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segunda-feira, 24 de abril de 2023

Os radtrads são obcecados pela “societas perfecta”

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

Uma reflexão sobre manuais de história da Igreja que são editados para legitimar o ‘cristianismo bélico e glorioso’


Evitar o anacronismo é o mantra de todo historiador. E quando o assunto é história da Igreja, a atenção para não pender para esse tipo de abordagem precisa ser redobrada, já que estamos lidando com o fenômeno religioso. Porém, assumir o compromisso de não julgar o passado com categorias do presente não significa anular ou diminuir os crimes cometidos em séculos anteriores. O passado precisa ser conhecido e estudado, de modo que esses erros não sejam repetidos no presente.

Os últimos três papas, através de gestos e discursos, fizeram questão de enfatizar isso. João Paulo II, ao pedir perdão pela violência impetrada em nome de Deus por muitos homens da Igreja; Bento XVI, ao reconhecer que foi ‘providencial’, num dado momento, a Igreja ter se apartado do poder temporal; e Francisco, relendo a colonização da América, pediu perdão pelos abusos da instituição contra os povos originários. Ou seja, o papado contemporâneo olha para essa história como um percurso feito de luzes e sombras, de anjos e de demônios.

Positivismo histórico dos radtrads

Os adeptos do positivismo histórico, do século 19, viam o passado como um celeiro de mitos nacionais. Historia magistrae vitae? Sim. Mas só era mestra de vida na medida em que condecorava as personalidades ‘civilizadoras’, os heróis do Estado (muitas vezes, forçadamente fabricados pelos propagadores da ideologia dominante).

E muitos grupos sectários da atualidade têm se debruçado sobre o passado cristão pelas lentes do positivismo histórico. Há quem romantize a trajetória de Constantino, de Pepino, o jovem, de Carlos Magno e dos cavaleiros medievais. A ideia é acumular informações ‘gloriosas’ sobre a História da Igreja, não situá-la dentro de um contexto social, político ou cultural.

Os manuais de história da Igreja do século 19, que estão sendo republicados por muitas editoras controladas por esses nichos, estão repletos desses floreios. Não que tais atores não devam ser investigados e mencionados. O problema está em ressuscitá-los na pretensão de reconstruir uma ‘Idade de Ouro’ que sequer existiu.

Há quem se recorde da famigerada visão de Constantino, mas não cita os membros da família que ele executou após sua ‘conversão’. Há quem superestime as cruzadas como símbolo do triunfo, mas ignora o momento em que os cavaleiros se aliaram aos muçulmanos e o episódio em que os venezianos invadiram Constantinopla, em 1204, e profanaram a Basílica de Santa Sofia. E eu poderia citar tantos outros exemplos.

A maioria desses livros, principalmente aqueles que foram publicados antes da década de 1930, via a historiografia como um instrumento capaz de reproduzir uma narração precisa dos fatos, que era pautada somente pelos documentos oficiais. Ou seja, a história não era tratada como um processo repleto de nuances e pontos de vista, mas como uma grande crônica repleta de heróis, cujos feitos foram eternizados pela fonte escrita.

Cálculo político e erudição estéril

Sustentar uma visão anacrônica nem sempre é tão inofensivo quanto parece. O estrago, inclusive, às vezes acontece a longo prazo. Hitler se apoiou na trajetória de Lutero para criar uma religião política e nacionalista segundo os parâmetros do catecismo nazista : o ‘cristianismo positivo’. Mussolini evocou Constantino, o primeiro imperador cristão da história, para legitimar seu imperialismo. O ditador italiano, que era um anticlerical convicto, mudou o discurso e passou a tratar o catolicismo como parte integrante da cultura do país para atrair o apoio das autoridades eclesiásticas.

Em âmbito católico, os simpatizantes da erudição estéril e anacrônica isolam a história da instituição em 500 anos. O Concílio de Trento, que no século 16 padronizou o rito latino, é visto como a tradução mais perfeita da tradição, como se ela se resumisse a uma lista de rubricas e normas. Nada mais.

Nenhum concílio esgotou as possibilidades da fé católica

Só que a Tradição, para o catolicismo, escrita em T maiúsculo, se baseia principalmente no ensinamento de Jesus transmitido aos apóstolos, e não por acaso é chamada de Depositum Fidei, não de Ritus Romani. Portanto, a visão reducionista deles contradiz a própria doutrina. Dizer que um único concílio ecumênico foi capaz de interpretar o catolicismo na sua plenitude é destoar desse princípio, já que essa confissão cristã acredita na sucessão apostólica. E se o Concílio Vaticano II, constituído por um colégio de bispos, tomou certas decisões, que mais à frente foram revistas e chanceladas pelo próprio papa, deve ser seguido como todos os outros.

Não por acaso, as resistências em relação ao papa Francisco começaram justamente entre os tridentinos da internet, que inclusive têm uma visão completamente distorcida em relação ao conceito de reforma da Igreja Católica. Para eles, muito ligados ao espírito de Trento, reformar é impor ‘um modelo’, e ter um pontífice — e um concílio, no caso — que foca na renovação de seus membros, não nos acessórios, que muitas vezes ofuscam a essência da vida cristã, é demais para a cabeça deles.’ 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://rafaelmariae.medium.com/os-radtrads-s%C3%A3o-obcecados-pela-societas-perfecta-a8ce3f121fb3

domingo, 7 de agosto de 2022

Política e força moral

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

‘O ano eleitoral de 2022 precisa incluir a importante tarefa de olhar o conjunto da comunidade política : não se pode considerar somente o Poder Executivo Federal. A indispensável conscientização política neste momento pede, dos cidadãos, essa tarefa - pois também é especialmente importante o conjunto de cargos eletivos que compõem as assembleias legislativas e o Congresso Nacional. A definição do voto não pode se pautar ainda, simplesmente, pelas polarizações ou ‘paixões’ costumeiras, sob pena de inadequado discernimento para escolhas tão importantes. Para efetivar uma política melhor, alicerçada no bem, sem submissão a interesses cartoriais e oligárquicos, capaz de ajudar na reconstrução da sociedade brasileira nos parâmetros da justiça e da paz, é fundamental escolher pessoas com envergadura moral e competência política. Neste horizonte, deve-se também observar e identificar aqueles que têm compromisso explícito, claro e comprovado com o sistema democrático.

