*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
‘Há poucos
dias comemoramos o quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio
Vaticano II e entramos no ano jubilar da misericórdia, pelo qual, Santo Padre,
somos-lhe muito gratos. Devemos dizer que não é nem um pouco arbitrária a
ligação existente entre o tema da misericórdia e o concílio vaticano II. No
discurso de abertura, no dia 11 de outubro de 1962, São João XXIII indicou na
misericórdia a novidade e o estilo do concílio :
‘Sempre, escrevia, a Igreja se opôs aos
erros; muitas vezes, também, condenou-os com a máxima severidade. Agora, porém,
a Esposa de Cristo prefere usar o remédio da misericórdia, mais do que o da
severidade’ [1]
Em certo
sentido, à distância de meio século, o ano da misericórdia celebra a fidelidade
da Igreja àquela sua promessa. Às vezes, surge a pergunta de se insistir muito
na misericórdia não é correr o risco de se esquecer o outro atributo de Deus
que é a justiça. Mas, a justiça de Deus, não só não contradiz a sua
misericórdia, mas consiste justamente nessa! Deus se faz justiça, fazendo
misericórdia. Deus é amor; por isso faz justiça a si mesmo – ou seja, se
demonstra verdadeiramente por aquilo que é – quando faz misericórdia. Bem antes
de Lutero Santo Agostinho tinha escrito : ‘A
justiça de Deus’ é aquela, pela qual, por sua graça, Deus nos torna justos,
exatamente como ‘a salvação do Senhor’
(salus Domini) (Sl 3, 9) é aquela, pela qual, Deus nos salva [2]’.
Isso não
esgota todos os sentidos da expressão ‘justiça
de Deus’, mas é certamente o significado principal dela. Um dia existirá,
também, uma justiça de Deus retributiva, que dará a cada um de acordo com os
próprios méritos (cf Rom 2, 5-10); mas, não é dessa que o Apóstolo fala quando
diz : ‘Agora se manifestou a justiça de
Deus’ (Rom 3, 21). Aquela é um evento futuro, esta um evento presente. Em
outro lugar o próprio apóstolo explica assim : ‘Quando se manifestou a bondade de Deus e o seu amor pelos homens, ele
nos salvou, não em virtude de obras de justiça realizadas, mas pela sua
misericórdia’ (Tt 3, 4-5).
1. ‘Sejam santos porque eu, vosso Deus, sou santo’
O tema desta
meditação é o capítulo V da Lumen gentium, intitulado ‘A vocação universal à santidade na Igreja’. Nas histórias do
Concílio este capítulo só é lembrado por uma questão, digamos, de redação. Os
vários Padres conciliares, membros de ordens religiosas, pediram com
insistência que fosse dedicado um tratado a parte sobre a presença dos
religiosos na Igreja, como tinha sido feito para os leigos. Foi assim que
aquilo que tinha sido lembrado até então como um capítulo unicamente
relacionado à santidade de todos os membros da Igreja, foi dividido em dois
capítulos, dos quais o segundo (VI da LG), dedicado especificamente aos
religiosos [3].
O chamado à
santidade foi formulado desde o início com estas palavras :
‘Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à
Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a
palavra do Apóstolo : «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação»’ (1
Tess. 4,3; cfr. Ef. 1,4) .
Este chamado
à santidade é o ponto mais necessário e urgente do concílio. Sem isso, todos os
outros requisitos são impossíveis ou inúteis. De fato, normalmente, isso é
deixado de lado porque só Deus e a consciência que a exigem e pedem, e não as
pressões ou interesses de grupos humanos particulares da Igreja. Às vezes,
parece que em certos ambientes e em certas famílias religiosas, depois do
concílio, focaram mais no compromisso de ‘fazer
os santos’ do que no de ‘fazer-se
santos’, ou seja, mais esforço para levar aos altares os próprios
fundadores ou correligionários do que em imitar os exemplos e as virtudes.
A primeira
coisa que deve ser feita, quando se fala de santidade, é libertar esta palavra
da submissão e do medo que dá, por causa de certas deturpações que fizeram
dela. A santidade pode acarretar fenômenos e provas extraordinárias, mas não se
identifica com essas coisas. Se todos são chamados à santidade, é porque,
devidamente compreendida, ela está ao alcance de todos, faz parte da
normalidade da vida cristã. Os santos são como as flores : não existem só
aqueles que são colocados no altar. Quantos deles desabrocham e morrem
escondidos, depois de terem lançado silenciosamente seu perfume no ambiente!
