade e esperança quando se trata de doença. Ainda assim, me sinto puxado de volta ao sentimento de desespero. E isso parece do espírito maligno. Mas o sentimento mais profundo, positivo e esperançoso, mesmo que seja novo, parece que pode vir de Deus. É um novo lugar para eu morar, mas estou me perguntando : é o bom espírito?

Ele praticamente saltou da cadeira e gritou : ‘Sim!

Quando você se desesperar, não dê ouvidos; quando você sentir esperança, siga-a.

Em segundo lugar, podemos perguntar : isso faz sentido?

Se estou orando durante um momento difícil da minha vida e me lembro espontaneamente de outra época em que Deus estava comigo durante minhas lutas, talvez possa ver nessa memória o desejo de Deus de que confie. Ou talvez tenha a lembrança de um lugar que me traz muita calma e fico em paz. Essa é uma maneira que Deus tem de nos acalmar.

Por outro lado, se estou orando durante um momento difícil e me lembro de um e-mail que esqueci de responder, o pensamento pode não vir de Deus. No contexto do que estou orando, não se encaixa. Lembre-se de que você quer saber se isso faz sentido.

Faz sentido que Deus se aproxime de mim e me convide a confiar? Sim, isso parece fazer sentido, ou pelo menos está de acordo com o que está acontecendo na minha vida no momento. Faz sentido que durante um período de oração sobre algo sério, Deus me lembre de responder aos meus e-mails? Provavelmente não.

Terceiro, isso leva a um aumento de amor e de caridade?

Essa mensagem vem do Evangelho de Mateus, no qual Jesus diz : ‘Pelos seus frutos os conhecereis’. A voz de Deus pode ser conhecida por seus efeitos. Se seguir este impulso leva a um aumento na caridade e no amor, então é mais provável que venha de Deus.

Digamos que você esteja orando por alguém de quem não gosta. Talvez você esteja pedindo a ajuda de Deus para lidar com essa pessoa. De repente, você fica furioso com algo que ele fez a você. Oh, eu adoraria dar um soco na cara dele! - você pensa.

Vinita Hampton Wright, autora de Days of Deepening Friendship, oferece uma maneira de compreender esses sentimentos. Você provavelmente perceberia que, embora tenha tido esse sentimento durante sua oração, Deus não o está pedindo para dar um soco no rosto desse sujeito. Então você passa desse desejo inicial a pensar em como poderia confrontá-lo sobre algum defeito que você não tolera. Você pode até orar sobre o que gostaria de dizer a esse amigo – para tirar o peso das suas costas. Isso parece fazer sentido, então você pode ficar tentado a pensar que Deus está por trás disso.

Ainda assim, após uma reflexão’, como Vinita explicou, ‘você percebe que o confronto pode ser bastante satisfatório para você, mas provavelmente não aumentaria seu amor por essa pessoa, nem ajudaria a motivá-la a mudar para melhor – então, não aumento no amor ou na caridade’.

Se uma ação não leva a um aumento no amor e na caridade, o movimento provavelmente não vem de Deus.

Quarto, isso se encaixa com o que sei sobre Deus?

Isso se encaixa com o Deus que você conhece das Escrituras, da tradição e da sua própria experiência? Se você é cristão, isso se encaixa com o que você sabe sobre Jesus?

Deus não vai fazer você se odiar ou acreditar que nada pode dar certo novamente, porque esse não é o Deus do Antigo ou do Novo Testamento, esse não é o Deus da tradição da Igreja, esse não é o Deus revelado em Jesus, e esse não é o Deus que você conhece. Deus dá esperança, não desespero.

Para muitas pessoas, Deus frequentemente se manifesta em um sentimento de calma. À medida que isso acontece, você pode começar a reconhecer como Deus é ‘percebido’ na oração. Santo Inácio começou a ver que era assim que Deus trabalhava nele.

De certa forma, você conhece a voz de Deus, de modo que, quando a ouvir novamente, você possa reconhecê-la.

Quinto, é uma distração?

Às vezes, é óbvio que um pensamento perdido que vem à sua cabeça pode não ser de Deus. Se você está orando, seu estômago ronca e você pensa em comer um bom hambúrguer com todos os acompanhamentos, essa noção provavelmente não vem de Deus. Quanto mais você orar, mais será capaz de peneirar as distrações.

Pense nisso como uma conversa com um amigo. Se você estiver conversando com alguém sobre um assunto importante e de repente notar uma mancha em sua camisa, se desviar e começar a reclamar que a lavanderia estragou sua roupa, você perceberá que está distraído.