A fidelidade aos princípios democráticos define a autoridade e a força moral dos candidatos. A Igreja Católica, em sua Doutrina Social, sublinha a importância da democracia, que assegura a participação dos cidadãos na vida política, a possibilidade de os governados elegerem e controlarem seus governantes. Por isso mesmo, neste ano eleitoral, sejam incansavelmente reafirmados os valores da democracia, irradiando uma luz que se acende na escuridão. Ao promoverem os valores democráticos, reconheça-se que uma autêntica democracia, conforme ensina a Doutrina Social da Igreja, é bem mais que a inegociável dimensão do respeito formal às regras das instituições. Contempla a convicta aceitação dos princípios essenciais ao fortalecimento do sistema democrático, que incluem o respeito à dignidade da pessoa humana e de seus direitos, a promoção do bem comum como fim e critério regulador das atividades políticas. E nesse horizonte, deve-se considerar a indissociável vinculação entre os campos social e ambiental, nos ricos parâmetros da ecologia integral, magistralmente apresentados pelo Papa Francisco na Carta Encíclica Laudato Si’ - sobre o cuidado com a casa comum.

Se não há fidelidade aos valores democráticos não se pode merecer a confiança do voto, pois desrespeita-se o verdadeiro sentido da democracia, comprometendo a sua estabilidade. O relativismo ético, que desconsidera critérios universais, a exemplo dos valores democráticos, é sério risco para o pleno exercício da cidadania. Seja, pois, observada a trajetória de cada candidato, para identificar se há fidelidade a entendimentos indispensáveis para o exercício da representação política. Quem assume a responsabilidade de ocupar cargos nas instâncias do poder, a partir do processo eleitoral, não pode subestimar a dimensão moral de sua representação. Isto significa, em primeiro lugar, que os políticos precisam ser realmente sensíveis às necessidades da população, procurando soluções para problemas sociais e ambientais.

O exercício do poder político, quando não é orientado a partir de adequados princípios morais, contribui para gerar deformações no sistema democrático – a exemplo da corrupção política, das manipulações interesseiras, da defesa de grupos oligárquicos, traindo os valores da justiça social. A carência de respeito à dimensão moral explica porque há, na atualidade, uma crescente desconfiança relacionada à política. Fundamental é buscar uma reação, ‘encantar’ a política definindo os quadros que exercerão a representatividade dos cidadãos nas instâncias do poder, observando um aspecto que vai além de simpatias, favores recebidos ou paixões cegas : a corrida eleitoral pede a avaliação da dimensão moral de candidatos para efetivar escolhas capazes de contribuir com o fortalecimento da democracia, essencial à promoção de uma ‘primavera’ de justiça social.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/artigos/?id=10077

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A religião que se seduz pelo poder faz mal à pessoa e à sociedade

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo do padre José María Castillo, SJ

 

‘As notícias que a mídia nos dá hoje, sobre a violência e os absurdos sociais cometidos em muitos lugares, nos últimos anos, nos obrigam a pensar (mais uma vez) sobre o perigo que pode representar a religião. Perigo para a paz, para a política, para a sociedade e para a coexistência dos cidadãos etc.

O que acabei de dizer não é novidade. É um fato bem conhecido e comprovado. E não estou me referindo apenas a eventos do passado. Estamos vivendo isso esses dias. Anjos e demônios nos diários de políticos de alto escalão.

Vemos como a religião está dirigindo a política, atacando ou defendendo os candidatos, para o bem de uns, para o infortúnio de outros. Estamos loucos?

Bem, nesse contexto, eu afirmo que, no cristianismo e em nossa Igreja, isso atingiu o cerne de nossas crenças, o coração da fé. Por isso, há muitos cidadãos que, devido a esta série de absurdos, abandonaram a religião. Estamos perante um assunto da maior importância. Para o bem ou para o mal, não só da política, mas também da religião e da fé.

No cristianismo, temos isso claro. Infelizmente, muitas vezes, os clérigos não ensinam isso como deveriam. Porque com certeza há clérigos interessados no assunto da política e o poder. E há muitos padres que usam a religião para fazer carreira, ter poder, viver com segurança e ser pessoas importantes. Isso é intolerável. 

Poder por poder

Que solução Jesus deu a este assunto tão delicado e tão sério? Jesus deslocou a religião : tirou-a do templo, confrontou os sacerdotes, nunca participou nas cerimônias do ‘lugar santo’. Jesus orou muito. Passou noites inteiras em oração. Mas para orar, ele não foi ao templo. Jesus foi para lugares solitários. A religiosidade que o Evangelho nos ensina não é como a religiosidade que a religião ensina.

É exatamente por isso que Jesus ignorou a política. Ele nunca falou contra o imperador. Jamais falou contra Pôncio Pilatos. Ele também não enfrentou os legionários romanos. Quando Herodes massacrou João Batista, em uma noite de loucura, Jesus não disse uma palavra. E quando informaram a Jesus, diante de uma multidão de pessoas, que Pilatos havia massacrado alguns samaritanos quando estavam celebrando um ato religioso, Jesus não disse uma palavra contra Pilatos. Ao contrário: para as pessoas à sua frente, dizia : ‘E você, se não se converter e mudar de vida, vai acabar como esses samaritanos’.

Além disso, no relato da paixão de Cristo, quem estava contra Jesus? Os sacerdotes. E quem defendeu Jesus no momento da condenação? Pôncio Pilatos. Ainda, quando Jesus agonizou e morreu na cruz, quem fez o primeiro ato de fé, reconhecendo Jesus como o ‘Filho de Deus’? Não foram os apóstolos, que resistiram em acreditar. Os primeiros crentes em Jesus Cristo foram ‘O centurião e os romanos’ (Mt 27, 54) e as mulheres que o acompanhavam (Mt 27, 55-56), agora incapacitadas pela religião, para poderem ser iguais aos homens em dignidade e direitos.

