* Artigo
de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador
oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
‘Com esta
meditação, encerramos o nosso percurso pela fé comum do Oriente e do Ocidente,
e o encerramos com o que nos diz respeito mais diretamente : o problema da
salvação, ou seja, como ortodoxos e mundo latino compreenderam o conteúdo da
salvação cristã.
É,
provavelmente, o campo em que é mais necessário para nós, latinos, voltar o
olhar para o Oriente, a fim de enriquecer e, em parte, corrigir o nosso modo
difuso de conceber a redenção operada por Cristo. Temos o privilégio de fazê-lo
nesta capela, onde a obra de Cristo e do mistério da salvação foi representada
pela arte do padre Rupnik, de acordo com a concepção da Igreja do Oriente e da
iconografia bizantina.
Vamos
começar com uma autorizada apresentação do modo diferente de entender a
salvação entre Oriente e Ocidente, exposta no Dictionnaire de Spiritualité e que sintetiza a opinião dominante
nos círculos teológicos :
‘O propósito da vida para os cristãos gregos
é a divinização; o dos cristãos do Ocidente é a conquista da santidade (...). O
Verbo se fez carne, de acordo com os gregos, para restituir ao homem a
semelhança divina perdida em Adão e para divinizá-lo. De acordo com os latinos,
Ele se fez homem para redimir a humanidade (...) e para pagar a dívida devida à
justiça de Deus’ (1).
Procuraremos
ver em que se baseia essa diferença de visão e o que há de verdadeiro na
maneira de apresentá-la.
1. Os dois elementos da salvação na Escritura
Nas
profecias do Antigo Testamento que anunciam ‘a nova e eterna aliança’, já se nota a presença de dois elementos
fundamentais : um negativo, que consiste na eliminação do pecado e do mal em
geral; e um positivo, que consiste no dom de um coração novo e de um espírito
novo; em outras palavras, na destruição das obras do homem e na reedificação ou
restauração da obra de Deus. Um texto claro, neste sentido, é este de Ezequiel :
‘Derramarei sobre vós águas puras, que vos
purificarão de todas as vossas imundícies e de todas as vossas abominações.
Dar-vos-ei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirar-vos-ei do
peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Dentro de vós
colocarei o meu espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e
observeis os meus preceitos’ (Ez 36, 25-27).
Existe algo
que Deus tirará do homem : a iniquidade, o coração de pedra, e algo que Ele
colocará no homem : um coração novo, um espírito novo. No Novo Testamento,
esses dois componentes são evidentes. Desde o início do Evangelho, João Batista
apresenta Jesus como ‘o Cordeiro que tira
o pecado do mundo’, mas também como ‘aquele
que batiza no Espírito Santo’ (Jo 1, 29.33). Nos sinóticos, prevalece o
aspecto da redenção do pecado : Jesus aplica a si, em várias ocasiões, a figura
do Servo de Javé que toma sobre si e expia os pecados do povo (cf. Is
52,13-53,9); na instituição da Eucaristia, Ele fala do seu sangue derramado ‘para a remissão dos pecados’ (Mt 26,28).
Em João
também está presente este aspecto, ligado, precisamente, ao tema do Cordeiro de
Deus que tira os pecados do mundo. A sua Primeira Carta apresenta Jesus como ‘a vítima de expiação pelos nossos pecados;
não só dos nossos, mas também de todo o mundo’ (1 Jo 2,2). Mais acentuado,
porém, é o elemento positivo em João. Com o Verbo feito carne, veio ao mundo a
luz, a verdade, a vida eterna e a plenitude de toda a graça (cf. Jo 1, 16). O
fruto mais enfatizado da morte de Jesus não é a expiação dos pecados, mas o dom
do Espírito (cf. Jo 7,39; 19,34).
Em São
Paulo, vemos estes dois elementos em perfeito equilíbrio. Na Carta aos Romanos,
que podemos considerar a primeira exposição arrazoada da salvação cristã, ele
primeiro destaca aquilo de que Cristo, com a Sua morte na cruz (Rm 3, 25), veio
nos libertar : a morte (Rm 5), o pecado (Rm 6) e a lei (Rm 7); em seguida, no
oitavo capítulo, ele expõe todo o esplendor daquilo que Cristo, por meio da sua
morte e ressurreição, trouxe para o homem : o Espírito Santo e, com Ele, a
filiação divina, o amor de Deus e a certeza da glorificação final. Os dois
elementos estão presentes no próprio coração do Kerygma. Jesus ‘foi condenado à morte pelos nossos pecados e
ressuscitou para a nossa justificação’ (Rm 4, 25); por ‘justificação’ não se quer falar apenas
da remissão dos pecados, mas também do que é dito em seguida no texto : da
graça, da paz com Deus, da fé, da esperança, do amor de Deus derramado em
nossos corações (Rm 5, 1-5).