Quantas dessas flores escondidas floresceram e florescem continuamente na
Igreja
A motivação
de fundo da santidade é clara desde o início e é que Deus é santo : ‘Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus,
sou santo’ (Lv 19, 2). A santidade é a síntese, na Bíblia, de todos os
atributos de Deus. Isaías chama Deus de ‘o Santo de Israel’, aquele que Israel
conheceu como o Santo. ‘Santo, santo,
santo’, Qadosh, qadosh, qadosh, é
o grito que acompanha a manifestação de Deus no momento do seu chamado (Is 6,
3). Maria reflete fielmente essa ideia de Deus dos profetas e dos Salmos,
quando exclama no Magnificat: ‘Santo é o seu nome’.
Quanto ao
conteúdo da ideia de santidade, o termo bíblico qadosh sugere a ideia de separação, de diversidade. Deus é santo
porque é o totalmente outro com relação a tudo o que o homem pode pensar, dizer
ou fazer. É absoluto, no sentido etimológico de ab-solutus, solto de tudo e à parte. É o transcendente, no sentido
de que está por acima de todas as nossas categorias. Tudo isso no sentido
moral, antes mesmo que metafísico; diz respeito ao atuar de Deus e não só ao
seu ser. Na Escritura define-se como ‘santos’ principalmente os juízos de Deus,
as suas obras e os seus caminhos [5].
Contudo,
santo não é um conceito principalmente negativo, que indica separação, ausência
de mal e de mistura em Deus; é um conceito sumamente positivo. Indica uma ‘pura plenitude’. Em nós, a ‘plenitude’ nunca se mistura totalmente
com a ‘pureza’. Sempre conquistamos a
nossa pureza, purificando-nos e tirando o mal das nossas ações (Is 1, 16). Em
Deus não; pureza e plenitude coexistem e constituem juntas a suma simplicidade
de Deus. A Bíblia expressa perfeitamente esta ideia de santidade quando fala
que a Deus ‘nada pode ser acrescentado e
nada tirado’ (Sir 42, 21). Em quanto suma pureza, nada lhe deve ser tirado;
em quanto suma plenitude, nada lhe pode ser acrescentado.
Quando se
procura entender como o homem entra na esfera da santidade de Deus e o que
significa ser santo, logo prevalece, no Antigo Testamento, a ideia ritualística.
Os trâmites da santidade de Deus são objetos, lugares, ritos, prescrições.
Seções inteiras do Êxodo e do Levítico se intitulam ‘códigos de santidade’ ou ‘lei
de santidade’. A santidade está contida em um código de leis. É tal esta
santidade que é profanada se alguém se aproxima do altar com uma deformidade
física ou depois de ter tocado num animal imundo : ‘santificai-vos e sede santos ..., não se contaminem com qualquer um
destes animais’ (Lv 11, 44; 21, 23).
É possível
ler diferentes vozes nos profetas e nos salmos. À pergunta; ‘Quem subirá o monte do Senhor, quem entrará
em sua santa habitação?’, ou : ‘Quem
dentre nós pode habitar com um fogo abrasador?’, responde-se com indicações
requintadamente morais : ‘Quem tem mãos puras e inocente coração’, e ‘quem
caminha na justiça e fala com lealdade’ (cf. Sl 24, 3; Is 33, 14 s.). São
vozes sublimes que, porém, permanecem isoladas. Ainda no tempo de Jesus, nos
fariseus e em Qumram prevalece a ideia de que a santidade e a justiça consistem
na pureza ritual e na observância de certos preceitos, especialmente o do
Sábado, embora se, na teoria, ninguém esquece que o primeiro e maior mandamento
é o do amor a Deus e ao próximo.
2. A novidade de Cristo
Passando
agora para o Novo Testamento, vemos que a definição de ‘nação santa’ estende-se bem cedo aos cristãos. Para Paulo, os
batizados são ‘santos por vocação’,
ou ‘chamados a ser santos’ [6]. Ele designa habitualmente os
batizados com o termo ‘os santos’. Os
fieis são ‘escolhidos para ser santos e
imaculados diante dele no amor’ (Ef 1, 4). Mas sob a aparente identidade de
terminologia vemos mudanças profundas. Santidade não é mais um fato ritual ou
legal, mas moral, até mesmo ontológico. Não reside nas mãos, mas no coração;
não se decide fora, mas dentro do homem e resume-se na caridade. ‘Não é o que entra pela boca que contamina o
homem; o que sai da boca, isso contamina o homem’ (Mt 15, 11).
