Mostrando postagens com marcador missionário(a). Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador missionário(a). Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 20 de junho de 2025

As irmãs beneditinas missionárias de Tutzing

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do site da Congregação de Tutzing

 

Como tudo começou

‘«Global prayers» é o nome dado a um movimento contemporâneo célebre de renovação religiosa mundial e foi assim que a nossa comunidade se pôde apresentar desde o início. Com efeito, o que é considerado como novo hoje, as nossas irmãs já punham em prática há várias décadas. Traziam no coração trazer e fazer anunciar a mensagem da Boa Nova de Jesus Cristo ao mundo inteiro. Para tanto deixaram tudo para trás e apostaram num futuro incerto. 

O fundador

O seu fundador foi um monge beneditino de Beuron, o padre Andreas Amrhein (1844-1929), vindo da Suíça. Numa época em que numerosas congregações missionárias despertavam – os missionários do Sagrado Coração (1855), os missionários Combonianos (1867), os Padres Brancos (1868), os missionários Steyl (1875) ou ainda os missionários de Marianhill (1882) – a questão era lancinante no seu âmago, saber se vida monástica beneditina e missão podiam conciliar-se. Ao longo de extensos anos de investigação e luta – internamente, com os seus superiores e diversas autoridades – deu-se provas de uma profunda perspicácia. Apesar de numerosos obstáculos no seu percurso, não se pôde impedir o desenvolvimento e a prática de uma tal inspiração. 

Uma inspiração

Em 1885, o padre Amrhein apresentou em Münster, quando da 32ª Jornada católica alemã, a sua ideia de uma «comunidade beneditina para o trabalho missionário em países estrangeiros». No ano precedente, ele tinha fundado uma casa de missão para homens em Reichenbach, no Alto Palatinato. Ele alentava secretamente – nesses tempos tão anticlericais do ponto de vista político – o sonho de que mulheres participassem igualmente numa tal obra. 

A centelha acende-se em Münster

Três semanas mais tarde, as quatro primeiras mulheres, Vestefalianas, lançaram-se com audácia numa aventureira viagem rumo ao sul da Alemanha. Estas mulheres queriam realmente partir para a Índia, mas Deus parecia ter outros planos para elas.

Os começos desta comunidade de homens e de mulheres de Reichenbach foram difíceis. As condições políticas da época obrigavam a que quase tudo fosse feito em segredo. A situação material era extremamente complexa, até mesmo desesperadora.

Nova partida para Santa Otília

Já em 1887, uma segunda casa foi fundada em Emming, a atual Santa Otília, onde toda a comunidade instalou-se; Reichenbach foi completamente abandonada. Em Emming, ambos os ramos da comunidade prosperavam. Viviam todos em condições de grande simplicidade e pobreza. As comunidades tinham que enfrentar numerosos problemas e confrontavam-se com enormes tarefas : numerosos jovens homens e mulheres juntavam-se a esta obra. Era preciso assegurar a sua subsistência e construir edifícios nos quais pudessem viver. Era igualmente urgente introduzi-los bem na vida religiosa e formá-los profissionalmente. Deviam ser bem cedo enviados para o estrangeiro. Lá, seriam entregues a si próprios sendo suposto proclamarem a fé de maneira responsável, sendo ativos no domínio médico ou educativo como em vários outros setores. 

Primeiros passos no mundo

O padre Amrhein aceitou muito rapidamente a oferta de tomar a seu cargo uma zona do leste da África. A prefeitura apostólica de Zanzibar do Sul tinha sido criada por um decreto pontifical de 16 de novembro de 1887 e confirmada como a «nova Congregação beneditina alemã para as missões estrangeiras». Era a primeira vez que missionários desta nova família podiam ser enviados para o estrangeiro.

Assim, num tempo espantosamente curto, desde o fim de 1887, os primeiros irmãos e irmãs ousaram dar o grande passo que revolucionaria o seu futuro : a 11 de novembro de 1887, o primeiro grupo (um padre, nove irmãos e quatro irmãs) viajaram para o leste de África, Tanganyica. Eles e outros que era suposto segui-los começaram a construir aí casas de missão. Sofreram graves reveses. Doenças que não conheciam atingiram numerosos irmãos e irmãs ainda jovens – o cemitério perto de Dar es Salaam é eloquente nesse fato. Em 1889, a primeira casa de Pugu foi atacada e irmãos e uma irmã foram assassinados. Entretanto, na Alemanha, não obstante as más notícias, numerosos jovens continuavam a entrar. Desde 1896, as duas comunidades de Santa Otília contavam dezesseis padres, treze clérigos, quarenta e seis irmãos e setenta e uma irmãs. A necessidade de espaço em Santa Otília torna-se cada vez mais urgente e as irmãs tiveram que procurar depressa a sua própria Casa mãe.

A Casa mãe, o caminho da independência

Assim, em 1902, foi tomada a decisão de instalar as irmãs em Tutzing. Desde 1887, as irmãs haviam fundado em Reichenbach uma pequena comunidade que dirigia um jardim de infância. Depois foi construído um grande convento num prado de Tutzing no qual as irmãs puderam instalar-se. Em 1 de janeiro de 1904, pertenciam à comunidade um total de 119 irmãs.

Esta etapa representou bem mais que uma mudança de lugar para as irmãs. Ela conduzia-as na via da independência. Se isto não foi fácil no começo, o futuro demonstraria a lucidez de uma tal decisão que deveria conduzir a comunidade através de um desenvolvimento inesperado. O laço fraterno com os irmãos de Santa Otília foi entretanto preservado até aos nossos dias. 