Como sempre,
na passagem da Escritura para os Padres da Igreja, observa-se uma recepção
diferente desses dois elementos. De acordo com a opinião comum, resumida por
Bardy no texto citado, o Oriente incorporou o elemento positivo da salvação : a
divinização do homem e a restauração da imagem de Deus; o Ocidente recebeu o
elemento negativo, a libertação do pecado. A realidade é muito mais complexa e
a tentativa de esclarecê-la facilitará a mútua compreensão.
Vamos
corrigir, primeiro, algumas generalizações que fazem as duas visões da salvação
parecerem mais distantes uma da outra do que de fato estão. Não é de admirar,
antes de mais, se, no âmbito latino, não encontramos alguns conceitos centrais
para os gregos, como o de ‘divinização’
e ‘restauração da imagem de Deus’.
Eles não aparecem, como tais, no Novo Testamento, que é a única fonte comum,
embora tenham servido para transmitir um modo primorosamente bíblico de
entender a salvação. O próprio termo theosis, divinização, despertava reservas
devido ao uso que dele se fazia na linguagem pagã e na da Roma imperial
(apotheosis).
Os latinos
expressaram de preferência o efeito positivo do batismo com o conceito paulino
da filiação divina. De acordo com São João da Cruz, realizam-se na alma cristã,
pela graça, as operações que ocorrem por natureza na Trindade : uma doutrina
que não é distante da visão ortodoxa da deificação, mas baseada na afirmação
joanina da inabitação da Trindade (Jo 14,23) (2).
Outra
observação. Não é inteiramente verdade que a soteriologia ortodoxa se resuma na
visão ontológica da divinização e a ocidental na teoria jurídica de Santo
Anselmo, da expiação devida ao pecado. A ideia de sacrifício pelo pecado, de
redenção, de pagamento de uma dívida (e até mesmo, em alguns casos, de um
resgate pago ao diabo!) está presente em Santo Atanásio, em São Basílio, em São
Gregório de Nissa e em São João Crisóstomo não menos do que nos seus
contemporâneos latinos. Basta, a este propósito, consultar uma boa reconstrução
do pensamento cristão das origens (3).
Um texto entre os muitos é este, de Atanásio, que é também um dos mais
determinados defensores da tese de divinização :
‘Restava ainda a pagar a dívida que todos
devíamos, porque estávamos todos condenados à morte, e esta foi a causa
principal da sua vinda até nós. É por isso que, depois de revelar a sua
divindade com as obras, restava-lhe oferecer o sacrifício por todos, cedendo o
templo do seu corpo à morte por todos’ (4).
Para estes
Padres gregos antigos, o mistério pascal de Cristo é ainda parte integrante e
caminho para a divinização, inclusive na época bizantina. Para Nicolau
Cabasilas, havia dois muros que impediam a comunicação entre Deus e nós : a
natureza e o pecado. ‘O primeiro foi
retirado pelo Salvador com a sua encarnação; o segundo, com a crucificação,
pois a cruz destruiu o pecado’ (5).
Apenas em
alguns casos é que vemos afirmar-se, no seio da ortodoxia, a ideia de uma
salvação da humanidade realizada à raiz da própria encarnação do Verbo,
entendida como a assunção não de uma humanidade singular, mas da natureza
humana presente em todos os homens, à maneira do universal platônico. Num caso
extremo, a divinização ocorre mesmo antes do batismo. Escreve São Simeão, o
Novo Teólogo :
‘Descendo do teu santuário excelso sem te
apartares do seio do Pai, e encarnado e nascido da Santa Virgem Maria, já então
me replasmaste e vivificaste, liberto da culpa dos nossos primeiros pais e
preparada a ascensão ao céu. Em seguida, depois de me teres criado e feito aos
poucos crescer, tu, também em teu santo batismo da nova criação, me renovaste e
ornaste com o Espírito Santo’ (6).