Tudo isto aconteceu muito antes de Deus se fazer presente no mundo, na pessoa e na vida daquele pobre nazareno, que era Jesus. E isto continua acontecendo agora : há políticos que usam a religião para seus interesses. E aqueles que defendem tanto a religião, não fazem caso ao Evangelho. Para Jesus, o primeiro não são as cerimônias e os rituais. Para Jesus, o primeiro é o ser humano, especialmente os que mais sofrem, os enfermos, os pobres, as crianças, os pecadores e as mulheres.

Jesus, frente a Pilatos

Quando vamos deixar de tirar proveito da religião, para extrair dinheiro e poder dela, mesmo disfarçando nossos interesses e fazendo parecer que é o melhor para todos? Quando veremos os cristãos, em massa, identificados como os últimos deste mundo, como o povo de Deus?

E acabo esta reflexão pedindo, sobretudo aos nossos bispos, ‘sigam Jesus’, vivam o Evangelho e sejam (e sejamos todos!) presença de Jesus neste mundo. Os bispos ensinarão o Evangelho de Jesus quando os vejamos vivendo como Jesus viveu. E o mesmo deve ser dito da hierarquia, dos religiosos e dos clérigos em geral. E quem ainda acredita no projeto do Cristianismo e em sua razão de ser, deve fazer o mesmo. Não é uma questão de argumentos. É o que decide se somos ou não crentes em Jesus Cristo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1470694/2020/09/a-religiao-que-se-seduz-pelo-poder-faz-mal-a-pessoa-e-a-sociedade/

 

 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Como a Igreja age politicamente?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

O legado dos cinco primeiros anos de Francisco, o papa 'que desceu ...

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘Não é raro ver as pessoas questionarem os rumos tomados pela diplomacia vaticana diante de determinadas situações. Em temos de Francisco, o secretário de estado é o cardeal Pietro Parolin, que já pode ser considerado um dos maiores estrategistas pontifícios da era contemporânea, na opinião de especialistas. Um diplomata experiente que carrega na bagagem uma longa experiência em terras estrangeiras, inclusive com passagem pela América Latina.

Atualmente, são 183 países com os quais, oficialmente, Santa Sé estabelece diálogo. Por isso é importante entender os pormenores das relações entre a Igreja e os estados, bem como a natureza do organismo que coordena essas relações. Só assim, seremos mais honestos em nossas análises, sem cair naquela interpretação pífia de que a Igreja ‘deva quebrar regras’ sem se importar com os conflitos diplomáticos que possam surgir.

É muito fácil questionar sobre o acordo recente entre Santa Sé e a China ou pedir que a instituição seja mais combativa em relação à crise da Venezuela. Difícil é tentar compreender os motivos que levam a instituição ora a silenciar ora a manifestar-se sobre determinadas questões.

Sem adentrar em temas específicas neste artigo, os quais exigem um texto dedicado a eles - como no caso da China - precisamos compreender que a Santa Sé, como representante da Igreja Católica, é um sujeito soberano de direito internacional. E a única organização religiosa dotada de um estado soberano. Portanto, a Santa Sé, considerando o seu grau de representatividade, ‘faz política’ - no melhor sentido da palavra -, não politicagem, o que é completamente diferente. 

Durante a eleição de um pontífice, o voto vai para o candidato que mais corresponda aos anseios da instituição, e se adeque, naquele momento específico, às suas necessidades. Portantoconsiderar que um conclave se submeta às exigências de um establishment, e não esteja condicionado aos parâmetros pré-estabelecidos pela própria instituição, não condiz, sequer, com a própria missão do papado.

Os sumos pontífices de transição são eleitos para atuarem com uma certa continuidade em relação ao governo de seus antecessores, sobretudo quando os cardeais sentem que não é a hora de realizar mudanças bruscas (Basta lembrar da transição entre João Paulo II e Bento XVI). Já os pontífices mais jovens são escolhidos para levar uma certa ‘vitalidade’ às estruturas. Outros papas levam a tiara para lidar com situações mais específicas, que exijam uma certa ‘perspicácia diplomática’, como foi o caso de João XXIII, o papa que promoveu o diálogo em plena Guerra Fria.

Francisco se enquadra neste último caso. Um papa considerado ‘outsider’ em relação a determinados padrões, mas escolhido para desempenhar um papel que o distingue dos demais : devolver a credibilidade à Igreja, abalada pelos escândalos que marcaram os últimos anos de pontificado de Bento XVI. E não só : para satisfazer os desejos de mudança em relação à própria estrutura da cúria romana, que herda aquele espírito de ‘corte renascentista’ que os pontífices contemporâneos pós-conciliares tentaram combater, sem sucesso.

Como explica a historiadora Rita Almeida de Carvalho, em artigo publicado pela revista científica História e Relações Internacionais, ‘o papado hoje, poder neutro sem quaisquer aspirações de natureza temporal, é totalmente independente e livre de todos os laços humanos que o constrangem e obrigam’.

Em outras palavras, a Igreja pensa em si e na sua soberania, de modo que ela se destaque no cenário internacional, e assim garanta a sua liberdade de culto e de atuação em todos os territórios. Não há interesses econômicos, militares ou comerciais em jogo, mas o desejo de salvaguardar a liberdade de 1 bilhão de membros e se tornar um instrumento de mediação e um promotor da dignidade humana, sobretudo em situações de conflito.

Se a Igreja considera que a política, enquanto agente promotor da dignidade humana, não cumpre o seu papel, em muitas ocasiões ela se pronuncia, mesmo que demore a fazê-lo. Papa Francisco, não por acaso, pede insistentemente, sobretudo neste período, um cessar-fogo global, citando, inclusive a situação na Síria. O país, arrasado pela guerra, encontra-se em ruínas por causa disputa entre americanos e russos. A Igreja compra a briga de pessoas, não de partidos. O que é diferente.

Ainda de acordo com a estudiosa, ‘a Igreja Católica procura assim contribuir para a criação de uma nova ordem social, baseada na lei divina e nos ensinamentos cristãos contidos no Evangelho. A diplomacia papal é um instrumento desta pretensão, faz parte da organização transnacional da Igreja concebida para exercer influência’.

