* Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano
A escuta vocacional tem de ser estereofónica para ser
capaz de captar a polifonia da vida e da realidade. Necessitamos de dois
ouvidos. Os céus e a terra estão repletos de palavras e de vozes, de apelos e
de gritos. Como discernir os que se dirigem a mim? Só a sincronização dos dois
ouvidos nos torna capazes de descobrir a chamada de Deus. Só tal escuta
estereofónica consente em captar a especial sinfonia que Deus nos destinou. Tal
música fará vibrar as fibras íntimas do nosso coração.
‘...O olhar de Cristo que nos seduz
torna-se ‘visível’ e incarna-se na
palavra, pronunciada pela boca e acolhida pelo ouvido. Por isso a vocação,
dizíamos, parece privilegiar antes de mais o sentido da ‘audição’.
Uma escuta estereofónica
Hoje desejaria sublinhar que tal escuta
vocacional tem de ser estereofónica para ser capaz de captar a polifonia da
vida e da realidade. Necessitamos de ‘dois
ouvidos’!
O primeiro permanece sintonizado com a
voz do Pastor : ‘as ovelhas ouvem a sua voz; e ele chama pelo nome as suas
ovelhas, e as conduz para fora… as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz;
mas de modo algum seguirão o estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem
a voz dos estranhos’ (João 10).
Tal ouvido deve manter-se sempre
alerta, de dia e de noite, como o do profeta Samuel, pronto a responder à voz
de Deus com um resoluto ‘Eis-me aqui!...
Fala, Senhor, porque o teu servo escuta…’. Sem deixar cair em terra nenhuma
de todas as suas palavras. Embora elas, por vezes, possam ferir o ouvido humano
: ‘Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão
ambos os ouvidos’ (1 Samuel 3).
Se o primeiro ouvido é uma antena
parabólica que perscruta continuamente os céus, o segundo é uma outra antena
que capta as ondas terrestres. Tal é o ouvido missionário de São Paulo que,
numa visão na noite, viu e ouviu um homem grego que lhe pedia : ‘Passa à Macedónia e ajuda-nos. Assim que
teve a visão, imediatamente, [Paulo e seus companheiros] procuraram partir para
aquele destino, concluindo que Deus os havia chamado para lhes anunciar o
evangelho’ (Actos 16).
Sincronização dos dois
ouvidos
Os céus e a terra estão repletos de
palavras e de vozes, de convites e de pedidos, de apelos e de gritos. Como
discernir os que se dirigem a mim? Só a sincronização dos dois ouvidos nos
torna capazes de descobrir a chamada de Deus. Só tal escuta estereofónica
consente em captar a especial sinfonia que Deus nos destinou. Tal música fará
vibrar as fibras íntimas do coração, como o canto irresistível de uma sereia,
que só um obstáculo ou laço muito forte nos impedirá de seguir. ‘Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir;
mais forte foste do que eu, e prevaleceste… Se eu disser : Não farei menção
dele, e não falarei mais no seu nome, então há no meu coração um fogo ardente,
encerrado nos meus ossos, e estou fatigado de contê-lo, e não posso mais’
(Jeremias 20).
É tal sintonia entre os dois ouvidos
que explica a existência de uma variedade de vocações e missões : ‘Há diversidade de dons, mas o Espírito é o
mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversos modos de
agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a
manifestação do Espírito, para proveito comum’ (1 Coríntios 12).
Só uma tal sincronização dos dois
ouvidos é capaz de apaixonar o coração. De (aparentemente) duas, acabamos por
ser devorados por uma única paixão. Um exemplo elucidativo é São Daniel
Comboni. Os seus dois ‘amores’, Jesus
Cristo e a África, tornaram-se um só. Na figura de Cristo ele via os africanos,
e na ‘infeliz Nigrícia’ o rosto do
Crucificado. ‘O primeiro amor da minha
juventude foi para a infeliz Nigrícia e, deixando tudo o que me era mais
querido no mundo, vim […] a estas terras para oferecer o meu trabalho como
alívio para as suas seculares desgraças… Hoje, finalmente, recupero o meu
coração voltando para junto de vós para o abrir na vossa presença ao sublime e
religioso sentimento da paternidade espiritual, da qual quis Deus que fosse
investido. Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência
será aquele em que eu possa dar a vida por vós’ (Homilia de Cartum, 1873).
HINENI, Eis-me aqui!