Até aqui,
portanto, as diferentes teorias da salvação não são tão fortemente divididas
entre Oriente e Ocidente, como se costuma acreditar. A diferença é clara e
constante, desde o início até hoje, na compreensão do pecado original e,
portanto, no efeito primário do batismo. Os orientais nunca entenderam o pecado
original no sentido de uma verdadeira ‘culpa’
hereditária, mas como a transmissão de uma natureza ferida e propensa ao
pecado, como uma perda progressiva da imagem de Deus no homem, não só devida ao
pecado Adão, mas ao de todas as gerações sucessivas.
Com o
símbolo niceno-constantinopolitano, todos professam ‘um só batismo para a remissão dos pecados’, mas, para os orientais,
o batismo não tem principalmente o escopo de tirar o pecado original (nas
crianças, não tem de forma alguma este escopo), mas sim o de libertar o homem
do poder do pecado em geral, restaurar a imagem de Deus, perdida, e inserir a
criatura no novo Adão, que é Cristo. Esta perspectiva diferente se reflete, por
exemplo, na imagem que temos da Virgem Maria. No Ocidente, ela é vista como ‘Imaculada’, ou seja, concebida sem o
pecado (mácula) original, havendo inclusive a definição dogmática deste título;
no Oriente, o título correspondente é o de Panagia,
a toda santa.
2. Uma comparação assimétrica
Não preciso
me debruçar longamente sobre o modo ocidental de conceber a salvação operada
por Cristo, porque ele nos é mais familiar. Digamos apenas que acontece aqui um
paradoxo notável. Aquele que foi, em todo o cristianismo, o cantor por
excelência da graça, aquele que destacou melhor do que todos a sua novidade no
tocante à lei e a sua necessidade absoluta para a salvação, aquele que
identificou tal dom com o próprio Doador, que é o Espírito Santo, foi também
aquele que, por circunstâncias históricas, mais contribuiu para restringir o seu
campo de ação.
A polêmica
com os pelagianos levou Agostinho a destacar, da graça, especialmente o aspecto
de preservação e cura do pecado, a chamada graça preveniente, adjuvante,
sanante. A sua doutrina do pecado original, como verdadeira culpa hereditária,
transmitida no ato da geração sexual, fez com que o batismo fosse visto
prevalentemente como libertação do pecado original.
Nem
Agostinho nem outros depois dele silenciaram quanto aos demais bens do batismo:
a filiação divina, a inserção no corpo de Cristo, o dom do Espírito e tantos
outros magníficos dons. O fato é, porém, que, no modo de administrá-lo e na
opinião geral, o aspecto negativo de libertação do pecado original prevaleceu
sempre sobre o positivo de dom do Espírito Santo (sendo este atribuído mais
destacadamente ao sacramento da confirmação). Mesmo hoje, quando se pergunta a
um cristão o que significa estar ‘em
graça de Deus’ ou viver ‘em graça’,
a resposta é quase sempre viver sem pecados mortais na consciência.
É a
consequência inevitável de todas as heresias : a de forçar a teologia a se
concentrar momentaneamente num ponto da doutrina em detrimento do todo. É um
fato normal em muitos momentos do desenvolvimento do dogma. Foi isto o que
levou alguns autores alexandrinos ao limite do monofisismo para se oporem ao
nestorianismo, e vice-versa. E o que foi que fez com que a ruptura momentânea
do equilíbrio, no caso de Agostinho, fosse tão diferente e tão duradoura? A
resposta é simples : a sua própria estatura e autoridade solitária!
Houve, depois
dele, quem propusesse uma explicação diferente e mais próxima da dos gregos :
João Duns Scotus (1265-1308). O fim principal da encarnação não é, para ele, a
redenção do pecado, mas a restauração de todas as coisas em Cristo, ‘em vista do qual todas as coisas foram
criadas’ (Col 1,15 ss.); o objetivo é a união, em Cristo, da natureza
divina com a humana (7). A
encarnação, portanto, teria ocorrido mesmo que Adão não tivesse pecado. O
pecado de Adão só determinou a modalidade desta recapitulação de todas as coisas
em Cristo, tornando-a ‘redentora’.
Mas a voz de
Scotus ficou isolada e só recentemente foi reavaliada pelos teólogos. A que se
impôs foi outra voz, que não reequilibrava o pensamento de Agostinho, mas o
exasperava. Falo de Lutero, que também teve o mérito, para toda a cristandade,
de recolocar a palavra de Deus, a Bíblia, no centro e no topo de tudo,
inclusive das palavras dos Padres, que são sempre palavras de homens. Com ele,
a diferença em relação ao Oriente, no entendimento da salvação, se torna
realmente radical. À teoria da divinização do homem, opõe-se a tese de uma
justiça imputada extrinsecamente por Deus, que mantém o batizado ‘justo e pecador’ ao mesmo tempo :
pecador em si mesmo, justo aos olhos de Deus.