É o mesmo na oração. Normalmente, você pode dizer o que faz parte da conversa e o que não é. Da mesma forma, com a prática você pode dizer quando uma distração é um convite para outra conversa nova.

Sexto, é a realização de um desejo?

Esta é talvez a pergunta mais difícil, e não é frequentemente abordada em livros sobre oração. Como você pode saber se o que você pensa é o que você gostaria que Deus lhe dissesse?

É aqui que é especialmente importante testar as coisas. Às vezes, o que queremos ouvir é realmente o que Deus nos diz. Se você está ansioso, ore a Deus por alívio e se sentir calma, provavelmente é Deus. Não há nada de errado em conseguir o que se deseja na oração. Isso não é necessariamente a realização de um desejo; é Deus dando a você o que você precisa.

Por outro lado, você precisa ter cuidado para não simplesmente invocar a resposta que deseja na oração. O melhor antídoto para isso é a paciência, aguardando o momento em que Deus fale com clareza.

Sétimo, é importante?

Em minha experiência, Deus entra em nossa oração dessas maneiras diretas com mais frequência quando há um assunto importante em mãos. Isso não quer dizer que Deus não possa entrar em nossa consciência sempre que Deus quiser ou sobre qualquer assunto. Mas normalmente (novamente, em minha própria vida e em minha experiência como acompanhante espiritual), se essa intervenção ocorrer durante um momento de urgência, pode ser considerada um sinal da presença de Deus.

Discernir o que vem de Deus e o que pode vir de você é mais uma arte do que uma ciência. Mas é uma arte especialmente importante a dominar na vida espiritual.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1497064/2021/02/7-dicas-sobre-o-que-ouvir-na-oracao-a-voz-de-deus-ou-a-minha/

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Vozes e irrelevâncias

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


‘Não se está apenas vivendo uma época de mudanças, mas uma grande e radical mudança de época. Essa expressão, resultado de análises filosófico-antropológicas dedicadas à contemporaneidade, faz referência às revoluções sem precedentes que estão reconfigurando a humanidade. No contexto das aceleradas e profundas transformações, pensa-se que as muitas narrativas capazes de dar sentido ao mundo ruíram, e ainda não teria surgido nenhuma outra para ocupar as lacunas existentes. Muitas perguntas permanecem sem respostas, mesmo com tantas vozes que se consideram autoridades no esclarecimento de interpelações. Não raramente, essas vozes promovem uma dissonância que atormenta, atrasa processos, gera confusões, alimentando relativizações que desconsideram memórias, valores e princípios imprescindíveis. O resultado é uma verdadeira babel, com prejuízos aos entendimentos necessários para que cada pessoa exerça o seu papel na sociedade. Essa dissonância, com vozes que instigam polarizações e fundamentalismos, prejudica também o estado de espírito – a condição emocional de grupos e indivíduos, alimentando desequilíbrios e descompassos.

O coro ruidoso, promovido por pessoas e grupos, é desafinado não por uma falta de referenciais teóricos, ou pela escassez de análises relevantes. A dissonância de vozes vem, especialmente, da ausência de compreensão mínima sobre o que significa viver e conviver na Casa Comum, ou da desconsideração sobre a urgência de se efetivar uma economia guiada pelos parâmetros da sustentabilidade, salubridade e solidariedade. Sem solucionar essas carências, torna-se impossível mudar cenários de exclusão social que são atestados de incompetência para uma sociedade com tantos avanços tecnológicos e científicos. Obviamente, a civilização contemporânea, em comparação a outras fases da história humana, conta com muito mais oportunidades, mas precisa capacitar-se para aproveitá-las bem. É necessário investir para que o humanismo fundamente as vozes deste tempo. Mais que isso : torne-se também força capaz de configurar nova etapa na história da humanidade.

Ante as aceleradas transformações sociais contemporâneas, muitos experimentam sensação de impotência neste contexto que aparenta ser caótico. Esse sentimento pode ser o sinal de que se está no caminho certo, pois a realidade é, de fato, muito complexa. Não é possível a apenas uma pessoa compreendê-la ou gerenciá-la plenamente.  Reconhecer que se sabe muito menos do que se pensa saber é um passo com incidência existencial forte. Para alcançar essa compreensão, deve-se considerar a importância de muitos elementos que não podem ser negociados ou rifados, pois são antídotos para obscurantismos. Não se deve abrir mão, por exemplo, da memória histórica de instituições, frequentemente desconsideradas nos dias atuais por quem se perde na avalanche de mudanças.