O bispo Silvano Tommasi, que foi observador permanente da Santa Sé junto à ONU até 2016, explica que a Igreja Católica ‘trabalha com as nações para que a força da lei prevaleça sobre a lei da força. E o papa, nesse sentido, atua como agente pacificador e conciliador : características assumidas mais concretamente pelo pontífice romano a partir do último grande concílio ecumênico da década de 60. Como disse João Paulo II, em 1998, ‘a sua missão diplomática era ajudar os indivíduos a cumprirem ο seu destino em paz e harmonia, com vista ao bem comum e ao desenvolvimento integral dos indivíduo’.

Por isso a diplomacia pontifícia é considerada sui generis, ou seja, é diferente de todas as outras no tocante aos próprios objetivos que a motivam. Sua soberania moral se exerce sobre pessoas, não sobre territórios. É por isso que quando o papa visita um país estrangeiro, o faz a convite da Igreja local, não das autoridades civis.

Cobrar de Papa Francisco ou de qualquer outro pontífice pronunciamentos incisivos diante de situações delicadas é desconsiderar o peso dessa estrutura que o precede. Há quem critique as ‘omissões papais’ sem sequer conhecer o status quo do Vaticano junto à comunidade internacional. Quer queira, quer não, a Igreja é amparada por um estado que oferece garantias não só à sua subsistência, mas à subsistência de toda a cristandade.

Em tempos de tanto obscurantismo intelectual, nada melhor que nos lembrarmos que estamos diante de uma instituição milenar, a qual precisa ser estudada com afinco para poder ser compreendida. Só assim, nos livraremos das investidas ideológicas que ameaçam sua missão e atrapalham suas investidas diplomáticas em vista da harmonia e do bem comum.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1462833/2020/07/como-a-igreja-age-politicamente/


domingo, 21 de junho de 2020

Cristãos na política, não pela política

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  Pintura que retrata o momento em que Constantino concede a tiara imperial a papa Silvestre I, símbolo da 'doação de Constantino' - (Século XIII).

Pintura que retrata o momento em que Constantino concede a tiara imperial a papa Silvestre I, símbolo da 'doação de Constantino' - (Século XIII)

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

‘Em tempos sombrios, hora de revisitar algumas páginas da história. Uma frase do cientista político Luís Bresser, me motivou a fazer esse resgate. Ele diz que ‘embora a religião não seja um requisito das nações, muitas vezes o nacionalismo, no processo de construir e consolidar o estado-nação, usa a religião como instrumento de coesão social e fortalecimento de legitimidade’. E não preciso acrescentar mais nada a essas palavras tão certeiras e atuais. 

Não que os cristãos não possam se envolver a política. Entretanto, não lhes é permitido ‘politizar’ a fé, o que é bem diferente. E é essa confusão em relação ao papel do cristão na política que tem desacreditado a própria missão da igreja atualmente. A instituição, de acordo com sua própria Doutrina Social da Igreja (DSI), declara-se neutra, o que não a impede de prezar pela promoção da dignidade humana em toda e qualquer circunstância, justamente por este ser um dos pilares da doutrina cristã. 

O tema da justiça social, por exemplo, encontrou amplo espaço nos discursos papais da era contemporânea, a começar pela Rerum Novarum, de papa Leão XIII, considerado o fundador da DSI. E um, em particular, chama a atenção : a rádio-mensagem de Pio XII (Eugenio Pacelli) por ocasião da festa de Pentecostes, em 1941 : o discurso que fazem questão de engavetar. Instrumentalizado por olavistas como ‘último papa anti-modernista’, por causa de seu decreto contra o comunismo stalinista, esse pontífice disse algo que passou despercebido pelos ‘católicos politizados’ da atualidade, os quais sequer folhearam o compêndio da doutrina social da Igreja ao menos uma vez na vida. E isso explica esse fundamentalismo e esse neo ultramontanismo anti-papal do presente. 

Papa Pacelli, após defender a propriedade privada e mostrar simpatia pela economia de mercado, como seus predecessores o fizeram, disse algo com a intenção de equilibrar o próprio discurso. Com isso, ele não queria contradizer o que doutrina social católica propunha - a qual, à época, estava em fase de construção e fundamentação : ‘Chamamos a atenção de todos sobre o seu ponto fundamental, que afirma, como dissemos, a exigência incontestável de que os bens criados por Deus para todos os homens afluam a todos eqüitativamente, segundo os princípios da justiça e da caridade’. Ou seja, a Igreja Católica deixava sinais claros que os valores sociais atestados pelo cristianismo, independente do sistema político dominante, são inegociáveis. 

O constantinismo 

Há a tendência que se observa, em se tratando de catolicismo, desde a época de Constantino, no século IV : o imperador que se fez cristão para executar sua política de expansão. É por isso que os professores de história eclesiástica chamam esse pacto nocivo entre fé e política de ‘constantinismo’. Por definição, trata-se da instrumentalização da fé e de seus símbolos para fins políticos. E seria, por assim dizer, ‘a irmã mais velha’ do cesaropapismo : quando o imperador, sobretudo na fase bizantina, controlava a igreja e o território. E era tido como ‘o enviado de Deus’ para assumir essa ‘missão’. E isso se refletiu mais tarde também no Ocidente. Entre os séculos VII e X, em pleno processo de feudalização, os soberanos germânicos praticamente controlavam a eleição do sumo pontífice, por exemplo. 

O historiador italiano Sergio Tanzarella, professor da Universidade Gregoriana de Roma, é um dos acadêmicos que repropõe o uso do termo, refletindo sobre os mandos e desmandos do presente. Ele diz que o Concílio Vaticano II, realizado na década de 60, tentou romper com esse constantinismo. Segundo ele, tal ‘vício de corte’ jamais havia sido condenado pela Igreja Católica até então, e foi o teólogo Yves Congar um dos promotores desse movimento de ruptura. 