Os
mediadores da santidade de Deus não são mais lugares (o templo de Jerusalém ou
o monte Carizim), ritos, objetos e leis, mas é uma pessoa, Jesus Cristo. Ser
santo não consiste tanto em um estar separado disto ou daquilo, mas em um estar
unido a Jesus Cristo. Em Jesus Cristo está a própria santidade de Deus que nos alcança
pessoalmente, não em uma luz distante dele. ‘Tu és o Santo de Deus!’ : duas vezes ressoa esta exclamação
dirigida a Jesus nos Evangelhos (Jo 6, 69; Lc 4, 34). O livro do Apocalipse
chama Cristo simplesmente ‘O Santo’
(Ap 3,7) e a liturgia ecoa exclamando no Glória ‘Tu solus Sanctus’, Só Tu és o
Santo.
Há duas
maneiras de entrar em contato com a santidade de Cristo e esta é comunicada a
nós : por apropriação e por imitação. Dessas, a mais importante é a primeira
que se realiza na fé e por meio dos sacramentos. A santidade é, antes de mais
nada, graça e é obra de toda a Trindade. Porque, de acordo com o Apóstolo, nós
pertencemos a Cristo mais do que a nós mesmos (cf. 1 Cor 6, 19-20), segue-se
que, inversamente, a santidade de Cristo nos pertence mais do que a nossa
própria santidade. ‘O que é de Cristo -
escreve o teólogo bizantino Nicolau Cabasilas - é mais nosso do que aquilo que
é nosso’ [7]. Essa é a ideia
genial, ou ato corajoso, que temos que realizar na vida espiritual. A sua
descoberta não se faz, geralmente, no começo, mas no final do próprio
itinerário espiritual; não no noviciado, mas mais tarde, quando já se
experimentou todas as outras estradas e vemos que não levam muito longe.
Paulo nos
ensina como fazer este ‘ato corajoso’,
quando declara solenemente não querer ser encontrado com a sua própria justiça,
ou santidade, resultante do cumprimento da lei, mas apenas com aquela que
deriva da fé em Cristo (cf. Fl 3, 5-10). Cristo, diz, se tornou para nós ‘justiça, santificação e redenção’ (1 Cor
1,30). ‘Para nós’ : portanto, podemos
exigir a sua santidade como nossa em todos os efeitos. Um ato corajoso é também
o que faz São Bernardo, quando grita: ‘eu, quando me falta, o aproprio
(literalmente, o usurpo) do lado de Cristo’ [8]. ‘Usurpar’ a santidade de Cristo, ‘arrebatar o reino dos céus’! Isso é ato corajoso que deve ser
repetido muitas vezes na vida, especialmente, no momento da comunhão
eucarística.
Dizer que
nós participamos da santidade de Cristo, é como dizer que participamos do
Espírito Santo que vem dele. Ser ou viver ‘em Cristo Jesus’ equivale, para São
Paulo, ser ou viver ‘no Espírito Santo’.
‘A partir disso - por sua vez, escreve
São João – se reconhece que nós permanecemos nele e ele em nós : ele nos fez o
dom do seu Espírito’ (1 Jo 4, 13). Cristo permanece em nós e nós
permanecemos em Cristo, graças ao Espírito Santo.
É o Espírito
Santo, portanto, que nos santifica. Não o Espírito Santo no geral, mas o
Espírito Santo que foi em Jesus de Nazaré, que santificou a sua humanidade, que
se recolheu nele como em um vaso de alabastro e que, da sua cruz e em
Pentecostes, ele derramou sobre a Igreja. Por isso, a santidade que está em nós
não é uma segunda e diferente santidade, mas é a mesma santidade de Cristo. Nós
somos verdadeiramente ‘santificados em Cristo Jesus’ (l Cor 1,2). Como no
batismo, o corpo do homem está imerso e lavado na água, assim a sua alma é, por
assim dizer, batizada na santidade de Cristo: ‘Fostes lavados, fostes
santificados, fostes justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito
do nosso Deus’, diz o Apóstolo referindo-se ao batismo (1 Cor 6,11).