No mundo

A prioridade das irmãs era servir a difusão do Evangelho e estar ao serviço das populações. Após os primeiros envios comuns (monges e irmãs) para o que é hoje a Tanzânia, onde há ainda dois priorados em Peramiho e Ndanda, as irmãs instalaram, em 1903, sob a previdente direção da primeira prioresa, Madre Birgitta Korff, uma nova fundação num país que lhes era desconhecido : o Brasil. Um antigo confrade do padre Andreas Amrhein em Beuron e Maredsous, Dom Gérard von Caloen, tornava-se abade de Olinda (Brasil) em 1896 e convidava as irmãs a animar uma obra missionária no Brasil. Pediu à Madre Birgitta irmãs para a educação de meninas.

Uma nova fundação teve lugar em 1906. Cinco irmãs partiram para as Filipinas cheias de zelo pela missão... Seguir-se-iam numerosas outras fundações em todos os continentes do mundo.

Atualmente as irmãs estão presentes em dezessete países em quatro continentes :

Na Europa : Alemanha, Bulgária, Itália, Espanha, Portugal, Suíça.

Na América : Argentina, Brasil, Estados Unidos.

Na África : Angola, Quênia, Namíbia, Tanzânia, Uganda.

Na Ásia : Coreia do Sul, Índia, Filipinas.

A Casa mãe fica em Roma.

Em 2017, a congregação contava 1336 religiosas em 136 casas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/119

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Quênia: religiosas cegas oferecem seu testemunho ao povo de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Da esquerda para a direita: Irmã Mary Carmen, Irmã Mary Veronica e Irmã Mary Angelina na capela 

*Artigo da Irmã Michelle Njeri, OSF


A família de Dom Orione inclui os Filhos da Divina Providência e as Pequenas Irmãs Missionárias da Caridade. No entanto, menos conhecido é que dentro da mesma família existe uma comunidade de Irmãs Sacramentinas, cujos membros são religiosas com deficiência visual.

As Irmãs Sacramentinas passam grande parte do dia em adoração ao Santíssimo Sacramento, mas também realizam um apostolado em sua comunidade local. O instituto foi fundado na Itália por São Luís Orione, um sacerdote italiano comumente conhecido como Dom Orione. No Quênia, a comunidade das Irmãs Sacramentinas conta com quatro membros : Irmã Mary Carmen, Irmã Mary Angelina, Irmã Mary Rachael e Irmã Mary Veronica.

Apostolado e oração

A Irmã Mary Veronica sempre desejou ser religiosa, mas teve dificuldades em encontrar uma congregação que a aceitasse devido à sua deficiência visual. Em 1981, uma irmã da Consolata a direcionou pela primeira vez para as Irmãs Sacramentinas, onde ela permanece até hoje. ‘Esta congregação de freiras com deficiência visual é única e é a única no Quênia’, disse a Irmã Mary Veronica. ‘Nosso fundador, Dom Orione, era uma pessoa caridosa e nos pediu para sermos mães e irmãs dos pobres. Oferecemos nossa falta de visão a Deus para os irmãos e irmãs que não conhecem a verdade, para que possam experimentar Deus, a luz do mundo.’

Embora tenham deficiência visual, as Irmãs Sacramentinas são contemplativas e, ao mesmo tempo, muito ativas. Ensinam catecismo em sua paróquia, visitam as pessoas na vila próxima e oferecem sua ajuda também online. ‘Em nosso carisma de Irmãs Sacramentinas, adoramos Jesus no Santíssimo Sacramento e falamos a Jesus sobre a humanidade. Encontramos as pessoas e falamos a elas sobre o amor de Deus. Levamos as almas a Jesus e Jesus às almas’, disse a religiosa.

As irmãs fazem Adoração em turnos e se envolvem em outras tarefas comunitárias, como agricultura, criação de aves, confecção de rosários e trabalhos de tricô, como atividades geradoras de renda para a sustentabilidade. ‘Nos unimos à congregação para dar e receber; não nos unimos para ser ajudadas. Procuramos ser autônomas em tudo o que fazemos’, disse a Irmã Mary Veronica, acrescentando : ‘Preciso de oportunidades, não de compaixão.’ 

Desafios da comunidade

Comprar livros escritos em braille não é fácil para as freiras com deficiência visual. Por muitos anos, elas importaram livros espirituais em braille do exterior. Com o aumento das tarifas de importação, as freiras não podem mais receber os livros como antes. No entanto, as religiosas reconhecem que os desafios as tornam completas. ‘Enfrentamos os desafios com alegria, ter deficiência visual não nos tira os talentos e capacidades’, afirma a Irmã Mary Rachael.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-08/quenia-religiosas-deficiencia-visual-testemunho.html

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Missionários haitianos, vítimas de uma “trágica, desumana e absurda vida cotidiana”

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Giulia Mutti


O clima de violência no Haiti, que está nas mãos de gangues criminosas desde 29 de fevereiro, não para. ‘Em um lugar do qual não se fala mais há algum tempo, talvez para fazer as pessoas pensarem que as coisas já estão resolvidas’, explica Maddalena Boschetti, missionária italiana no estado caribenho, ‘este é o nosso trágico, desumano, absurdo, anormal, cotidiano’. Na semana passada, três missionários evangélicos, dois deles estadunidenses, foram mortos de forma extremamente violenta no orfanato pelo qual eram responsáveis, a poucos passos do Hospital São Camilo, em La Plaine, na capital Porto Príncipe, na frente das crianças que cuidavam.

A emboscada

De acordo com Maddalena Boschetti, a emboscada aconteceu repentinamente na quinta-feira, 23 de maio. Os três missionários deram a notícia da emboscada a seus entes queridos ao vivo, usando Wi-Fi, por meio de uma agitada troca de mensagens, e as imagens violentas apareceram posteriormente nas redes sociais. Apesar de todos os apelos, ninguém interveio e as gangues saquearam, vandalizaram, espancaram, mataram e queimaram os corpos com extrema violência. Dois jovens estadunidenese, Natalie e Davy Lloyd, de 21 e 23 anos, respectivamente filha e genro de um congressista republicano dos EUA, perderam a vida. Junto com eles, morreu também Jude Montis, o responsável haitiano do orfanato.