Nunca foi registrada uma denúncia nem nos tempos nos quais a igreja tinha uma estreita ligação com o feudalismo, detinha do poder temporal, os papas e bispos eram senhores com corte, protegiam os artistas, se comportavam como Césares. Isso nunca foi repudiado pela Igreja. Nunca houve, até aquela data, um programa concreto de saída da era constantiniana’, disse. 

A questão romana 

Basta nos lembrarmos também da chamada ‘questão romana’, movimento que ficou conhecido como a tentativa dos papas de retomarem o poder temporal após a queda do estado pontifício, em 1861, sob o pontificado de Pio IX. Após uma série de tratativas, foi criado o Estado da Cidade do Vaticano, em 1929, através do chamado Pacto lateranense. Naquele ano, foi firmado um acordo entre o papa Pio XI e o ditador Benito Mussolini para garantir a soberania da Igreja Católica num território desmembrado da Itália, onde fica localizada a sede da Igreja Católica hoje. 

A verdade é que foi difícil para os papas ‘largar o osso’ após a perda dos territórios pontifícios, os quais estavam sob a jurisdição do bispo de Roma por causa de uma lenda medieval chamada ‘a doação de Constantino’ - a Constitutum Costantini. O filólogo italiano Lorenzo Valla descobriu, em 1440, que se tratava de um documento falso e, por conseguinte, o imperador jamais teria feito, de fato, essa doação. Esse texto, sobretudo na idade média, serviu para respaldar o domínio papal sobre a cidade de Roma, sobre a Itália e sobre todo o território imperial. 

A percepção da permanência de um modelo constantiniano foi um elemento recorrente nos anos que precederam o concílio. O professor Friedrich Heer, da Universidade de Viena disse que a ação de Constantino teria influenciado por muitos séculos a Europa através da politização da teologia e a sacralização da política’, ressaltou Tanzarella. 

Os políticos ‘religiosos’ 

E não podemos deixar falar do cristianismo positivo de Adolf Hitler, que fez despontar a revolta do grande Dietrich Bonhoeffer, o mártir do protestantismo e da chamada ‘Igreja Confessante’, que profeticamente lutou para que a sua instituição não fosse instrumentalizada pelo Terceiro Reich. 

A meu ver, não podemos dizer que exista um sistema político que se assemelhe ao nazismo ou ao fascismo na atualidade. Porém, podemos falar, sim, que esse despertar do sentimento religioso, para auxiliar na difusão de algumas ideologias políticas, é uma das fortes estratégias de mobilização que copiam fielmente as adotadas pelos regimes totalitários. Ou se esqueceram que Mussolini - diga-se ateu e anticlerical -, estabeleceu que o ensino religioso católico era uma das disciplinas que não poderiam ficar de fora da grade curricular das escolas italianas? Só para citar um exemplo. 

A liberdade da igreja é inegociável. E transformar político em ‘messias’ contradiz justamente essa liberdade que lhe é própria. Ora, se um político acaba se tornando a personificação do bem, ele acaba tomando lugar do profetismo da instituição. Uma igreja partidária jamais testemunhará Jesus Cristo. E foi foi o próprio catolicismo a reconhecer que essas brechas dadas à politização da sua mensagem, só serviram para desvirtuar o seu papel. Foi o próprio Bento XVI a atestar, inclusive, que foi providencial que a igreja perdesse o seu poder temporal, justamente para ‘que Cristo pudesse resplandescer’. 

 É por isso que, ‘a cada papado que passa’, os sumo pontífices articulam a própria diplomacia em torno de questões fundamentais, centradas, sobretudo, na promoção da dignidade humana; esquivando-se de conflitos e promovendo o bem comum. Sendo assim, esses católicos do ‘auê’, que fazem questão de acentuar ainda mais a polarização em seus discursos, não representam, nem de longe, o catolicismo contemporâneo. Pudera, afinal, muitos deles pararam em Trento...’ 

 

Fonte : 

*Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1453851/2020/06/cristaos-na-politica-nao-pela-politica/


sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A orientação política da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


 Papa Francisco cumprimenta peregrinos durante audiência geral no Vaticano.
*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Por trás de toda a rejeição a Francisco está a ideia de que o papa deva ser de direita para poder ‘governar como se deve’. E não só : está a ideia de que a Igreja deva apoiar e sustentar os governos de direita, considerando-os ‘o mal menor’. Porém, as atitudes de muitos contradizem tal intenção. Em vez de mal menor, parece que as pessoas acreditam ter escolhido um bem absoluto e quase personificado.

É nessas horas que vemos o quanto as ideologias nocivas, instrumentalizando a doutrina da instituição para fins políticos, são capazes de causar grandes estragos. Criou-se uma geração de católicos que atacam o papa gratuitamente, muitos dos quais influenciados por formadores de opinião cuja preocupação não é defender a fé, mas aproveitar-se dela para chegar ao sentimento das pessoas.

Ninguém quer ir para o inferno elegendo um ‘governo comunista’, não é mesmo? Sendo assim, elejamos um ‘de direita’, independente do que venha no pacote. O próximo se torna o inimigo a ser combatido, não as mentalidades corrompidas, presentes em todos os espectros políticos. Tudo o que esvazia o sentido de ser cristão deveria ser denunciado, independente da bandeira que eu, de acordo com minha consciência, tenha assumido.

Comunistas!’, ‘Nazistas!’, ‘Fascistas!’ : gritos que expressam uma nostalgia totalitária sem fim, pautada por uma ignorância histórica e política sem precedentes. A extrema-direita denuncia a volta do comunismo (sem luta armada?), mas se esquece que, se continuar assim, a associação dela aos ideais fascistas passará a ser inevitável. Mussolini sabia da piedade popular de um povo e da força do catolicismo na Itália, e não perdeu a oportunidade de fazer uso disso para estabelecer sua estatolatria.

Tais católicos, desprovidos de uma formação humana e doutrinal consistentes, viram massa de manobra de uma engenharia política arquitetada por pseudo-iluminados. Não tenhamos dúvida : há muito dinheiro angariado com a difusão dessas cartilhas virtuais de teorias da conspiração, além de muito ‘peixe grande’ que, como Constantino ou Carlos Magno, não estão preocupados com evangelização ou difusão dos valores.

