*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
Por ocasião
do ‘feliz acontecimento’ da conclusão
do Concílio Vaticano II, o pregador da Casa Pontifícia, padre Raniero Cantalamessa, decidiu dedicar seus três sermões do Advento à Lumen gentium,
reservando-se o direito de dedicar as meditações da próxima Quaresma a outros
importantes documentos conciliares.
Como
apontado por Cantalamessa no primeiro sermão, proferido esta manhã, o Vaticano
tem sido discutido quase sempre ‘por suas
implicações doutrinais e pastorais’; muito raramente ‘por seu conteúdo estritamente espiritual’.
Especificamente,
a LG tem três temas dignos de consideração, tais como ‘a Igreja corpo e esposa de Cristo, a chamada universal à santidade e a
doutrina sobre a Virgem Santa.’
O primeiro
aspecto implica uma aceitação da Igreja ‘por
amor de Cristo’ e não vice-versa. ‘Mesmo
uma Igreja desfigurada pelo pecado de muitos de seus representantes’,
observa o Pregador da Casa Pontifícia.
Foi o então
cardeal Joseph Ratzinger que realçou ‘a
relação intrínseca entre estas duas imagens da Igreja : a Igreja é o Corpo de
Cristo, porque é esposa de Cristo’, referindo-se à imagem paulina ‘da única carne que o homem e a mulher formam unindo-se em matrimônio
(Ef 5, 29-32) e ainda mais a ideia da Eucaristia do único corpo que forma
aqueles que comem o mesmo pão’ (cfr 1 Cor 10, 17.). Esta visão é a que mais aproxima a
Igreja Católica da Ortodoxa : ‘Sem a
Igreja e sem a Eucaristia, Cristto não teria ‘corpo’ no mundo’.
A realização
do homem no Corpo da Igreja ocorre
principalmente através dos sacramentos, do batismo e da Eucaristia. Henri de
Lubac afirmou que a ‘Eucaristia faz a
Igreja’, assumiu que a ‘a Eucaristia
faz de cada um de nós o corpo de Cristo, que é a Igreja.’
Ratzinger
novamente definiu a Eucaristia uma ‘fusão das existências’ (a do homem e a
de Cristo), segundo um princípio análogo ao da assimilação alimentar. Esta ‘fusão’ não acontece ‘hipostaticamente,
como na encarnação, mas misticamente e realmente’.
Sempre na
base da imagem da Igreja esposa de Cristo e da fusão dos órgãos dos corpos do
esposo e da esposa, a Eucaristia permite que ‘a carne incorruptível e dadora de vida do Verbo Encarnado’ se torne
também a ‘carne do homem’. Da mesma
forma, também Cristo recebe ‘o nosso
corpo e o nosso sangue’.
É graças à ‘comunhão esponsal da Missa’, que Cristo ‘ressuscitado’ e ‘no Espírito’, vive todas essas experiências e condições que na sua
existência terrena não experimentou : ‘ser casado, ser mulher, ter perdido um
filho, ser doente, ser ancião, ser negro’.
É como se
Jesus dissesse : ‘Eu estou com fome de
você. Por isso tenho que viver em cada um dos seus pensamentos, em cada um dos
seus afetos, tenho que viver da sua carne, do seu sangue, do seu cansaço,
devo alimentar-me de você, assim como
você se alimenta de mim!’
A ‘humanidade de Cristo’ é motivo de ‘consolo e maravilha’, mas, ao mesmo
tempo, fonte de grande ‘responsabilidade’
para o homem : ‘Se os meus olhos se
tornassem os olhos de Cristo, a minha boca a de Cristo, tenho motivos
suficientes para não deixar o meu olhar se sujar com imagens indecentes, a
minha língua não falar contra o irmão, o meu corpo não servir como instrumento
de pecado’, explica Cantalamessa.
Além da
dimensão ‘objetiva’ e ‘sacramental’ da nossa relação com Cristo
e com a Igreja, há também uma ‘subjetiva
e existencial’ se concretiza no ‘encontro
pessoal’ com o próprio Cristo. Tal conceito, recorda o Pregador , não era
muito aceito no pré-Concílio, em quanto que muitos viam nisso ‘ressonâncias vagamente protestantes’;
preferia-se, então, falar de ‘encontro
eclesial’.