Violência silenciosa

A violência pode ser uma violência também com menos barulho. De acordo com o relato da missionária Boschetti, que está presente na área, as gangues mudaram de tática e estão ‘se disfarçando de heróis da pátria que libertaram o Haiti de um primeiro-ministro não eleito, não amado e indesejado’. No momento, eles estão usando alguns sequestros e algumas execuções, mas suas vítimas são principalmente motoristas de transporte público que, a cada poucos metros, ‘são obrigados a pagar um pedágio para a gangue que detém o poder naquele trecho da estrada’, explica a missionária. Por meio de um sistema violento, os bandidos param os veículos com armas de guerra, forçando os motoristas a entregar o dinheiro exigido, como se fossem tarifas reais que variam de acordo com os veículos.

A viagem da ‘esperança’

Diante dessa situação, são os passageiros que têm de pagar ‘porque’, conta Boschetti, ‘o custo da viagem aumentou de forma desproporcional. A conexão da capital para Mare Rouge, no noroeste do país, tornou-se muito cara, passando de 500 gourd para 7.500’. Uma proporção muito alta quando se considera que 60% da população do Haiti vive abaixo da linha da pobreza. Além do aspecto econômico, há o perigo de emboscadas por gangues que ‘extorquem e sequestram ônibus inteiros’. O dinheiro extorquido é então distribuído em bairros devastados pela fome e usado para fomentar manifestações contra a intervenção estrangeira no país.

O martírio e a coragem da fé

‘Nosso Papa nos convida a refletir sobre como, no martírio, já se realiza a união entre os cristãos’, enfatiza o missionário. ‘Esses irmãos e irmãs evangélicos são mártires em meu coração, como a irmã Luisa Dell'Orto ou a irmã Isa Sola, e são luzes para nos ajudar a ver o martírio de tantos irmãos e irmãs haitianos que continua na indiferença’. No clima de violência, no entanto, os mártires inspiram ‘a coragem da fé no Senhor da Vida, que nos convida a não ter medo, a esperar e a dar esperança, e a nos tornarmos grãos de trigo que caem na terra, dando, N’Ele, frutos de vida para todos’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-05/missionarios-haitianos-vitimas-tragica-desumana-cotidiana-vida.html


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Autoridade missionária e ação profética das mulheres

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Afresco do século III no cubículo das Veladas nas Catacumbas de Priscila. Esta imagem sugere que tal como Grapte, o falecido foi incardinado na ordem das viúvas ​ 
 

*Artigo da Irmã Christine Schenk, CSJ


Quando eu era uma jovem religiosa de São José, tinha um grande desejo de compreender quem eram as nossas antepassadas na fé. Embora goste muito dos textos bíblicos, muitas vezes tenho dificuldade de me reconhecer neles, pois os textos do nosso lecionário falam quase sempre dos nossos antepassados homens. As discípulas devotas de Jesus — com exceção de Maria de Nazaré — são praticamente invisíveis. Mais tarde, quando comecei a estudar para um mestrado em teologia no seminário local, devorei toda a informação sobre as mulheres do cristianismo primitivo. Nesta série de quatro ensaios, pretendo identificar as raízes históricas das comunidades religiosas femininas e talvez ajudar os leitores a começar a reconhecer-se na história dos primeiros cristãos.

A difusão do cristianismo

O ‘movimento de Jesus’ espalhou-se rapidamente por todo o Império romano, em parte graças à iniciativa de viúvas e mulheres na veste de apóstolas, profetizas, evangelistas, missionárias e chefes de igrejas domésticas. O seu crescimento pode também ser atribuído ao apoio financeiro de mulheres empresárias cristãs como Maria de Magdala e Joana (cf. Lc 8, 1-3), Lídia (cf. At 16, 11-40), Febe (cf. Rm 16, 1-2), Olímpia, uma diaconisa do século IV, e outras. O Papa Bento XVI reconheceu-o precisamente quando, a 14 de fevereiro de 2007, afirmou que «a história do cristianismo teria tido um desenvolvimento muito diferente se não tivesse havido o contributo generoso de muitas mulheres». «No contexto da Igreja primitiva, a presença das mulheres — observou — não era minimamente secundária».

A igreja doméstica

As primeiras igrejas domésticas foram guiadas por mulheres como Grapte, que no século II dirigia a comunidade de viúvas que cuidavam de órfãos em Roma e Tabita, uma viúva do século I ‘dedicada a boas ações e obras de caridade’ (cf. At 9, 36-43), que fundou uma comunidade de Igreja doméstica em Jafa. Foi através das igrejas domésticas que os primeiros cristãos tiveram acesso a redes sociais que os colocaram em contato com pessoas de diferentes classes sociais.

Quando um chefe de família mulher, talvez uma viúva rica como Tabita ou uma mulher libertada da escravatura como Prisca (cf. Rm 16, 3-5), se convertia ao cristianismo, os evangelistas cristãos como Júnia (cf. Rm 16, 7) ou Paulo tinham acesso não só à sua casa, mas também ao grupo de pessoas que elas protegiam e à sua clientela, o que significava que os seus escravos, libertos, crianças, familiares e pessoas que estavam em contato com estas mulheres por razões profissionais também se convertiam. Foi assim que, quando Paulo converteu Lídia (cf. At 16, 11-15), teve automaticamente acesso a um vasto leque de relações sociais e, portanto, a um público potencialmente muito vasto. Num ensaio intitulado A Woman’s Place, Carolyn Osiek e Margaret Y. MacDonald mostram como as mulheres cristãs de classes sociais mais baixas conseguiam criar pequenas empresas graças à sua inclusão na rede social cristã e, assim, adquirir uma certa segurança economica. Isto significava, por sua vez, o acesso a uma classe mais elevada e, portanto, uma maior liberdade de movimento, nomeadamente no seio da família alargada da Antiguidade.

