* Artigo de José Rebelo e David
Domingues,
Missionários Combonianos
Há vinte anos que o missionário italiano padre Vicente
Bordo, OMI, se dedica aos sem-abrigo e aos excluídos da rica e competitiva
sociedade coreana. Com a ajuda de um exército de 600 voluntários, oferecem-lhes
comida e abrigo, mas principalmente carinho. Em todos eles, o padre Vicente
encontra Jesus.
‘Como é que a aventura coreana começou para
si?
– Vim para a Coréia do Sul com duas
ideias em mente : Jesus e os pobres. Como oblato [de Maria Imaculada], tenho de
evangelizar os pobres, mas eu não sabia como pô-lo em prática neste contexto.
Um dia, numa reunião do clero em 1990, enquanto estava a estudar coreano,
perguntei aos sacerdotes : ‘Onde estão os
pobres na Coréia?’ Um padre respondeu-me : ‘Na minha cidade, Seong-nam, há muitos pobres. Se você quiser trabalhar
para eles, venha para a minha paróquia.’
O que fez concretamente?
– Visitei Seong-nam pela primeira vez
em 1991. Era um bairro-de-lata. Quando estudava coreano, comecei a trabalhar
aqui durante os fins-de-semana. Quando terminei os estudos, mudei-me aqui para
a paróquia como pároco assistente. Havia uma Irmã que trabalhava com os pobres
da região. Eu comecei a acompanhá-la, visitando famílias na área do
bairro-de-lata. Entretanto, a paróquia foi convidada a abrir uma cantina, em
nome da Câmara Municipal. O pároco disse-me : ‘Posso aceitar, se você for o responsável.’ Eu concordei. Estávamos
em 1993. Comecei a gerir uma cantina para pessoas idosas. Fazia isso na parte
da manhã. Na parte da tarde, continuámos a visitar famílias no bairro-de-lata.
Qual foi o passo seguinte?
– Na parte da manhã, trabalhava na
cantina. Mais de 60 idosos foram chegando. Pouco a pouco, desenvolvemos algumas
actividades. Além de alimentá-los, organizámos aulas para aqueles que não
sabiam ler e escrever, ginástica e assim por diante. Satisfeita, a Câmara
Municipal deu-nos outro edifício para estas actividades. As coisas estavam a
caminhar bem.
Em 1998, no entanto, algumas Irmãs
queriam prosseguir sem mim e deram-me duas semanas para sair. Foi durante a
crise do FMI, que lançou muitas pessoas para as ruas. Uma espécie de milagre
aconteceu. Três pessoas vieram ter comigo. Eu conhecia duas delas : uma tinha
um grande restaurante, perto da estação de metrô. Elas propuseram-me : ‘Sabemos que trabalha para os que vivem na
rua. Gostaria de gerir um restaurante para os alimentar?’ Foi uma nova
oportunidade e eu aceitei a oferta. (Eles não sabiam que eu tinha de deixar o
local, ninguém sabia!) Era um restaurante distribuído pelos 5.º, 6.º e 7.º
andares. A nós foi-nos dado o 6.º andar. O proprietário patrocinava-o e dávamos
comida duas vezes por semana. Perguntei aos voluntários que conhecia se podiam
ajudar. Pouco a pouco, o número de sem-abrigo aumentou muito e tornou-se
impossível continuar lá. Como havia uma antiga construção pré-fabricada nas
proximidades, era uma loja da paróquia, perguntei ao pároco se a podíamos usar.
O pároco falou com o Conselho Pastoral Paroquial, que concordou em deixar-nos
usá-lo na condição de ser seu padre assistente.
Mudámos para esse prédio antigo em
1998. Trabalhámos lá até 2008, quando o substituímos por um novo edifício
(aquele onde estamos agora). Devido às necessidades dos sem-abrigo, a comida
foi distribuída diariamente e as actividades aumentaram. Um conselheiro
municipal ofereceu-se para ajudar: ‘Sou
conselheiro profissional. Posso ajudar essas pessoas a encontrar emprego.’
Então, juntou-se a nós. Uma vez, eu estava doente e fui ao hospital. O médico
perguntou o que estava a fazer aqui. ‘Sou
padre católico e trabalho com os sem-abrigo’, respondi. ‘Provavelmente, há muitas pessoas doentes
entre eles!’, continuou ele, e ofereceu-se para iniciar uma clínica. Em
seguida, um barbeiro veio oferecer os seus serviços. O que se vê agora é o
fruto de muitos anos e os esforços de muitas pessoas. O meu papel é o de
recebê-los, para dar espaço para aqueles que vêm dispostos a ajudar os outros.
