* Artigo do Pe. Alfredo José Gonçalves
‘O tema do título poderia ser formulado da seguinte maneira : os
migrantes em geral sofrem a migração ou, ao contrário, são capazes de fazer
dela uma força motriz que move a história? Grande parte dos estudiosos que se
debruça sobre o fenômeno da mobilidade humana coloca o acento na primeira
dessas hipóteses. Segundo suas análises, os migrantes, refugiados, prófugos,
exilados, trabalhadores temporários, etc., não passam de vítimas de algum fator
externo, com poucas ou nenhuma chance de alternativa. Vítimas de condições sócio-econômicas
adversas, do ponto de vista histórico e estrutural; de políticas públicas
insuficientes, injustas ou excludentes; de catástrofes naturais que devastam,
ao mesmo tempo, seus pertences e a vida de suas famílias; de prenconceitos
religiosos, discriminação ou perseguição ideológica, de tensões e conflitos,
violência e guerras sangrentas, e assim por diante.
Neste caso, migração converte-se em sinônimo de fuga. Na retaguarda
ficaram os destroços de uma existência sacudida violentamente por um terremoto,
seja este de natureza sísmica, socio-econômica, política ou bélica. Impossível o
retorno, a única alternativa de sobrevivência descortina-se no horizonte do
amanhã, embora nebuloso, desconhecido e incerto. A decisão pessoal de migrar
encontra resposta num conjunto mais amplo de circunstâncias que envolvem o
indivíduo, o grupo familiar ou todo um povo ou nação. Um período mais
prolongado de seca, uma enchente ou um conflito armado, por exemplo, podem ser
a causa imediata da migração. Marcam a hora da saída. No fundo, porém, a falta
de água ou o excesso dela, bem como a luta aberta entre facções inimigas, não
fizeram senão agravar causas remotas e há muito em curso, tais como a estrutura
agrária e agrícola, o abandono em que vivem os pequenos produtores, a disputa
ideológica pelo poder ou a sedução das “luzes da cidade”. Deste modo, fatores
bem precisos e visíveis fazem aflorar fatores subterrâneos e invisíveis,
determinando o momento da partida.
Nem por isso a segunda alternativa deve ser descartada. Apesar de
vítimas de causas remotas e imediatas, os migrantes podem fazer da fuga uma
nova busca. De forma consciente ou inconsciente, o próprio fato de migrar, e de
fazê-lo em massa, converte-se em protagonismo. Os fluxos migratórios, a exemplo
das ondas do mar, sempre desencadeiam energias que mexem com as águas paradas.
Os grandes deslocamentos humanos, como as marés, interferem no ritmo dos
acontecimentos. Numa palavra, as migrações fazem história, sim, e os migrantes
se transformam em sujeitos da mesma! De fato, se, por um lado, a saída em bloco
da própria terra questiona a região ou país que não é capaz de oferecer
cidadania a seus filhos, por outro, a chegada a um novo lugar obriga a uma
tomada de posição diante dos “diferentes e estranhos”. Tanto na origem quanto
no destino, os deslocamentos humanos interpelam a sociedade, exigindo mudanças
urgentes e necessárias nas relações inter-regionais e/ou internacionais.
A presença do outro – seja ele quem for, venha ele de onde vier, tenha
ele os hábitos que tiver, fale ele a língua que falar – sempre perturba e às
vezes revolucina a mesmice do cotidiano. De início, porque a identidade de cada
pessoa e de cada grupo ou povo só amadurece no confronto com os valores de
outra cultura. Mas não é só isso. No caso dos migrantes, além da questão
étnica, que nunca deixa de ser relevante, sobrepõe-se a problemática
socio-econômica. Ou seja, o outro é também pobre: fugitivo, retirante, exilado,
sem nome, sem família, sem lugar, sem papéis e sem pátria. Interpela não
somente a minha identidade, mas também o meu bolso, o meu emprego, a minha
posição social, o meu filho na escola, a minha paz. Não me deixa indiferente,
obriga-me a tomar consciência da situação. Positiva ou negativamente, devo dar
uma resposta. Resposta que se torna uma exigência não apenas para cada pessoa,
família ou grupo, mas para as associações e organizações de base, movimentos
sociais e partidos políticos, instituições e entidades, Igrejas e autoridades
em geral.