Mulheres evangelizadoras

Celso, famoso crítico da Igreja primitiva, tinha uma opinião escassa sobre a evangelização das mulheres. No entanto, embora sem intenção, forneceu provas independentes da iniciativa das mulheres no cristianismo primitivo, ao afirmar que os cristãos persuadiam as pessoas a «deixarem o pai e os mestres e a seguirem as mulheres e as crianças, companheiros de brincadeira, nas casas de mulheres, nos curtumes ou nas oficinas de carriões» (Orígenes, Contra Celso). A crítica de Celso coincide com as afirmações noutros textos do cristianismo primitivo de que a evangelização era feita de pessoa para pessoa, de casa para casa, por mulheres que iam ter com outras mulheres, crianças, libertos e escravos. A sua crítica diz-nos que as mulheres cristãs (e poucos homens) tomavam iniciativas fora das regras do patriarcado em função da sua fé em Cristo.

Contributos específicos das mulheres

Entre os séculos I e IV, ocorrem três inovações significativas na sociedade romana que podem ser atribuídas à evangelização e ao ministério de chefia das mulheres cristãs. A primeira, por volta do século IV, é a liberdade de escolher uma vida celibatária, o que efetivamente derruba um pilar do patriarcado, nomeadamente a obrigação de contrair matrimonio. A segunda é que as viúvas e virgens cristãs salvam, socializam, batizam e educam milhares de órfãos que, de outra forma, morreriam por terem sido abandonados ou seriam destinados à prostituição. A terceira é que as atividades de ligação e de evangelização das mulheres desempenham um papel decisivo na transformação da sociedade romana de uma cultura predominantemente pagã para uma cultura predominantemente cristã.

Conclusão

Podemos reconhecer elementos de vida religiosa não só nas primeiras comunidades de viúvas, como a de Grapte ou a de Tabita, mas também nas mulheres que escolheram a vida celibatária, como as quatro filhas profetisas de Filipe (At 21, 9) e as comunidades femininas da Ásia Menor, mencionadas nos Atos de Tecla. As mulheres destas comunidades não só salvaram órfãos e viúvas pobres, mas também profetizaram nas primeiras reuniões da Igreja primitiva (cf. 1 Cor 11; At 21, 8-19). O seu exercício contracultural da autoridade no contexto da vida doméstica quotidiana é uma das chaves, muitas vezes não ditas, da rápida difusão do cristianismo. A autoridade missionária e a liderança profética das mulheres na sua vasta rede social mudaram a face do Império romano.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-02/projeto-sister-autoridade-missionaria-acao-profetica-mulheres.html


segunda-feira, 4 de julho de 2022

Missão em Moçambique: sonhadores e construtores da paz

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Padre Edegard Silva Júnior, MS, missionário Saletino, brasileiro, em missão na Paróquia Nossa Senhora do Carmo, Mieze, Diocese de Pemba.

*Artigo da Vatican News


‘De Moçambique onde se encontra em missão, o padre brasileiro Edegard Silva Júnior, missionário Saletino, responde a algumas perguntas sobre a situação da Guerra na Província de Cabo Delgado. ‘Não falarei em números e estatísticas. Desde a missão em Mieze, quero apenas relatar como temos vivido estes últimos tempos aqui na região’, afirma o missionário.

A guerra em Cabo Delgado continua?

Sim, ela continua. Costumo afirmar que vivemos aqui numa espécie de ‘caixa de surpresas’. A cada ‘capítulo’ dessa guerra, somos tomados por um fato inesperado, que modifica nossa agenda e deixa toda a população atordoada. Para a comunidade atacada, a ação terrorista é algo inesperado. Para os terroristas, provavelmente uma ação planejada.

‘No dia que, ‘oficialmente’, se declarar o fim desta guerra, as sequelas do ‘pós-guerra’ irão se tornar um desafio e um processo lento na reconstrução (humana e física) das comunidades. E nesse processo entra nossa presença enquanto Igreja nestas terras. Seria exagero dizer que iremos ‘recomeçar do zero’, mas a retomada do processo de evangelização nessa região será desafiadora.’

A guerra apresenta novos cenários?

Ao longo deste tempo, vimos que essa guerra foi marcada por ações diferenciadas. Inicialmente, o uso de catanas (facões) para decapitar as pessoas; depois, ataques aos meios de transportes, queima de casas, raptos, até chegar ao uso de armas pesadas e de grosso calibre. Essas ações não são improvisadas. Pelo contrário, são ataques planejados, e, provavelmente, com orientações prévias das táticas e dos meios que deverão ser utilizados.

Não se fala muito da guerra de Cabo Delgado : As pessoas se acostumaram com a guerra?

A expressão ‘acostumar com a guerra’ é muito cruel. Quem é movido por compaixão e humanidade não pode aceitar esta postura de passividade. Essa expressão não pode fazer parte do nosso vocabulário. Entretanto, essa guerra já dura cinco anos, o primeiro ataque ocorreu em outubro de 2017. O fato de ela acontecer no continente africano parece não gerar nenhum interesse por parte de muita gente, nem da grande mídia; por essa razão, corre-se o risco de cair no esquecimento. Isso me faz lembrar o texto da Marina Colasanti, intitulado ‘Eu sei mas não devia’, que diz :

‘A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração’.

‘Não podemos nos acostumar com a guerra, nem com nenhuma barbárie que a humanidade e a criação possam sofrer! Nós, missionários e missionárias (os daqui desse país e os que vieram de outras partes do mundo), ‘respiramos’ esse clima da guerra diariamente. As pessoas deslocadas estão por toda parte. Queiramos ou não, acompanhamos angustiados esta via crucis que parece não ter fim.’

Tem acontecido novos ataques? 