Mas deixemos
de lado este desenvolvimento posterior, que merece uma discussão à parte.
Voltando à comparação entre a ortodoxia e a Igreja católica, precisamos
destacar um fato que, aos olhos de alguns autores ortodoxos, fazia com que, no
passado, a nossa concepção da salvação e da vida cristã parecesse diferente da
deles em quase todos os pontos. Trata-se de uma assimetria de fundo. No
Oriente, a teologia, a espiritualidade e a mística são unidas; não se concebe
uma teologia que não seja também mística, isto é, experiencial. A reconstrução da
posição ortodoxa é feita levando-se em conta os teólogos, como os capadócios, o
Damasceno, Máximo Confessor, mas também os movimentos espirituais, como os
Padres do Deserto, o hesicasmo, o monaquismo, o palamismo, a Filocalia, autores místicos como Simeão,
o Novo Teólogo, Serafim de Sarov, e assim por diante.
Infelizmente,
isto não aconteceu no Ocidente, onde, inclusive no ensino, a mística e a
espiritualidade ocuparam, especialmente com o advento da Escolástica, um lugar
diferente da dogmática; mais do que isto : a mistura das coisas chegou a ser
vista com desconfiança. A comparação entre o Oriente e o Ocidente latino
levaria a resultados muito diferentes e muito menos conflitivos se fossem
considerados os muitos movimentos espirituais e autores místicos católicos, nos
quais a salvação cristã não é teorizada, mas vivida.
Dos três
livros já citados (8), que são os
que mais contribuíram para tornar conhecida no Ocidente a ‘teologia mística’ do Oriente cristão, só um menciona (duas vezes, e
com tendência negativa) São João da Cruz. No entanto, com o tema da ‘noite escura’, ele, assim como vários
outros no Ocidente, se coloca na linha da visão de Deus na escuridão de São
Gregório de Nissa. Nenhuma menção é feita ao monaquismo ocidental, a São
Francisco de Assis e à sua espiritualidade positiva e cristocêntrica; a
escritos místicos como a ‘Nuvem do
Não-Conhecimento’, tão em sintonia com o apofatismo da teologia oriental.
Mas isto, repito, é culpa mais nossa que dos autores orientais, se é que
podemos falar de culpa. Fomos nós que realizamos a nefasta separação entre
teologia e espiritualidade e não podemos pedir que os outros façam uma síntese
que nem nós tentamos fazer ainda.
3. Uma chance para o Ocidente
Voltemos ao
parecer de Bardy, do qual partimos : o Oriente, diz ele, tem uma visão mais
otimista e positiva do homem e da salvação; o Ocidente, uma visão mais
pessimista. Eu gostaria de mostrar que, também neste caso, a regra de ouro no
diálogo entre Oriente e Ocidente não é a do aut - aut, mas a do et - et. Se a
doutrina oriental, com a sua altíssima ideia da grandeza e da dignidade do
homem como imagem de Deus, destacou a possibilidade da encarnação, a doutrina
ocidental, com a insistência no pecado e na miséria do homem, salientou a sua
necessidade. Um discípulo tardio de Agostinho, Blaise Pascal, observou :
‘O conhecimento de Deus sem o da nossa
miséria produz orgulho. O conhecimento da nossa miséria sem o de Deus produz
desespero. O conhecimento de Jesus Cristo é o ponto de equilíbrio, porque nele
encontramos Deus e a nossa miséria’ (9).
Para
Agostinho, Santo Anselmo, Lutero, a insistência na gravidade do pecado (10) era um modo diferente de enfatizar
a grandeza do remédio proporcionado por Cristo. Eles acentuavam ‘a abundância do pecado’ para exaltar ‘a superabundância da graça’ (cf. Rm
5,20). Em ambos os casos, a chave de tudo é a obra de Jesus, vista pelos
orientais a partir de um lado, por assim dizer, e pelos ocidentais a partir de
outro. Os dois lados são legítimos e necessários. Diante da explosão do ‘mal absoluto’ na Segunda Guerra Mundial,
alguém notou até que ponto tinha chegado o esquecimento desta amarga verdade
sobre o homem, depois de dois séculos de ingênua fé no supostamente imparável
progresso do homem (11).