Dir-se-ia, pois, que a resposta à
vocação é dupla. Trata-se de um SIM a Deus mas também um SIM a um grupo humano a
quem Deus nos envia e cuja voz encontrou um eco especial no nosso coração. Por
isso o chamado, a vocacionada, vê-se continuamente e contemporaneamente
solicitado/a a dar o seu HINENI (‘eis-me
aqui!’) a Deus e ao povo a quem pertence por missão. A intensidade do seu
Hineni à missão não pode ser menor que a do seu Hineni a Deus. Eis-me aqui,
Senhor, partilhando a sorte deste povo! É o Hineni de todo o missionário que na
hora do testemunho e do martírio não abandona o seu rebanho. É o exemplo dos
missionários tanto no Sudão como na República Centro-Africana, na Síria ou em
tantos outros lugares onde a violência e o ódio se confrontam com a força do
amor. Tal Hineni não conhece medidas. Tem a medida grande do Amor que dá a vida
para que os demais possam tê-la em abundância. Tal foi o exemplo extraordinário dos sete monges trapistas de
Tibhirine, assassinados na Argélia em 1996. O testamento espiritual de Dom Christian de Chergé, prior da
comunidade de Tibhirine, redigido há vinte anos, é um testemunho eloquente.
Enfrentar um A-DEUS...
Se acontecer um dia – e poderia ser
hoje – que eu me torne uma vítima do terrorismo, que agora parece pronto a
engolir todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que a minha
comunidade, a minha Igreja e a minha família se lembrassem que a minha vida foi
DADA a Deus e a este país.
Que reconhecessem que o Único Mestre de
toda vida não pode estar alheio a esta partida brutal. Que rezassem por mim :
pois como poderia ser eu digno de tal oferta?
Que soubessem associar esta morte às
muitas outras mortes que são da mesma forma violentas, mas esquecidas pela
indiferença e o anonimato. A minha vida não tem mais valor do que qualquer
outra. Nem também menos valor. Em qualquer caso, ela não tem a inocência da
infância. Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no mal que
parece, infelizmente, prevalecer no mundo, mesmo naquele mal que me mataria
cegamente.
Quando viesse o tempo, gostaria de ter
um momento de lucidez que me permitisse pedir o perdão de Deus e de todos os seres
humanos meus amigos, e ao mesmo tempo perdoar com todo o meu coração aquele que
me mataria.
Não desejo tal morte. Parece-me
importante declarar isto. Não vejo, de facto, como poderia alegrar-me se este
povo que amo fosse acusado indiscriminadamente do meu assassínio.
Responsabilizar um argelino, quem quer que seja, seria um preço muito alto a
pagar por aquilo que talvez seria chamado ‘a
graça do martírio’, especialmente se ele diz que agiu em fidelidade com o
que acredita que seja o Islão. Estou consciente do desprezo com que se olha
todos os argelinos indiscriminadamente.
Também tenho consciência da caricatura
do Islão que um certo islamismo encoraja. É fácil salvar a própria consciência
identificando esta via religiosa com as ideologias fundamentalistas dos seus
extremistas. Para mim, a Argélia e o Islão são algo diferente : são um corpo e
uma alma. Disse isto bastante frequentemente, creio eu, de acordo com o que eu
recebi – e no qual encontrei muitas vezes o tal fio condutor do Evangelho – dos
joelhos da minha mãe, a minha primeira Igreja, na própria Argélia, e já
inspirada com respeito pelos crentes muçulmanos.
A minha morte, naturalmente, parecerá
justificar aqueles que me julgam apressadamente ingénuo ou idealista : ‘Que diga agora o que pensa disto!’ Mas
estas pessoas precisam de compreender que a minha mais ansiosa curiosidade será
então satisfeita. Pois será então que, se Deus assim quiser, poderei mergulhar
o meu olhar naquele do Pai, para contemplar com Ele os Seus filhos do Islão da
mesma forma como Ele os vê, todos radiantes com a glória de Cristo, fruto da
sua Paixão, e cheios do Dom do Espírito, cuja alegria secreta será sempre de
estabelecer a comunhão e de restabelecer a semelhança divina, jogando com as
nossas diferenças.
Por esta vida perdida, totalmente minha
e totalmente deles, agradeço a Deus que parece tê-la desejado inteiramente, por
esta alegria em tudo e a despeito de tudo. Neste agradecimento, que resume a
minha vida inteira a partir de agora, certamente incluo vocês, amigos de ontem
e de hoje, e vocês, meus amigos deste lugar, junto com a minha mãe e o meu pai,
minhas irmãs e irmãos e suas famílias, o cêntuplo como prometido!
E também tu, amigo do momento final,
que não terás consciência do que estarás fazendo. Sim, a ti também vai o meu
agradecimento e este ‘A-DEUS’ em face de ti. E possamos os dois
encontrarmo-nos, felizes bons ladrões, no Paraíso, se assim aprouver a Deus, Pai
de ambos... Amen! In sha’Allah! (Christian+, Algiers, 1 de Dezembro de
1993-Tibhirine, 1 de Janeiro de 1994).
Que o exemplo desta e de tantas outras
testemunhas, que encarnam ao longo dos tempos a figura do Bom Pastor, nos
encoraje a pronunciar com generosidade o nosso HINENI.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http
://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EupEZlAVZytITNqYhe
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