Na verdade, os ataques nunca deixaram de existir. Aqueles de maior intensidade ou impacto aconteceram num determinado momento e ficaram na memória da grande maioria das pessoas. O dia do ataque, a fuga para o mato, a destruição da aldeia, tudo isso cada pessoa tem gravado na sua história de vida. Muitas dessas comunidades atacadas já não têm nem mais o que destruir. Além disso, algumas aldeias do Norte, que não tinham sido atacadas, foram em seguida tomadas pelos terroristas.

A ‘novidade’ destes últimos dias são os ataques na região Sul da Província, precisamente no distrito de Ancuabe, que teve algumas aldeias atacadas. Isso desencadeou um novo ciclo de fuga. Esses ataques se estenderam por mais algumas aldeias (além de Ancuabe), e a população local foi tomada por um clima de pânico que desestruturou toda a região.

Estas notícias se espalham muito rápido...

 Sim. Quase ninguém tem acesso ao rádio, à televisão ou à rede social. A população, em geral, tem aparelhos de telefone celular, muito simples, todos recarregáveis através de pequenas placas solares. Eles se comunicam de forma veloz através desses aparelhos. É uma espécie de ‘rede de comunicação’. Cada família tem parentes ou conhecidos por toda parte. Com isso, não se pode controlar as informações verdadeiras e as não verdadeiras, e as ‘notícias falsas’ (fake news) acontecem descontroladamente nesse contexto de guerra.

Ao sair a notícia de um ataque, procuramos diversas fontes (as equipes missionárias, os animadores das comunidades ou alguma organização), pessoas que possam assegurar a veracidade dessas informações. Ataques aconteceram recentemente, mas também muitos boatos e desinformação. Um avisa ao outro numa grande velocidade. O resultado disso é a sensação de que as aldeias estão totalmente abandonadas. O medo se apodera das pessoas.

E a situação do povo?

Não temos deixado com muita frequência a área onde exercemos nossa missão. Milhares de famílias continuam morando em casas de parentes, nos assentamentos ou reassentamentos, vivendo em condições precárias. Nossa presença (dos missionários e missionárias) acontece em ações que estão ao nosso alcance. Temos pequenos projetos pontuais, sobretudo com nossos animadores que estão nessas áreas. As organizações humanitárias estão presentes. Mas é uma realidade desafiadora e muito gigantesca para nossos recursos humanos e financeiros.

Qual análise se faz da guerra?

Achei interessante um artigo do comandante de treino da União Europeia em Moçambique que foi publicado recentemente. Ele fala sobre as iniciativas que têm sido tomadas, mas afirma : ‘até a situação estar completamente controlada, ainda vai demorar muito tempo’. Há uma ação conjunta entre as Forças de Defesa e Segurança (FDS) de Moçambique e as Forças de Ruanda e a Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. Passos significativos foram dados. No entanto, não podemos esquecer que os insurgentes (terroristas) têm também suas táticas, com uma formação muito consolidada e, provavelmente, com financiamento.

As famílias estão retornando para suas comunidades?

Nós, Missionários Saletinos, a pedido do próprio Bispo da Diocese de Pemba, Dom Antonio Juliasse, continuamos a ser um ‘ponto de referência’ para as comunidades de Muidumbe. Não tenho condições de falar de cada distrito. Os demais missionários que atuavam nessa região podem falar com mais propriedade da realidade na qual estavam inseridos. Sinto-me mais seguro em falar de Muidumbe porque o povo nos procura, liga para nós, e muitos animadores estão aqui por perto. Temos informação de que, em muitos distritos, começaram a fazer a limpeza da área, com retomada de algumas escolas etc. Isso desencadeou na população um desejo muito grande de retornar. Humanamente, até entendemos a saudade de casa, da comunidade, a história de cada; são muitos fatores. Mas creio que o mais forte é a vontade de voltar para sua terra. Certa vez, uma animadora me disse assim : ‘entre sofrer em minha terra ou sofrer onde estou, prefiro sofrer por lá’. Não é uma decisão comum a todos os deslocados. Em alguns casos, o homem vai primeiro para ver como está a situação, deixando por aqui a mulher e os filhos. Por conta das constantes notícias de novos ataques ou mesmo da presença dos terroristas, muitas famílias preferem dar um tempo para o retorno. Alguns falam em esperar até o mês de setembro.  Para se ter noção, o distrito de Muidumbe é formado por 26 aldeias. Destas, 13 já estão com pessoas que retornaram às suas casas (não a totalidade da população que compõe a aldeia). Estamos organizando uma ação junto à diocese de Pemba para enviar material para os animadores realizarem a Celebração da Palavra.

O que é ser missionário(a) neste contexto de guerra?

O missionário(a) é gente! É pessoa humana! Portadores de sentimentos, e cada um/a traz consigo posturas diferenciadas. Não somos super-homens, nem super-mulheres. Tampouco podemos negar que sentimos medo, que a estrutura física das casas onde vivemos, muitas vezes, nos preocupa, que temos que tratar de uma possível fuga. São situações que mexem conosco. O processo de discernimento diante da decisão ‘sai/fica’ é muito difícil. No entanto, somos lideranças, pastores e pastoras das comunidades a nós confiadas. O povo espera uma palavra de confiança e de esperança. Temos uma responsabilidade e um compromisso neste momento. Saber o que falar. Ser prudente nas informações que são repassadas, isso é de suma importância. Lembrar que temos pessoas que nos acompanham em outras partes do mundo e devemos ser realistas, sem ser sensacionalistas.

O testemunho e a presença amorosa no meio do povo neste momento são muito importantes. Sempre se pediu que não nos cansemos de dobrar os joelhos e clamar pela Paz. Esta vigilância e constância de orar pela paz, não apenas de Moçambique, é um gesto significativo. Como seguidores de Jesus, deixemos que Ele entre onde quer que estejamos e nos diga : ‘A paz esteja convosco’ (Jo 20), venha, junte-se a nós, sejamos sonhadores, fazedores e construtores da paz!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-07/mocambirque-igreja-missao-construtores-da-paz.html

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Um século e meio de missão

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo da Irmã Maria del Prado Fernández Martin,

Missionária Comboniana


Jubileu das irmãs missionárias combonianas


‘Daniel Comboni fundou a Congregação das Irmãs Missionárias Combonianas a 1 de Janeiro de 1872, embora muitas pessoas naquela época pensassem que o missionário era louco. Não consideravam que fosse possível que as mulheres pudessem embarcar nesse projeto porque, até então, elas mal tinham estado envolvidas na obra evangelizadora. O seu destino era o claustro ou a família.

