sábado, 26 de julho de 2014

Um coração e dois ouvidos!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


  * Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano


A escuta vocacional tem de ser estereofónica para ser capaz de captar a polifonia da vida e da realidade. Necessitamos de dois ouvidos. Os céus e a terra estão repletos de palavras e de vozes, de apelos e de gritos. Como discernir os que se dirigem a mim? Só a sincronização dos dois ouvidos nos torna capazes de descobrir a chamada de Deus. Só tal escuta estereofónica consente em captar a especial sinfonia que Deus nos destinou. Tal música fará vibrar as fibras íntimas do nosso coração.


‘...O olhar de Cristo que nos seduz torna-se ‘visível’ e incarna-se na palavra, pronunciada pela boca e acolhida pelo ouvido. Por isso a vocação, dizíamos, parece privilegiar antes de mais o sentido da ‘audição’.


Uma escuta estereofónica

Hoje desejaria sublinhar que tal escuta vocacional tem de ser estereofónica para ser capaz de captar a polifonia da vida e da realidade. Necessitamos de ‘dois ouvidos’!

O primeiro permanece sintonizado com a voz do Pastor : ‘as ovelhas ouvem a sua voz; e ele chama pelo nome as suas ovelhas, e as conduz para fora… as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz; mas de modo algum seguirão o estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos’ (João 10).

Tal ouvido deve manter-se sempre alerta, de dia e de noite, como o do profeta Samuel, pronto a responder à voz de Deus com um resoluto ‘Eis-me aqui!... Fala, Senhor, porque o teu servo escuta…’. Sem deixar cair em terra nenhuma de todas as suas palavras. Embora elas, por vezes, possam ferir o ouvido humano : ‘Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos’ (1 Samuel 3).

Se o primeiro ouvido é uma antena parabólica que perscruta continuamente os céus, o segundo é uma outra antena que capta as ondas terrestres. Tal é o ouvido missionário de São Paulo que, numa visão na noite, viu e ouviu um homem grego que lhe pedia : ‘Passa à Macedónia e ajuda-nos. Assim que teve a visão, imediatamente, [Paulo e seus companheiros] procuraram partir para aquele destino, concluindo que Deus os havia chamado para lhes anunciar o evangelho’ (Actos 16).


Sincronização dos dois ouvidos

Os céus e a terra estão repletos de palavras e de vozes, de convites e de pedidos, de apelos e de gritos. Como discernir os que se dirigem a mim? Só a sincronização dos dois ouvidos nos torna capazes de descobrir a chamada de Deus. Só tal escuta estereofónica consente em captar a especial sinfonia que Deus nos destinou. Tal música fará vibrar as fibras íntimas do coração, como o canto irresistível de uma sereia, que só um obstáculo ou laço muito forte nos impedirá de seguir. ‘Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir; mais forte foste do que eu, e prevaleceste… Se eu disser : Não farei menção dele, e não falarei mais no seu nome, então há no meu coração um fogo ardente, encerrado nos meus ossos, e estou fatigado de contê-lo, e não posso mais’ (Jeremias 20).

É tal sintonia entre os dois ouvidos que explica a existência de uma variedade de vocações e missões : ‘Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum’ (1 Coríntios 12).

Só uma tal sincronização dos dois ouvidos é capaz de apaixonar o coração. De (aparentemente) duas, acabamos por ser devorados por uma única paixão. Um exemplo elucidativo é São Daniel Comboni. Os seus dois ‘amores’, Jesus Cristo e a África, tornaram-se um só. Na figura de Cristo ele via os africanos, e na ‘infeliz Nigrícia’ o rosto do Crucificado. ‘O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia e, deixando tudo o que me era mais querido no mundo, vim […] a estas terras para oferecer o meu trabalho como alívio para as suas seculares desgraças… Hoje, finalmente, recupero o meu coração voltando para junto de vós para o abrir na vossa presença ao sublime e religioso sentimento da paternidade espiritual, da qual quis Deus que fosse investido. Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós’ (Homilia de Cartum, 1873).


HINENI, Eis-me aqui!

