quarta-feira, 16 de julho de 2014

Padre Vicente Bordo e os sem-abrigo de Seul, na Coréia : Encontrar Jesus nas ruas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
* Artigo de José Rebelo e David Domingues,
Missionários Combonianos 

Há vinte anos que o missionário italiano padre Vicente Bordo, OMI, se dedica aos sem-abrigo e aos excluídos da rica e competitiva sociedade coreana. Com a ajuda de um exército de 600 voluntários, oferecem-lhes comida e abrigo, mas principalmente carinho. Em todos eles, o padre Vicente encontra Jesus.

Como é que a aventura coreana começou para si?
– Vim para a Coréia do Sul com duas ideias em mente : Jesus e os pobres. Como oblato [de Maria Imaculada], tenho de evangelizar os pobres, mas eu não sabia como pô-lo em prática neste contexto. Um dia, numa reunião do clero em 1990, enquanto estava a estudar coreano, perguntei aos sacerdotes : ‘Onde estão os pobres na Coréia?’ Um padre respondeu-me : ‘Na minha cidade, Seong-nam, há muitos pobres. Se você quiser trabalhar para eles, venha para a minha paróquia.

O que fez concretamente?
– Visitei Seong-nam pela primeira vez em 1991. Era um bairro-de-lata. Quando estudava coreano, comecei a trabalhar aqui durante os fins-de-semana. Quando terminei os estudos, mudei-me aqui para a paróquia como pároco assistente. Havia uma Irmã que trabalhava com os pobres da região. Eu comecei a acompanhá-la, visitando famílias na área do bairro-de-lata. Entretanto, a paróquia foi convidada a abrir uma cantina, em nome da Câmara Municipal. O pároco disse-me : ‘Posso aceitar, se você for o responsável.’ Eu concordei. Estávamos em 1993. Comecei a gerir uma cantina para pessoas idosas. Fazia isso na parte da manhã. Na parte da tarde, continuámos a visitar famílias no bairro-de-lata.

Qual foi o passo seguinte?
– Na parte da manhã, trabalhava na cantina. Mais de 60 idosos foram chegando. Pouco a pouco, desenvolvemos algumas actividades. Além de alimentá-los, organizámos aulas para aqueles que não sabiam ler e escrever, ginástica e assim por diante. Satisfeita, a Câmara Municipal deu-nos outro edifício para estas actividades. As coisas estavam a caminhar bem.

Em 1998, no entanto, algumas Irmãs queriam prosseguir sem mim e deram-me duas semanas para sair. Foi durante a crise do FMI, que lançou muitas pessoas para as ruas. Uma espécie de milagre aconteceu. Três pessoas vieram ter comigo. Eu conhecia duas delas : uma tinha um grande restaurante, perto da estação de metrô. Elas propuseram-me : ‘Sabemos que trabalha para os que vivem na rua. Gostaria de gerir um restaurante para os alimentar?’ Foi uma nova oportunidade e eu aceitei a oferta. (Eles não sabiam que eu tinha de deixar o local, ninguém sabia!) Era um restaurante distribuído pelos 5.º, 6.º e 7.º andares. A nós foi-nos dado o 6.º andar. O proprietário patrocinava-o e dávamos comida duas vezes por semana. Perguntei aos voluntários que conhecia se podiam ajudar. Pouco a pouco, o número de sem-abrigo aumentou muito e tornou-se impossível continuar lá. Como havia uma antiga construção pré-fabricada nas proximidades, era uma loja da paróquia, perguntei ao pároco se a podíamos usar. O pároco falou com o Conselho Pastoral Paroquial, que concordou em deixar-nos usá-lo na condição de ser seu padre assistente.

Mudámos para esse prédio antigo em 1998. Trabalhámos lá até 2008, quando o substituímos por um novo edifício (aquele onde estamos agora). Devido às necessidades dos sem-abrigo, a comida foi distribuída diariamente e as actividades aumentaram. Um conselheiro municipal ofereceu-se para ajudar: ‘Sou conselheiro profissional. Posso ajudar essas pessoas a encontrar emprego.’ Então, juntou-se a nós. Uma vez, eu estava doente e fui ao hospital. O médico perguntou o que estava a fazer aqui. ‘Sou padre católico e trabalho com os sem-abrigo’, respondi. ‘Provavelmente, há muitas pessoas doentes entre eles!’, continuou ele, e ofereceu-se para iniciar uma clínica. Em seguida, um barbeiro veio oferecer os seus serviços. O que se vê agora é o fruto de muitos anos e os esforços de muitas pessoas. O meu papel é o de recebê-los, para dar espaço para aqueles que vêm dispostos a ajudar os outros.