Cerca de quinze anos antes, em 1857, Comboni embarcara pela primeira vez numa expedição ao Sudão. Eram tempos difíceis porque a Propaganda Fide queria relançar a missão na África Central, apesar do alto custo em vidas humanas. Na realidade, em menos de um ano, um dos companheiros de Comboni morreu e os outros quatro tiveram de regressar a Itália para não serem enterrados no Sudão. Esta experiência de fracasso marcou-o. Nesses dias, algumas instituições pagavam o resgate dos escravos para os educar na Europa, pensando que poderiam, posteriormente, regressar aos seus próprios países para evangelizar o seu povo. Mas o frio e outros problemas fizeram com que houvesse uma elevada taxa de mortalidade entre os africanos que viviam na Europa, enquanto os missionários que iam para África não conseguiam suportar o calor e as febres e morriam rapidamente.

O Plano

Em 1864, sete anos após a sua primeira experiência africana, Comboni estava a rezar no túmulo de São Pedro em Roma quando teve uma inspiração. Trancou-se no seu quarto durante três dias para escrever o que lhe passava pela mente e pelo espírito. O documento que surgiu foi o Plano para a Regeneração da África, que tinha como eixo central o conceito de «salvar África com África». Entre as ideias que apareceriam nessas páginas estavam três que foram revolucionárias para a época. Em primeiro lugar, apontava para a necessidade da formação de um clero local. Não se devia continuar o sistema de formação de padres africanos na Europa, porque a realidade tinha mostrado que este modelo era insustentável. Em segundo lugar, sublinhou a necessidade de formar os leigos. E, finalmente, reconheceu o papel das mulheres e a sua importância no apostolado missionário. Se estas ideias não se materializassem, afirmava, as missões africanas estavam condenadas ao fracasso.

Quando as coisas pareciam estar claras, os apoiantes de Comboni viraram-lhe as costas, argumentando que não podiam suportar tantas perdas humanas e, por isso, abandonaram a missão da África Central. Foi o Cardeal Barnabò que o aconselhou a fundar um instituto missionário. A partir daí, a vida de Comboni tornou-se um constante ir e vir entre a Europa, o Egito e o Sudão. Comboni tinha um lema que o guiava e encorajava, «África ou morte», e com esta ideia em mente fundou em Verona (Itália), a 1 de Junho de 1867, uma congregação masculina, o Instituto Missionário para a África, atualmente os Missionários Combonianos.

No mesmo ano organizou uma expedição missionária ao Sudão na qual, pela primeira vez, foi acompanhado por dezesseis ex-escravas e três religiosas francesas de S. José da Aparição, a segunda congregação missionária feminina na história da Igreja, fundada por Emilie de Vialar em 1832. Mas Comboni sabia que estas religiosas não o acompanhariam para sempre na missão africana. E assim sucedeu, pois, doze anos mais tarde, elas retiraram-se do Sudão. Perante esta realidade, Daniel Comboni insistiu na ideia de fundar ele próprio uma congregação de mulheres.

Nascimento do Instituto

No dia 1 de Janeiro de 1872, Comboni fundou o instituto feminino, a que chamou Pie Madri della Nigrizia (Pias Mães da Nigrícia), hoje Irmãs Missionárias Combonianas, e que foi o primeiro instituto missionário feminino em Itália.

A Marietta Caspi, a primeira candidata, uniu-se dias depois outra jovem, Giuseppa Scandola. Dois anos mais tarde, duas mulheres que seriam os pilares fundamentais da congregação : Teresa Grigolini, que ingressou no instituto a 23 de Janeiro de 1874, e Maria Bollezzoli, que chegou em Setembro do mesmo ano, e que se tornou a primeira madre-geral, escolhida por Comboni para orientar o instituto que estava a dar os primeiros passos. Dela o fundador diria : «Encontrei a mulher de que precisava

 

A Ir. Elisabette Raule, missionária comboniana italiana e médica, com pacientes no hospital de Alua, Moçambique 


O vicariato apostólico

O ano de 1877 foi muito importante na vida de Comboni, porque a 2 de Julho foi nomeado vigário apostólico da África Central. Um mês depois, a 12 de Agosto, foi ordenado bispo em Roma e, a 15 de Dezembro desse ano zarpou de Nápoles com três sacerdotes, seis irmãos e cinco missionárias – Teresa Grigolini, Marietta Caspi, Maria Giuseppa Scándola, Vittoria Paganini e Concetta Corsi. Partiram com uma caravana diretamente para o Sudão. Viajaram por mar, atravessaram o deserto em camelos durante catorze horas e dormiram na areia até chegarem a Cartum dois meses mais tarde. Comboni estava convicto : se não houvesse mulheres nas missões africanas, elas não poderiam continuar e estariam condenadas ao fracasso.

Apostolado africano

O fundador tinha imensa confiança nas mulheres. Sabia que nessa altura não tinham muita formação, mas ele educou-as para a missão, acompanhou-as como um pai, guiou-as e levou-as para o apostolado africano. Em 1878 escreveu : «O vicariato da África Central é o mais extenso e mais laborioso; aqui o trabalho da irmã é um sacerdócio. Nos locais onde elas se encontram, a missão é sólida.» E noutra carta a uma irmã religiosa afirmou : «Eu fui o primeiro a fazer com que colabore no apostolado da África Central o onipotente ministério da mulher do Evangelho e da irmã da caridade, que é o escudo, a força e a garantia do ministério do missionário.» Atualmente, a presença feminina na missão supera em muito a masculina. Mas esta afirmação de São Daniel Comboni, naquela época, não foi bem compreendida.