Onde está,
então, a lacuna da nossa soteriologia que nos faz ter que olhar para o Oriente?
Está no fato de que a graça, mesmo sendo exaltada, acabou reduzida, na prática,
à sua dimensão negativa de remédio para o pecado. Até o grito do Exultet
pascal, ‘Ó feliz culpa que nos mereceu
tão grande Redentor!’, se bem considerarmos, fica na perspectiva do pecado
e da redenção.
É
precisamente neste ponto, graças a Deus, que vemos há certo tempo uma mudança
capaz de marcar época. Todas as Igrejas do Ocidente, ou nascidas dele, têm sido
atravessadas há mais de um século por uma
corrente de graça que é o movimento
pentecostal e as várias renovações carismáticas derivadas dele nas Igrejas
tradicionais. Não se trata, na realidade, de um movimento no sentido corrente
do termo. Não tem fundador, regra, espiritualidade própria; não tem estruturas
de governo, apenas de coordenação e serviço. É justamente uma corrente de
graça, que deveria se espalhar por toda a Igreja como um choque elétrico na
massa, para, assim, deixar de ser um fenômeno separado.
Não é
possível ignorar por mais tempo, ou considerar marginal, um fenômeno que, de
formas mais ou menos profundas, atingiu centenas de milhões de crentes em
Cristo em todas as confissões cristãs e dezenas de milhões só na Igreja
católica. Ao receber pela primeira vez, em 19 de maio de 1975, os líderes da
Renovação Carismática Católica na Basílica de São Pedro, o beato papa Paulo VI,
em seu discurso, chamou o movimento de ‘uma
chance para a Igreja e para o mundo’.
O teólogo
Yves Congar, em seu relatório ao Congresso Internacional de Pneumatologia,
realizado no Vaticano por ocasião do XVI centenário do Concílio Ecumênico de
Constantinopla de 381, declarou a respeito dos sinais do despertar do Espírito
Santo em nosso tempo :
‘Como não situar aqui a corrente carismática,
também conhecida como Renovação no Espírito? Ela se espalhou como fogo em
palha. É muito mais que uma moda passageira... Por um lado, acima de tudo, ela
se parece com um movimento de avivamento : pelo caráter público e verificável
da sua ação que muda a vida das pessoas... É como uma jovialidade, um frescor e
novas possibilidades dentro da velha Igreja, nossa Mãe’ (12).
O que, neste
momento, eu gostaria de destacar é um ponto preciso : em que sentido e de que
maneira podemos dizer que esta realidade é uma chance para a Igreja católica e
para as Igrejas nascidas da Reforma? Eu acho que é por isto : ela permite
restituir à salvação cristã o rico e edificante conteúdo positivo resumido no
dom do Espírito Santo. O objetivo primário da vida cristã reaparece, conforme
dizia São Serafim de Sarov, como ‘o
recebimento do Espírito Santo’ (13).
São João Paulo II, em um discurso para os líderes da Renovação Carismática
Católica em 1998, disse :
‘O Movimento Carismático Católico (...), como
um novo Pentecostes, despertou na vida da Igreja um extraordinário
florescimento de grupos e movimentos particularmente sensíveis à ação do
Espírito (...). Quantos fiéis leigos têm experimentado em suas próprias vidas o
impactante poder do Espírito Santo e dos seus dons! Quantas pessoas
redescobriram a fé, o gosto da oração, a força e a beleza da Palavra de Deus,
traduzindo tudo isso em generoso serviço à missão da Igreja! Quantas vidas
foram profundamente mudadas!’ (14).
Eu não digo
que, entre as pessoas que se identificam com esta ‘corrente de graça’, todas vivam essas características, mas sei, por
experiência, que todos, mesmo os mais simples, sabem do que se trata e aspiram
a realizá-las na sua vida. Até a imagem externa da vida cristã é diferente : é
um cristianismo alegre, contagiante, que nada tem do pessimismo sombrio que
Nietzsche censurava. O pecado não é banalizado, porque um dos primeiros efeitos
da vinda do Paráclito ao coração do homem é ‘convencê-lo do pecado’ (Jo 16,8).
Não é
questão de aderir a este ‘movimento’,
ou a qualquer movimento, mas de abrir-se à ação do Espírito no estado de vida
em que se esteja. O Espírito Santo não é monopólio de ninguém, muito menos do
movimento pentecostal e carismático. O importante é não sair da corrente de
graça que atravessa, de várias formas, todo o cristianismo; é ver nela uma
iniciativa de Deus e uma chance para a Igreja, e não uma ameaça ou uma
infiltração estranha ao catolicismo.