Um papa ser chamado de comunista por defender imigrantes ou acolher os homossexuais  algo incentivado pelo próprio catecismo da Igreja Católica  é só um dos sintomas desse devaneio que se instalou. Sendo assim, é por culpa dos católicos que os pilares do cristianismo foram reduzidos a meros ideais da esquerda. O papa é cristão, não de ‘esquerda’. Ele adotou um estilo pastoral, não uma ideologia política.

Vemos combatentes de uma guerra ideológica prontos para defender seus ‘correligionários’, não o próprio líder espiritual. E, mais do que nunca, é hora de denunciarmos tais posturas, folheando as páginas empoeiradas do compêndio da doutrina social da Igreja, a começar do artigo 424 : ‘A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática e não assume nem exprime preferências por uma ou outra solução institucional e constitucional’.


Fonte :

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Política, a arte do diálogo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG



A verdadeira política é arte que se vale do diálogo para encontrar as soluções mais adequadas ao bem comum, a partir da argumentação, de compreensões lúcidas sobre a realidade. Oportuno lembrar que a arte tem força para elevar a compreensão humana a novos patamares. Por isso mesmo, o exercício da política, enquanto arte, deve contribuir para que a sociedade avance rumo a novas conquistas civilizatórias. O interesse tem que ser o bem comum. É isso o que se espera dos representantes eleitos pelo povo. E que não percam a clareza de que o parlamento, em nível federal, estadual ou municipal, é a casa do povo, onde seus representantes estão reunidos, para servi-lo. Assim, a configuração de ‘bancadas’, para a defesa de interesses muito particulares de alguns segmentos, não raramente contrários ao bem, à justiça e à verdade, é algo incompatível com a boa política.

O exercício do poder exige qualificado debate sobre os diferentes anseios dos diversos segmentos da sociedade, processo indispensável para a construção de entendimentos acertados. É fundamental dialogar no contexto político, com a imprescindível capacidade para reconhecer os clamores do cidadão comum, particularmente dos mais pobres. Compreende-se que ser parlamentar é tornar-se porta-voz, principalmente, dos que sofrem. Na contramão desse sentido, o exercício da representação é de duvidosa qualidade e incapaz de promover melhorias, pois, quando a política é exercida de modo equivocado, contribui para que as riquezas sejam dilapidadas a partir de crimes ambientais e humanitários, em vez de convertidas em benefícios para a vida no planeta. Seja meta dos que ocupam cargos nas instâncias do poder a promoção do desenvolvimento integral, com respeito à natureza, aos valores culturais e religiosos, dentre tantos outros.

Não é tarefa fácil exercer a boa política. Por isso, ante às complexidades e exigências, muitos se afastam dessa responsabilidade. Os estreitamentos ideológicos, por exemplo, também agravam a aversão ao universo político. Mas essas distorções só podem ser corrigidas a partir da arte de dialogar. Assim é que se vencem barreiras e se constroem entendimentos, criando novos marcos regulatórios capazes de revisar legislações inadequadas, que atendem somente a interesses pouco nobres, fontes de crimes ambientais e humanitários.

A política como arte do diálogo é capaz de elevar o exercício da cidadania, reconhecendo que o bem coletivo é a meta central a ser buscada por todos. Dialogar é dinâmica que promove correções, possibilitando aos representantes do povo atuar, cada vez mais, de modo coerente com os anseios de seus representados. Estejam todos abertos ao diálogo, sem medos, preconceitos, para que ocorram os intercâmbios necessários de ideias. Particularmente, os políticos possam ouvir instituições que mereçam respeito, por terem credibilidade e, assim, desenvolver trabalhos comprovadamente importantes para a população, especialmente para os mais pobres.

 Fazer com que a política se torne, cada vez mais, a arte do diálogo, exige dos representantes do povo disposição para o exercício da humildade e da generosidade. Abertura para a escuta, sem se apegar a interesses egoístas e cartoriais. Que os políticos renovem a disposição para dialogar, evitando descompassos e, assim, permaneçam firmes na busca pelo bem de todos.’


Fonte :  

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Brotos de nova política

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
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*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘‘A esperança é a última que morre’, diz a sabedoria popular. Na verdade, a esperança não pode morrer, pois é chama que ilumina horizontes sombrios e permite enxergar rumos novos. Esse entendimento deve inspirar a sociedade brasileira neste ano eleitoral, quando todos são convocados a investir nos ‘brotos’ de uma nova política. Afinal, não é possível pensar em avanços, consertos e novas respostas sem a reconfiguração do universo político. E trata-se de uma obviedade dizer que graves problemas - corrupção, depredação e apropriação indevida do bem comum, entre tantos outros males - são alimentados pela velha política brasileira, que enterra a sociedade em um verdadeiro lamaçal. Então, como poderão surgir os brotos de uma nova política? Essa é uma pergunta que não pode ser respondida com facilidade, mas que deve orientar a participação cidadã de todos.

Pode-se pensar em nomes que ainda não disputaram eleições, acreditar que tantos outros, já veteranos, corrigirão suas posturas. De todas as formas, constata-se que a lista das boas opções não é grande, pois a vaidade toma conta dos corações dos candidatos e não deixa espaço para valores humanísticos, prevalecendo interesses partidários pouco nobres. O contexto brasileiro requer verdadeira conversão política. Isso exige que os candidatos não se limitem a apresentar-se apenas como ‘inocentes’ e ‘honestos’. Também são dispensáveis os discursos vazios, que objetivam passar falsa imagem ao eleitor. O desafio é reconhecer o autêntico sentido da política : lutar e contribuir para promover o bem comum.  

Ora, a finalidade da atividade política é o bem do Estado, nunca a sua depredação. A apropriação do erário por pequenos grupos e oligarquias, para o atendimento de interesses que são distantes dos anseios da coletividade, é inaceitável. A política deve se fundamentar na ordem moral e ter por objetivo a promoção do bem comum. Cada cidadão precisa trabalhar para que o universo político alinhe-se a essa perspectiva. Na Bíblia, o profeta Isaías evoca a imagem de um pano sujo para se referir ao que é podre e corrupto. Pode-se dizer que fizeram da política um ‘pano sujo’. E a tarefa de todos é recuperar o sentido genuíno do exercício do poder. Para isso, antes de observar interesses partidários ou princípios ideológicos, a consciência cidadã precisa enxergar e buscar o que promove o bem de todos.