Em Julho de 1880, Fortunata Quascé, uma sudanesa originária da Núbia, iniciou o seu noviciado em El Obeid. Mais uma vez, Comboni superou os estereótipos ao acolher uma mulher africana no seu instituto.

As Mães da Nigrícia não eram monjas, mas missionárias, e isto era algo sobre o qual o próprio Daniel Comboni era muito claro. Para ele, os seus religiosos tinham de ter uma espiritualidade e uma formação orientadas para a missão e forjadas por ela. Alguns meses antes da sua morte, escreveu ao P. Giuseppe Sembianti, reitor dos dois institutos missionários para a Nigrícia : «[Os institutos] prepararão missionários e irmãs verdadeiramente santos, mas não santarrões, porque a África não precisa de beatos, mas de almas valentes e generosas, que saibam sofrer e morrer por Cristo e pelos negros

 

A irmã comboniana portuguesa Dorinda Cunha no Sudão do Sul


 A cruz e o crescimento

Comboni assistiu com tristeza à morte de uma das suas primeiras missionárias, Maria Bertuzzi, que tinha acabado de chegar ao Sudão, em 1880. Morreu em El Obeid com a idade de 21 anos. Presenciou também a morte da primeira candidata, Marietta Caspi, em Maio do mesmo ano.

Comboni tinha atravessado o deserto oito vezes, e isto só podia ser suportado por pessoas de grande força e fé, mas as dificuldades, a fome e a febre também o fizeram sucumbir. Morreu aos 50 anos de idade, a 10 de Outubro de 1881. Pouco antes disse : «Eu morro, mas a minha obra não morrerá.» Nessa altura, as Irmãs Missionárias Combonianas eram 22, das quais 15 já se encontravam em África – no Egito e no Sudão – e as restantes em Verona.

Os anos que se seguiram foram anos de grande sofrimento. Entre 1881 e 1899, a guerra madista [Muhammad Ahmad bin Abdullah (mais tarde Muhammad al-Mahdi) chefiou desde 1881 um movimento religioso, político e militar contra o Quediva do Egito, que governou o Sudão desde 1821] destruiu tudo o que os missionários tinham criado com tanto esforço e sacrifício. Alguns leigos, padres e religiosas puderam fugir para o Egito, mas dezesseis deles foram feitos prisioneiros. Sofreram todo o tipo de perseguição e alguns sucumbiram às privações. Tudo parecia condenado à ruína. Contudo, poucos anos após o fim da rebelião madista, os missionários regressaram ao Sudão, provando que o espírito do fundador, a sua paixão por África e pelo Evangelho não tinham diminuído.

Entre 1930 e 1960, a congregação espalhou-se por outros países africanos, chegou aos Estados Unidos e à América Latina, entrou no Médio Oriente e estendeu-se pela Europa.

Na sua história recente, as Irmãs Combonianas viveram a expulsão do Sudão em 1964, a rebelião Simba no antigo Zaire no mesmo ano, e as consequências das guerras na República Democrática do Congo. A Irmã Liliana Rivetta morreu em fogo cruzado em 1981 no Uganda, enquanto a Irmã Teresa dalle Pezze foi vítima de uma emboscada em Moçambique em 1985.

Sonhar o futuro

A Igreja Católica está no meio de um processo de reflexão sobre a sinodalidade, o tema do Sínodo dos Bispos de 2023. Ao observar a figura de Comboni, vemos que, embora incompreendido, estava à frente do seu tempo. No seu carisma e projeto missionário já estava presente esta perspectiva de comunhão eclesial e de caminho feito em conjunto.

Hoje, a paixão pela missão de Daniel Comboni continua a inflamar e inspirar uma família missionária que inclui sacerdotes, irmãos, irmãs e leigos de ambos os sexos. Ele tinha razão quando disse : «Eu morro, mas a minha obra não morrerá

As Missionárias Combonianas, o instituto feminino que Comboni fundou há 150 anos, embora não sendo muito numeroso, está presente nas periferias do mundo. As Irmãs Combonianas estão junto dos mais pobres e abandonados e, fazendo caminho com essas comunidades, comprometem-se ativamente na construção de um mundo melhor.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/724/um-seculo-e-meio-de-missao/

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Tráfico de pessoas, a outra pandemia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da Irmã Benjamine Kimala Nanga, 

Missionária Comboniana

 

‘O meu trabalho principal como missionária é colaborar com a Red Kawsay da Conferência de Religiosos do Peru, uma rede de vida consagrada que começou em 2010 e cujo principal objetivo é lutar contra o tráfico e a exploração de seres humanos. «Kawsay» é um termo quéchua que significa «viver». A Palavra de Deus que inspira o nosso compromisso cristão é o texto evangélico de João (10,10), onde Jesus diz : «Vim para que eles possam ter vida, e vida em abundância.» A rede é constituída por mais de 38 congregações religiosas e alguns padres diocesanos.

Eu e três irmãs de outras congregações acompanhamos um grupo de mulheres e menores de Riveras de Cajamarquilla, um bairro do município de San Juan de Lurigancho, na periferia de Lima, que sofreu muito por causa dos deslizamentos de terra. O objetivo do nosso trabalho é a prevenção, sensibilização e formação em relação ao tráfico de pessoas. Fazemo-lo por meio de diversos cursos de capacitação, que visam fortalecer as mulheres, nomeadamente reforçando a auto-estima das menores e promovendo uma cultura de prevenção e cuidado contra os abusos sexuais.

A minha principal atividade é realizar cursos de formação para professores, administradores, gestores, assistentes, pessoal de apoio, autoridades (polícia, fiscais e pessoal de centros de admissão de menores), catequistas e pais. Fiz um curso de formação ministrado pelo Ministério do Interior do Peru; isso permitiu-me conhecer as leis e falar com fundamento, e não apenas com a experiência.