“Eu era estrangeiro e me receberam em sua casa” ou “eu era estrangeiro e
não me receberam em sua casa”, diz o Evangelho (Mt 25, 35.43). Diante do
migrante que bate à porta (representando a figura do próprio Jesus), duas
posições opostas, contrastantes: enquanto a primeira acolhe o forasteiro, a
segunda finge ignorá-lo. Mas a história não há de perdoar aqueles que, nos
momentos mais decisivos e trágicos dos embates humanos, permaneceram de braços
cruzados, argumentando neutralidade. Há muito o mito da neutralidade está morto
e sepultado. Ainda segundo o texto bíblico, a uns o juiz chamará de “benditos
de meu Pai”; aos outros, “malditos de meu Pai”. O comportamento para com o
outro/estrangeiro torna-se critério para entrar no Reino de Deus. Quando o
outro, além de estranho e pobre, é uma vítima caída quase sem vida à beira da
estrada, o critério de salvação torna-se igualmente decisivo, como na parábola
do Bom Samaritano (Lc 10,25-37). Aqui, porém, ainda resta uma oportunidade de
conversão e ação solidária: “Vá, e faça a mesma coisa!”, diz Jesus ao doutor da
lei.
Justamente essa oportunidade que nos dá a presença do outro pode
tornar-se em força motriz da história, a segunda hipótese a que nos referíamos
no início. O migrante nunca é somente vítima, mas energia viva que protagoniza
mudanças. Pondo-se em marcha, e fazendo-o em forma coletiva, como as águas de
um rio em movimento, o migrante inquieta, incomoda e interpela, mas também
irriga e fecunda a terra com seus valores culturais e religiosos, seu trabalho,
sua inteligência e criatividade. Requer, por isso, uma tomada de posição, seja
em termos individuais e familiares, seja em termos sociais e eclesiais, seja
ainda em termos de grupo, partido ou governo. Ao movimentar-se, mobiliza
igualmente outras forças sociais, quer estas o rechacem quer o acolham. Sua
insistência na luta por um futuro mais promissor amplia as janelas do horizonte
ou, como dizia Dom J. B. Scalabrini – pai e apóstolo dos migrantes – “alarga o
conceito de pátria”, pois esta para o migrante “é a terra que lhe dá o pão”.
A tradição judaico-cristã fez uma experiência de Deus diferente dos
demais povos vizinhos. Enquanto para estes Deus era um ente acima e além da
história, sentado no trono do templo, sempre sedento de sacrifícios, para os
israelitas Javé é aquele que, frente à realidade do povo, “vê a aflição, ouve o
clamor, conhece o sofrimento e desce para libertá-lo” (Ex 3,7-10). Um Deus
atento, sensível e solidário à condição social de seus filhos e filhas e que,
por isso, caminha pelas estradas do êxodo, do deserto e do exílio. Contra os
tiranos e tiranias de todos os tempos e lugares, Deus irrompe na história para
abrir-lhe novos horizontes, novas alternativas. Deus que nos chama a
caminhar, senhor do tempo e da história. De igual forma, os deslocamentos
humanos de massa cruzam mares bravios, atravessam desertos inóspitos e rompem
muros e fronteiras – descerrando com a energia de águas represadas todas as
possibilidades da trajetória humana sobre a face da terra. Força motriz da
história, na medida em que, “com a cara e a coragem” lhe desvendam potencialidades ocultas.’
Fonte :
* Artigo na íntegra da Web Rádio Migrantes
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