Sem reconhecer a memória, muitos acreditam, ingenuamente, que estão ‘inventando a roda’, mesmo que essa ‘roda’ já exista – o necessário é a inteligência para fazê-la girar. Além disso, ao desconsiderar a memória, paga-se um preço alto com a perda do sentido que alimenta a vida. Convive-se com a arbitrariedade da iconoclastia que demole tudo e enfraquece o tecido existencial com superficialidades, a partir da ilusão de que se está construindo algo novo. Nesse mesmo caminho de desconsideração da memória, há um impulso inconsequente, por vezes alimentado por interesses ideológicos, oportunistas, cegos e até mesquinhos. Esse impulso leva muitos a prescindir de instituições com capacidade para ser voz forte na superação das dissonâncias que prejudicam a sociedade.

As instituições estão sendo enfraquecidas ou atingidas por um subjetivismo que alimenta nas pessoas a ilusão de que suas próprias vozes são as mais lúcidas. Indivíduos passam a acreditar que suas perspectivas podem substituir vozes institucionais – que também necessitam, permanentemente, de afinação, para continuarem proféticas e gerarem interpelações transformadoras. Quando a irracionalidade permite que sejam enfraquecidos contextos institucionais há graves consequências : democracias perdem força, desempenhos profissionais e cidadãos tornam-se inadequados e cada vez mais se acentua a dissonância entre as muitas vozes, conduzindo instituições religiosas, educacionais, políticas, governamentais e tantas outras ao universo das irrelevâncias.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/artigo/9052/2020/09/vozes-e-irrelevancias/ 

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uganda. A voz dos que não desistem


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 O médico italiano Antonio Loro com sua esposa e um grupo de jovens no hospital em Campala, Uganda
O médico italiano Antonio Loro com sua esposa e um grupo de jovens no hospital em Campala, Uganda

*Artigo de Antonella Palermo


‘Antonio Loro trabalha desde 2009 em Campala, capital da Uganda. Médico cirurgião, pediatra, nos fala sobre a situação social e da saúde da região, proporcionando-nos histórias de unidade, solidariedade, vida.  

O isolamento torna o país ainda mais frágil

Em Uganda o lockdown foi aplicado de forma muito restritiva; provavelmente nesta semana reabrirão os transportes e outras atividades. Pode-se dizer que criou uma situação muito difícil para um país que já vive em grande sofrimento, que está lutando de um ponto de vista econômico, como muitos no continente. ‘O impacto foi terrível’, comenta o doutor Antonio Loro. ‘Foram certamente medidas necessárias, acredito que o Governo fez bem - especifica – mas a situação social é muito frágil. A população está sofrendo, mas o governo parece se mostrar muito próximo ao povo, com contínuas comunicações pelo rádio a respeito da necessidade de limpeza, e de lavar as mãos. Também foram distribuidas máscaras gratuitas para todos, e também alimentos : feijão, um pouco de açúcar e um pouco de sabão. Mas aqui 80% da economia é informal e por isso o impacto sobre os trabalhadores foi terrível’.

O mistério do vírus com baixa carga viral

No hospital quisemos dar um sinal particular : ficar sempre aberto’, afirma o doutor Loro. ‘É claro, trabalhamos em regime mais lento, não tendo transportes, mas continuamos a manter contato com as organizações não governamentais com as quais cooperamos, continuamos a consultar as crianças, também operamos, embora com 20% das nossas possibilidades. Há alguns dias aumentamos um pouco o nosso ritmo e dentro de uma semana esperamos colocá-lo na normalidade’. É curioso pensar que não houve vítimas do coronavírus. ‘Na África Oriental não chegamos a 2 mil casos de contágio – disse o médico - e em Uganda na última quinta-feira (21/05) tínhamos 198 casos e nenhuma morte. A questão é : o vírus está circulando ou existem fatores nessas regiões que o detêm? Minha ideia é que alguma coisa existe - talvez seja descoberta no futuro - e que leva a um contágio muito baixo’. O fato é que não há pesquisas confiáveis, se pensarmos que seriam necessários 450 mil testes para testar 1% da população ugandesa, enquanto os testes realizados até agora estão abaixo de 100 mil, um número muito pequeno.

Comunicação do governo e distanciamento inviável

O problema realmente grande é como impor o distanciamento social nesses países, especialmente em favelas onde isso não é viável. ‘Os barracos geralmente são de 6 metros por 6 onde moram até 8 pessoas. O distanciamento nestes casos é impensável. No entanto, apesar disso, os números não estão crescendo exponencialmente. O governo tem feito um excelente trabalho - comenta o médico - e a população está muito, muito consciente dos riscos. Fora de cada loja há um lugar onde pode-se lavar as mãos’.