Os novos pobres
Nestes anos, já serviu mais de um milhão de refeições,
uma média de 450 por dia.
– Normalmente, servimos uma refeição
para entre 450 e 500 pessoas por dia; no Inverno, servimos mais de 600; no
Verão, cerca de 350; em média, ajudamos cerca de 450 sem-abrigo por dia.
Quem são eles?
– O ‘novos’ pobres. Muitos deles têm telemóveis e algum dinheiro que
lhes permite comprar álcool, por exemplo; mas estão afastados da sociedade
moderna; são outsiders, têm sido marginalizados. Cinquenta por cento deles
ficam nas ruas : são as pessoas realmente sem-abrigo; 25 por cento são idosos
muito pobres, sem ninguém para cuidar deles; e 25 por cento são jovens com
vários problemas – são anti-sociais e não trabalham. Esta é a cara da ‘nova pobreza’.
Disse que há vários tipos de sem-abrigo. Pode nomeá-los?
– A primeira categoria é composta por
pessoas normais que trabalhavam, foram despedidas e acabaram na rua. Se essas
pessoas encontrarem ajuda, como o tipo de ajuda que estamos a oferecer, 95 por
cento delas conseguem recomeçar. É a categoria mais pequena.
A segunda categoria é composta por
aqueles que tiveram uma infância difícil : foram criados em famílias em que
havia pobreza, alcoolismo (geralmente do pai) e, talvez, divórcio. Cresceram
numa situação em que não se sentiam aceites, amados; quase não receberam nenhum
tipo de educação e não têm amor-próprio. Portanto, não conseguem estar, lidar
com os outros e viver em sociedade. Estão nas ruas não porque não haja trabalho
– há muito trabalho na Coréia do Sul –, mas eles não são capazes de trabalhar,
de ficar num lugar por longo tempo e viver com outras pessoas, porque têm
problemas psicológicos, psiquiátricos, físicos e sociais.
A terceira categoria existe como
resultado da urbanização. É composta por pessoas não escolarizadas, simples,
jovens, que vêm para a cidade, porque vêem na televisão. Eles pensam : ‘Seul é bonita, com tantas luzes, carros,
hotéis, dinheiro... Se eu for para lá, posso ter uma grande vida.’ Vêm sem
conhecer ninguém e sem aptidões práticas. Na Primavera, trabalham na construção
civil ou nos campos; no Inverno, quando não há trabalho por causa do frio,
ficam na rua.
Que programas oferece para os resgatar?
– Primeiro que tudo, vamos tentar
satisfazer as suas necessidades básicas e ajudá-los a comer, tomar duche, fazer
a barba, vestirem-se e estarem limpos como seres humanos decentes. Em segundo
lugar, para aqueles que querem mudar de vida, damos-lhes aulas todas as
terças-feiras. Temos médicos de diferentes especialidades na nossa clínica,
damos aconselhamento, educação psicológica e sexual e, a partir deste ano,
oferecemos-lhes um lugar para dormir e tentamos encontrar trabalho para eles.
Nós oferecemos muitos serviços, mas o
mais importante que fazemos aqui é dar-lhes esperança. O que significa isto? As
500 pessoas que vêm aqui todos os dias nem sempre são as mesmas. O que
significa que milhares e milhares conhecem o centro. Eles sabem que se estão
com fome, podem vir comer; se estão doentes, serão tratados; se têm um problema
jurídico, há um advogado para os ajudar. Eu acho que o maior trabalho que
fazemos é dar esperança às pessoas que estão nas ruas; não podemos resolver
todos os seus problemas – o que seria impossível –, mas dizemos-lhes que
estamos praticamente ao lado deles em tempos de necessidade a apoiá-los.
Um exército de voluntários
Quantos voluntários o ajudam?
– À volta de 600 voluntários. A maioria
trabalha na cantina. Há também médicos, advogados, professores e outras pessoas
especializadas. Há mais de 30 equipas : cada uma assume à vez o comando da
cantina um dia por mês.
Quem o apoia?
– Apoia-me Jesus! Tenho vindo a
trabalhar há vinte anos sem nenhuma ajuda da edilidade e nunca faltou o que
precisávamos. Quando receávamos ficar sem abastecimento no mês seguinte, algo
aconteceu sempre que nos permitiu continuar. Tem sido sempre assim. Este é um
milagre. Mas o maior milagre para mim foi quando um pastor protestante, um
monge budista e as pessoas, mesmo sem-abrigo, chegaram à missa de celebração do
25.º aniversário da minha ordenação sacerdotal. Fiquei muito satisfeito.
