Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Daniel Reis
‘Concorde ao princípio da Encarnação, onde Deus se fez acessível à
nossa humanidade para nos salvar, o escopo de todo e qualquer sacramento é
comunicar-nos essa salvação por Ele oferecida através de sinais sensíveis à
nossa condição humana. Um desses sinais sacramentais, componente da estrutura
simbólico-ritual da Liturgia, é a voz.
A voz é o elemento sensível que embala a Palavra de Deus
proclamada, cantada e rezada. Como som que é, toda voz aspira a tornar-se
palavra, a ganhar forma e sentido, contribuindo ou prejudicando para a
manifestação do conteúdo da fala ou do significado das palavras. Como afirmava
Santo Agostinho em um de seus sermões : ‘Suprime a palavra; o que se torna a
voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido,
mas não alimenta o coração.’ (Sermo 293).
Especialmente para a fé cristã, a voz deve estar sempre a serviço
da Palavra divina e, com ela, em perfeita simbiose, a fim de ultrapassar seu
caráter informativo e alcançar o seu condão performativo, ou seja, sua força transformadora,
animadora, libertadora e salvadora. Com o auxílio da voz, pode-se potencializar
a eficácia sacramental da proclamação da Palavra de Deus, para que ela seja,
efetivamente, Palavra da Salvação.
Nesse sentido, voltando ao sermão do bispo de Hipona, encontramos :
‘O som da voz te faz entender a palavra; e quando te fez entendê-la, esse
som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração’.
Assim, no âmbito pastoral-ministerial, deve-se dar a máxima importância aos
gêneros literários da Sagrada Escritura, bem como aos gêneros musicais e
oracionais (suplicante, laudatório, penitencial, etc.), para que através de um
adequado revestimento vocal das leituras, da música e das orações, as vozes
contribuam para uma fecunda comunicação da Palavra à assembleia litúrgica,
fazendo com que, mesmo depois de passada a voz, permaneça gravada no coração do
ouvinte a Palavra que não passa (cf. Mt 24,35).
A responsabilidade da qualidade comunicacional da Palavra pela voz
não recai somente sobre o aspecto vocal, uma vez que dependerá também de uma
boa e dócil acolhida por parte dos interlocutores. E aqui reside uma grande
dificuldade : o Povo de Deus, de ontem e de hoje, ‘é um povo de cabeça dura’
(Ex 32,9), de ‘dura cerviz e incircuncisos de coração e ouvido’ (At
7,51). Por isso o tema da ‘escuta’ nas Sagradas Escrituras é frequente,
seja para denunciar a ‘surdez’, seja para exaltar a audição atenta.
No Monte Sinai, Deus instrui Moisés : ‘Se ouvirdes a minha voz
e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre
todos os povos.’ (Ex 19,5). Assim, por diversas vezes, Moisés, a mando do
Senhor, dirige-se ao povo clamando : ‘Escuta ('Shemá'), ó Israel, as normas
que eu hoje proclamo aos vossos ouvidos!’ (Dt 5,1. 6,3. 4,1). O profeta
Jeremias se revolta com os ‘ouvidos fechados’ do povo, dizendo : ‘A
quem falarei, para que ouça? Eis que seus ouvidos estão incircuncisos e não
podem ouvir!’ (Jr 6,10). Por outro lado, o profeta Samuel, na narrativa de
sua vocação, responde confiante : ‘Fala, Senhor, que o teu servo te escuta.’
(1Sm 3,10). Neemias, narrando uma autêntica Liturgia da Palavra em seu tempo,
detalha a atitude da assembleia ali formada : ‘[...] Então o sacerdote
Esdras leu o livro da Lei de Moisés desde a aurora até o meio-dia, na presença
dos homens, das mulheres e dos que tinham o uso da razão. E todo o povo
escutava com atenção a leitura do livro da Lei.’ (Ne 8,3).
Nos evangelhos, a temática também está ‘na boca’ de Jesus.
Quando avisado da chegada de sua família, responde a seus discípulos : ‘Minha
mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em
prática!’ (Lc 8,21). Anunciando as bem-aventuranças, apresenta a maior
delas : ‘Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam.’
(Lc 11,28). Sobre a maior prudência humana, diz : ‘Todo aquele que ouve as
minhas palavras e as põe em prática são como o homem prudente que constrói sua
casa sobre a rocha.’ (Mt 7, 24). Sobre nossa pertença e filiação a Deus,
Jesus exclama : ‘Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus.’ (Jo 8,47).
Temos também o que parece ser um bordão utilizado por Jesus : ‘Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça!’ (Mc 4,23; Mt 11,15).
Ainda no Novo Testamento, encontramos no episódio da
Transfiguração a voz do Pai que sai da nuvem mandando ouvir o Filho muito amado
(cf. Mc 9,7). Também Paulo, em sua carta aos romanos, onde assevera : ‘A fé
vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a Palavra de
Cristo.’ (Rm 10,17).
O lugar por excelência onde escutamos a voz de Deus, na Palavra
que é Cristo, falada sob o fôlego do Espírito, é a Liturgia. Assim afirmou o
papa Bento XVI : ‘Considerando a Igreja como 'casa da Palavra', deve-se
antes de tudo dar atenção à Liturgia Sagrada. Esta constitui, efetivamente, o
âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida : fala
hoje ao seu povo, que escuta e responde.’ (Verbum Domini, nº 52).
A Liturgia, assim, é o especial e primeiro locus
theologicus, porque nela escutamos, sacramentalmente, o próprio Cristo se
dirigir a nós, ‘pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada
Escritura’, bem como ‘quando a Igreja reza e canta’ (Sacrosanctum
Concilium, nº 7). É nela que podemos e devemos escancarar os ouvidos do coração
para escutarmos a voz do nosso amado (cf. Ct 2,8), a voz do nosso Pastor (cf,
Jo 10,3-4), para que a Palavra se faça carne em nós, e assim possamos
anunciá-la ao mundo, reverberando nele o amor do Verbo.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1513321/2021/04/a-voz-da-palavra-um-breve-ensaio-sobre-a-sacramentalidade-da-voz/
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