O sofrimento das vítimas

Conheci diferentes realidades no Peru e contactei muitos jovens que partilharam a sua situação pessoal : falta de trabalho, dificuldade em estudar, situação familiar complicada, etc. São essas situações que facilitam o tráfico humano, um problema de dimensões cada vez maiores. Esta forma de escravidão moderna realiza-se com diferentes propósitos e afeta, sobretudo, as pessoas mais vulneráveis. Em muitos ambientes, a maioria das vítimas são jovens e, em particular, raparigas com menos de 18 anos. 

Um dos casos que mais me impressionou foi o de uma rapariga de 17 anos, originária de uma aldeia da selva peruana. No final da escola secundária foi para a cidade para se preparar para o exame de acesso à universidade. Não passou, pois tinha um nível de estudos mais baixo do que os estudantes da cidade. Para permanecer na cidade, as necessidades foram-se acumulando : estudo, renda do quarto, alimentação... Sem querer, caiu na exploração sexual.

Foi contratada para trabalhar num cibercafé, um local que fornecia serviços de Internet. Um dia, quando lhe liguei, ela disse-me calmamente : «Irmã, podes ligar-me mais tarde?» Ao ouvi-la responder dessa forma, pensei que alguma coisa não estava bem. Dias depois, liguei-lhe novamente. Ela contou-me que já não trabalhava no cibercafé porque tinha sido obrigada a assinar um contrato por um mês para prestar serviços sexuais a homens. Ouvi-a sem a julgar. Com o problema acrescido da pandemia, não pode continuar e regressou à sua aldeia.

As distâncias são um dos principais problemas que enfrentamos, pois muitos dos nossos destinatários (jovens e professores) vivem em áreas muito remotas e de difícil acesso, o que dificulta a continuidade. Outra dificuldade é que, em muitos casos, as pessoas não sabem bem o que significa a expressão «tráfico humano». Muitos ficam confusos e pensam que tem que ver com «tratar bem as pessoas».

Ignoram que o tráfico de seres humanos é uma prática que viola os direitos humanos fundamentais. Um crime que não distingue fronteiras e que tem cada vez mais vítimas no Peru : há menores e adultos que são raptados, coagidos, detidos e reduzidos a vários tipos de exploração sexual; forçados a mendigar nas ruas, onde vivem em condições sub-humanas; ou sofrem com a remoção ilegal dos seus órgãos. Este é um grande problema e tem muitas facetas. Os mais afetados são as crianças e adolescentes.

Tráfico de pessoas em tempo de pandemia

Por causa da pandemia, este ano a situação é muito difícil também para as mulheres, por isso ajudamo-las com produtos alimentares e de higiene básicos, e aproveitamos a oportunidade para sensibilizar e protegê-las da covid-19 e contra o tráfico de seres humanos. Noutras paróquias criámos as chamadas «ollas comunes» [panelas comuns] : compramos os alimentos e as mães, organizadas em grupos, revezam-se para cozinhar e distribuir a comida de acordo com o número de pessoas em cada família. 

Embora as fronteiras estivessem fechadas devido à covid-19, o tráfico de seres humanos aumentou. Os traficantes usam outras formas para continuar a atrair e enganar potenciais vítimas, principalmente através da Internet e das redes sociais. Basta pensar em qualquer jovem que perdeu o emprego durante a pandemia e ainda está desempregado, e se alguém lhe oferecer uma oportunidade de emprego no estrangeiro, dizendo-lhe : «Quando a pandemia acabar e as fronteiras abrirem, convido-te para ires a esse país... ou podes ir para os Estados Unidos ou para a Europa, onde podes trabalhar e estudar ao mesmo tempo.» Aquele jovem vai acreditar, pensando que essa oferta é verdadeira.

Por impossibilidade de nos deslocarmos no país devido à pandemia, oferecemos cursos de formação para jovens e professores por videoconferência. Informamos sobre as estratégias que os traficantes usam para convencer as pessoas, alertamos para o perigo que é dar informação pessoal ao primeiro que encontram e de aceitar desconhecidos nas redes sociais. Que investiguem e descubram primeiro se será verdade quando recebem propostas de trabalho. Na ausência de aulas presenciais, difundimos vídeos em que falamos de tráfico, das suas causas e consequências físicas e psicológicas com o objetivo de prevenir este flagelo.

Graças ao nosso trabalho, temos visto resultados e as pessoas começaram a reportar mais frequentemente o tráfico. Não há muito tempo, uma jovem disse-me : «Irmã, ontem à noite vi uma oferta de emprego na Internet. E como nos tinhas falado disto, perguntei-lhe se era verdade. Depois de dois dias, a informação tinha desaparecido. Era um anúncio falso

Nestes anos também aprendi a relativizar muitas questões específicas da minha cultura. No meu país, o Chade, falar de sexo é tabu, mas aqui tenho de falar claramente com jovens que chamam as coisas pelo seu nome, sem complexos, mas com respeito. No início não foi fácil. Também vejo que é necessário adaptar a nossa linguagem ao contexto onde trabalhamos.

Aqui a vida é muito simples, somos muito próximas das pessoas e trabalhamos com elas. É uma população vulnerável que precisa de se envolver na procura de soluções, pois só assim podem avançar. Quando termino um curso com jovens, pergunto-lhes : «O que farias? Que compromisso assumes para ser um agente multiplicador desta formação?» Às vezes dizem que querem fazer alguma coisa, mas não sabem, por isso digo-lhes que ponham as ideias na mesa e falem sobre o tema. Muitos grupos ligam-me para me falar das atividades que estão a fazer. Tudo isso me encoraja e ajuda-me a continuar a trabalhar, porque esse era o sonho de São Daniel Comboni : formar líderes que gerem a mudança, formar a Igreja local.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/602/trafico-de-pessoas-a-outra-pandemia/