Os novos pobres

Nestes anos, já serviu mais de um milhão de refeições, uma média de 450 por dia.
– Normalmente, servimos uma refeição para entre 450 e 500 pessoas por dia; no Inverno, servimos mais de 600; no Verão, cerca de 350; em média, ajudamos cerca de 450 sem-abrigo por dia.

Quem são eles?
– O ‘novos’ pobres. Muitos deles têm telemóveis e algum dinheiro que lhes permite comprar álcool, por exemplo; mas estão afastados da sociedade moderna; são outsiders, têm sido marginalizados. Cinquenta por cento deles ficam nas ruas : são as pessoas realmente sem-abrigo; 25 por cento são idosos muito pobres, sem ninguém para cuidar deles; e 25 por cento são jovens com vários problemas – são anti-sociais e não trabalham. Esta é a cara da ‘nova pobreza’.

Disse que há vários tipos de sem-abrigo. Pode nomeá-los?
– A primeira categoria é composta por pessoas normais que trabalhavam, foram despedidas e acabaram na rua. Se essas pessoas encontrarem ajuda, como o tipo de ajuda que estamos a oferecer, 95 por cento delas conseguem recomeçar. É a categoria mais pequena.

A segunda categoria é composta por aqueles que tiveram uma infância difícil : foram criados em famílias em que havia pobreza, alcoolismo (geralmente do pai) e, talvez, divórcio. Cresceram numa situação em que não se sentiam aceites, amados; quase não receberam nenhum tipo de educação e não têm amor-próprio. Portanto, não conseguem estar, lidar com os outros e viver em sociedade. Estão nas ruas não porque não haja trabalho – há muito trabalho na Coréia do Sul –, mas eles não são capazes de trabalhar, de ficar num lugar por longo tempo e viver com outras pessoas, porque têm problemas psicológicos, psiquiátricos, físicos e sociais.

A terceira categoria existe como resultado da urbanização. É composta por pessoas não escolarizadas, simples, jovens, que vêm para a cidade, porque vêem na televisão. Eles pensam : ‘Seul é bonita, com tantas luzes, carros, hotéis, dinheiro... Se eu for para lá, posso ter uma grande vida.’ Vêm sem conhecer ninguém e sem aptidões práticas. Na Primavera, trabalham na construção civil ou nos campos; no Inverno, quando não há trabalho por causa do frio, ficam na rua.

Que programas oferece para os resgatar?
– Primeiro que tudo, vamos tentar satisfazer as suas necessidades básicas e ajudá-los a comer, tomar duche, fazer a barba, vestirem-se e estarem limpos como seres humanos decentes. Em segundo lugar, para aqueles que querem mudar de vida, damos-lhes aulas todas as terças-feiras. Temos médicos de diferentes especialidades na nossa clínica, damos aconselhamento, educação psicológica e sexual e, a partir deste ano, oferecemos-lhes um lugar para dormir e tentamos encontrar trabalho para eles.

Nós oferecemos muitos serviços, mas o mais importante que fazemos aqui é dar-lhes esperança. O que significa isto? As 500 pessoas que vêm aqui todos os dias nem sempre são as mesmas. O que significa que milhares e milhares conhecem o centro. Eles sabem que se estão com fome, podem vir comer; se estão doentes, serão tratados; se têm um problema jurídico, há um advogado para os ajudar. Eu acho que o maior trabalho que fazemos é dar esperança às pessoas que estão nas ruas; não podemos resolver todos os seus problemas – o que seria impossível –, mas dizemos-lhes que estamos praticamente ao lado deles em tempos de necessidade a apoiá-los.


Um exército de voluntários

Quantos voluntários o ajudam?
– À volta de 600 voluntários. A maioria trabalha na cantina. Há também médicos, advogados, professores e outras pessoas especializadas. Há mais de 30 equipas : cada uma assume à vez o comando da cantina um dia por mês.