O ‘encontro com Cristo’, então, não está em
contraposição com o encontro ‘sacramental’ com Ele, mas implica, isso
sim, que se trate de um encontro ‘livremente
decidido ou ratificado, não puramente nominal, jurídico ou habitual’.
Além disso,
no alvorecer do cristianismo, alguém se tornava um membro da Igreja ‘depois de uma longa iniciação, o
catecumenato’ e isso era ‘o fruto de
uma decisão pessoal e muito arriscada, por causa da possibilidade do martírio’.
Com o tempo,
no entanto, o cristianismo se tornou religião ‘tolerada’ e depois ‘favorita,
e até imposta’. Não se coloca mais o
acento ‘sobre o modo com que se torna
cristãos, ou seja, sobre a chegada na
fé, s sobre a mudança de costumes; em
outras palavras, sobre a moral’.
A situação
era ‘menos grave’ do que hoje, porque
‘com todas as inconsistências que
sabemos, a família, a escola, a cultura e, gradualmente, também a sociedade
ajudavam, quase que espontaneamente, a absorver a fé’. Além do mais, neste
cenário, ‘tinham nascido formas de vida,
como a vida monástica e, em seguida, as várias ordens religiosas, em que o
batismo era vivido com toda a sua radicalidade e a vida cristã fruto de uma
decisão pessoal, muitas vezes heroica’.
Hoje, a
situação é inversa e precisamos de uma ‘nova
evangelização’ que determine ‘oportunidades’
para que os nossos contemporâneos possam tomar
‘aquela decisão livre e madura que
os cristãos tomavam no início, ao
receber o batismo e que faziam deles cristãos reais e não só nominais’.
A este
respeito Cantalamessa recorda que, em alguns países, ‘a religião mista’, mostrou-se ‘de
grande eficácia’, a proposta de ‘uma
espécie de caminho catecumenal para o batismo de adultos’. No entanto,
continua a enfrentar a questão bem mais problemática da ‘massa dos cristãos já batizados que vivem como cristãos puramente de
nome e não de fato, completamente estranhos à Igreja e à vida sacramental’.
Uma resposta
para esse problema é representada por ‘numerosos
movimentos eclesiais, grupos de leigos e comunidades paroquiais renovadas, que
apareceram depois do concílio’ : todos realidade que permitem ‘muitas pessoas adultas fazerem uma escolha
pessoal por Cristo, de levar a sério o seu batismo, de tornar-se sujeitos
ativos da Igreja’.
No final de
sua meditação, o padre Cantalamessa retomou a questão inicial : ‘O que quer dizer encontrar e fazer-se
encontrar pessoalmente por Cristo? Significa pronunciar a frase ‘Jesus é o
Senhor!’ como era pronunciada por Paulo
e os primeiros cristãos, decidindo, com essa, para sempre, toda a própria vida’.
Jesus, de
fato, ‘não é mais um personagem, mas uma
pessoa; não mais alguém de quem se fala, mas alguém com quem e a quem se pode
falar, porque está ressuscitado e vivo’; Ele não é uma ‘memória’, mas uma ‘presença’ e é impossível tomar alguma ‘decisão importante sem antes tê-la submetido à ele na oração’.
É só amando
a Cristo, portanto, que ‘teremos
realizado o melhor serviço à Igreja’ e a teremos feito fecunda como Esposa
que, em quanto tal, ‘gera novos filhos
unindo-se por amor ao seu Esposo’.
Segue,
abaixo, o texto completo da primeira pregação do Advento de 2015.
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‘SENDO CRISTO A LUZ DOS POVOS...’
Uma releitura cristológica da Lumen Gentium
1. Uma eclesiologia cristológica
A ocasião
propícia do quinquagésimo aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II
sugeriu-me a ideia de dedicar as três meditações do Advento a uma revisitação
do evento conciliar, nos seus conteúdos principais. Especificamente, eu
gostaria de fazer algumas reflexões sobre cada um dos principais documentos do
Concílio, que são quatro constituições : sobre a Igreja (Lumen Gentium), sobre
a Liturgia (Sacrosanctum Concilium), sobre a Palavra de Deus (Dei Verbum) e
sobre a Igreja no mundo (Gaudium et Spes).