Algo que
pode destruir essa chance vem de dentro dela. A Escritura afirma a primazia da
obra santificadora do Espírito sobre a sua atividade carismática. Basta ler
conjuntamente 1 Coríntios 12 e 13,
sobre os diversos carismas e sobre a melhor estrada de todas, que é a caridade.
Seria comprometer esta oportunidade se a ênfase nos carismas, e nalgum deles em
particular, prevalecesse sobre o esforço de uma autêntica vida ‘em Cristo’ e ‘no Espírito’, com base na conformação a Cristo e, portanto, na
mortificação das obras da carne e na busca dos frutos do Espírito.
Espero que o
próximo retiro mundial do clero, organizado para junho aqui em Roma em
preparação do 50º aniversário da Renovação Carismática Católica, em 2017, sirva
para reafirmar vigorosamente esta prioridade, continuando também a incentivar
de todas as formas o exercício dos carismas, tão úteis e necessários, de acordo
com o Concílio Vaticano II, ‘à renovação
e à maior expansão da Igreja’ (15).
Deixemos os
irmãos ortodoxos decidirem se esta corrente de graça é destinada apenas a nós,
Igrejas do Ocidente e nascidas dele, ou se um novo Pentecostes é uma
necessidade também do Oriente cristão. Enquanto isso, não podemos deixar de
lhes agradecer por terem cultivado e tenazmente defendido ao longo dos séculos
um ideal de vida cristã bonito e edificante, do qual toda a cristandade se
beneficiou, inclusive por meio do silencioso instrumento do ícone.
Desenvolvemos
as nossas reflexões sobre a fé comum do Oriente e do Ocidente tendo à nossa
frente, nesta capela, a imagem da Jerusalém celeste com os santos ortodoxos e
católicos reunidos em grupos mistos, de três em três. Peçamos a eles a ajuda
para realizar, na Igreja aqui da terra, a mesma comunhão fraterna de amor que
eles vivem na Jerusalém celeste.
Agradeço ao
Santo Padre e aos veneráveis padres, irmãos e irmãs, pela benévola atenção e
desejo a todos uma Feliz Páscoa!’
Fonte :
*Artigo na íntegra http://www.zenit.org/pt/articles/v-pregacao-de-quaresma-oriente-e-ocidente-perante-o-misterio-da-salvacao
------------------------
(1) G.
Bardy, Dictionnaire de spiritualité, ascétique et mystique,
III, Beauchesne, Paris 1937, col. 1389s; cf. também Y. Spiteris, Salvezza
e peccato nella tradizione orientale, EDB, Bolonha 1999.
(2) João
da Cruz, Cântico Espiritual A, estrofe 38.
(3) Cf.
J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, Londres 1968, cap. 14.
(4) Atanásio, De
Incarnatione, 20.
(5) N.
Cabasilas, Vida em Cristo, III, 1 (PG 153, 572).
(6) Simeão,
o Novo Teólogo, Hinos (SCh 196, 1973, 330 s.).
(7) Duns
Scoto, Reportationes Parisienses, III, d.7,q.4,§ 5 (ed. Wadding,
vol. XI,
pág. 451).
(8) V.
Lossky, P. Evdokimov, J. Meyendorf, citados na primeira meditação.
(9) B.
Pascal, Pensamentos, 527 (Brunschvicg); cf. M. Pelikan, Jesus
Through the Centuries, Harper and Row, Nova Iorque 1987, pág. 73-76.
(10) Anselmo, Cur
Deus homo, XXI: (Nondum considerasti quanti ponderis sit peccatum: ‘Não
considerastes ainda a gravidade do pecado’).
(11) W.
Lippman, cit. por M. Pelikan, op. cit., pág. 76.
(12) Y.
Congar, Actualité de la Pneumatologie, em Credo in
Spiritum Sanctum, Libreria Editrice Vaticana, 1983, I, pág. 17ss.
(13) Serafim
de Sarov, Colóquio com Motovilov, em I. Gorainoff, Seraphim
de Sarov, Paris 1996.
(14) João Paulo
II, Discurso à Comissão Nacional de Serviço e ao Conselho Nacional da Renovação
Carismática, 4 de abril de 1998.
(15) Lumen
gentium, 12.
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