Consciente do sentido genuíno da política, o eleitor será capaz de questionar aqueles que exercem o poder e os que desejam ser representantes do povo. Sem esse questionamento, não se pode esperar que ocorram as necessárias mudanças no país. A eleição de pessoas capazes de conduzir a sociedade rumo a novas direções depende, sobretudo, do compromisso cidadão de transformar o contexto político. Somente com o qualificado exercício da cidadania, será possível gerar os brotos de uma nova política. Nesse sentido, sejam combatidos discursos demagógicos, debates sem propostas, que se limitam ao ataque de concorrentes, procurando esconder as próprias limitações.

Gerar e cultivar o broto de uma nova política é contribuir para ultrapassar a velha dinâmica que prioriza a busca egoísta pela satisfação de interesses pessoais ou de pequenos grupos, a partir do sacrifício de muitos. É vencer processos com burocratizações estéreis que levam a perdas significativas e revelam a incapacidade para urgentes discernimentos. Mais importante : o passo primeiro para qualificar as instâncias do poder é reconhecer o real objetivo da política - estar a serviço da vida.

 Para ser autêntica, a política não pode ser identificada como conjunto de trapaças e outras atitudes que revelam mesquinhez. O bem comum precisa ser a meta de todos - eleitores e candidatos. O ano eleitoral convoca todos para redobrar a atenção e buscar, esperançosamente, os brotos da nova política. Não é tarefa fácil, mas ‘a esperança é a última que morre’. A esperança não pode morrer.’


Fonte :
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/artigo/7603/2018/08/brotos-de-nova-politica/

sexta-feira, 29 de junho de 2018

O dilema do bom samaritano


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Crianças migrantes acampadas em frente à entrada do porto de San Ysidro, na divisa de Tijuana, em 30 de abril de 2018.
Crianças migrantes acampadas em frente à entrada do porto de San Ysidro,
na divisa de Tijuana, em 30 de abril de 2018

*Artigo de Adrian Pabst,
professor de política na Universidade de Kent 


Ética das Políticas de Migração

‘Esta semana o governo alemão liderado por Angela Merkel pode entrar em colapso devido a suas diferenças com seu ministro do Interior, Horst Seehofer, sobre a política de migração. Nos EUA, a administração de Donald Trump está separando as crianças de pais que foram pegos cruzando a fronteira mexicana sem permissão em nome de sua abordagem de ‘tolerância zero’ à imigração ilegal.

A imigração em massa e a deportação em massa talvez seja a grande questão moral de nossos tempos. O drama humano que traz este tipo de imigração levanta questões fundamentais sobre como chegar a um acordo justo e equitativo entre os países e comunidades de onde os refugiados ou migrantes se saem e os países e comunidades que os hospedam. As necessidades, direitos e obrigações dos refugiados ou migrantes podem ser equilibrados com as necessidades, direitos e obrigações dos cidadãos e residentes? Não há respostas simples para essas perguntas. O debate político e a formulação de políticas tendem a ser dominados por duas ideias de justiça. Cada um está em condições de pobreza.

A ideia de justiça é estritamente utilitária, na verdade reduzindo o que é a solução mais justa para o que é mais rentável, ou a melhor relação custo-benefício. Na campanha do referendo da UE, por exemplo, a discussão sobre a imigração foi quase inteiramente travada sobre seus alegados custos ou benefícios para a economia como um todo. O impacto de sair ou permanecer nos salários de certos grupos da sociedade, ou o tipo de pressões que seriam colocadas sobre serviços públicos para o atendimento dos migrantes em partes específicas do país, foram amplamente ocultados da vista. A análise utilitarista tende a esquecer que ninguém é uma estatística.

A abordagem alternativa reduz a justiça aos direitos individuais. Dentro da UE, a livre circulação de pessoas baseia-se na ideia de uma liberdade universal para buscar uma vida melhor em qualquer outro lugar que não seja em nosso país de origem. Certamente, de acordo com esta maneira de pensar, todos devem ter o direito de viver e trabalhar onde quer que escolham? Mas isso é ignorar os efeitos das ações individuais nas famílias e comunidades. A análise libertária tende a esquecer que ninguém vive em um vácuo social.

Utilidade e liberdade são valores importantes e não devem ser negligenciados. Mas nenhum deles tem muito a dizer sobre o que nos une como seres humanos. Cada um fica em silêncio sobre o que constitui o bem comum e a boa vida. Os cristãos acreditam que os seres humanos têm um valor intrínseco porque são criados à imagem e semelhança de Deus. Não são simplesmente coisas produzidas à venda no mercado, redutíveis ao seu valor monetário. Cada indivíduo é, literalmente, ‘além do preço’, aliás inestimável. Quando os seres humanos são tratados como mercadorias, isso leva a sistemas desumanos que perturbam as relações pessoais e os padrões duradouros da vida. As pessoas são tratadas como meios e não como fins. A sensação de que toda vida é sagrada é violada.

Os seres humanos não são simplesmente os portadores de direitos individuais. Nós temos corpos, mentes e almas. Estamos inseridos em relacionamentos e instituições - por mais difíceis e disfuncionais que possam ser. Nossos direitos não são simplesmente posses pessoais; eles derivam de um senso mais profundo de dignidade e deveres. A dignidade inalienável da pessoa consagrada em muitas constituições nacionais é talvez a mais próxima tradução secular da crença religiosa na santidade da vida. Deveres são obrigações que devemos a nós mesmos e aos outros - ser pai, professor ou político envolve obrigações para servir aos outros. Temos o dever de cuidar dos outros e de seu bem-estar; para liderar pelo exemplo.