O que me deu
coragem para abordar, em tão pouco tempo, temas tão amplos e debatidos foi uma
constatação : sobre o concílio tem-se falado e escrito muito, mas quase sempre
pelas suas implicações doutrinais e pastorais; poucas vezes por causa dos seus
conteúdos especificamente espirituais. Portanto, eu gostaria de focar
exclusivamente nesses, procurando ver o que o Concílio ainda tem a dizer-nos
como textos de espiritualidade, úteis para a edificação da fé.
Vamos
começar dedicando as três meditações de Advento à Lumen Gentium, deixando os
demais para a próxima quaresma, se Deus quiser. Os três temas da Constituição
sobre os quais eu gostaria de refletir são : a Igreja corpo e esposa de Cristo,
a chamada universal à santidade e a doutrina sobre a Virgem Maria.
A inspiração
para esta primeira meditação sobre a Igreja surgiu relendo, por acaso, o começo
da constituição no texto latino. Diz assim : ‘Lumen gentium cum sit Christus...’, ‘Sendo Cristo a luz dos povos...’.
Devo confessar que, para minha confusão, nunca tinha prestado atenção nas
implicações enormes contidas neste começo. Ter pego como título da constituição
só a primeira parte da frase me fez pensar (e acho que não só a mim) que o
título ‘luz dos povos’ fizesse
referência à Igreja, enquanto que ele, como se pode ver, refere-se a Cristo. É
o título com o qual o velho Simão saudou o Messias criança, levado por Maria e
José ao templo : ‘Luz dos povos e glória
do seu povo Israel’ (Lc 2, 32).
Aquela frase
inicial contém a chave para interpretar toda a eclesiologia do Vaticano II.
Essa é uma eclesiologia cristológica, e, portanto, espiritual e mística, antes
que social e institucional. Não se trata, no entanto, de uma relação entre antes
e depois, entre mais e menos; mas sim de uma relação semelhante à que existe
entre o corpo e a alma que lhe dá vida. Ambos são inseparáveis e necessários um para o outro. É necessário colocar
novamente em primeiro lugar esta dimensão cristológica da eclesiologia do Concílio, também em vista de uma evangelização
mais eficaz. De fato, não se aceita a Cristo por amor a Igreja, mas aceita-se a
Igreja por amor a Cristo. Até mesmo uma Igreja desfigurada pelo pecado de
muitos de seus representantes.
Desde já
devo dizer que, certamente, eu não sou o primeiro a destacar a dimensão
essencialmente cristológica da eclesiologia do Vaticano II. Relendo os muitos
escritos do então cardeal Ratzinger sobre a Igreja, percebi com quanta
insistência ele tentou manter viva esta dimensão da doutrina sobre a Igreja da
Lumen Gentium. A mesma chamada às implicações doutrinárias da frase de abertura
: ‘Lumen gentium cum sit Christus...’, ‘sendo
Cristo a luz dos povos’, já está em seus escritos, seguida da afirmação : ‘Se alguém quiser compreender corretamente o
Vaticano II, deve sempre começar de novo desta frase inicial’ [1].
Devemos
assinalar de imediato, para evitar mal-entendidos : essa visão espiritual e
interior da Igreja nunca foi negada por ninguém; mas, como sempre acontece nas
coisas humanas, o novo corre o risco de ofuscar o antigo, o atual faz perder de
vista o eterno e o urgente toma o lugar do importante. Assim aconteceu que as
ideias de comunhão eclesial e de povo de Deus foram desenvolvidas, por vezes,
só no sentido horizontal e sociológico, ou seja, tendo como pano de fundo a
oposição entre koinonia e hierarquia,
insistindo mais na comunhão dos membros da Igreja entre si do que na comunhão
de todos os membros com Cristo.
Isso era,
talvez, uma prioridade do momento e um ganho; como tal São João Paulo II o
acolhe e o valoriza na sua carta apostólica Novo millennio ineunte [2]. Mas cinquenta anos após o fim do
Concílio, talvez seja útil procurar restabelecer o equilíbrio entre esta visão
da Igreja condicionada pelos debates do momento, e a visão espiritual e
mistérica do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. A pergunta fundamental não
é ‘O que é a Igreja’, mas é ‘quem é a Igreja [3]’ e é a partir dessa pergunta que eu gostaria de deixar-me guiar
nesta meditação.
2. A Igreja corpo e esposa de Cristo
A alma e o
conteúdo cristológico da Lumen Gentium (LG) emergem especialmente no capítulo
I, onde se apresenta a Igreja como a esposa de Cristo e corpo de Cristo.