O hospital CoRSU é um farol

Doutor Antonio Loro trabalha em um hospital particular no-profit que ‘se tornou um farol para toda a região, não apenas em Uganda, pela especialidade em cirurgia plástica e ortopedia’. Foi fundado pela CBM (Christian Blind Mission), uma organização sem fins lucrativos que atua desde 1908 para assistir, cuidar, incluir e dar uma melhor qualidade de vida às pessoas com deficiência que vivem nos países mais pobres. Doutor Loro afirma que ‘chegam em Campala crianças vindas do Sudão do Sul, Ruanda, Burundi, Quênia, Congo. Cobrimos talvez 5-10% das necessidades ortopédicas pediátricas nesta área, mas também devemos considerar que as forças no campo de especialistas são muito limitadas e não comparáveis com as da Europa Ocidental’. ‘Somos 50 ortopedistas para toda a população ugandesa de 43 milhões de pessoas. Pode-se imaginar o que podemos fazer. No Sudão do Sul há 3, no Congo 10. É uma montanha de exigências. Já operamos mais de 70.000 crianças nestes dez anos. Muitos deles foram socialmente reintegrados. Muitos voltaram para a escola. O médico explica que o sucesso desta oferta, embora mínimo em relação às necessidades, deve-se ao acesso gratuito (a cirurgia é subsidiada e para as crianças carentes é gratuita) e à disponibilidade econômica graças às doações feitas às organizações internacionais que possibilitaram a compra de materiais e equipamentos adequados’.

As mortes silenciosas

O médico explica que em Uganda, a Covid tem encoberto as outras doenças silenciosas que continuam a causar vítimas. ‘Aqui, ainda hoje, dezenas de crianças morrerão de malária, provavelmente cerca de vinte mães por complicações relacionadas ao parto, talvez cinquenta por tuberculose e outras tantas por HIV’. ‘Para meu campo específico o que vemos são doenças relacionadas à pobreza e à miséria : infecções por falta de água potável, a higiene nas aldeias é muito escassa, assim como a nutrição. As dificuldades logísticas desempenham um papel importante. Meus colegas plásticos têm que lutar diariamente com queimaduras. Crianças caem, em brincadeiras, nas fogueiras no chão. Na minha área, tenho que lidar com infecções ósseas, tumores, desnutrição, tuberculose’. Há também o aspecto demográfico : a população aqui é muito jovem. Dos 43 milhões de habitantes, milhões têm menos de 18. ‘São números assustadores - acrescenta o médico - e especifica que ‘nascem 2 milhões de crianças por ano: destas, uma parte fica doente, outra nasce com doenças congênitas, e outra ainda terá necessidade dos serviços que o governo está tentando dar, mas a parcela do orçamento destinada à Saúde está abaixo de 12% do orçamento anual’.

Histórias de coragem para ganhar a vida

À noite há o toque de recolher para evitar crimes. ‘Crianças com doenças abdominais graves ou mães que têm que dar à luz acabam morrendo na rua’, conta Antonio Loro. Mas também surgem histórias de não resignação : ‘Causou grande comoção a história de uma enfermeira do norte de Uganda que, nesse período de lockdown, desafiou tudo e foi com um carrinho de mão buscar uma mãe em trabalho de parto e a empurrou por mais de 4 km, ao longo de uma estrada de terra no escuro, sozinha. E conseguiu salvá-la’. Conta também outra história, a de uma senhora que foi ajudada pelos vizinhos na hora do parto. ‘Para sair à noite é preciso de autocertificação. Estava escuro e não se podia chegar ao hospital porque havia problemas de eletricidade, devido ao mau tempo. Eles fizeram o parto com lanternas. Espero que chamem a criança de ‘luz’’. Isso é realmente fantástico. Também há histórias mais tristes, mas a solidariedade contagiou, como diz o Papa Francisco’.’


Fonte :
*Artigo na íntegra

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Migração, perseguição e o possível emudecimento da voz cristã


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Uma vez que a religião é parte integrante de determinada sociedade, é de se esperar que imigrantes, pertencendo a outra fé, busquem seus pares para se reunirem e realizarem seus cultos no novo país.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante

  
‘É muito comum tanto no catolicismo como nos movimentos evangélicos atuais certo medo de perseguição. Que o cristianismo seja a religião mais perseguida no mundo parece claro para qualquer pessoa que se dedica a leitura sobre perseguições religiosas ao redor do globo. São diversos os casos de cristãos presos, torturados e até mesmo mortos devido à sua crença. Essa perseguição, por sua vez, não é algo novo.