Qual é a sua principal fonte de receita?
– Vou pelas paróquias pedir dinheiro,
quando os párocos me dão autorização. Convido os paroquianos a darem 2 a 3
dólares por mês, o preço de uma refeição para os sem-abrigo. Um número
infindável de gente compromete-se a dar-nos uma pequena quantia. Cerca de 95
por cento da receita é gerada localmente. Isso é uma coisa bonita. E o melhor
sinal para nós da validade deste trabalho é que muitos voluntários, além de
darem o seu tempo e trabalho, doam dinheiro para manter o projecto em funcionamento.
Cada dia é um milagre! As pessoas dão donativos, comida, arroz e outros bens.
Todos os dias sinto que é Jesus que conduz esta estrutura, eu só colaboro com
Ele.
Porque dão o nome de ‘Casa de Anna’ a estas empresas?
– O proprietário do restaurante que nos
disponibilizou o 6.º andar chama-se Mateus. Ele é católico, mas disse-me : ‘Eu não sou devoto; não sei como orar; mas
quero fazer algo de bom em nome da minha falecida mãe, Anna.’ A sua
generosidade foi um acto de oração pela sua mãe.
Envolvimento com a juventude
Além da cantina, também gere casas para crianças...
– Sim, temos quatro casas para crianças
de rua, com 40 crianças. Eu vim aqui com a ideia de servir os pobres, mas não
sabia como. Não me sentei e planeie. Fiquei com os pobres e ouvia-os. As coisas
aconteceram espontaneamente. Os sem-abrigo reuniram-se com os jovens, meninos e
meninas, nas ruas, e disseram-lhes para virem e comerem. No Inverno, está muito
frio aqui : -15 a -20 ºC. Depois de comer, as crianças saíam com o tempo
gelado.
Isso foi um desafio para mim : ‘Como é possível deixá-los ir sem dinheiro e
um lugar para ficarem? Não é justo; deve-se cuidar das crianças... O que
podemos fazer por elas?’
Um dia, em 1999, o antigo pároco
disse-me : ‘Tenho uma cave que pode usar.’
Eu respondi : ‘Óptimo. Posso usá-la para
abrigar as crianças da rua, mas preciso de mais dois funcionários! Onde posso
obter o dinheiro?’ Mas decidi tentar. Reunimos 15 crianças. Fiquei com elas
com um empregado. Fizemos alguns programas para eles. Alguns deles estavam
prontos para estudar; alguns não, preferiram trabalhar. Decidimos encontrar uma
casa nova e separá-los. Então, tínhamos uma casa para os alunos e uma para os
trabalhadores. Agora, já temos quatro casas onde as crianças recebem
aconselhamento e são ajudadas.
Quais são os pilares espirituais que o ajudam a fazer
este trabalho todos os dias?
– A espiritualidade que me inspira é a
seguinte : aqueles que amam Jesus, como Maria Madalena e João, o apóstolo, são
capazes de reconhecê-Lo depois da Sua Ressurreição. Tomé também reconhece Jesus
depois de tocar as Suas feridas. O Cristo ressuscitado ainda tem as feridas da
Sua Paixão. Acreditamos que Jesus ressuscitado ainda está aqui entre nós, na
Igreja, na Sua Palavra, nos sacramentos, na Natureza... Esta é a imagem
gloriosa de Jesus Ressuscitado. Mas, nas pessoas que servimos, nós vemos as
chagas de Cristo ressuscitado. Assim, aqui, não estamos a trabalhar para os
pobres; estamos a curar as feridas do Ressuscitado, Jesus Glorioso. Tocamos os
sofrimentos de Jesus. Nos Actos dos Apóstolos, os novos cristãos são chamados ‘aqueles que estão andando na Nova Via’.
Sinto que encontrei Jesus, e não apenas na Igreja, ou numa boa meditação, mas
muito mais quando ando nas ruas todos os dias. Encontro-me com Jesus nas feridas da humanidade,
encontro-me com Jesus, a qualquer momento em que sou capaz de amar.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http
://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EupukAZFkEKXiGWsrLhttp://www.aleteia.org/pt/mundo/artigo/premio-nacional-da-coreia-do-sul-a-um-sacerdote-5899255776542720
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