Na tradição cristã, nosso dever é amar o próximo ‘como a nós mesmos’. Para alguns, isso significa que o amor é predominantemente reservado para aqueles que estão próximos a nós em nosso lar e em nossa comunidade antes de ser estendidos ao estranho, seja qual for a dificuldade que o estrangeiro possa ter experimentado ou pela que tenha passado. Para outros, significa que o amor deve ser dirigido, antes de tudo, aos mais vulneráveis neste mundo - os pobres, os oprimidos, os jovens, as crianças e os muito idosos, os perseguidos, todos os que não têm lar.

Essa tensão parece irresolúvel. A quem devemos nosso amor? A resposta cristã para essa questão é que não temos que escolher um ou outro. É ambos. Devemos nosso amor a ‘pessoas como nós’, nossos amigos e parentes, e ao ‘outro’, ao estranho que bate à nossa porta. O amor ao próximo nos chama a amar as pessoas que são nossos vizinhos - aquele que está diante de nós, não importa de onde eles sejam ou a que grupo possam pertencer. Isso é o que aprendemos da parábola do Bom Samaritano; o viajante tornou-se próximo do samaritano e o samaritano tornou-se próximo do viajante.

Porém, se somos chamados a amar aqueles que estão à nossa frente, isso exclui o amor por aqueles que moram longe, como o refugiado líbio em um campo italiano ou a criança mexicana detida na fronteira com os EUA? Não. É claro que a compaixão e a caridade devem ser estendidas aos refugiados que perderam suas casas e precisam de abrigo. Ao mesmo tempo, é importante não nos desconectarmos de nossos vizinhos imediatos em nosso desejo de servir aos próximos. Nascemos em um lugar particular e fazemos parte de uma comunidade local. É isso que nos dá uma sensação de pertencer. Só Deus pode amar todas as pessoas igualmente. A Igreja é chamada a ser uma fraternidade universal de solidariedade, especialmente solidariedade com os pobres, de onde quer que sejam. No Ensino Social Católico, isso é conhecido como ‘a opção preferencial pelos pobres’.

A outra noção chave do Ensino Social Católico é ‘o bem comum’. Isso traz algo diferente para nossa compreensão da justiça. Direitos ou liberdades são principalmente individuais; a utilidade é principalmente coletiva. O bem comum, pelo contrário, combina a realização pessoal com o florescimento mútuo. Como pessoas únicas com talentos únicos, só podemos contribuir para a sociedade e realizar o nosso potencial em conjunto com os outros. Somos seres relacionais, não solitários em uma massa anônima.

O bem comum é sobre os bens que, de fato, temos em comum - não apenas terras comuns e recursos compartilhados, mas nossos relacionamentos e amizades, e nossa linguagem e cultura compartilhadas; nossas músicas, nossas comidas favoritas, a maneira como criamos nossos filhos. Nenhum desses bens é abarcado pelos números como os gastos da nação. Assim, ao contrário dos direitos ou da utilidade, o bem comum inclui todas as relações entre pessoas que oferecem significado.

Assim como o amor ao próximo, que equilibra o amor ao ‘nosso povo’ com o amor aos ‘estranhos’, há um equilíbrio a ser alcançado entre a opção preferencial pelos pobres e pelo bem comum. Ao formar uma política justa de migração, isso sugere fazer uma distinção entre refugiados que fogem da guerra e escapam da perseguição, e migrantes que deixam para trás a pobreza e estão em busca de melhores oportunidades. A situação dos refugiados e requerentes de asilo é uma catástrofe humanitária. A situação de muitos migrantes econômicos é terrível, mas não tão desesperada. A opção preferencial pelos pobres sugere que os refugiados têm uma demanda prévia por nossa ajuda sobre os migrantes econômicos.

Países prósperos como a Grã-Bretanha têm o dever moral de receber mais refugiados e fornecer ajuda adequada, até porque a política externa e as vendas de armas do Reino Unido têm sido um fator significativo na criação da emergência de refugiados desde o verão de 2015, quando centenas de milhares de sírios começaram a fugir de seu país devastado pela guerra. A obrigação de receber migrantes econômicos de países onde não há guerra civil ou perseguição não se aplica na mesma medida. Enquanto isso pode soar sem coração, é exatamente o oposto. A emigração em massa tem profundas consequências sociais e culturais para as sociedades desses países ‘emissores’.

Como o ex-arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, escreveu no ano passado, ‘a migração em massa produz um enfraquecimento das solidariedades civis comuns. Em países obrigados a supor que uma proporção significativa de seu povo estará no exterior por um número indefinido de anos produtivos - produtivos não apenas financeiramente, mas em termos de serviço público e responsabilidade compartilhadas - a mobilidade excessiva das populações trabalhadoras esvazia o espaço cívico. Estas são sociedades que muitas vezes já são economicamente e socialmente vulneráveis’.

A obrigação dos estados prósperos é ajudar a limitar a emigração trabalhando com países ‘emissores’ para proporcionar mais segurança e melhores condições de vida. Essa é também a posição do Papa Francisco : ‘A Igreja está do lado de todos os que defendem o direito de cada pessoa a viver com dignidade, em primeiro lugar exercendo o direito de não emigrar e de contribuir para o desenvolvimento do país de origem’ (Mensagem no Dia Mundial dos Migrantes e Refugiados, 17 de janeiro de 2016). Mas, infelizmente, os países ocidentais não têm a vontade política de se comprometerem oferecendo os recursos necessários para tornar a permanência em um país ‘emissor’ uma opção possível e credível. Se isso não acontecer, mais migrantes continuarão chegando.

Outra razão para a justiça privilegiar os refugiados em relação aos migrantes econômicos está no bem-estar dos países ‘hospedeiros’. A imigração em massa pode levar a um ritmo de mudança que é incompatível com uma medida de coesão social na qual a coexistência pacífica e a integração hospitaleira dos migrantes dependem. O Ensino Social Católico sugere que precisamos combinar financiamento mais generoso para programas de integração com o incentivo a formas criativas de promover o respeito pelas leis e tradições dos países anfitriões. Somente cultivando uma casa estável e à vontade consigo mesma podemos receber outros com amor de boa vizinhança.’


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