Ouçamos de novo algumas frases:
A Igreja,
chamada «Jerusalém do alto» e «nossa mãe» (Gál. 4,26; cfr. Apoc.
12,17), é também descrita como esposa imaculada do Cordeiro imaculado (Apoc.
19,7; 21,2. 9; 22,17), a qual Cristo ‘amou
e por quem Se entregou, para a santificar’ (Ef. 5, 25-26), uniu a Si por um
indissolúvel vínculo, e sem cessar ‘alimenta
e conserva’ (Ef. 5,29), a qual, purificada, quis unida a Si e submissa no
amor e fidelidade (cfr. Ef. 5,24), (LG, 6).
Isso para o
título de esposa; para o de ‘corpo de
Cristo’, se lê :
‘O filho de Deus, vencendo, na natureza
humana a Si unida, a morte, com a Sua morte e ressurreição, remiu o homem e
transformou-o em nova criatura (cfr. Gál. 6,15; 2 Cor. 5,17). Pois, comunicando
o Seu Espírito, fez misteriosamente de todos os Seus irmãos, chamados de entre
todos os povos, como que o Seu Corpo. [...]. Ao participar realmente do corpo
do Senhor, na fracção do pão eucarístico, somos elevados à comunhão com Ele e
entre nós. ; «Porque há um só pão, nós, que somos muitos, formamos um só corpo,
visto participarmos todos do único pão» (1 Cor. 10,17)’. (LG 7).
Também aqui
foi mérito do então cardeal Ratzinger o ter destacado a intrínseca relação
entre estas duas imagens da Igreja : a Igreja é corpo de Cristo porque é esposa
de Cristo! Em outras palavras, na origem da imagem paulina da Igreja como corpo
de Cristo não está a metáfora estóica da concórdia das partes no corpo humano
(embora as vezes ele utiliza também esta aplicação, como em Rom 12, 4 ss em 1
Cor 12, 12 ss), mas há a ideia esponsal da única carne que o homem e a mulher
formam unindo-se em matrimônio (Ef 5, 29-32) e ainda mais a ideia eucarística
do único corpo que formam aqueles que comem o mesmo pão : ‘Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só
corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão.’(1 Cor 10, 17) [4].
É
desnecessário mencionar que este era o coração da concepção
agostiniana da Igreja, a ponto de
dar, às vezes, a impressão de identificar pura e simplesmente o corpo de Cristo
que é a Igreja com o corpo de Cristo que é a Eucaristia [5]. Isso é o que atesta a evolução do termo ‘corpo místico’ de Cristo que, de indicar a Eucaristia, passa
lentamente a significar, como acontece hoje, a Igreja [6]. Esta, como sabemos, é
também a visão que mais aproxima a eclesiologia católica da eclesiologia
eucarística da Igreja Ortodoxa. Sem a Igreja e sem a Eucaristia, Cristo não
teria ‘corpo’ do mundo.
3. Da Igreja à alma
Um princípio
muitas vezes repetido e aplicado pelos Padres da Igreja reza assim ‘Ecclesia vel anima’, a Igreja, ou talvez
a alma [7]. O sentido é : o que se
fala no geral da Igreja, façam as devidas distinções, aplica-se em particular a
cada pessoa na Igreja. A Santo Ambrósio era atribuída a afirmação : ‘A Igreja é bela nas almas’ [8]. Querendo ter fé na tentativa
declarada destas meditações de captar os aspectos mais diretamente ‘edificantes’ da eclesiologia conciliar,
nos perguntamos : o que pode significar para a vida espiritual do cristão viver
e realizar esta ideia de Igreja, corpo de Cristo e esposa de Cristo?
Se a Igreja
na sua acepção mais íntima e verdadeira é o corpo de Cristo, eu realizo em mim
a Igreja, sou um ‘ser eclesial’ [9], na medida em que permito a Cristo
fazer de mim o seu corpo, não só na teoria, mas também na prática. O que conta
não é o lugar que eu ocupo na Igreja, mas o lugar que cristo ocupa no meu
coração!