Quem o apoia?
– Apoia-me Jesus! Tenho vindo a trabalhar há vinte anos sem nenhuma ajuda da edilidade e nunca faltou o que precisávamos. Quando receávamos ficar sem abastecimento no mês seguinte, algo aconteceu sempre que nos permitiu continuar. Tem sido sempre assim. Este é um milagre. Mas o maior milagre para mim foi quando um pastor protestante, um monge budista e as pessoas, mesmo sem-abrigo, chegaram à missa de celebração do 25.º aniversário da minha ordenação sacerdotal. Fiquei muito satisfeito.

Qual é a sua principal fonte de receita?
– Vou pelas paróquias pedir dinheiro, quando os párocos me dão autorização. Convido os paroquianos a darem 2 a 3 dólares por mês, o preço de uma refeição para os sem-abrigo. Um número infindável de gente compromete-se a dar-nos uma pequena quantia. Cerca de 95 por cento da receita é gerada localmente. Isso é uma coisa bonita. E o melhor sinal para nós da validade deste trabalho é que muitos voluntários, além de darem o seu tempo e trabalho, doam dinheiro para manter o projecto em funcionamento. Cada dia é um milagre! As pessoas dão donativos, comida, arroz e outros bens. Todos os dias sinto que é Jesus que conduz esta estrutura, eu só colaboro com Ele.

Porque dão o nome de ‘Casa de Anna’ a estas empresas?
– O proprietário do restaurante que nos disponibilizou o 6.º andar chama-se Mateus. Ele é católico, mas disse-me : ‘Eu não sou devoto; não sei como orar; mas quero fazer algo de bom em nome da minha falecida mãe, Anna.’ A sua generosidade foi um acto de oração pela sua mãe.


Envolvimento com a juventude

Além da cantina, também gere casas para crianças...
– Sim, temos quatro casas para crianças de rua, com 40 crianças. Eu vim aqui com a ideia de servir os pobres, mas não sabia como. Não me sentei e planeie. Fiquei com os pobres e ouvia-os. As coisas aconteceram espontaneamente. Os sem-abrigo reuniram-se com os jovens, meninos e meninas, nas ruas, e disseram-lhes para virem e comerem. No Inverno, está muito frio aqui : -15 a -20 ºC. Depois de comer, as crianças saíam com o tempo gelado.

Isso foi um desafio para mim : ‘Como é possível deixá-los ir sem dinheiro e um lugar para ficarem? Não é justo; deve-se cuidar das crianças... O que podemos fazer por elas?

Um dia, em 1999, o antigo pároco disse-me : ‘Tenho uma cave que pode usar.’ Eu respondi : ‘Óptimo. Posso usá-la para abrigar as crianças da rua, mas preciso de mais dois funcionários! Onde posso obter o dinheiro?’ Mas decidi tentar. Reunimos 15 crianças. Fiquei com elas com um empregado. Fizemos alguns programas para eles. Alguns deles estavam prontos para estudar; alguns não, preferiram trabalhar. Decidimos encontrar uma casa nova e separá-los. Então, tínhamos uma casa para os alunos e uma para os trabalhadores. Agora, já temos quatro casas onde as crianças recebem aconselhamento e são ajudadas.

Quais são os pilares espirituais que o ajudam a fazer este trabalho todos os dias?
– A espiritualidade que me inspira é a seguinte : aqueles que amam Jesus, como Maria Madalena e João, o apóstolo, são capazes de reconhecê-Lo depois da Sua Ressurreição. Tomé também reconhece Jesus depois de tocar as Suas feridas. O Cristo ressuscitado ainda tem as feridas da Sua Paixão. Acreditamos que Jesus ressuscitado ainda está aqui entre nós, na Igreja, na Sua Palavra, nos sacramentos, na Natureza... Esta é a imagem gloriosa de Jesus Ressuscitado. Mas, nas pessoas que servimos, nós vemos as chagas de Cristo ressuscitado. Assim, aqui, não estamos a trabalhar para os pobres; estamos a curar as feridas do Ressuscitado, Jesus Glorioso. Tocamos os sofrimentos de Jesus. Nos Actos dos Apóstolos, os novos cristãos são chamados ‘aqueles que estão andando na Nova Via’. Sinto que encontrei Jesus, e não apenas na Igreja, ou numa boa meditação, mas muito mais quando ando nas ruas todos os dias. Encontro-me com Jesus nas feridas da humanidade, encontro-me com Jesus, a qualquer momento em que sou capaz de amar.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EupukAZFkEKXiGWsrL

http://www.aleteia.org/pt/mundo/artigo/premio-nacional-da-coreia-do-sul-a-um-sacerdote-5899255776542720


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