Dir-se-ia, pois, que a resposta à vocação é dupla. Trata-se de um SIM a Deus mas também um SIM a um grupo humano a quem Deus nos envia e cuja voz encontrou um eco especial no nosso coração. Por isso o chamado, a vocacionada, vê-se continuamente e contemporaneamente solicitado/a a dar o seu HINENI (‘eis-me aqui!’) a Deus e ao povo a quem pertence por missão. A intensidade do seu Hineni à missão não pode ser menor que a do seu Hineni a Deus. Eis-me aqui, Senhor, partilhando a sorte deste povo! É o Hineni de todo o missionário que na hora do testemunho e do martírio não abandona o seu rebanho. É o exemplo dos missionários tanto no Sudão como na República Centro-Africana, na Síria ou em tantos outros lugares onde a violência e o ódio se confrontam com a força do amor. Tal Hineni não conhece medidas. Tem a medida grande do Amor que dá a vida para que os demais possam tê-la em abundância. Tal foi o exemplo extraordinário dos sete monges trapistas de Tibhirine, assassinados na Argélia em 1996. O testamento espiritual de Dom Christian de Chergé, prior da comunidade de Tibhirine, redigido há vinte anos, é um testemunho eloquente.


Enfrentar um A-DEUS...

Se acontecer um dia – e poderia ser hoje – que eu me torne uma vítima do terrorismo, que agora parece pronto a engolir todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja e a minha família se lembrassem que a minha vida foi DADA a Deus e a este país.

Que reconhecessem que o Único Mestre de toda vida não pode estar alheio a esta partida brutal. Que rezassem por mim : pois como poderia ser eu digno de tal oferta?

Que soubessem associar esta morte às muitas outras mortes que são da mesma forma violentas, mas esquecidas pela indiferença e o anonimato. A minha vida não tem mais valor do que qualquer outra. Nem também menos valor. Em qualquer caso, ela não tem a inocência da infância. Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo, mesmo naquele mal que me mataria cegamente.

Quando viesse o tempo, gostaria de ter um momento de lucidez que me permitisse pedir o perdão de Deus e de todos os seres humanos meus amigos, e ao mesmo tempo perdoar com todo o meu coração aquele que me mataria.

Não desejo tal morte. Parece-me importante declarar isto. Não vejo, de facto, como poderia alegrar-me se este povo que amo fosse acusado indiscriminadamente do meu assassínio. Responsabilizar um argelino, quem quer que seja, seria um preço muito alto a pagar por aquilo que talvez seria chamado ‘a graça do martírio’, especialmente se ele diz que agiu em fidelidade com o que acredita que seja o Islão. Estou consciente do desprezo com que se olha todos os argelinos indiscriminadamente.

Também tenho consciência da caricatura do Islão que um certo islamismo encoraja. É fácil salvar a própria consciência identificando esta via religiosa com as ideologias fundamentalistas dos seus extremistas. Para mim, a Argélia e o Islão são algo diferente : são um corpo e uma alma. Disse isto bastante frequentemente, creio eu, de acordo com o que eu recebi – e no qual encontrei muitas vezes o tal fio condutor do Evangelho – dos joelhos da minha mãe, a minha primeira Igreja, na própria Argélia, e já inspirada com respeito pelos crentes muçulmanos.

A minha morte, naturalmente, parecerá justificar aqueles que me julgam apressadamente ingénuo ou idealista : ‘Que diga agora o que pensa disto!’ Mas estas pessoas precisam de compreender que a minha mais ansiosa curiosidade será então satisfeita. Pois será então que, se Deus assim quiser, poderei mergulhar o meu olhar naquele do Pai, para contemplar com Ele os Seus filhos do Islão da mesma forma como Ele os vê, todos radiantes com a glória de Cristo, fruto da sua Paixão, e cheios do Dom do Espírito, cuja alegria secreta será sempre de estabelecer a comunhão e de restabelecer a semelhança divina, jogando com as nossas diferenças.

Por esta vida perdida, totalmente minha e totalmente deles, agradeço a Deus que parece tê-la desejado inteiramente, por esta alegria em tudo e a despeito de tudo. Neste agradecimento, que resume a minha vida inteira a partir de agora, certamente incluo vocês, amigos de ontem e de hoje, e vocês, meus amigos deste lugar, junto com a minha mãe e o meu pai, minhas irmãs e irmãos e suas famílias, o cêntuplo como prometido!

E também tu, amigo do momento final, que não terás consciência do que estarás fazendo. Sim, a ti também vai o meu agradecimento e este ‘A-DEUS’ em face de ti. E possamos os dois encontrarmo-nos, felizes bons ladrões, no Paraíso, se assim aprouver a Deus, Pai de ambos... Amen! In sha’Allah! (Christian+, Algiers, 1 de Dezembro de 1993-Tibhirine, 1 de Janeiro de 1994).

Que o exemplo desta e de tantas outras testemunhas, que encarnam ao longo dos tempos a figura do Bom Pastor, nos encoraje a pronunciar com generosidade o nosso HINENI.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EupEZlAVZytITNqYhe



Nenhum comentário:

Postar um comentário