Objetivamente,
isto se realiza por meio dos sacramentos, especialmente dois desses; o batismo
e a Eucaristia. Recebemos o batismo só uma vez, a Eucaristia, em vez disso,
recebemos todos os dias. Daqui a importância de celebrá-la e recebe-la de forma
que ela possa realmente cumprir a tarefa de nos fazer Igreja. O famoso
princípio lançado por De Lubac ‘A
Eucaristia faz a Igreja’ não se aplica somente a nível comunitário, mas
também a nível pessoal : a Eucaristia faz de cada um de nós o corpo de Cristo,
ou seja, Igreja. Também aqui eu gostaria de servir-me de algumas palavras
profundas do então cardeal Ratzinger :
‘Comunhão significa que a barreira
aparentemente impenetrável do meu ego é quebrada [...] significa, portanto,
fusão das existências. Como na alimentação o corpo pode assimilar uma
substância estranha e assim viver, dessa forma o meu eu é ‘assimilado’ ao
próprio Jesus, torna-se semelhante a ele em uma troca que quebra sempre mais as
linhas de separação’ [10].
Duas
existências, a minha e a de Cristo, tornam-se uma só, ‘sem confusão e sem divisão’, não hipostaticamente, como na
encarnação, mas misticamente e realmente. De dois ‘eu’, fica só um : não o meu
pequeno eu de criatura, mas o de Cristo, a ponto de que cada um de nós, após
ter recebido a Eucaristia, pode ousar dizer, com Paulo : ‘Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim’ (Gal 2, 20). Na
Eucaristia, escreve Cabasilas,
‘Cristo se derrama em nós e se funde conosco,
mas mudando-nos e transformando-nos em si como uma gota de água derramada em um
infinito oceano unguento perfumado’ [11].
A imagem da
Igreja corpo de Cristo é intrinsecamente ligada, se dizia, à da Igreja esposa
de Cristo e também isso pode ser-nos de grande ajuda para viver em profundidade
mistagogicamente, a Eucaristia. A Carta aos Efésios diz que o matrimônio humano
é um símbolo da união entre Cristo e a Igreja : ‘Por isso o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher
e os dois formarão uma só carne. Este mistério é grande; digo-o em referência a
Cristo e à Igreja!’ (Ef 5, 31-33). Agora, de acordo com São Paulo, a
consequência imediata do matrimônio é que o corpo do marido se torna da mulher
e, vice-versa, o corpo da mulher se torna do marido (1 Cor 7, 4).
Aplicado à
Eucaristia isto significa que a carne incorruptível e doadora de vida do Verbo
encarnado se torna ‘minha’, mas
também a minha carne, a minha humanidade, se torna de Cristo, é tomada por ele.
Na Eucaristia nós recebemos o corpo e o sangue de Cristo, mas também Cristo ‘recebe’ o nosso corpo e o nosso sangue!
Jesus, escreve Santo Hilário de Poitiers, assume a carne daquele que assume a
sua [12]. Ele nos diz : ‘Tomai, este é o meu corpo’, mas também
nós podemos dizer a ele : ‘Toma, este é o
meu corpo’.
Na coleção
de poesias eucarísticas intituladas ‘Canto
do Deus escondido’, o futuro papa Karol Wojtyla chama este novo sujeito,
cuja vida foi assumida por Cristo ‘o eu
eucarístico’ :
‘Vai acontecer agora o milagre
da transformação:
então, te tornará mim-
eu-eucarístico [13]’
Não há nada
da minha vida que não pertença a Cristo. Ninguém deve dizer : ‘Ah, Jesus não sabe o que significa ser
casado, ser mulher, ter perdido um filho, estar doente, ser ancião, ser negro!’
Se você sabe, ele também sabe, graças a você e em você. O que Cristo não pôde
viver ‘segundo a carne’, tendo sido a
sua existência terrena, como a de qual homem, limitada a algumas experiências,
vive-o e ‘experimenta’ agora como
ressuscitado ‘segundo o Espírito’,
graças à comunhão esponsal da Missa. Vive na mulher o ser mulher, no ancião o
ser ancião, no enfermo a condição de enfermo. Tudo isso que ‘faltava’ à plena ‘encarnação’ do Verbo ‘cumpre-se’
na Eucaristia.
Tinha
compreendido o motivo profundo do que a beata Elisabete da Trindade escrevia : ‘A esposa pertence ao esposo. O meu me
agarrou. Quer que seja para ele uma humanidade agregada’ [14]. É como se Jesus nos dissesse : ‘Eu tenho fome de você, quero viver de você,
por isso tenho que viver em cada um dos seus pensamentos, em cada um dos seus
afetos, devo viver da sua carne, do seu sangue, do seu cansaço cotidiano, devo
alimentar-me de você como você se alimenta de mim!’