Ao lado
deste meio fundamental da fé e dos sacramentos, deve estar também a imitação,
as obras, o esforço pessoal. Não como meio independente e diferente, mas como o
único meio adequado de manifestar a fé, traduzindo-a em ato. A oposição fé –
obras é um falso problema que se manteve por causa da controvérsia histórica.
As boas obras, sem a fé, não são obras ‘boas’
e a fé sem as obras boas não é verdadeira fé. Basta que por ‘obras boas’ não se entendam
principalmente (como infelizmente era no tempo de Lutero) indulgências,
peregrinações e práticas piedosas, mas a observância dos mandamentos,
especialmente o do amor fraterno. Jesus disse que no juízo final alguns serão
excluídos do Reino por não terem vestido o nu e alimentado o faminto. Não há
salvação, portanto, pelas obras boas, mas não há salvação sem as obras boas.
Podemos resumir assim a doutrina do concílio de Trento.
Acontece
igual à vida física. A criança não pode fazer absolutamente nada para ser
concebida no seio da mãe; precisa do amor dos pais (pelos menos foi assim até
hoje!). Uma vez que nasceu, deve fazer trabalhar os seus pulmões para respirar,
sugar o leite; em suma, deve trabalhar, senão a vida que recebeu morre. A frase
de São Tiago : ‘A fé, sem as obras é
morta’ (Tg 3, 26) deve ser entendida neste sentido, isto é, no presente : a
fé sem as obras morre.
No Novo
Testamento, dois verbos são usados para referir-se à santidade, um no
indicativo e um no imperativo : ‘Sois
Santos’, ‘Sede santos’. Os cristãos são santificados e santificantes [9]. Quando Paulo escreve : ‘Esta é a
vontade de Deus, a vossa santificação’, é claro que se refere justamente a esta
santidade que é fruto de compromisso pessoal. Acrescenta, de fato, como para
explicar em que consiste a santificação da qual está falando : ‘Que vos abstenhais da imodéstia, que cada um
saiba manter o próprio corpo com santidade e respeito’ (cf. 1 Ts 4: 3-9).
O nosso
texto da Lumen Gentium enfatiza claramente estes dois aspectos, um objetivo e
outro subjetivo, da santidade, baseados respectivamente na fé e nas obras. Diz :
‘Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e
justificados em Jesus Cristo, não segundo as suas obras, mas segundo o desenho
e a graça Dele, no batismo da fé foram feitos realmente filhos de Deus e
coparticipantes da natureza divina, e, por isso, realmente santos. Esses devem,
portanto, com a ajuda de Deus, manter e aperfeiçoar, vivendo-a, a santidade que
receberam’ [10].
Porque, de
acordo com Lutero, a Idade Média tinha se desviado sempre mais para acentuar o
lado de Cristo como modelo, e ele acentuou o outro, afirmando que ele é dom e
que este dom corresponde à fé aceitar [11].
Hoje estamos todos de acordo que não se deve contrapor as duas coisas, mas mantê-las
unidas. Cristo é, antes de mais nada, dom a ser recebido por meio da fé, mas é
também modelo a ser imitado na vida. Ele próprio fala isso no Evangelho : ‘Eu vos dei o exemplo, para que façais como
eu vos fiz (Jo 13, 15); Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração’
(Mt 11, 29).
3. Santos ou fracassados
Este é o
ideal novo de santidade do Novo Testamento. Um ponto permanece inalterado, e é
possível aprofundá-lo na passagem do Antigo ao Novo Testamento e é a motivação
de fundo do chamado à santidade, o ‘porquê’
é necessário ser santos : porque Deus é santo. ‘À imagem do santo que vos chamou, sede também vós santos’. Os
discípulos de Cristo devem amar os inimigos, ‘para ser filhos do Pai celeste que faz chover sobre justos e sobre
injustos’ (Mt 5, 45). A santidade não é, portanto, uma imposição, um fardo
que nos é colocado sobre os ombros, mas um privilégio, um dom, uma honra
suprema. Uma obrigação, sim, mas que deriva da nossa dignidade de filhos de
Deus. Aplica-se à ela, no sentido pleno, o ditado francês ‘noblesse oblige’.