O cristianismo, desde seu início, teve que lidar com esse fardo, principalmente nos seus quatro primeiros séculos. As perseguições eram constantes. Os espetáculos envolvendo os primeiros mártires podem ser vistos em qualquer filme abordando essa história. Isso nos mostra que ser cristão não era uma tarefa simples e, em muitos lugares, continua não sendo.

No Ocidente, após o cristianismo virar a religião do Império Romano, como sabemos, a situação mudou drasticamente. De perseguido o cristianismo se transformou em perseguidor, fazendo com os outros o mesmo que sofria anteriormente. A Idade Média, amplamente conhecida e lembrada como um momento de grande perseguição religiosa e de enorme obscurantismo em diversas esferas da sociedade, mostra-se, até hoje, como um retrato e um alerta para o perigo que há quando acontece uma mistura entre religião e Estado, sendo este subordinado àquela.

Com o passar do tempo e o advento da modernidade, juntamente ao processo de secularização que propôs a separação entre Igreja e Estado, ser cristão ou não passou a ser uma questão de escolha. Ninguém mais é obrigado a aderir ao cristianismo, embora a presença e a influência cristã no Ocidente ainda sejam marcantes, definidoras de diversos traços culturais e formas de ver o mundo e as relações humanas. De certa maneira, isso faz com essa religião ainda seja bem influente em grande parte do mundo ocidental.

Diante desse cenário, muitas pessoas veem com grande temor os fluxos migratórios atuais. Estes são resultado das políticas imperialistas e de guerras comandadas por diversos países para angariar zonas petrolíferas e rotas comerciais de grande valor. Por esses conflitos e genocídios acontecerem, na sua maioria, em países islâmicos, milhares de muçulmanos chegam diariamente ao Ocidente. Eles buscam segurança e vida digna, longe dos terrores da guerra e do assombro constante da possibilidade de morrer.

Uma vez que a religião é parte integrante de determinada sociedade, é de se esperar que imigrantes, pertencendo a outra fé, busquem seus pares para se reunirem e realizarem seus cultos no novo país. Essa situação, por sua vez, pode gerar conflito, visto que muitas das regras dos países do Ocidente não levam em conta aspectos caros àqueles que vêm de outro contexto cultural e pertencem a religiões – que, como todas, possuem tanto leituras fundamentalistas quanto progressistas a respeito de seus textos sagrados.

Caso a leitura seja de viés fundamentalista, o que tende a ser mais comum, pode-se facilmente criar guetos que funcionam como Estados paralelos dentro do Estado territorial. Nos primeiros se seguem as regras de determinada religião; no segundo, tem-se que viver de acordo com a laicidade. Essa dinâmica, muitas vezes conturbada, gera conflitos difíceis de resolver e que demandam análises teológicas e políticas aprofundadas para se tentar conciliar as duas formas de ver a mesma realidade.

Do lado cristão fundamentalista, por sua vez, o medo de ter sua voz calada pelo avanço de outras religiões no contexto ocidental faz com que cresçam movimentos contrários à garantia de culto dessas, bem como movimentos xenofóbicos e de perseguição. Claramente, esquecem-se de que o cristão é chamado à acolhida do diferente e à luta pelo direito dos que são perseguidos.

Ao mesmo tempo, esquecem-se de que a voz cristã é a voz do amor. Assim, dizer que uma religião calará a voz cristã é dizer que ela impedirá o cristão de amar o próximo. O que significa maior preocupação com o cristianismo do que com o ser cristão verdadeiramente – importante lembrar que nem toda pessoa pertencente ao cristianismo é cristã e vice-versa.

Contudo, não quer dizer que o cristianismo não seja uma religião importante, que não deva ser respeitado e ter seu direito de culto garantido em qualquer lugar do mundo. Humanamente devemos sempre condenar todo e qualquer tipo de perseguição feita a qualquer grupo religioso.

Ao mesmo tempo, o cristianismo não deve se esquecer de que, mais importante do que dogmas e cultos é o amor para com os semelhantes. De acordo com o Evangelho, esta é a única maneira de mostrarmos que realmente somos discípulos de Jesus de Nazaré.

Desse modo, podemos dizer que se alguma religião conseguir impedir uma pessoa que teve um encontro com o Ressuscitado deixe de amar, então essa religião realmente terá calado a voz cristã.


Fonte :