Oh
inesgotável fonte de admiração e alegria ao pensar que nossa humanidade se
torna a humanidade de Cristo! Mas também quanta responsabilidade em tudo isso!
Se os meus olhos tornaram-se os olhos de Cristo, a minha boca a boca de Cristo,
quantos motivos para não deixar que no meu olhar permaneçam imagens indecentes,
que a minha não fale contra o irmão, o meu corpo sirva como instrumento de
pecado. ‘Tomarei, então, os membros de
Cristo – diz o Apóstolo - e os farei membros de uma prostituta?’ (1 Cor
6,15). Estas palavras chamam a atenção de todos os batizados. Mas e o que dizer
dos consagrados, dos ministros de Deus, que deveriam ser os ‘modelos do rebanho’ (1Pd 5,3)? Dá
escalafrios pensar no ímpio que se aproveita do corpo de Cristo que é a Igreja.
4. O encontro pessoal com Jesus
Até agora eu
falei sobre a contribuição objetiva, ou sacramental, do nosso tornar-se Igreja,
ou seja, o corpo de Cristo. Há, porém, também uma dimensão subjetiva e
existencial que consiste no que o Papa Francisco na Evangelii gaudium define ‘o
encontro pessoal com Jesus de Nazaré’. Ouçamos de novo as suas palavras :
‘Convido todo o cristão, em qualquer lugar e
situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus
Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O
procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este
convite não lhe diz respeito,’ (EG, n.3)
Aqui talvez
devêssemos dar um passo adiante também em relação à eclesiologia do Concílio.
Na linguagem católica, ‘o encontro
pessoal com Jesus’ nunca foi um conceito muito familiar. No lugar de
encontro ‘pessoal’, se preferia a
ideia de um encontro eclesial, realizado, então, por meio dos sacramentos da
Igreja. A expressão soava, aos nossos ouvidos de católicos, vagamente
protestante. É claro que o que se propõe não é um encontro pessoal com Cristo
que substitua o sacramental, mas de certificar-se de que o encontro sacramental
seja também um encontro livremente decidido ou ratificado, não puramente
nominal, jurídico ou habitual. Se a Igreja é o corpo de Cristo, a adesão
pessoal a Cristo é o único modo de entrar, existencialmente, para fazer parte
dela.
Para
compreender o que significa realizar um encontro pessoal com Jesus, é
necessário dar uma olhada, embora rápida, na história. Como é que alguém se
tornava membro da Igreja nos primeiros séculos? Salvando as diferenças
individuais e de lugar, isso acontecia depois de uma longa iniciação, o
catecumenato, e era o fruto de uma decisão pessoal, muito arriscada por sinal,
por causa da possibilidade do martírio.
As coisas
mudaram quando o cristianismo tornou-se, em primeiro lugar religião tolerada e
depois, em breve tempo, religião favorita, ou mesmo imposta. Nesta situação, a
ênfase não é colocada mais no momento e no modo com o qual se torna cristãos,
ou seja, no vir à fé, mas nas exigências morais da própria fé, na mudança dos
costumes; em outras palavras, na moral.
A situação,
no entanto, era menos grave do que pode parecer para nós hoje, porque, com
todas as incoerências que sabemos, a família, a escola, a cultura e,
gradualmente, também a sociedade ajudavam, quase espontaneamente, a absorver a
fé. Sem conta que, desde o começo da nova situação, nasceram formas de vida,
como o monarquismo e depois as várias ordens religiosas, em que o batismo era
vivido em toda a sua radicalidade e a vida cristã fruto de uma decisão pessoal,
muitas vezes heroica.
Esta
situação conhecida como ‘cristandade’
mudou radicalmente. Daí a urgência de uma nova evangelização que leve em
consideração a situação nova. Trata-se, na prática, de criar para os homens de
hoje ocasiões que permitam-lhes tomar, no novo contexto, aquela decisão pessoal
livre e madura que os cristãos tomavam no início ao receber o batismo e que
faziam deles cristãos reais e não só nominais.
O ‘Ritual da Iniciação Cristã dos Adultos’
de 1972 propõe uma espécie de caminho catecumenal para o batismo dos adultos.