A santidade
é exigida pelo próprio ser da criatura humana; não diz respeito aos acidentes,
mas à sua própria essência. Ele deve ser santo para realizar a sua identidade
profunda que é de ser ‘a imagem e
semelhança de Deus’. Para a Escritura, o homem não é principalmente, como
para a filosofia grega, o que é determinado a ser pelo seu nascimento (physis), ou seja, um ‘animal racional’, mas o que é chamado a
se tornar, com o exercício da sua liberdade, na obediência a Deus. Não é tanto
natureza, mas vocação.
Se,
portanto, somos ‘chamados a ser santos’,
se somos ‘santos por vocação’, então
fica claro que seremos pessoas verdadeiras, realizadas, na medida em que formos
pessoas santas. Caso contrário, seremos pessoas fracassadas. O contrário de
santo não é pecador, mas fracassado! Pode-se fracassar na vida de muitas
formas, mas são fracassos relativos que não comprometem o essencial; aqui se
fracassa radicalmente naquilo que se é, não só naquilo que se faz. Tinha razão
Madre Teresa quando perguntada à queima roupa por uma jornalista o que ela
sentia quando era aclamada santa por todo o mundo, respondeu : ‘A santidade não é um luxo, é uma necessidade’.
O filósofo
Pascal formulou o princípio das três ordens ou níveis de grandeza : a ordem dos
corpos ou da matéria, a ordem da inteligência e a ordem da santidade. Uma
distância quase infinita separa a ordem da inteligência da dos corpos, mas uma
distância ‘infinitamente mais infinita’
separa a ordem da santidade da ordem da inteligência. Os genes não precisam das
grandezas materiais; não podem tirar ou acrescentar nada a eles. Da mesma
forma, os santos não precisam das grandezas intelectuais; a sua grandeza é de
outra ordem. ‘Eles são vistos por Deus e
pelos anjos, não pelos corpos e pelas mentes curiosas; basta-lhes Deus’.
Este
princípio permite avaliar da forma certa as coisas e as pessoas que nos
rodeiam. A maioria das pessoas permanecem paradas no primeiro nível e nem
sequer suspeitam da existência de um plano superior. São aqueles que passam a
vida preocupados só em acumular riquezas, cultivar a beleza física, ou aumentar
o próprio poder. Outros acreditam que o valor supremo e o vértice da grandeza
seja o da inteligência. Procuram se tornar célebres no campo das letras, da
arte, do pensamento. Só poucos sabem que existe um terceiro nível de grandeza,
a santidade.
Esta
grandeza é superior porque eterna, porque é tal aos olhos de Deus que é a
verdadeira medida da grandeza e também porque realiza o que há de mais nobre no
ser humano, ou seja, a sua liberdade. Não depende de nós nascermos fortes ou
fracos, bonitos ou menos bonitos, ricos ou pobres, inteligentes ou pouco
inteligentes; depende de nós, sim, sermos honestos ou desonestos, bons ou maus,
santos ou pecadores. Tinha razão o musico Gounod, ele próprio um gênio, quando
dizia que ‘um gota de santidade vale mais
do que oceano de gênio [12]’.
A boa
notícia, sobre a santidade, é que não se é obrigado a escolher um destes três
tipos de grandeza. Pode-se ser santos em cada um deles. Houve, e há santos
entre os ricos e entre os pobres, entre os fortes e entre os fracos, entre os
gênios e as pessoas sem cultura. Ninguém está excluído desta magnitude do
terceiro nível.
4. Voltar ao caminho da santidade
O nosso
tender à santidade é semelhante ao caminho do povo eleito no deserto. Esse
também é um caminho feito de contínuas paradas e partidas. De tanto em tanto o
povo parava e acampava; ou porque estava cansado, ou porque tinha encontrado
água e comida, ou simplesmente porque cansa caminhar sempre. Mas eis que chega
de improviso a ordem do Senhor a Moisés de levantar as tendas e recomeçar a
caminhada : ‘Levante, saia daqui, tu e o
teu povo, rumo à terra que prometi’ (Ex 15, 22; 17, 1).
Na vida da
Igreja, essas chamadas para voltar à caminhar são ouvidas, especialmente, no
início dos tempos fortes do ano litúrgico ou por ocasiões particulares como é o
jubileu da misericórdia divina aberto recentemente pelo Papa. Para cada um de
nós, tomados individualmente, o tempo de levantar as tendas e recomeçarmos a
caminhada rumo a santidade é quando nos damos conta, no íntimo, da misteriosa
chamada que vem da graça. No começo, há como que um momento de parada. A pessoa
para no turbilhão de suas ocupações, toma, como se costuma dizer, as distâncias
de tudo para olhar a sua vida quase que de fora ou do alto, sub specie
aeternitatis. Surgem, então, as grandes perguntas : ‘Quem sou? O que quero? O que estou fazendo da minha vida?’