Em alguns países com religiões mistas, onde muitas pessoas pedem o batismo
sendo adultas, este instrumento mostrou-se de grande eficácia. Mas, o que fazer
com a massa de cristãos já batizados que vivem como cristãos somente de nome e
não de fato, completamente estranhos à Igreja e à vida sacramental?
Uma resposta
para este problema são os muitos movimentos eclesiais, grupos laicais e
comunidades paroquiais renovadas, que apareceram depois do concílio. A
contribuição comum de todas estas realidades, apesar da grandíssima variedade
de estilo e de consistência numérica, é que elas são o contexto e o instrumento
que permite a muitas pessoas adultas fazerem uma escolha pessoal por Cristo, de
levar a sério o seu batismo, de tornar-se sujeitos ativos da Igreja.
Mas eu não
paro só nesses aspectos pastorais do problema. O que eu gostaria de sublinhar,
no final desta meditação, é mais uma vez o aspecto espiritual e existencial que
nos diz respeito individualmente. O que quer dizer encontrar e fazer-se
encontrar pessoalmente por Jesus? Significa pronunciar a frase ‘Jesus é o Senhor!’ como a pronunciavam
Paulo e os primeiros cristãos, comprometendo, assim, para sempre, toda a vida.
Jesus não é
mais um personagem, mas uma pessoa; não mais alguém de quem se fala, mas alguém
a quem e com quem se pode falar, porque ressuscitado e vivo; não mais somente
uma memória, por mais liturgicamente viva e operante, mas uma presença. Quer
dizer também não tomar nenhuma decisão importante sem antes tê-la submetido a
ele na oração.
Eu disse no
começo que não se aceita a Cristo por amor à Igreja, mas aceita-se a Igreja por
amor a Cristo. Procuremos, portanto, amar a Cristo e fazê-lo amar e teremos
realizado o melhor serviço à Igreja. Se a Igreja é a esposa de Cristo, como
toda esposa, ela gera novos filhos unindo-se por amor ao seu Esposo. A
fecundidade da Igreja depende do seu amor por Cristo.’
Fonte
:
*Artigos na íntegra
http://www.zenit.org/pt/articles/cantalamessa-nunca-tome-decisoes-importantes-sem-antes-orar-a-jesus
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[1] J. Ratzinger, L’ecclesiologia del
Vaticano II, in Chiesa, ecumenismo e politica, Edizioni
Paoline, Cinisello Balsamo, 1987, pp. 9-16).
[2] Cf. S. João Paulo II, ‘Novo millennio ineunte’, 42. 45.
[3] Cf. H. U. von Balthasar, Sponsa Verbi,
Saggi teologici,II, Morcelliana, Brescia 1972, pp. 139 ss. (ed. tedesca Sponsa
Verbi, Johannes Verlag, Einsiedeln 1961).
[4] Joseph Ratzinger, Origine
e natura della Chiesa, in La Chiesa. Una comunità sempre in cammino,
Ed. Paoline, Cinisello Balsamo, 1991, pp. 9-31).
[5] Santo Agostinho, Discorsi, 272 (PL
38, 1247 s.).
[6] Cf. H. de Lubac, in Corpus
Mysticum. L’Eucharistie et l’Eglise au Moyen Age, Aubier, Paris 1949
(trad.ital. Corpus Mysticum. L’eucaristia e la chiesa nel Medioevo,
Jaka Book, Milano 1996).
[7] Cf. Origene, In cant.
cant. III (GCS 33, p. 185 e 190); S. Ambrogio, Exp. Ps. CXVIII, 6,18
(CSEL 62, p. 117).
[8] Cf. H. de Lubac, Exégèse mediévale, I, 2,
Paris, Aubier, 1959, p.650.
[9] Cf. J. Zizioulas, L’être
ecclésial, Labor et fides, Genève 1981 (trad. Ital. Ed.
Qiqajon, Comunità di Bose 2007).
[10] J. Ratzinger, Origine e natura della
Chiesa, cit.
[11] Ni. Cabasilas, Vita in Cristo, IV,3
(PG 150, 593).
[12] S. Hilário di Poitiers, De Trinitate,
8, 16 (PL 10, 248) : ‘Eius tantum in se
adsumptam habens carnem, qui suam sumpserit’.
[13] K. Wojtyla, Tutte le opere letterarie,
Bompiani. Milano 2000, p. 75.
[14] B. Elisabetta della Trinità, Lettera 261,
alla mamma (in Opere, Roma 1967, p. 457).
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