Embora fosse
um monge, São Bernardo teve uma vida muito movimentada : concílios que
presidiu, bispos e abades que reconciliou, cruzadas que pregou. De vez em
quando, diz o seu biógrafo, ele parava e, quase entrando em diálogo consigo
mesmo, se perguntava : ‘Bernardo, a que
viestes?’ (Bernarde, ad quid venisti?) [13].
Por que deixastes o mundo e entrastes no mosteiro? Nós podemos imitá-lo;
pronunciar o nosso nome (também isso serve) e perguntar-nos : Por que es
cristão? Por que es sacerdote ou religioso? Estás realizando aquilo pelo qual
estás no mundo?
No Novo
Testamento se descreve um tipo de conversão que poderíamos definir como a
conversão-despertar, ou a conversão da mediocridade. No Apocalipse se leem sete
cartas escritas aos anjos (segundo alguns exegetas aos bispos) de várias outras
Igrejas da Ásia Menor. Na carta ao anjo de Éfeso, ele começa reconhecendo o que
o destinatário fez de bom : ‘Conheço as
tuas obras, o teu cansaço e a tua constância... És constante e tens sofrido
muito pelo meu nome, sem cansar-te’. Depois passa a listar o que, pelo
contrário, não lhe agrada: ‘Abandonastes o teu primeiro amor!’. E eis que, neste
ponto, ressoa, como uma trombeta entre adormecidos, o grito do Ressuscitado : Metanòeson, ou seja, converte-te!
Levanta-te! Sacode-te! (Ap 2, 1 ss.).
Essa é a
primeira das sete cartas. Muito mais severa é a última dessas, aquela dirigida
ao anjo da Igreja de Laodiceia : ‘Conheço as tuas obras : tu não eres nem frio
nem quente. Oxalá fosses frio ou quente!’. Converte-te e volte a ser zeloso e
fervoroso : Zeleue oun kai metanòeson! (Ap 3,15 ss). Também esta, como todas as
outras, termina com aquele misterioso aviso : ‘Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas’ (Ap 3, 22).
Santo
Agostinho nos dá uma dica : começar a despertar em nós o desejo de santidade : ‘Toda
a vida do bom cristão – escreve – consiste em um santo desejo [ou seja, em um
desejo de santidade] : Tota vita christiani boni, sanctum desiderium est’ [14]. Jesus disse : ‘Bem aventurados
aqueles que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados’ (Mt 5, 6). A
justiça bíblica, se sabe, é a santidade. Nos deixamos, por isso, com uma
pergunta para meditar : ‘Eu tenho fome e
sede de santidade, ou estou me contentando com a mediocridade?’’
Fonte :
*Artigo na íntegra
------------------------
[1] Concilio
Vaticano II. Documenti, Edizioni Dehoniane, Bologna 1967, p.47.
[2] S.
Agostino, Lo Spirito e la lettera, 32,56 (PL 44, 237).
[3] Cf. Storia
del concilio Vaticano II, organizado por G. Alberigo, vol. IV, Bologna 1999, pp. 68 ss.
[4] Lumen gentium, 39.
[5] Cf. Dt 32,4; Dn 3, 27; Ap 16, 7.
[6] Cf. Rom
1, 7 e 1 Cor 1, 2.
[7] N.
Cabasilas, Vita in Cristo IV, 6 (PG 150, 613).
[8] S.
Bernardo, Omelie sul Cantico, 61, 4-5 (PL 183, 1072).
[9] Cf. 1 Cor 1, 2; 1 Pt 1,2; 2, 15.
[10] Lumen gentium, 40
[11] Cf. Søeren Kierkegaard, Diario X 1,A 154 (ed. Organizada
por C. Fabro, Brescia 1962, vol. I, p. 821).
[12] B.
Pascal, Pensieri 593.
[13] Guglielmo di St. Thierry, Vita prima, I, 4 (PL 185, 238).
[14] S. Agostinho, In Epist. Joh. 4, 6 (PL 35, 2008).
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